Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:696/22.2 BEALM
Secção:CT
Data do Acordão:05/04/2023
Relator:CATARINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores:DISPENSA DE GARANTIA
INSUFICIÊNCIA OU INEXISTÊNCIA DE BENS
INDÍCIOS DE ATUAÇÃO DOLOSA DO INTERESSADO
Sumário:I - O deferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia está sujeito à verificação de três requisitos, sendo dois deles de verificação alternativa e um terceiro de verificação cumulativa: alternativamente, importa provar que (i) a prestação de garantia causa prejuízo irreparável ou (ii) a manifesta falta de meios económicos a qual é revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido; cumulativamente, cumpre demonstrar (iii) a inexistência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a atuação dolosa do interessado.

II - Os fortes indícios de que a insuficiência de bens se deveu a atuação dolosa do requerente como pressuposto negativo da dispensa da prestação de garantia com vista à suspensão da execução, deve apurar-se de acordo com as circunstâncias concretas do caso.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

l – RELATÓRIO

S ………………. veio, ao abrigo do disposto no artigo 276º e ss. do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), apresentar reclamação judicial contra o despacho proferido pela Diretora de Finanças de Setúbal, em 20/05/22, que indeferiu o pedido de dispensa de prestação de garantia formulado no âmbito do processo de execução fiscal nº ………………….301 que contra si foi instaurado, pelo Serviço de Finanças da P........., com vista à cobrança coerciva de dívidas de IRS e acrescido, do ano de 2018, no montante total de €2.027.691,88.

O Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Almada, por sentença de 30/11/22, julgou a reclamação judicial procedente e, em consequência, anulou o ato de indeferimento do pedido de dispensa de garantia.

Inconformada com a decisão, a Fazenda Pública apelou para o Tribunal Central Administrativo Sul (TCA Sul), tendo na sua alegação formulado as seguintes conclusões [reformuladas após convite]:

«a) Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou procedente a reclamação de atos do órgão de execução fiscal apresentada, nos termos do disposto no artigo 276º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), e anulou o despacho proferido em 20-05-2022, pela Diretora de Finanças de Setúbal, no âmbito do processo de execução fiscal (PEF) nº ……………….301, que corre termos no Serviço de Finanças de P......... (OEF) e que indeferiu o pedido de isenção da prestação de garantia para efeito de suspensão da execução, com fundamento na verificação da existência de indícios sérios e fundados de que a insuficiência de bens se deveu a atuação dolosa do executado.

b) Com a devida vénia, a Fazenda Pública não se pode conformar com tal sentido decisório, considerando existir erro de julgamento quanto à matéria de facto e de direito, por errada valoração dos elementos constantes dos autos, deficiente instrução e análise crítica das provas que lhe cumpria conhecer, e consequente erro na aplicação do disposto nos artigos 52º, nº 4 e 74º da Lei Geral Tributário (LGT) e 342º do Código Civil (CC).

c) Considerando a factualidade enunciada nas alíneas b), d) e e) da matéria assente, verifica-se que o reclamante aquando da venda do veículo, bem sabia que corria contra ele ação inspetiva para o período de 2018, resultando, assim, evidente o propósito por parte daquele de fazer desaparecer os bens do seu património, para frustrar os créditos da Autoridade Tributária.

d) Além disso, verifica-se que a referida ação inspetiva foi determinada no seguimento de comunicações da Direção de Serviços de Investigação da Fraude e de Ações Especiais (DSIFAE), relativas a divergências entre o volume de negócios declarado, o valor das aquisições realizadas no mercado interno e os valores recebidos nas contas bancárias do sujeito passivo, e bem assim que no seguimento das referidas comunicações da DSIFAE, foi igualmente instaurado o procedimento inspetivo realizado a coberto da OI nº 202001138, relativa ao período de 2016.

e) Pelo que, partindo dessa factualidade, e em face do conhecimento pelo reclamante, em momento anterior à alienação do veículo de sua propriedade, do inicio da ação inspetiva subjacente à liquidação, cuja falta de pagamento deu origem ao PEF em presença, sempre deveria o douto tribunal ter concluído pela existência de fortes indícios de que a insuficiência de bens se deveu a atuação dolosa do reclamante.

f) Paralelamente, a circunstância do reclamante ter conhecimento em 23-12-2020 do relatório inspetivo elaborado no âmbito da OI nº 202001138, do qual resultaram correções, tendo sido apurados e liquidados créditos tributários, relativos ao ano de 2016, referentes a IVA, no valor de € 344.662,53, e de IRS, no valor de €143.457,24, e de subsequentemente ter procedido em 31-12-2020 à alienação do veículo de sua propriedade, traduz-se numa atuação que se caracteriza igualmente como indiciariamente dolosa, e que ainda assim, a douta sentença desconsiderou em absoluto, na medida em que não levou os mesmos ao probatório.

g) Na sentença proferida nos autos de procedimento cautelar de arresto nº89/21.9BEALM, na qual a Administração Tributária também se apoiou e para a qual remete expressamente a informação que suporta o despacho reclamado, consta que “Em resultado da ação inspetiva titulada pela ordem de serviço n.º 0I202001138, foram apurados e liquidados créditos tributários, relativos ao ano de 2016, referentes a IVA, no valor global de € 344.662,53, e de IRS, no valor de € 143.457,24 [cf. alíneas A) a O) da matéria assente], pelo que se dá como verificado o pressuposto constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 136.º do CPPT, isto é, o fumus boni juris.”.

h) E ainda que: “ (…) quanto aos créditos respeitantes a dívidas de IRS [cf. alíneas L) a N)da matéria assente], resulta dos factos apurados um fundado receio da diminuição da garantia de cobrança, dados os indícios de dissipação do património pelo Requerido, evidenciados pela transferência de propriedade de uma viatura de luxo para a sociedade comercial detida e explorada pelos pais do Requerido [cf. alíneas P) a R) da matéria assente], após a realização da atividade inspetiva da AT e da notificação do projeto de RIT [cf. alíneas A) a C) da matéria assente].

i) Donde, de acordo com a verdade factual deverá ser aditado à matéria assente o seguinte facto:
“L) No âmbito do procedimento inspetivo realizado ao abrigo da OI202001138, para o período de 2016, e do qual resultaram correções em sede de IVA, no valor de € 344.662,53, e de IRS, no valor de € 143.457,24, foi o reclamante notificado do projeto de relatório em 04-12-2020, e do relatório final em 23-12-2020.”.

j) Desse facto, conjugado com facto do reclamante ter conhecimento desde 21-10-2020 de que estava a decorrer o procedimento de inspeção para o ano de 2018 que deu origem à liquidação em cobrança nos presentes autos de execução, suportado nas mesmas circunstâncias da ação inspetiva nº 202001138, e considerando a data da transferência [31-12-2020] da propriedade do veículo para a sociedade comercial detida e explorada pelos seus pais, ocorrida em 31-12-2020, ou seja, cerca de mês e meio após o inicio da ação inspetiva para o ano de 2018, sempre o douto tribunal a quo deveria ter concluído que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a atuação dolosa do interessado.

k) Paralelamente deve ainda ser aditado ao probatório o seguinte facto:
M) Por sentença de 17-02-2021 proferida nos autos de providência cautelar nº89/21.9BEALM foi decretado o arresto de bens do executado.”, conforme resulta do despacho reclamado.”.

l) Além disso, e a corroborar a existência de tais indícios, temos igualmente o RIT elaborado na ação inspetiva nº 202000346, junto aos autos com a contestação, no âmbito da qual foi feita uma recolha de provas sérias, de uma nítida conduta dolosa do interessado na situação de insuficiência ou inexistência de bens penhoráveis, em resultado da omissão de rendimentos, porquanto aflora-se do RIT que o sujeito passivo procedeu à venda de mercadorias sem a emissão de respetiva fatura e consequente omissão de vendas, obtendo através da ocultação de valores (logo da real situação patrimonial e financeira) vantagens patrimoniais, factos que consubstanciam a prática de crime de fraude tipificado no nº 1, alíneas a)e b) conjugado com o n.º 2 do artigo 103º do RGITA.

m) Por conseguinte, entende esta Fazenda Pública que deve ainda ser aditado ao probatório o seguinte facto:
“N) Em 21-10-2020, foi iniciado o procedimento inspetivo realizado a coberto da OI nº 202000346, referente ao exercício de 2018, do qual resultaram correções que deram origem à liquidação em cobrança no PEF nº …………….301.”.

n) Por último, importa referir que a demonstração da existência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a atuação dolosa do interessado, não se mostra prejudicada pela circunstância do valor dos bens dissipados ser muito inferior ao valor suficiente para saldar a quantia exequenda.

o) E nessa medida, como impõe a norma vertida na última parte do nº 4 do artigo 52º da LGT, a AT logrou provar de forma inequívoca que o reclamante teve uma atuação conducente à insuficiência de bens com intenção de provocar uma diminuição das garantias dos credores, ou seja, dolosamente dirigida à dissipação do património.

p) Por conseguinte, salvo o devido respeito, que é muito, o Tribunal a quo lavrou em erro de interpretação e aplicação do direito e dos factos, nos termos supra explanados.

q) Pelo que, ressalvando-se sempre o devido respeito, a douta sentença recorrida não poderá deixar de ser revogada e substituída por acórdão que julgue improcedente a reclamação e mantenha o despacho recorrido.

r) Mais requer esta Fazenda Pública, muito respeitosamente, a Vªs Exªs, ponderada a verificação dos seus pressupostos, a dispensa do pagamento do remanescente da taxa de justiça, prevista no n.º 7 do art.º 6º do RCP, por estarmos perante a forma processual de reclamação do acto do órgão de execução fiscal, prevista no artº. 276º e ss do CPPT, aplicando-se a tabela II-A, cfr. acórdão recorrido e acórdão do STA de 24.07.2013, proc. 01221/13.»


*


O Reclamante, ora Recorrido, apresentou as suas contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:

«A. A Fazenda Pública interpôs recurso da Sentença proferida pelo Tribunal a quo”, que julgou integralmente procedente a reclamação judicial deduzida, nos termos do artigo 276.º e seguintes do CPPT, da decisão proferida, em 20.05.2022, pela Exma. Sr.ª Diretora de Finanças de Setúbal, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ………………….301, que corre termos no Serviço de Finanças de P........., de indeferimento do pedido de dispensa de garantia para efeitos de suspensão da execução, com fundamento na verificação da existência de indícios sérios e fundados de que a insuficiência dos bens se deveu a atuação dolosa do Recorrido;

B. O Tribunal a quo julgou a reclamação deduzida procedente por ter entendido, e bem, que a AT não demonstrou, como lhe competia nos termos do n.º 4 do artigo 52.º da LGT, que a insuficiência de bens penhoráveis identificada no processo de execução fiscal referente à dívida de IRS de 2018 tinha resultado de atuação dolosa do Recorrido;

C. Bem andou o Tribunal a quo ao decidir nesse sentido;

D. A Fazenda Pública entende que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento e que deveria ter concluído pela procedência da reclamação deduzida;

E. Não colhe a posição da Fazenda Pública, por vários motivos;

F. Em primeiro lugar, a Fazenda Pública incumpriu o ónus de impugnação da matéria de facto que recaía sobre si nos termos do 640.º do CPC aplicável ex vi artigo 281.º do CPPT, ao omitir a identificação dos meios probatórios em que deveria assentar o aditamento de factos que requer nos pontos Q), S) e Z) do recurso interposto;

G. Por outro lado, ainda que se entendesse que esse ónus tinha sido cumprido, o que não se concede, sempre se afigura correta a aplicação do direito a que procedeu o Tribunal a quo, porquanto:

a. a questão que se coloca nos presentes autos é a de saber se a decisão de indeferimento do pedido de dispensa de garantia proferida no processo de execução por dívida de IRS de 2018 é ou não legal, considerando que o indício de atuação dolosa identificado pela AT como base dessa decisão, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 4 do artigo 52.º da LGT, é a venda, em 31.12.2020, do veículo automóvel de marca Jaguar detido pelo Recorrido à sociedade detida pelos seus pais;

b. a alienação do veículo automóvel ocorreu em 31.12.2020 [facto B) da matéria de facto dada como provada];

c. relativamente ao IRS de 2018, o Recorrido apenas foi notificado do projeto de relatório de inspeção em 22.09.2021 e do relatório final de inspeção em 13.10.2021 [facto E) da matéria de facto dada como provada];

d. o Recorrido não tinha, à data em que alienou o veículo, conhecimento de quaisquer correções à matéria coletável ou imposto em falta apurado – ou que se projetasse apurar – no âmbito da inspecção referente ao IRS de 2018;

e. a inexistência desse conhecimento determina a impossibilidade de estabelecer qualquer nexo de causalidade entre o evento da alienação do veículo e uma atuação dolosa relevante no processo de execução instaurado quanto àquela dívida de IRS e 2018, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 4 do artigo 52.º da LGT

H. O fundamento da decisão reclamada é tão-só a alienação do veículo automóvel pelo Recorrido em 31.12.2020, pelo que a respetiva legalidade apenas a essa luz pode ser analisada;

I. Em face do exposto, bem andou o Tribunal a quo ao julgar procedente a reclamação deduzida da decisão de indeferimento do pedido de dispensa de garantia, pelo que deve a Sentença recorrida manter-se na ordem jurídica, com as demais consequências legais.

Termos em que, em face da fundamentação exposta e porque a douta Sentença recorrida bem decidiu, deve esta ser mantida na ordem jurídica e, por conseguinte, negado provimento ao recurso apresentado pela Fazenda Pública, com as demais consequências legais.»


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Neste TCA, a Exma. Magistrada do Ministério Público emitiu douto parecer no sentido do não provimento do recurso.

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Com dispensa dos vistos legais, atento o carácter urgente dos autos, vem o processo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Tributário para decisão.



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II – FUNDAMENTAÇÃO


- De facto

A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos:

«A) Em 07-09-2018, o Reclamante adquiriu um veículo automóvel de passageiros de luxo, com a marca JAGUAR, modelo DC, com a matrícula …………. (facto não impugnado);

B) Em 31-12-2020, a propriedade do veículo referido na alínea antecedente foi transferida para a sociedade comercial “M ………………, Lda.”, pertença dos seus pais, por compra e venda, pelo preço de €35.000 (cfr. doc. 3 junto com a p.i.);

C) Em 25-12-2021, foi instaurado no Serviço de Finanças de P........., o processo de execução fiscal nº …………………..301, para cobrança de dívidas de IRS do ano de 2018, no valor de €1.972.907,87 (facto não impugnado);

D) A liquidação de IRS de 2018, cuja falta de pagamento originou o processo de execução fiscal resulta de acção de inspecção ao Reclamante, que teve início em 21/10/2020 – data da assinatura da Ordem de Inspecção (cfr. doc. junto com a contestação);

E) O Reclamante foi notificado do projecto de relatório de inspecção através do ofício nº 8977, datado de 22-09-2021 e, pelo ofício de 13-10-2021 do relatório final (cfr. doc. 4 e 5 juntos com a p.i.);

F) Em 04-01-2022, o Reclamante foi citado para a execução (facto não impugnado);

G) Em 08-04-2022, a Reclamante apresentou requerimento a pedir o pagamento em prestações e a dispensa da prestação de garantia (cfr. fls. 46 a 53 do PEF);

H) Em 19-05-2022, a Direção de Finanças de Setúbal elaborou a informação nº 185/2022EADE (cfr. doc. 2 junto com a p.i.);

I) Em 20/05/2022, a Diretora de Finanças de Setúbal, indeferiu o pedido de dispensa de garantia (cfr. doc. 2 junto com a p.i.);

J) Em 03-06-2022, foi enviada, ao Reclamante, notificação do referido despacho de indeferimento (cfr. doc. 1 junto com a p.i.);

K) Em 14/10/2022, deu entrada neste Tribunal, a reclamação apresentada pelo Reclamante do acto de indeferimento referido na alínea precedente (cfr. consulta do SITAF).


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III-2. Factualidade não provada:

Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afectar a decisão de mérito, em face das possíveis soluções de direito, e que, por conseguinte, importe registar como não provados.

Fundamentação do julgamento:

A decisão da matéria de facto efectuou-se com base no exame dos documentos e informações oficiais, não impugnados, que dos autos constam, tudo conforme referido a propósito de cada uma das alíneas do probatório.»


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- De Direito

Está em causa a sentença do TAF de Almada que julgou procedente a reclamação apresentada, ao abrigo do artigo 276º do CPPT, contra a decisão de indeferimento do pedido de dispensa de garantia, formulado no âmbito do processo de execução fiscal nº ……………301, o qual corre os seus termos no Serviço de Finanças de P..........

Após descrever o quadro legal aplicável em matéria de dispensa de garantia, considerou a sentença recorrida que:

“Compulsados os autos, verifica-se que o Reclamante foi notificado do projeto de relatório de inspeção tributária e do relatório de inspeção tributária relativos à liquidação adicional em cobrança no processo de execução fiscal n.º …………………..301 (a de IRS de 2018) respetivamente em 22/09/2021 e 13/10/2021.

Também resulta provado que a alienação do veículo em causa ocorreu em 31/12/2020, ou seja, meses antes de ser notificado do projeto de relatório de inspeção tributária e do relatório de inspeção tributária em questão.

Pelo que, ao contrário do arguido pela Fazenda Pública, e constante do despacho ora reclamado, o Reclamante não teve conhecimento antes da notificação do resultado da inspecção tributária do valor que lhe viria a ser exigido.

Assim a Fazenda Pública não logrou provar, como lhe competia, a verificação de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a atuação dolosa do Reclamante, pelo que, deve a reclamação ser precedente”.

Inconformada, a Fazenda Pública insurge-se contra o decidido, começando por questionar o julgamento da matéria de facto, em concreto por entender que devem ser aditados factos ao probatório. Discorda, ainda, do julgamento de direito efetuado e que levou o Tribunal a considerar a ilegal a não dispensa da prestação de garantia, defendendo, antes, que a AT demonstrou o que lhe competia quanto ao requisito correspondente à existência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a atuação dolosa do interessado.

Vejamos, então, o pretendido aditamento à matéria de facto, tendo presente que o Recorrido considera que a Recorrente não cumpriu com o ónus legal que sobre si impende nesta matéria.

Sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o artigo 640º do CPC dispõe, no seu n.º 1, o seguinte:

“Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

No caso, lidas as conclusões de recurso (devidamente concatenadas com as correspondentes alegações) conclui-se que a Recorrente indicou expressamente os pontos da matéria de facto que pretende ver aditados. Contudo, segundo o Recorrido, não foram indicados os concretos meios probatórios constantes do processo em que faz a Recorrente assentar tal aditamento.

Vejamos por partes.

Quanto ao facto mencionado na conclusão i), vemos que a Recorrente remete para o teor da sentença proferida nos autos de arresto nº 89/21.9 BEALM para a qual remete, por sua vez, a informação subjacente ao despacho de indeferimento do pedido de dispensa da garantia - “na qual a Administração Tributária também se apoiou e para a qual remete expressamente a informação que suporta o despacho reclamado”.

No que respeita à factualidade referida na conclusão k), valem as mesmas palavras, quanto à remissão para a informação que suportou o despacho reclamado e sentença proferida em processo de arresto.

Por último, quanto ao circunstancialismo apontado em m), a verdade é que o seu aditamento vem suportado no RIT elaborado na ação inspetiva nº 202000346, “junto aos autos com a contestação”.

Assim sendo, já se conclui que não é por falta de cumprimento do ónus que sobre a Fazenda Pública impendia que deve ser rejeitada a impugnação da matéria de facto.

Avancemos.

Comecemos pelo circunstancialismo referido na conclusão m) e que a Recorrente pretende que se adite ao probatório, a saber: “Em 21-10-2020, foi iniciado o procedimento inspetivo realizado a coberto da OI nº 202000346, referente ao exercício de 2018, do qual resultaram correções que deram origem à liquidação em cobrança no PEF nº ………………..301.”.

O aditamento pretendido mostra-se desnecessário, pois tal factualidade consta já da alínea D) do probatório, tal como a sentença o fixou.

Prosseguindo, quanto ao que consta da conclusão i) e k), pretende a Recorrente que passe a constar do probatório que:

- “L) No âmbito do procedimento inspetivo realizado ao abrigo da OI202001138, para o período de 2016, e do qual resultaram correções em sede de IVA, no valor de € 344.662,53, e de IRS, no valor de € 143.457,24, foi o reclamante notificado do projeto de relatório em 04-12-2020, e do relatório final em 23-12-2020.”;

e, bem assim, que,

- “M) Por sentença de 17-02-2021 proferida nos autos de providência cautelar nº89/21.9BEALM foi decretado o arresto de bens do executado”;

Trata-se, em qualquer caso, de matéria de facto expressamente invocada no despacho reclamado (por remissão para a informação que o precedeu) que não foi, ao longo do processo, contrariada pelo Recorrido. Para mais, e quanto ao pretendido aditamento sobre a ação inspetiva relativa ao ano 2016, pela leitura da p.i de reclamação resulta, sem margem para dúvidas, que tal circunstancialismo é aceite pelo Reclamante, o que é evidenciado pela leitura dos respetivos artigos 65º e 87º. Acresce, em relação à sentença proferida no processo nº89/21.9BEALM (arresto e sua confirmação em sede de oposição ao arresto), que a mesma é do conhecimento deste Tribunal, estando disponível através da consulta ao SITAF.

Assim, adita-se ao probatório o seguinte:

L) No âmbito do procedimento inspetivo realizado ao abrigo da OI202001138, para o período de 2016, e do qual resultaram correções em sede de IVA, no valor de € 344.662,53, e de IRS, no valor de € 143.457,24, foi o reclamante notificado do projeto de relatório em 04/12/20 e do relatório final em 23/12/20 (cfr. teor da informação subjacente ao despacho reclamado, sentenças proferidas em sede de arresto e de oposição ao arresto, no proc nº89/21.9BEALM, ambas disponíveis no SITAF, cujos teores se dão por integralmente reproduzidos e, bem assim, a posição expressa na p.i de reclamação, concretamente nos artigos 65º e 87º).

M) Por sentença de 18/02/21 (e não de 17/02), proferida nos autos de providência cautelar nº89/21.9BEALM, foi decretado o arresto de bens do executado (cfr. sentenças proferidas em sede de arresto e de oposição ao arresto, ambas disponíveis no SITAF, cujos teores se dão por reproduzidos).

Ao abrigo do artigo 662º do CPC, adita-se ainda ao probatório o seguinte:

N) A informação subjacente ao despacho de indeferimento reclamado, a que alude a alínea H) do probatório, apresenta, além do mais, o seguinte teor (cfr. doc. 2 junto com a p.i, cujo teor se dá por integralmente reproduzido):

“III-DA ANÁLISE:

A) FACTOS:

 S ………………., nif ……………… reiniciou a atividade em 27-02-2015, com o CAE 47910 "Comércio a retalho por correspondência ou via internet", cessada em 30-06-2020.

 A atividade desenvolvida pelo sujeito passivo centrou-se no comércio, através do site https;//bestelectronics,pt/.

 Face à constatação de divergências entre o volume de negócios declarado e o valor das aquisições realizadas no mercado interno, em 17/11/2020 deu-se início a uma ação inspetiva relativa ao ano de 2016 (01202001138 - notificação da ordem de serviço em 17/11/2020).

 O projeto de relatório foi notificado ao sujeito passivo através do ofício nº 14169, de 04/12/2020 (e entregue em mão no mesmo dia).

 Em 23/12/2020 foi notificado do relatório de inspeção.

 Em 30/12/2020 S .……….. era proprietário de um veículo automóvel de luxo - marca JAGUAR, matrícula …………., veículo esse que, a partir de 31/12/2020 aparece averbado como propriedade da empresa de seus pais - empresa M. …………….., Lda NIF ………..

 Por despacho de 29.01.2021, proferido pela Exma. Diretora de Finanças de Setúbal, exarado na informação nº 33/2021EADE foi requerida a instauração de providência cautelar de arresto.

 O valor do procedimento cautelar foi fixado em € 488.119,77.

 No âmbito do processo cautelar de arresto nº89/21.9 BEALM, por sentença proferida em 17.02.2021 foi decretado o arresto de bens do ora requerente, tal como solicitado pela Representação da Fazenda Pública.

 Não concordando com o arresto decretado, S ……………… deduziu oposição ao arresto,

 O pef ora em causa - ……………..301, é referente a dívida de IRS, sendo a liquidação do imposto em causa - IRS - resultante de ação de inspeção (Ordem de serviço nº O1202QQ346).

 Na sequência da ação inspetiva- Ordem de serviço nºOI20200346 (ao ano de 2018) as correcções efetuadas à liquidação de 1RS desse ano de 2018 foram as seguintes:

o Correcções Aritméticas - Matéria Tributável - € 3.462.945,54

 O que originou um valor a pagar de € 1,972.907,87.

 A liquidação não foi paga dando origem ao processo executivo supra identificado.

 O IRS do ano de 2018 tem como contribuinte B, A .…………………, NIF …………., responsável solidária no pef em causa - ……………301.

 Em 11 de fevereiro de 2022, A …………………, NIF …………., deduziu oposição (proc. 262/22.2BEALM) e apresentou pedido de dispensa de garantia no âmbito do pef em causa.

 Por despacho datado de 07/03/2022, o pedido de dispensa de garantia no âmbito do pef …………..301 apresentado por A ………………. . nif ………….. foi deferido e em consequência o processo execução fiscal suspenso.

 Em nome de S …………………. nif ………….. não se verifica a existência de qualquer bem imóvel ou móvel sujeito a registo em seu nome (além do já arrestado).

 Em 2021 auferiu a título de categoria A o montante total de € 9.489,00 pagos pela sociedade -M ………………………. LDA nif ……………, pertencente a seus pais.

 Face ao valor anual do vencimento auferido o mesmo é impenhorável.

 Consultadas as aplicações informáticas ao dispor da AT, não se verificou a existência de qualquer outro bem imóvel, ou móvel sujeito a registo, crédito ou rendimento.

 Em 8 de abril de 2022 apresentou reclamação graciosa referente às liquidações de IVA e IRS do ano de 2018 (2208202204001575).

 Na mesma data apresentou pedido de dispensa de garantia no âmbito do pef ……………..301, objeto da presente análise e informação (registo RH………….. PT de 08.04.2022).

B) ENQUADRAMENTO JURÍDICO

(...)

Resumindo, para ser deferido o pedido de dispensa de prestação de garantia é necessário que se satisfaçam três requisitos, cumulativamente, embora dois deles comportem alternativas:

- Que a prestação da garantia cause prejuízo irreparável ao executado,

ou

- Que se verifique uma situação de manifesta falta de meios económicos, revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para pagamento da dívida exequenda e do acrescido,

e

- Que essa inexistência ou insuficiência não sela imputável a conduta dolosa do executado.

Assim, face ao disposto no art. 342º do Código Civil, e no art.74º, nº1, da Lei Geral Tributária, é de concluir que é sobre o executado, que pretende a dispensa de garantia, invocando explícita ou implicitamente o respetivo direito, que recai o ónus de provar que se verificam as condições de que tal dispensa depende, pois tratam-se de factos constitutivos do direito que pretende ver reconhecido.

Debruçando-nos sobre o caso dos autos – S ……………… nif …….. -considerando que reúne os pressupostos legais, vem requerer a dispensa de prestação de garantia, associada a contencioso administrativo (reclamação graciosa), com vista à suspensão do processo de execução fiscal …………..301.

Ora, o valor da garantia a apresentar cifra-se em € € 2.499.637,95 (valor constante da citação recebida em janeiro de 2022).

Em seu nome não encontrámos o averbamento de qualquer bem imóvel ou móvel sujeito a registo, além do imóvel já arrestado.

Com a apresentação do requerimento juntou:

- Fatura do abastecimento de água referente ao mês de março de 2021 - valor de €31,82;

-Fatura do abastecimento de eletricidade referente ao mês de janeiro de 2021-valor de €31,82;

- Pagamento de despesas com a creche da filha no valor anual de € 3.390,00 (ano letivo 2020/2021).

No entanto, cumpre aqui salientar que:

- O ora requerente era proprietário de um veículo automóvel de luxo - marca JAGUAR, matrícula ………., veículo esse que, a partir de 31/12/2020 aparece averbado como propriedade da empresa de seus pais - empresa M ………………….., Lda NIF ……………...

Ora, à data da transmissão do bem do seu património pessoal para o património da sociedade dos seus pais (31/12/2020), o ora reclamante já tinha conhecimento das correções resultantes da ação de inspeção que tinha sido alvo (notificação do projeto de relatório em 04/12/2020 e notificação do relatório de inspeção em 23/12/2020).

Ou seja, a operação de transferência de património ocorreu, quando o ora requerente já estava totalmente ciente do valor que lhe viria a ser exigido pela AT.

Relevante é também o facto de a transferência do bem ter ocorrido para a sociedade cujos sócios são seus pais - a proximidade familiar subjacente aponta para um eventual controlo do bem alienado.

A pertinência de tal facto foi evidenciada na sentença proferida no âmbito do procedimento cautelar de arresto (Processo 89/21.98EALM - Processos cautelares, sentença proferida em 17/02/2021, a fls 12):

"(...) resulta dos factos apurados um fundado receio da diminuição da garantia de cobrança, dados os indícios de dissipação do património pelo Requerido, evidenciados pela transferência de propriedade de uma viatura de luxo para a sociedade comercial detida e explorada pelos pais do Requerido [cf. alíneas P) a R) da matéria assente], após a realização da actividade inspectiva da AT e da notificação do projeto de RIT [cf. alíneas A) a C) da matéria assente] (...).

Acresce no entender da jurisprudência que:

(...) mesmo que os bens alienados fossem insuficientes para garantir a dívida exequenda, a sua alienação (indiciariamente) dolosa agravou a insuficiência, podendo ter passado de mera insuficiência para uma quase inexistência de bens.

O texto da lei alude à insuficiência ou inexistência de bens (e não apenas aos seus valores) como resultado de uma atuação dolosa do interessado, pretendendo com isso desincentivar não só a subtração de bens à penhora (o património do devedor constitui a garantia geral dos créditos tributários (artigo 50.3/1 LGT)], como também não premiar com o benefício da isenção de prestação de garantia - e consequente suspensão da execução fiscal - o devedor que dolosamente se desfaz do seu património. Se tal conduta fosse tolerada, um contribuinte cujo património fosse Insuficiente para garantir a dívida exequenda e acrescido veria penhorados os bens que compõem esse património e prosseguida a execução (artigo 169º/6 CPTT), ao passo que o contribuinte mais "ágil", que dolosamente aliena o seu património, seria beneficiado com a isenção de prestação de garantia e premiado com a suspensão da execução.

No fundo, seria tutelar uma fraude à lei contemporizando com uma situação fáctica (indiciariamente) criada pelo próprio para dela retirar benefícios com prejuízo ao credor tributário.

Não é isso que resulta da lei, nem dos princípios gerais de direito (cfr. artigo11º/1 LGT) - cfr, neste mesmo sentido, o Acórdão do TCAN, de 03/08/2018, proferido no âmbito do processo nº00268/18.6BEAVR.

(...)Como vimos, a recolha dos fortes indícios não é equivalente à prova da existência dos factos indiciadas, pelo que andou bem a AT ao indeferir a pretensão da Recorrente com base na parte final do nº4 do artigo 52º da LGT."

[in Acórdão Tribunal Central Administrativo Norte proc.00580/20.4BERBG de 24/09/2020]

É que,

"(…) A ratio legis do disposto na parte final do nº4 do artigo 52º da LGT coaduna-se com a circunstância de não se justificar a isenção de prestação de garantia quando o executado tenha previamente sonegado ou dissipado os bens com o intuito de diminuir as garantias dos credores (...)"

[in Acórdão Tribunal Central Administrativo Sul proc. 633/19.1BEALM de 25/06/2020]

Ora, de toda a factualidade apresentada poderemos concluir que existem indícios sérios e fundados de que a insuficiência de bens se deveu a actuação dolosa do ora requerente, colocando-se deliberada e conscientemente numa situação de insuficiência patrimonial.

IV-CONCLUSÃO

Face ao exposto, analisados os factos, subsumidos os mesmos às disposições legais enunciadas, e no seguimento da jurisprudência elencada, afigura-se-nos que:

 Deve ser indeferido o pedido de dispensa de prestação de garantia, formulado por S …………………… no âmbito do processo executivo ………………….301, por se verificar a existência de indícios sérios e fundados de que a insuficiência de bens se deveu a atuação dolosa do executado ora requerente, nos termos do disposto no nº4 do artigo 52º da LGT”.

O) A sociedade M …………………., Lda emitiu e assinou cheque bancário n.º ………….., sacado sobre o Banco ………….. no valor de 35.000,00 Euros, datado de 30/12/20, e sem preenchimento do beneficiário do cheque (cf. Documento 3 junto à p.i, fls. 20/verso, dos autos).


*

Estabilizada a matéria de facto, avancemos para o direito.

Fazemos já aqui um parêntesis para dizer que nesta mesma sessão de julgamento vem discutida a mesma questão, pelas mesmas partes, relativamente a outro pedido de dispensa de garantia, no qual, e no essencial, as questões de facto e de direito em apreciação são as mesmas, muito embora a perspetiva de análise inicial seja colocada num plano contrário àquele que aqui se aprecia. Detalhando, e referindo já que nos reportamos ao processo nº 706/22.3BEALM (no qual a ora Relatora é, também, Adjunta), temos que nestes autos se colocou a questão de saber se era acertada a sentença que havia confirmado o despacho de indeferimento do pedido de dispensa da garantia, ao passo que aqui – repete-se – num circunstancialismo de facto em tudo idêntico, a questão é a inversa, ou seja, é a de saber se é acertada a sentença que anulou o despacho de indeferimento do pedido de dispensa de garantia.

Uma vez que concordamos integralmente com a apreciação feita no referido processo nº 706/22, antecipamos, desde já, que a análise que se segue seguirá de perto tal acórdão proferido nesta data.

Dito isto, avancemos.

Defende a Fazenda Pública que, contrariamente ao decidido, “como impõe a norma vertida na última parte do nº 4 do artigo 52º da LGT, a AT logrou provar de forma inequívoca que o reclamante teve uma atuação conducente à insuficiência de bens com intenção de provocar uma diminuição das garantias dos credores, ou seja, dolosamente dirigida à dissipação do património”.

Salienta a Recorrente, a este propósito, que o reclamante, aquando da venda do veículo, bem sabia que corria contra ele ação inspetiva para o período de 2018, resultando, assim, evidente o propósito por parte daquele de fazer desaparecer os bens do seu património, para frustrar os créditos da Autoridade Tributária. Paralelamente, reforça a Recorrente a circunstância do reclamante ter conhecimento, em 23/12/20, do relatório inspetivo elaborado no âmbito da OI nº 202001138, do qual resultaram correções, tendo sido apurados e liquidados créditos tributários, relativos ao ano de 2016, referentes a IVA, no valor de € 344.662,53, e de IRS, no valor de €143.457,24, e de subsequentemente ter procedido em 31/12/20 à alienação de veículo da sua propriedade, o que se traduz numa atuação que se caracteriza como indiciariamente dolosa.

Em abono da sua tese, sublinha a Recorrente que “a demonstração da existência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a atuação dolosa do interessado, não se mostra prejudicada pela circunstância do valor dos bens dissipados ser muito inferior ao valor suficiente para saldar a quantia exequenda”.

Vejamos o que se nos oferece dizer a propósito, tendo presente o quadro legal seguidamente exposto.

A suspensão da execução fiscal depende da prestação de garantia idónea nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 52.º da LGT. Pode, porém, a AT, mediante requerimento do executado, dispensá-lo da prestação de garantia, nos termos previstos no n.º 4 do mesmo preceito legal, de acordo com o qual:

“4 - A administração tributária pode, a requerimento do executado, isentá-lo da prestação de garantia nos casos de a sua prestação lhe causar prejuízo irreparável ou manifesta falta de meios económicos revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido, desde que não existam fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a atuação dolosa do interessado."

Da letra do n.º 4 do artigo 52º da LGT resulta que o deferimento do pedido de dispensa de prestação de garantia está sujeito à verificação de três requisitos, sendo dois deles de verificação alternativa e um terceiro de verificação cumulativa, a saber: alternativamente, importa provar que (i) a prestação de garantia causa prejuízo irreparável ou (ii) a manifesta falta de meios económicos a qual é revelada pela insuficiência de bens penhoráveis para o pagamento da dívida exequenda e acrescido; cumulativamente, cumpre demonstrar (iii) a inexistência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a atuação dolosa do interessado.

“Em termos de ónus probatório, cumpre relevar que quer a dispensa de prestação da garantia assente na ocorrência de prejuízo irreparável, quer na manifesta falta de meios económicos do executado, é sobre o Requerente, in casu a Recorrida, que recai o ónus de alegar e provar os pressupostos para tal dispensa.

Por seu turno, compete à Administração Tributária a demonstração da existência de fortes indícios de que a insuficiência de bens se deveu a atuação dolosa dos Reclamantes. A ratio legis coaduna-se com a circunstância de não se justificar a isenção de prestação de garantia quando o executado tenha previamente sonegado ou dissipado os bens com o intuito de diminuir as garantias dos credores ou que tenha colocado dolosamente a sociedade em situação de manifesta insuficiência económica para a prestação da garantia.

Note-se que com a nova redação do n.º 4, do art.º 52.º, da LGT o legislador tributário procedeu à inversão do ónus da prova no que concerne ao preenchimento do terceiro pressuposto (cumulativo) passando a constar uma atuação dolosa invés da prova do afastamento de uma atuação culposa por parte do executado” – cfr. acórdão deste TCA, de 16/09/19, proc. nº 513/19.0BESNT.

Vejamos, então, atenta a matéria de facto, se a sentença recorrida é digna da censura que a Fazenda Pública lhe dirige, ou seja, se foram recolhidos fortes indícios de que o interessado se colocou na situação de insuficiência ou inexistência de bens, dissipando os seus bens, para evitar que a cobrança coerciva da dívida pudesse ter lugar.

Os indícios deverão ser retirados do conjunto dos factos recolhidos.

No caso, resulta do probatório que, à data da transmissão do veículo, já haviam ocorrido os seguintes factos que eram do conhecimento do Recorrente:

- o início duas ações inspetivas à atividade comercial do Recorrente, ao abrigo das ordens de serviço n.º OI202000345 e OI202000346, ambas de âmbito geral, tendo a primeira por objeto o ano de 2017 e a segunda o ano de 2018;

- o início outra ação inspetiva à sua atividade comercial, ao abrigo da ordem de serviço n.º OI202001138, também de âmbito geral, referente ao ano de 2016, tendo terminando a ação inspetiva a 22/12/20;

-em 04/12/2020, a notificação ao Recorrente do projeto de relatório de inspeção relativo à ação inspetiva referida no ponto anterior (ano de 2016); as conclusões finais foram comunicadas em 23/12/20;

- em 30/12/20 foi declarada a venda, à sociedade M. M …………….., Lda, de um veículo automóvel da marca Jaguar, modelo F-Pace, com a matrícula ………….., pelo preço de € 35.000;

Em momento posterior à venda do veículo automóvel decorreram os seguintes factos:

- foram remetidos ao recorrente, em 08/09/21 e em 22/09/21, os projetos de relatório referentes às ações de inspeção relativas aos anos de 2017 e 2018;

- a comunicação das conclusões finais dos RIT referidos no ponto anterior, em outubro de 2021.

Como se refere no acórdão proferido no processo nº 706/223BEALM, o qual, com as devidas adaptações, aqui deve ser aplicado, “Dir-se-á que no momento da transmissão do veículo em causa, o recorrente tinha conhecimento de que haviam sido iniciadas três acções inspectivas, uma das quais já concluídas, com apuramento de correções em sede de IVA no montante de € 344.662,53 e em sede de IRS que determinaram a alteração ao apuramento do rendimento tributável relativa à categoria B para € 224.823,33, estando em curso as restantes duas acções inspectivas. Também não restam dúvidas de que após ter tido conhecimento do início dos procedimentos inspectivos referentes aos anos de 2017 e 2018, procedeu à transferência do veículo para a esfera jurídica de sociedade relacionada (cujo capital é detido pelos pais do recorrente), e sem que tenha comprovado a materialização da contraprestação, ou seja, do efectivo recebimento do preço.

Para apurar se existiam fortes indícios de que a insuficiência de bens se deveu a actuação dolosa do requerente, o acto reclamado teve em consideração que o recorrente era proprietário de um veículo, o qual foi transmitido quando já tinha conhecimento da existência das correcções relativos à acção de inspecção referente ao ano de 2016. Quando já estava ciente do valor que lhe viria a ser exigido, tomando ainda em consideração que o bem foi transferido «para a sociedade cujos sócios são seus pais» mais se referindo que «a proximidade familiar subjacente aponta – para um eventual controlo do bem alienado».

Com tal fundamentação concluiu a AT que o recorrente se colocou deliberadamente e conscientemente numa situação de insuficiência patrimonial.

(…)

A questão que se coloca é a de saber se a sentença recorrida efetuou errado julgamento da causa ao julgar que a fundamentação do acto reclamado é suficiente para sustentar a existência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a actuação dolosa do recorrente.

Como se deixou dito supra, a actuação do recorrente deve ser vista numa perspectiva global e não apenas na sua relação com os tributos exequendos.

Não restam dúvidas de que a transmissão do veículo teve lugar quando já tinha conhecimento dos montantes que foram objecto de correcção no âmbito da acção inspectiva que teve lugar relativamente ao ano de 2016 indiciando a transmissão operada a tentativa de salvaguardar o bem em causa, num circunstancialismo em que lhe é possível manter o domínio sobre o veículo, obstando a que o mesmo viesse a ser penhorado para satisfação, ainda que parcial, de dívidas tributárias, fossem elas de 2016, fossem de 2017 ou 2018.

Embora a transmissão do veículo tivesse tido lugar antes do recorrente ter conhecimento das correcções em concreto, decorrentes das acções de inspecção referentes a 2017 e 2018, era já do conhecimento do recorrente que as referidas acções se tinham iniciado e estavam em curso, sabendo das correcções já concretizadas referentes a 2016. Assim, a referida transmissão não pode deixar de constituir um indício de que o recorrente se colocou em situação de insuficiência patrimonial, para evitar o pagamento, ainda que parcial, dos tributos que viessem a ser liquidados.

O argumento de que o recorrente detém um bem imóvel em nada infirma essa conclusão, na medida em que a transmissão de um imóvel não é o mesmo que transmitir um veículo, envolvendo em regra operações mais complexas e morosas.

Com efeito, acompanhando o Acórdão proferido pelo TCAN no processo n.º 00580/20.4BEBRG, datado de 24/09/2020 citado na sentença recorrida e que aqui acolhemos: «(…) mesmo que os bens alienados fossem insuficientes para garantir a dívida exequenda, a sua alienação (indiciariamente) dolosa agravou a insuficiência, podendo ter passado de mera insuficiência para uma quase inexistência de bens. O texto da lei alude à insuficiência ou inexistência de bens (e não apenas aos seus valores) como resultado de uma actuação dolosa do interessado, pretendendo com isso desincentivar não só a subtracção de bens à penhora [o património do devedor constitui a garantia geral dos créditos tributários (artigo 50.º/1 LGT)], como também não premiar com o benefício da isenção de prestação de garantia – e consequente suspensão da execução fiscal – o devedor que dolosamente se desfaz do seu património.

Se tal conduta fosse tolerada, um contribuinte cujo património fosse insuficiente para garantir a dívida exequenda e acrescido veria penhorados os bens que compõem esse património e prosseguida a execução (cfr. artigo 169.º/6 CPTT), ao passo que o contribuinte mais “ágil”, que dolosamente aliena o seu património, seria beneficiado com a isenção de prestação de garantia e premiado com a suspensão da execução.

No fundo, seria tutelar uma fraude à lei contemporizando com uma situação fáctica (indiciariamente) criada pelo próprio para dela retirar benefícios com prejuízo do credor tributário.

Não é isso que resulta da lei, nem dos princípios gerais de direito (cfr. artigo 11.º/1 LGT) – cfr., neste mesmo sentido, o Acórdão do TCAN, de 03/08/2018, proferido no âmbito do processo n.º 00268/18.6BEAVR. (…) a recolha dos fortes indícios não é equivalente à prova da existência dos factos indiciados, pelo que andou bem a AT ao indeferir a pretensão da Recorrente com base na parte final do n.º 4 do artigo 52.º da LGT (…), considerando os momentos temporais em que foram efectuadas as operações de venda de património (coevos com a inspecção tributária – cfr. ponto 7 da decisão da matéria de facto: 2018) e o modo como foram executadas, conclui-se, tal como a AT invocou e provou, que existem indícios fortes, sérios, consistentes e fundados de que a insuficiência de bens se deveu a actuação dolosa da Recorrente, colocando-se deliberada e conscientemente numa situação de insuficiência patrimonial.»

Por fim importa referir que a tese do recorrente, a vingar, num caso como o presente, em que a dívida exequenda resulta de liquidações decorrentes de acções inspectivas, conduziria a uma interpretação restritiva que, de todo, não nos parece ter sido a pretendida pelo legislador.

Senão vejamos.

A vingar a interpretação preconizada pelo recorrente, só valeria como dissipação dolosa aquela venda que ocorresse entre a notificação do relatório final e a emissão das liquidações adicionais, período que é em regra muito curto.

Ora, o património, enquanto garantia das dívidas aos credores deve ser visto como um todo, devendo a actuação do devedor ser avaliada, como já referimos, nas circunstâncias concretas do caso, em que nada indicia que a venda pudesse estar planeada há muito, por exemplo por negociações entre as partes, pela existência de um contrato promessa anterior etc.

No caso, porém, as circunstâncias apontam em sentido diferente. Sendo de relevar o facto de não haver prova do pagamento e o veículo ter sido transmitido para uma sociedade cujo capital é detido pelo pai, onde o recorrente trabalha, que constituem factos que mostram uma vertente intencional mais clara no que se refere à dissipação dolosa.

Tal como no Acórdão citado, concluímos que a sentença recorrida não padece dos erros de julgamento que lhe vêm imputados, impondo-se concluir pela improcedência do recurso, confirmando a sentença recorrida que manteve a decisão de indeferimento reclamada”.

É precisamente este quadro fático e argumentativo que, no caso concreto, nos faz concluir que a sentença recorrida não se pode manter, o que equivale a dizer que a AT recolheu prova da existência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a atuação dolosa do interessado.

Na verdade, se bem virmos a sentença, temos que o argumento decisivo para a anulação do despacho de indeferimento da dispensa de garantia se prendeu com a circunstância de a alienação do veículo em causa ter ocorrido em 31/12/20, ou seja, meses antes de serem notificados os projetos de relatório de inspeção tributária e os correspondentes relatórios finais que estão subjacentes às liquidações que deram origem à dívida exequenda.

Trata-se, porém, de um argumento que não impressiona, pela sua fragilidade. É que, como decorre da fundamentação do acórdão que vimos seguindo, a atuação do Recorrido não pode analisar-se, para estes efeitos, tão balizada no tempo, de forma a apenas relevar a sua conduta entre o conhecimento dos projetos de RIT (ou mesmo das suas conclusões) e a emissão das liquidações (agora) em cobrança coerciva. O que interessa perceber é se foram recolhidos indícios sérios de que o Executado, através da sua atuação, contribuiu dolosamente para a insuficiência ou inexistência de bens que, integrando o seu património, sempre seriam garantia das dívidas ao credor Estado.

E, aqui, como no processo que vimos seguindo (pois o circunstancialismo de facto é o mesmo), essa atuação intencional resulta evidente, considerando – insiste-se – que a atuação do executado, Reclamante, não pode deixar de ser apreciada num contexto mais amplo que, obviamente, implica considerar o seu conhecimento de inspeções anteriores, de inspeções em curso e da particularidade da venda do veículo ter ocorrido com a sociedade dos seus pais (adivinhando-se a manutenção da disponibilidade sobre o mesmo), sem que o preço se mostre efetivamente pago.

Há, assim, que revogar a sentença e julgar a reclamação improcedente, mantendo-se o ato reclamado, ou seja, o indeferimento do pedido de dispensa de garantia.

Como está bem de ver, a demonstração, por parte da AT, do requisito cumulativo correspondente à existência de fortes indícios de que a insuficiência ou inexistência de bens se deveu a atuação dolosa do interessado, deixa sem utilidade o conhecimento dos demais pressupostos (alternativos) alegados pelo Reclamante.

Umas breves considerações finais justificam-se relativamente à dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo do disposto no artigo 6.º, nº 7 do RCP, tendo em consideração que o valor da causa é de 2.027.691,88.

No caso concreto, ponderado o comportamento processual das partes litigantes e tendo em conta a circunstância de a questão apreciada ter sido decidida com inteiro apoio em jurisprudência deste TCA, determina-se que haja lugar à dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, prevista no artigo 6.º, n.º 7, do RCP.


*




III - Decisão




Termos em que, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do TCA Sul em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida, julgar improcedente a reclamação e manter o despacho de indeferimento do pedido de dispensa da garantia.


Custas pelo Recorrido, com dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, ao abrigo do disposto no artigo 6º, nº 7, do RCP.

Registe e notifique.

Lisboa,04/05/23


Catarina Almeida e Sousa

Isabel Fernandes

Lurdes Toscano