Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:01459/06
Secção:Contencioso Administrativo - 2º Juízo
Data do Acordão:03/16/2006
Relator:Cristina dos Santos
Descritores:CONTROLO JURISDICIONAL DA ACTUAÇÃO ADMINISTRATIVA
Sumário:1. O domínio da sindicabilidade jurisdicional do mérito administrativo concentra-se no conhecimento dos limites positivos de competência, de finalidade, de imparcialidade e de proporcionalidade, na medida em que só existem a discricionariedade e a margem de livre apreciação de conceitos jurídicos indeterminados que a lei específicamente conceder.
2. No juízo de valoração por recurso a conceitos jurídicos indeterminados nos primeiros têm lugar as regras próprias da interpretação jurídica em via de aplicação puramente subsuntiva passível de controlo jurisdicional.
3. No juízo de valoração de conceitos técnicos regem os conhecimentos e regras próprias da ciência ou da técnica que estejam em causa, não cabendo ao Tribunal controlar a boa ciência ou a boa técnica empregues pela entidade administrativa, por manifesta falta de competência nas matérias extra-jurídicas para tanto necessária.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: O Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional, com os sinais nos autos, inconformado com o acórdão proferido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada dele vem recorrer, concluindo como segue:

1. A decisão recorrida fez errada interpretação e aplicação do artº 125° do CPA, que assim sai violado.
2. O entendimento expresso na sentença recorrida pressupõe igualmente uma errada interpretação e aplicação do artº 66° do Decreto-lei n° 59/99, que sai igualmente violado.
3. Ao pronunciar-se sobre o estabelecimento de critérios de classificação, o douto acórdão recorrido viola também o princípio da independência de poderes enunciado no artº 3° do CPTA, que assim é violado.

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A Recorrida E..., SA contra-alegou, concluindo como segue:

1. O douto aresto recorrido não merece qualquer censura; Com efeito,
2. Não se descortinam as razões de conversão de apreciações genéricas de conteúdo crítico em quantificações por aplicação de critérios de natureza qualitativa;
3. Situação que, é óbvio, exige maior rigor de fundamentação; Consequentemente,
4. O acto recorrido desrespeitou o disposto no artigo 125° do C. Procedimento Administrativo merecendo, por isso, a censura que colheu e a confirmação da douta decisão recorrida;
5. Não se vislumbra ainda qualquer relação entre o aresto recorrido e o estatuído quer no artigo 3° do C.P.T. Administrativo, quer no artigo 66° do D.L. 59/99, de 2 de Março.
6. Não merece qualquer censura o douto aresto recorrido que, por isso, deve ser confirmado.

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Com dispensa de vistos substituídos pela entrega das competentes cópias aos Exmos. Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos, vem para decisão, em conferência – cfr. artº 707º nºs 2 e 3 CPC ex vi artº 140º e 36º nº 2 CPTA

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Remete-se e dá-se por reproduzida a matéria de facto julgada provada pelo Tribunal a quo por não impugnada nem objecto de alterações ex officio – artº 716º nº 3 ex vi artº 140º CPTA

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DO DIREITO

Vem assacado o acórdão de incorrer em violação primária de direito substantivo por erro de julgamento em matéria de:

1. interpretação e aplicação do artº 125° do CPA …………………..…. item 1. das conclusões;
2. interpretação e aplicação do artº 66° do Decreto-lei n° 59/99 ……… item 2. das conclusões;
3. judicial restraint - artº 3° nº 1 do CPTA (separação e interdependência de poderes e funções do Estado) ……………………………………………………………… item 3. das conclusões.


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O presente recurso tem por objecto o segmento do acórdão que de seguida se transcreve, sendo nossa a evidenciação a negrito:

“(..)
4.6. No que respeita ao dever de fundamentar, diz o Ac. do STA de 1/4/03, proc. n° 0323/03: "há que ter presente que o nosso ordenamento jurídico não consagra uma concepção estritamente substancialista coincidente "com a justificabilidade ou com a conformidade ao direito" (Vieira de Andrade, "O Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos", p. 11).
"A exigência de fundamentação diz respeito ao modo de exteriorização formal do acto administrativo e não à validade substancial do respectivo conteúdo ou pressupostos" (acórdão STA de 2001.12.19 - rec° n° 47 774), sendo que o que importa é o "esclarecimento das razões da decisão, no sentido da sua determinabilidade e não o sentido da sua indiscutibilidade ou da sua conveniência" (Vieira de Andrade, ob.cit, p. 236 e acórdão STA de 2002.07.04 - rec° n° 616/02-11).
Nesta perspectiva instrumentalista a suficiência da fundamentação afere-se pelo critério da compreensibilidade do destinatário médio.
Fixados estes parâmetros, importa saber se, no caso concreto, a fundamentação contextualmente externada é de natureza a esclarecer o interessado do percurso da autoridade recorrida até à decisão, das valorações que fez e do que conheceu, de molde a que este fique informado das razões do acto e do seu conteúdo.
Definidos assim os critérios da fundamentação, vejamos se eles foram respeitados no caso concreto.
Da leitura do relatório da comissão e do seu aditamento conseguem-se compreender parte das razões das afirmações do relatório constantes.
Face ao conjunto de aspectos que a comissão entendeu como penalizadores, consegue-se compreender porque razão esses aspectos são penalizadores.
Contudo, a razão pela qual foi classificada a autora Etermar com 4 valores, as autoras Irmão Cavaco e Seth Lda. 7 valores, nos aspectos da memória descritiva e processos construtivos a adoptar, apesar de obviamente terem a ver com a valoração negativa que foi dada a diversos aspectos da proposta de cada uma, constitui um iter não cognoscível nem perceptível pela leitura da acta.
Porque razão a Etermar teve 4 e não 5 ? ou 6 ? ou 3 ?
Qual o critério para se chegar aos 4 concretos valores finais.
Ou seja, consegue-se entender porque razão um determinado aspecto da proposta é penalizado, não se consegue é entender porque razão é penalizado numa determinada quantificação.
Sobre isto o relatório da comissão é completamente omisso.
Nada diz.
Assim sendo, porque ficamos sem conseguir apreender a razão da classificação final, a mesma está ferida de anulabilidade por falta de fundamentação - arts° 123 e 135, ambos do CPA.
5. Conclusão:
Por tudo quanto vem de ser exposto, Acordam os Juízes que compõem este Tribunal em julgar a presente acção de contencioso pré-contratual intentada por ETERMAR - Empresa de obras Terrestres e Marítimas, SA e por Irmãos Cavaco, SA, SETH - Sociedade de Empreitadas e Trabalhos Hidráulicos, SA contra o Ministério do Ambiente e do Ordenamento do Território provada e procedente, e declaramos anulado o despacho de 28.04.2004 pelo qual foi autorizada a adjudicação da empreitada sub-judice ao Consórcio CPTP/Mota & Companhia, SA (..)”
1. deficiente fundamentação – equiparação da obscuridade, imprecisão ou incompletude da motivação do acto à falta de motivação – artºs. 123º nº 2 e 125º nº 2 CPA;

A obrigatoriedade de fundamentação expressa dos actos lesivos de direitos e interesses dos particulares bem como a respectiva notificação – isto é, a publicidade do acto em toda a sua extensão, decisão e fundamentos - tem por escopo legal garantir que o particular entenda o porquê da prática do acto (função justificativa) e tome conhecimento do juízo lógico-jurídico e subsuntivo que deu corpo à decisão do ente administrativo (função motivadora), de modo a permitir uma eventual defesa de entendimento distinto - art°s. 124º nº 1, 125º nº 1 CPA, 268° nº 3 CRP (1).
A fundamentação deve constar expressamente (ainda que por remissão, artºs. 105º e 125º nº 1, CPA) da própria forma de manifestação de vontade ou de juízo do ente administrativo, configurando-se, via de regra, a invalidade do acto administrativo por vício de forma derivado de falta de fundamentação como uma invalidade relativa e, por isso, sanável (a nosso ver, no plano da legalidade que não no da licitude) nos termos gerais de direito pelo decurso do tempo ou pela aceitação do interessado, salvo casos de violação do conteúdo essencial da garantia constitucional da fundamentação expressa dos actos administrativos, constante do artº 268º nº 3 CRP, sancionada com a nulidade ex vi artºs. 133º nº 2 d), 135º, CPA (2).
Por outro lado é sabido que “(..) não é requisito legal da fundamentação do acto a sua exactidão, ou seja, a veracidade ou realidade dos factos e a correspondência das normas invocadas ao direito. Não parece correcto, portanto, dizer (..) que a fundamentação deve ser exacta: exactos devem ser os motivos do acto (não a sua motivação) (..)”, e, por isso, a inexactidão dos motivos do acto terá por consequência a ilegalidade do acto no tocante ao elemento constitutivo a que esse motivo inexacto se reporte que, pelas razões expostas, não será o elemento respeitante à sua forma.
Porque a legalidade da fundamentação se afere em função de elementos formais é que a lei equipara a sua obscuridade, imprecisão ou incompletude à falta de menção e fundamentação expressas, assacando-lhe a mesma sanção – artºs. 123º nº 2 e 125º nº 2, CPA.
Donde, saber se o texto que constitui a fundamentação - expressa, coetânea ou anterior à data da prática do acto, nunca posterior à emissão - se mostra, por si mesmo, apto a preencher a finalidade legal de esclarecimento da motivação do efeito jurídico declarado, implica aferir se essa finalidade de esclarecimento foi atingida em concreto, nomeadamente por recurso ao comportamento evidenciado pelo destinatário do acto. (3)
Na modalidade de fundamentação por remissão, ponto é que essa remição seja feita “(..) de uma maneira clara e assumida (..)” pelo próprio autor do acto, não sendo legalmente permitido que terceiros, v.g. os Tribunais em caso de sindicabilidade contenciosa, componham por colagem daqui e dali o edifício da presuntiva fundamentação, substituindo-se naquilo que o ente administrativo não fez em sede de deveres de competência, devendo tê-lo feito; deste modo “(..) é preciso que as fórmulas usadas não deixem dúvidas, nem quanto à vontade de apropriação dos fundamentos contidos noutro acto ou documento nem quanto à extensão dessa concordância (..)” (4).

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A empreitada para “Reparação dos esporões e das obras aderentes da Costa da Caparica e da Cova do Vapor”, tal como expresso no respectivo anúncio público, ponto 1. do probatório do acórdão sob recurso, obedece à modalidade tipológica do concurso público, artºs. 47º nº 2 e 59º e segts. do DL 59/99 de 2.3.
Aderimos ao entendimento de que as peças do procedimento adjudicatório constituídas pelo caderno de encargos e pelo programa do concurso [artº 64º DL 55/99 - “O caderno de encargos é o documento que contém, ordenadas por artigos numerados, as cláusulas jurídicas e técnica, gerais e especiais, a incluir no contrato a celebrar”; artº 66º DL 59/99 - “O programa do concurso destina-se a definir os termos a que obedece o respectivo processo e especificará: a) (..) g)”], constituem o regime normativo regulamentar complementar do DL 55/99 de 2.3 aplicável ao procedimento adjudicatório em concreto; a natureza regulamentar implica que a violação de qualquer disposição do programa de concurso ou do caderno de encargos, tenha ela por base uma cláusula contratual ou um acto administrativo praticado pelo órgão nomeado para supervisionar o procedimento, acarreta a respectiva invalidade. (5)
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No Acórdão sob recurso afirma-se que “(..)a razão pela qual foi classificada a autora Etermar com 4 valores, as autoras Irmão Cavaco e Seth Lda. 7 valores, nos aspectos da memória descritiva e processos construtivos a adoptar, apesar de obviamente terem a ver com a valoração negativa que foi dada a diversos aspectos da proposta de cada uma, constitui um iter não cognoscível nem perceptível pela leitura da acta. (..)”, motivo porque, ao não se “(..) conseguir apreender a razão da classificação final, a mesma está ferida de anulabilidade por falta de fundamentação - arts° 123 e 135, ambos do CPA. (..)”.
O mesmo é dizer que o despacho de 28.04.2004 pelo qual foi autorizada a adjudicação da empreitada foi anulado por obscuridade da fundamentação do relatório de avaliação das propostas a cargo da “comissão de análise das propostas”, órgão cujas competências estão determinadas no artº 60º nº 1, DL 59/99, 2.3.
Todavia, o modo como o júri exerceu a competência de avaliação, expresso no relatório da Comissão junto aos autos a fls. 285 a 346 e levado ao probatório do acórdão por transcrição integral no ponto 9, constitui matéria que não é jurisdicionalmente sindicável salvo circunstâncias específicamente determinadas na lei e que, no caso dos presentes autos, não se verificam.
No que importa ao caso em apreço, para efeitos de sindicabilidade jurisdicional do agir da Administração Pública cumpre distinguir a margem de livre decisão administrativa no uso de poderes discricionários da chamada “discricionariedade técnica”.


2. sindicabilidade contenciosa do agir da Administração;
princípios da separação de poderes e da garantia de controlo judicial da actividade administrativa - artºs. 111º/ 268º nº 4 CRP


A discricionariedade administrativa, consiste na “(..) liberdade de escolha da Administração Pública quanto a partes do conteúdo (envolvendo a própria necessidade e o momento da conduta), do objecto, das formalidades e da forma de actos seus de gestão pública unilaterais, [e, pese embora se saiba que] alguma doutrina e jurisprudência recente questiona a definição da discricionariedade administrativa como liberdade de escolha, dizendo que há sempre uma e uma só solução administrativa condizente com o interesse público concreto prosseguido, ou seja, condizente com o fim do acto, [todavia] Não tem razão.
Pode haver mais do que uma solução administrativa para prosseguir um certo interesse público concreto – quer quanto ao conteúdo, quer quanto ao objecto, quer quanto à forma.
Ponto é que o legislador tenha querido atribuir a liberdade de escolha à Administração Pública e que o exercício dessa liberdade não colida com qualquer outro princípio norteador da actividade administrativa.
Não se nos afigura, por isso, legítimo ao Tribunal encarregado de controlar a legalidade de um acto de administração ir ao ponto de definir – nos casos em que a lei quis atribuir discricionariedade – um conteúdo, um objecto ou uma forma únicos compatíveis com o fim a prosseguir, e, em função deles, apreciar o acto em questão.
Isso representaria admitir que o Tribunal se pudesse substituir sempre à Administração Pública no traçado de todos os elementos do acto por ela praticado. O que põe em causa a lei – que quis dar à Administração Pública uma liberdade de escolha – assim negada. (..)” (6)
Dito de outro modo, a sindicabilidade contenciosa do agir da Administração Pública pára exactamente na fronteira da “(..) reserva da administração consubstanciada numa margem de livre decisão administrativa [que] constitui um limite funcional da jurisdição administrativa, pois as opções do órgão administrativo tomadas nesse domínio relevam da esfera do mérito e não da esfera da validade.
A questão, no fundo, é a seguinte: partindo do princípio de que qualquer acto jurídico da Administração pode ser submetido à fiscalização de órgãos jurisdicionais (que o removerão da ordem jurídica na parte em que o julgarem inválido), até onde devem e até onde podem os tribunais controlar a actividade administrativa para que a Administração possa actuar – dentro dos limites da lei e tendo em vista a realização de fins de interesse público – de acordo com os seus próprios critérios?
Em bom rigor, a regra básica e visto o problema em abstracto é de fácil formulação: a margem de livre decisão qua tale é insusceptível de controlo judicial porque respeita ao mérito, à conveniência ou à oportunidade da administração; pelo contrário, tudo o que se situar fora dessa esfera é judicialmente sindicável porque estará em causa a validade da conduta administrativa (e nesse domínio já não há livre decisão mas sim vinculação) (..)” (7).
A via de compromisso entre os princípios da separação de poderes, cfr. artº 111º CRP, e da garantia de controlo judicial da actividade administrativa, cfr. artº 268º nº 4 CRP, traduz-se em que “(..) O exercício ilegal de poderes administrativos (ou seja, o comportamento da Administração contrário à lei em toda a medida em que houver vinculação) é susceptível de controlo da legalidade, e este pode ser levado a cabo quer pelos Tribunais quer pela própria Administração (..)
O mau uso de poderes administrativos (isto é, o seu uso inconveniente em toda a medida em que houver livre decisão) é susceptível de controlo de mérito, e este só pode ser feito pela própria Administração nunca pelos Tribunais. A autonomia pública administrativa qua tale apenas admite, pois, controlo gracioso, não contencioso. (..)” (8).
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No domínio de escolha discricionária, a sindicabilidade concentra-se sobre a eventual violação seja dos limites internos seja dos limites externos do poder discricionário concedido em vista do interesse público a realizar. (9)
No tocante ao mérito, o que os Tribunais verificam concentra-se no conhecimento dos “(..) limites positivos de competência, de finalidade, de imparcialidade e de proporcionalidade (..) porque só existem a discricionariedade e a margem de livre apreciação de conceitos jurídicos indeterminados que a lei específicamente conceder (..).
Apesar da abertura da norma – abertura da norma que traduz a discricionariedade - os efeitos de direito produzidos pelo acto hão-de corresponder a um tipo a que se reporta a norma de competência.
Não há competência sem individualização do tipo de poder concedido e, portanto, a norma deverá fornecer um quadro ou descrição fundamental suficiente para demarcar o âmbito de actuação autoritária do órgão sobre as esferas jurídicas dos administrados e para repartir o âmbito de actuação entre os diversos órgãos das pessoas colectivas que integram a Administração.
A indeterminação dos efeitos que resulta da abertura do tipo é pois sempre parcial (..) [também] a abertura da previsão nunca pode ser total: da norma ou do concurso de normas que regem o acto administrativo tem de poder extrair-se o núcleo essencial do tipo de situação sobre a qual poderá incidir o exercício do poder.
Sem tal tipificação faltariam ao executor da norma critérios objectivos da subsistência da necessidade pública a que corresponde o poder (..)” (10).

3. zonas de vinculação adjacentes à “discricionariedade técnica” - juízos técnicos de existência, juízos técnicos valorativos e juízos técnicos de probabilidade;


Outros são os parâmetros do problema no que respeita à chamada “discricionariedade técnica”, seja porque os pressupostos que integram a previsão da norma configuram conceitos jurídicos indeterminados em ordem à valoração do elemento da situação concreta sobre que há-de recair a decisão administrativa, seja por que configuram conceitos técnicos reportados a factos apenas verificáveis ou valoráveis com base em conhecimentos e instrumentos próprios de ciências que não a ciência jurídica.
Estamos, portanto, aqui a falar de uma actividade administrativa traduzida em juízos técnicos de existência, juízos técnicos valorativos ou juízos técnicos de probabilidade, pelos quais a lei confere à Administração “(..) um poder de valoração técnica, que, não implicando ponderação comparativa de interesses secundários, envolve valoração de factos e circunstâncias de carácter técnico (..) Os autores sublinham que este tipo de juízo se formula sobre os pressupostos, ou seja, a hipótese ou previsão da norma. A atribuição, pela parte de previsão da norma, do poder de emitir tal juízo não contende com a natureza vinculativa da estatuição também ela contida, embora coexista por vezes com a discricionariedade sobre o conteúdo da decisão.
Neste último caso, fala-se, ainda que impropriamente, de discricionariedade mista porque à liberdade de valoração de pressupostos corresponde a liberdade de fixação do conteúdo do acto. (..)” (11).
Pelo que vem dito, o juízo de valoração por recurso a conceitos jurídicos indeterminados ou a conceitos técnicos nada tem de semelhança com a margem de livre apreciação e decisão que caracterizam o juízo de discricionariedade, pois nos primeiros têm lugar as regras próprias da interpretação jurídica em via de aplicação puramente subsuntiva e, portanto, passível de controlo jurisdicional; nos segundos regem os conhecimentos e regras próprias da ciência ou da técnica que estejam em causa, sendo certo que não cabe ao Tribunal controlar a boa ciência ou a boa técnica empregues pela entidade administrativa, por manifesta falta de competência nas matérias extra-jurídicas para tanto necessária, antes cabe, repetindo, exercer o jurisdicional sobre as zonas de vinculação adjacentes, isto é, no exame da existência material dos pressupostos de facto de que depende o uso de meios técnicos e no tocante aos “(..) limites positivos de competência, de finalidade, de imparcialidade e de proporcionalidade (..) porque só existem a discricionariedade e a margem de livre apreciação de conceitos jurídicos indeterminados que a lei específicamente conceder (..)” conforme citação supra.

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Retirando as devidas consequências da aplicação do entendimento jurídico subscrito e evidenciado na longa transcrição doutrinária e tendo presente o factor de ponderação consubstanciado pelo critério da “garantia de execução e qualidade técnica” do artº 21º do Programa de Concurso, subdividido nos sub-critérios “A1 – memória descritiva e processos construtivos a adoptar”; A2 – minimização dos impactos ambientais durante a construção da obra” – pontos 3. e 4. do probatório - conclui-se que a bitola de aferição das propostas apresentadas pelos concorrentes implica, no seu todo, uma actividade administrativa traduzida em juízos técnicos de existência, juízos técnicos valorativos e juízos técnicos de probabilidade.
Todavia, como em sede de fundamentação do Relatório de Avaliação das propostas estamos no domínio de regras próprias da ciência e da técnica em matérias extra-jurídicas, tal implica uma actividade de controlo jurisdicional sobre as situações de facto e de direito exigidas pelo bloco normativo aplicável ao concurso público – que, como já dito, se traduzem no DL 55/99 de 2.3, regulamentado pelo programa de concurso e caderno de encargos da concreta empreitada de obras públicas – e, também, sobre as invocadas como motivos (fundamentação) do acto impugnado constantes do Relatório de Avaliação das propostas.
Ou seja, dito de outro modo, o controlo jurisdicional tem por objecto aquilo a que acima se chamou de zonas de vinculação adjacentes à “discricionariedade técnica”.

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É nesta parte que não acompanhamos o discurso jurídico fundamentador do Acórdão sob recurso.
O controlo jurisdicional dos elementos formais da fundamentação exigidos no artº 125º nº 2 CPA, não tem por objecto “conseguir apreender a razão da classificação final” e “Porque razão a Etermar teve 4 e não 5 ? ou 6 ? ou 3 ? Qual o critério para se chegar aos 4 concretos valores finais.”, quer dizer, não tem por objecto o mérito da decisão administrativa expressa nas pontuações atribuídas.
Da transcrição feita no ponto 9. do probatório do Acórdão sob recurso se conclui que a matéria relativa à empreitada dos autos envolve juízos técnicos extra-jurídicos.
Saber se o Relatório de avaliação é ininteligível ou obscuro no tocante à fundamentação da pontuação das propostas carece de demonstração fundada em critérios próprios da ciência e técnica a que se reportam tanto o programa de concurso como o caderno de encargos da empreitada e não com base em critérios próprios da ciência jurídica.
Apenas se, à luz de critérios próprios da lex artis, a motivação da pontuação expressa no Relatório de avaliação se apresentar obscura, contraditória, insuficiente ou ininteligível, é juridicamente admissível afirmar por referência ao disposto no artº 125º nº 2 CPA que a motivação do acto não respeita os elementos formais da fundamentação exigidos no citado comando legal.

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Pelo que vem dito, assiste razão ao Recorrente nas questões suscitadas nas conclusões sob os itens 1 a 3 das conclusões, cumprindo revogar o acórdão e manter, por válido e eficaz, o despacho de 28.04.2004.

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Termos em que acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em, na procedência do recurso, revogar o acórdão recorrido, mantendo válido e eficaz o despacho de 28.04.2004.

Custas a cargo da Recorrida.

Lisboa, 16.MAR.2006,




(Cristina dos Santos)

(Teresa de Sousa)

(Xavier Forte)


(1) Artº 268º nº 3 CRP – Os actos administrativos estão sujeitos a notificação aos interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação expressa e acessível quando afectem direitos ou interesses legalmente protegidos.
(2) Esteves de Oliveira , Costa Gonçalves e Pacheco de Amorim, Código de Procedimento Administrativo – Anotado, 2ª edição Almedina, págs, 589/590 .
(3) Esteves de Oliveira, Lições de Direito Administrativo, Outubro/1980, págs 663 e 796 –“(..) não é requisito legal da fundamentação do acto a sua exactidão, ou seja, a veracidade ou realidade dos factos e a correspondência das normas invocadas ao direito (..) a exactidão dos motivos não respeita a elementos formais do acto, mas sim aos seus elementos de fundo ou substanciais (..) quando os fundamentos ou os motivos do acto explicam, só por si, clara e logicamente a decisão mas são factual ou jurídicamente falsos ou erróneos temos ilegalidade, mas não por vício de forma; se os motivos invocados correspondem aos factos e ao direito mas não justificam só por si, clara e logicamente, a decisão tomada, temos vício de forma (..)”.
(4) Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves, J. Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo, Almedina 2ª edição, pág. 603, nota IV.
(5) Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Concursos e outros procedimentos de adjudicação administrativa – das fontes às garantias, Almedina, 2003, págs. 134 a 142. ;
(6) ( Marcelo Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, Vol. I, Lex, 1999, págs. 107/108.)
(7) Bernardo Diniz de Ayala, O (défice) de controlo judicial da margem de livre decisão administrativa, Lex, 1995, pág. 83.
(8) Bernardo Diniz de Ayala, O (défice) de controlo judicial da margem de livre decisão administrativa, Lex, 1995, pág. 87.
(9) Mário Esteves de Oliveira, Lições de direito administrativo, 1980, págs. 355/368, 439 e 616/624.
(10) Sérvulo Correia, Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, Almedina, Teses, 1987, págs.491/492.
(11) Sérvulo Correia, Legalidade e autonomia contratual nos contratos administrativos, Almedina, Teses, 1987, págs.171/172, 321, 476/477.