Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:229/11.6BELLE
Secção:CA - 2º JUÍZO
Data do Acordão:05/10/2018
Relator:JOSÉ GOMES CORREIA
Descritores:CONTRATO REGIDO PELAS REGRAS PRÓPRIAS DE FUNCIONAMENTO QUE CARACTERIZAM OS CENTROS COMERCIAIS
MERCADO MUNICIPAL
DIREITO DE OPOSIÇÃO À RENOVAÇÃO DE CONTRATO SÓ PELO PARTICULAR
LIBERDADE CONTRATUAL
PACTA SUNT SERVANDA
ABUSO DE DIREITO
Sumário:I) - Uma loja (talho) sita em Mercado Municipal, está sujeito às regras próprias de funcionamento que caracterizam os Centros Comerciais, as quais, no âmbito do direito português, é Jurisprudência pacífica qualificá-los pela sua natureza, como contratos atípicos ou inominados, por não se coadunaram com as regras do arrendamento urbano, nem com as regras de um contrato de cessão de exploração, e extravasando as regras de um contrato misto de arrendamento e prestação de serviços, sujeito ao estipulado nas cláusulas convencionadas por mútuo acordo, na conformidade do disposto no n°1, do art. 406°, do CC, em que os limites que a lei imponha à liberdade negocial constituem uma excepção.

II) – Assim, as lojas que integram centros comerciais deixam de se regular exclusivamente pelo que diz respeito à relação entre o dono do local e aquele que o explora, mas também pelo que se reporta à disciplina da unidade comercial assim agregada, que impõe a assunção de obrigações que possibilitem o exercício da actividade comercial do conjunto dos lojistas.

III) – O referido contrato fica sujeito ao regime das cláusulas contratuais gerais necessário sempre que as condições negociais previamente elaboradas pelo proponente tenham de ser aceites tal como apresentadas, sem possibilidade de negociação individual.

IV) – Visto que o contrato não foi apresentado hermeticamente fechado, tendo a autora prévio conhecimento das suas cláusulas e a elas aderido livremente e sem restrições, podendo sugerir alterações, na ausência da característica da imodificabilidade, essencial à sujeição do contrato ao regime das cláusulas contratuais gerais, há que acolher o presente contrato como contrato atípico sujeito ao estipulado nas cláusulas convencionadas por mútuo acordo, na conformidade do disposto no nº 1 do art. 406º C.Civil.

V) - A interpretação de uma declaração negocial é matéria de direito quando tenha de ser feita segundo critério ou critérios legais, sendo que se uma cláusula estabelece que o contrato em causa terá a vigência de um ano renovável automaticamente até ao ano 2025, conferindo apenas à Autora, na qualidade de operador, o direito de denunciar o contrato obstando à sua renovação, por força do contrato só a Autora pode opor-se à renovação do contrato, o que quer dizer que só no caso da caducidade em 2025 (ressalvadas as situações que conferem ao Réu o direito de resolução do contrato em caso de incumprimento pelo lojista dos deveres e obrigações decorrentes do contrato de utilização), é que poderá a Ré reassumir a detenção da loja.

VI) - A referida cláusula foi livremente negociada entre as partes, sendo que a actuação do Réu está ancorada numa cláusula consensualmente elaborada pelas partes, de acordo com o princípio da liberdade de fixação do conteúdo dos contratos, afigurando-se justificado e ajustado o teor da cláusula, o que vale por dizer a sua não desconformidade com quaisquer princípios legais, designadamente os referidos na sentença recorrida.

VII) – Assim, o contrato em apreço (independentemente até da sua qualificação) resultou do princípio da autonomia privada, titulado constitucionalmente e ligado ao valor de autodeterminação da pessoa, mas que deve estar em consonância com outros princípios como o da protecção das expectativas de confiança do destinatário e o princípio de protecção de segurança do tráfego jurídico, cuja função social é diferente do arrendamento e também da mera prestação de serviços.

VIII) - Por força do contrato o direito de denúncia ou oposição à renovação é exclusivo da recorrente não sendo configurável qualquer sacrifício para o recorrido que lhe confira igual direito de denúncia ou oposição à renovação por haver abuso de direito por parte da recorrente à luz do princípio pacta sunt servanda (ou seja, os pactos devem ser cumpridos, têm força obrigatória) consagrado no art. 406° do Código Civil, deve ser respeitada pelos contraentes que terão de cumprir adequadamente as suas obrigações durante todo o período de tempo convencionalmente acordado e que só findo este é que os contraentes recuperam a sua liberdade em consequência da extinção automática por caducidade do vínculo contratual assumido, só podendo extinguir-se antes do decurso do prazo nele estipulado para a sua vigência por mútuo consentimento dos contraentes.

IX) – O contrato celebrado não representa uma desproporcionalidade entre a vantagem conferida à recorrente face à total inexistência de direito de denúncia ou oposição à renovação por parte do recorrido do contrato, que se traduziria num sacrifício com o qual o recorrido não tem de se conformar enquanto manifestação típica do abuso de direito por parte da recorrente, devendo, a essa luz, considerar-se válida a oposição à renovação comunicada pelo Recorrido à Recorrente nos termos legais, com a consequente cessação do contrato, e a constituição da recorrente no dever de proceder à entrega da loja por si ocupada ao abrigo do contrato celebrado, que não mais se encontra em vigor.

X) – Em tal desiderato não há uma “manifestação típica do abuso de direito por parte da recorrente” pois, em face do artº 334º do CC, é manifesto que não se prova estarmos perante o exercício, por parte da Autora, de qualquer direito por forma anormal, quanto à sua intensidade ou à execução do contrato, de modo a poder comprometer o gozo dos direitos de terceiros e a criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular, e as consequências que outros têm de suportar. Dito de ouro modo: não se prova que o direito da Autora seja exercido para além da sua finalidade plasmada no contrato em apreço pois, com base neste, aquela faz uma uso normal do seu direito nem causa danos à Ré por factos manifestamente contrários à consciência jurídica dominante na colectividade social, sendo exercido dentro do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência, sem causar danos a terceiros.

XI) – É que o exercício do poder formal realmente conferido pela ordem jurídica à Autora no âmbito do contrato, não está em aberta contradição, seja como o fim económico ou social a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé, bons costumes) que, no presente, envolve o seu reconhecimento, sendo que não se antolha, com base em factos provados, que dessa cláusula imponha à Ré um sacrifício incomportável.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA 1ª SECÇÃO DO 2º JUÍZO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

I -RELATÓRIO:

F....., LDª, m.i. nos autos, irresignada com a sentença que julgou improcedente a acção, e condenou a Autora e ora Recorrente a desocupar e entregar a loja pertencente ao Réu Mercado Municipal de ....., E.M., pagando-lhe o valor de €600 a título de honorários despendidos, veio dela interpor recurso o qual apresenta as seguintes conclusões:

“1° - A recorrente F....., Lda. e a MM…, EM, celebraram entre si um contrato, no âmbito da liberdade contratual das partes, contemplada no n°1, do artigo 406°, do CC, pelo qual, ambas as partes contratantes acordaram a cedência de um espaço individualizado relativamente ao restante complexo do Mercado de ....., para que a OPERADORA (a recorrente) ali exerça a actividade comercial de talho, mediante o pagamento mensal de uma quantia monetária, como contrapartida de um conjunto de serviços que a MM…, E.M. se obrigou a prestar-lhe, nomeadamente, limpeza dos espaços comuns, segurança e promoção daquele complexo comercial.
2°- O referido contrato foi antecedido de negociações conjuntas entre as partes contratantes para definir as condições pelas quais o mesmo se iria reger, com vista a prosseguir os fins económicos pretendidos por ambas.
3°- Da análise do que foi acordado entre a MM… e a F....., Lda. no referido contrato, para cujo conteúdo se remete integralmente, resultou um conjunto de considerandos e cláusulas, dos quais, resulta uma dupla responsabilização da OPERADORA (a Recorrente), em que esta fica sujeita ao cumprimento de obrigações com o MM…, assim como também se obriga a cumprir a disciplina da unidade comercial a que está agregada, formada pelos restantes ESPAÇOS e partes comuns, exemplo disso são os Considerandos B, C, D e F, e as cláusulas SEXTA, n° 5 e 6 da cláusula SÉTIMA, DÉCIMA-PRIMEIRA e DÉCIMA-SEGUNDA.
4°- Pelas especificidades deste contrato, o mesmo é regido pelas regras próprias de funcionamento que caracterizam os Centros Comerciais, as quais, no âmbito do direito português, contrariamente ao que se refere na decisão recorrida, é Jurisprudência pacífica qualificá-los pela sua natureza, como contratos atípicos ou inominados, por não se coadunaram com as regras do arrendamento urbano, nem com as regras de um contrato de cessão de exploração, e extravasando as regras de um contrato misto de arrendamento e prestação de serviços - (Ac. proferido pelo STJ, em 01.07.2010, no Proc.° 4477/05.0TVLSB.LI.SI (disponível em www.dgsi.pt), sujeito ao estipulado nas cláusulas convencionadas por mútuo acordo, na conformidade do disposto no n°1, do art. 406°, do CC, em que os limites que a lei imponha à liberdade negocial constituem uma exceção, conforme resulta do Ac. proferido pelo STJ, em 20.05.2015, no Proc.° 6427/09.5TVLSB.SB.L1.S1, (disponível em www.dgsi.pt).
5°- Este tipo de contratos resulta do princípio da autonomia privada, titulado constitucionalmente e ligado ao valor de autodeterminação da pessoa, mas que deve estar em consonância com outros princípios como o da proteção das expectativas de confiança do destinatário e o princípio de proteção de segurança do tráfego jurídico, cuja função social é diferente do arrendamento e também da mera prestação de serviços, como se alcança do Ac. proferido pelo STJ em 30.06.2009, no Proc.° 1398°/03.4TVLSB.SI, (disponível em www.dgsi.pt).
6°- Quando foi acordado pelas partes contratantes que a cedência titulada pelo referido contrato seria pelo prazo de doze meses, contados desde a entrega do identificado espaço, (7 de Fevereiro de 2007), renovando-se automaticamente por iguais períodos de tempo, salvo denúncia a efetuar pela F....., Lda., por meio de carta registada com aviso de receção a enviar com a antecedência mínima de sessenta dias em relação ao termo inicial ou de qualquer uma das suas renovações, e que o mesmo caducaria em 11 de Dezembro de 2025, (CLÁUSULA SEGUNDA), pretenderam, claramente, impedir a MM…, E.M., de vir a denunciar o respetivo contrato durante a vigência do mesmo.
7°- A negociação do prazo do contrato, do regime de renovações e a respetiva caducidade foram determinantes para a celebração daquele contrato e criaram à F....., Lda., expectativas de confiança que permitiram um investimento nas obras de instalação e adaptação do estabelecimento ao espaço, de acordo com a longevidade daquele contrato e a certeza de que a MM… não frustraria tal expetativa.
8°- A fixação de uma cláusula de prazo num contrato de utilização de loja em centro comercial, tal como impõe o princípio de que pacta sunt servanda entre nós consagrado no art. 406° do Código Civil, deve ser respeitada pelos contraentes que hão-de cumprir adequadamente as suas obrigações durante todo o período de tempo convencionalmente acordado: só findo este é que os contraentes recuperam a sua liberdade em consequência da extinção automática por caducidade do vínculo contratual assumido, podendo, se a tal corresponder a respetiva ponderação bilateral de interesses, negociar a celebração de novo contrato com o mesmo objetivo", em princípio, só podendo extinguir-se antes do decurso do prazo nele estipulado para a sua vigência por mútuo consentimento dos contraentes (406°, n°1, do CC), conforme se alcança do Ac. proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 24.04.2012, no Proc.° 2357/07.3TVLSB.L1-1, (disponível em www.dgsi.pt).
9°- O Tribunal não pode, de modo algum, sobrepor-se à real vontade das partes e às circunstâncias que envolveram as negociações preliminares daquele contrato, as quais determinaram o respetivo conteúdo, na defesa de um equilíbrio contratual entre entidades que pela sua própria natureza estão em desvantagem uma da outra pela sua própria natureza jurídica, ou não fosse a MM…, E.M. uma empresa municipal munida de prerrogativas de autoridade que a recorrente não goza.
10º - A Meritíssima Juiz "a quo" não pode interpretar uma cláusula contratual da forma como o faz na decisão recorrida, introduzindo um direito de denúncia que não foi intencionalmente querido pelas partes que celebraram aquele contrato, o qual terá constituído um elemento determinante na decisão negociai e contribuído para um equilíbrio económico relacionado com as especificidades daquele contrato e pela natureza jurídica das partes contratantes.
11º - O Tribunal recorrido, ao ter validado a oposição da renovação do contrato feita pela MM… e, por consequência declarado a cessação do contrato celebrado com a F....., Lda., condenando-a a entregar e a desocupar a loja, violou, de forma grave, o princípio da liberdade contratual, o princípio da autonomia privada titulado constitucionalmente, o princípio das expectativas de confiança e o princípio de proteção de segurança do tráfego jurídico.
12º - Não assiste à recorrida qualquer direito de denúncia do contrato que celebrou com a recorrente, sendo ineficaz a oposição à renovação do mesmo feita pela MMF, pelo que, no caso da F....., Lda. não o denunciar, o mesmo vigorará até 11 de Dezembro de 2015.
Assim se fará JUSTIÇA!”

Contra-alegou o Recorrido para concluir do seguinte modo:

“ a. De acordo com o argumentário da RECORRENTE, o contrato celebrado entre as partes tem a natureza de um contrato atípico e não de um contrato misto de arrendamento comercial e de prestação de serviços,
b. Defendendo que "No âmbito do direito português, é jurisprudência pacifica considerar que os contratos de cedência de espaços ou a instalação de lojas em centros comerciais são contratos típicos".
c. Em bom rigor, a questão não pode ser apreciada de forma tão simplista, afigurando-se essencial atentar nos elementos que compõem efectivamente o contrato em apreço, pelo que é um exercício que terá de ser feito sempre casuisticamente.
d. Ora, refere a própria RECORRENTE que "Em 7 de fevereiro de 2007, a demandada, ainda com a denominação de Mercado Muncipal de ....., SA, acordou ceder e garantir à A., a sociedade F....., Lda, que aceitou, a utilização do espaço correspondente à Loja O..…".
e. Donde, inclusivamente de acordo com o exemplo fornecido por ANTUNES VARELA, se conclui que é manifesto que estamos perante um verdadeiro contrato misto que conjuga elementos do contrato de arrendamento e de prestação de serviços, devendo reiterar-se o decidido pela douta sentença recorrida nesta matéria.
Independentemente do exposto,
f. Quer se considere que o contrato celebrado entre as partes se reconduz a um contrato misto ou a um contrato atípico, a sua natureza abusiva será terá igual relevância e pertinência para efeitos de declaração da nulidade das cláusulas que imponham a uma das partes um sacrifício incomportável e inadmissível à luz dos princípios da boa-fé e do equilíbrio contratual que imperam na ordem jurídica.
g. Ora, de acordo com uma interpretação literal da cláusula 2ª do contrato celebrado entre as partes - interpretação essa que a RECORRENTE aqui defende - apenas a RECORRENTE, na qualidade de operadora, poderia denunciar o contrato obstando à sua renovação, ficando o RECORRIDO impedido de se opor à sua renovação automática até ao ano de 2025.
h. E, ainda assim, a RECORRENTE entende que daqui não resulta um desequilíbrio contratual susceptível de acionar de imediato o mecanismo jurídico do abuso de direito, legitimando necessariamente o direito do RECORRIDO a opor-se legalmente à renovação deste contrato antes de atingido o respectivo termo.
i. Ora, o entendimento jurisprudencial nesta matéria - actualmente pacífico - vai exactamente no sentido contrário, o que facilmente se compreende.
j. Fazendo uma vez mais referência ao acórdão citado pela sentença recorrida, em que se apreciava inclusivamente um contrato atípico, postula este que "Não basta (...) apelar ao princípio da liberdade contratual para, sem mais, afastar o exercício abusivo."
k. Nesta conformidade, continua o mesmo acórdão:
"Como é sabido, a teoria contratual contemporânea já não se funda apenas nos princípios liberais (autonomia privada, força obrigatória, relatividade dos efeitos), segundo uma concepção tradicional, falando-se hoje de novos princípios, chamados "princípios sociais contratuais" (princípio da função social do contrato, da boa fé objectiva, da justiça contratual), com o objectivo de adequar os contratos aos valores ético-jurídicos vigentes, com a chamada "socialização do direito civil". Daqui decorre o entendimento de que o contrato não pode ser mais concebido pelo primado individualista da utilidade para os contraentes, mas no sentido da utilidade para a comunidade e a necessidade de o perspectivar no seu contexto social vinculante, com implicações não apenas quanto à conformação do objecto negocial, mas também quanto à sua interpretação/integração, servindo ainda de parâmetro para o controlo judicial."
l. É precisamente nesta perspectiva que se recorre ao instituto do abuso de direito, como forma de impor às partes o respeito por estes "princípios sociais contratuais", com os quais as mesmas terão de se conformar e pelos quais deverão reger os respectivos contratos, ainda que isso signifique a limitação da sua autonomia privada naquilo que contemplaria uma estipulação desproporcionada e leonina para uma das partes.
m. Estaremos, efectivamente, perante um contrato abusivo, nos termos deste instituto, bem como perante o exercício ilegítimo de um direito, "quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito." (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08-11-2011),
n. Sendo que, ainda segundo o mesmo acórdão, "O abuso de direito é um limite normativo ou interno dos direitos subjectivos - pelo que no comportamento abusivo são os próprios limites normativo-jurídicos do direito particular invocado que são ultrapassados - cfr. Castanheira Neves in Questão de Facto e Questão de Direito, 526 e nota 46. Em suma, o direito não pode ser exercido arbitrária e exacerbada ou desmesuradamente, mas antes exercício de um modo equilibrado, moderado, lógico e racional.".
o. Também de acordo com o disposto no acórdão do Tribunal da Relação Lisboa, de 14-11-2013, "O abuso do direito pressupõe que, no exercício do direito, a parte aja com excesso manifesto dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito - art 334 CC. Para determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade; no respeitante ao fim social e económico do direito, deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na lei."
p. Assim, "O abuso do direito pressupõe a existência do direito (direito subjectivo ou mero poder legal), embora o titular se exceda no exercício dos seus poderes."
q. Por fim, de acordo com o Prof. MENEZES CORDEIRO, em "Da Boa Fé no Direito Civil", vol. II, pág. 853 e "Do abuso de Direito - Estado das Questões e Perspectivas", ROA 2005, ano 65, também reproduzido no acórdão citado pela douta sentença, "Uma das manifestações típicas do abuso de direito é a do "desequilíbrio no exercício jurídico", em cuja categoria se integra "a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem", ou seja, "o titular, exercendo embora um direito formal, fá-lo em molde que atentam contra vectores fundamentais do sistema com relevo para a materialidade subjacente".
r. De facto, uma leitura literal da cláusula 2ª do contrato celebrado representaria uma desproporcionalidade entre a vantagem conferida à RECORRENTE face à total inexistência de direito de denúncia ou oposição à renovação por parte do RECORRIDO do contrato, que se traduziria num sacrifício com o qual o RECORRIDO não tem de se conformar enquanto manifestação típica do abuso de direito por parte da RECORRENTE,
s. Não podendo senão, tal como decidido pela douta sentença, considerar-se válida a oposição à renovação comunicada pelo RECORRIDO à RECORRENTE nos termos legais, com a consequente cessação do contrato a 07-02-2011, e a constituição da RECORRENTE no dever de proceder à entrega da loja por si ocupada ao abrigo do contrato celebrado, que não mais se encontra em vigor.
TERMOS EM QUE é manifesta a improcedência do recurso de apelação interposto pela RECORRENTE, devendo sobre o mesmo ser proferido ACÓRDÃO que, mantendo a sentença recorrida, confirme a cessação do contrato, a 07-02-2011, por efeitos da válida oposição à renovação operada pelo RECORRIDO nos prazos contratualmente estabelecidos, legitimando, assim, a condenação da RECORRENTE a proceder à desocupação e entrega da loja em apreço, com o que se fará a tão costumada JUSTIÇA!”

O DMMP junto deste tribunal foi notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146º, nº1 do CPTA, e nada disse.

Com dispensa de vistos, cumpre decidir.

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2. Fundamentação

2.1. De facto

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 663º, nº6 do NCPC, dá-se aqui por reproduzida a matéria de facto constante da sentença recorrida, que não vem impugnada.
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2.2. Motivação de Direito

Como resulta do disposto nos artigos 635º nº 4 e 639º nº 1 do NCPC- sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso- as conclusões da alegação do recorrente servem para colocar as questões que devem ser conhecidas no recurso e assim delimitam o seu âmbito.
Como é elementar, há que apreciar as questões que prioritariamente se imponham e cuja verificação impeça o conhecimento de quaisquer outras.
Na verdade, impõe-se ao tribunal o dever de conhecer de todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, donde que urge apreciar a questão colocadas pelas Recorrentes e simultaneamente recorridas.
Assim, e conhecendo do recurso interposto, vejamos se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento que lhe é assacado.
Como ressurge das conclusões expostas, as questões que importa resolver são a de saber:
-Se o contrato em apreço é regido pelas regras próprias de funcionamento que caracterizam os Centros Comerciais (conclusões 1ª a 4ª).
-Se por força do contrato o direito de denúncia ou oposição à renovação é exclusivo da recorrente não sendo configurável qualquer sacrifício para o recorrido que lhe confira igual direito de denúncia ou oposição à renovação por haver abuso de direito por parte da recorrente à luz do princípio pacta sunt servanda –demais conclusões.
Vejamos:
Na sentença recorrida foi gizado o seguinte discurso jurídico sobre a qualificação do contrato em causa e o direito de denúncia e/ou oposição à renovação do mesmo que, nos termos do contrato, só à Autora e ora recorrente assistia:

“1. Da vigência do acordo celebrado entre A. e R. e quando pode ser denunciado
A Autora pede que se declare que o contrato vigorará desde 11 de Junho de 2010 até 11 de Dezembro de 2025, só podendo ser denunciado pela A., e em consequência se deve o Réu ser condenada a abster-se de qualquer conduta que possa pôr em causa a normal fruição da loja pela Autora.
Por outro lado, o Réu pede o reconhecimento do fundamento e legalidade da oposição à renovação comunicada à Autora, em 13.11.2010 e o contrato outorgado ser considerado cessado, com efeitos a partir de 07.02.2011, ou caso assim não se entenda, ser considerada eficaz a oposição comunicada com efeitos a partir de 13.11.2011.
Da rescisão do contrato por incumprimento do Réu.
Vejamos.
O contrato em apreço traduz-se num contrato misto de arrendamento comercial e prestação de serviços, o qual se traduz num contrato administrativo cuja execução é regida pelos seus termos, pelo disposto no Código de Procedimento Administrativo e, subsidiariamente, pelo Código Civil (lei geral em matéria de contratos), dado que à data da celebração do contrato não se encontrava em vigor o Código dos Contratos Públicos.
O contrato em causa prevê que a vigência do mesmo é de um ano renovável automaticamente até ao ano 2025 (Cláusula 2.ª). Prevê ainda que apenas a aqui Autora, na qualidade de operador, pode denunciar o contrato obstando à sua renovação, ou seja, pode opor-se à renovação do contrato.
In casu, o Réu, parte no contrato, enquanto senhorio e prestador de serviços, denunciou o contrato, pretendendo evitar a renovação do mesmo por mais um ano, por motivos de viabilidade económica do Mercado.
O instituto do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social em determinado momento histórico e a jurisprudência tem exigido que o exercício do direito se apresente em termos clamorosamente ofensivos da justiça.
É defendido que "Uma das manifestações típicas do abuso de direito é a do "desequilíbrio no exercício jurídico", em cuja categoria se integra " a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem ", ou seja, " o titular, exercendo embora um direito formal, fá-lo em moldes que atentam contra vectores fundamentais do sistema com relevo para a materialidade subjacente " (cf. MENEZES CORDEIRO, Da Boa Fé no Direito Civil, vol. II, pág. 853, e " Do Abuso de Direito- Estado das Questões e Perspectivas", ROA 2005, ano 65).
Na ponderação da factualidade apurada, concorda-se com a sentença ao enquadrar a questão no âmbito do "desequilíbrio no exercício das posições jurídicas" e do princípio da materialidade subjacente. " (in Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11-02-2014, Processo n.0 1198/12.0TBCVL.C1, disponível m www.dgsi.pt).
Ora, no caso sub judice, ressalta um manifesto desequilíbrio contratual entre a posição da Autora, enquanto inquilina e que recebe a prestação de serviços, e o Réu, enquanto senhorio e prestador de serviços, dado que o contrato tem uma vigência de um ano renovável automaticamente pelo mesmo período de tempo até 11.12.2025, e interpretando literalmente a cláusula 2.ª, apenas a Autora poderia opor-se à renovação do contrato.
Com efeito, para restaurar o equilíbrio do contrato, impõe-se interpretar a cláusula 2.ª do contrato no sentido de o Réu também ter o direito a opor-se à renovação do contrato nas mesmas circunstâncias da Autora, ou seja, através de carta registada com aviso de recepção a enviar com uma antecedência de sessenta dias em relação ao termo inicial ou de qualquer das suas renovações.
Decorre do contrato que o mesmo foi celebrado em 11.06.2010, contudo o prazo conta-se desde a entrega da loja, que teve lugar em 07.02.2007, e por isso seria renovado automaticamente em 07.02.2010 e 07.02.2011, salvo se qualquer das Partes se opusesse à renovação do mesmo com uma antecedência de 60 dias.
Resulta do Probatório que o Réu enviou à Autora carta registada recebida em 27.09.2010, manifestando a vontade de opor-se à renovação do contrato, tendo posteriormente remetido carta à Autora indicando como data de produção de efeitos da denúncia, 31.01.2011.
Contudo, tendo sido respeitado o prazo de sessenta dias de antecedência sobre a data de renovação, a oposição à renovação apenas poderia produzir efeitos desde 07.02.2011.
Assim, considera-se que o Réu opôs-se à renovação do contrato, com efeitos a 07.02.2011, tendo, nessa data cessado o contrato em causa.
Termos em que deverá ser julgado improcedente o pedido da Autora e procedente o pedido do Réu, quanto a considerar-se cessado o contrato em 07.02.2011.”
Vê-se de tal fundamentação que na sentença se acolheu o ponto de vista do Réu e ora Recorrido segundo o qual o contrato em apreço traduz-se num contrato misto de arrendamento comercial e prestação de serviços, o qual se traduz num contrato administrativo cuja execução é regida pelos seus termos, pelo disposto no Código de Procedimento Administrativo e, subsidiariamente, pelo Código Civil (lei geral em matéria de contratos), dado que à data da celebração do contrato não se encontrava em vigor o Código dos Contratos Públicos.
No entanto, propendemos para a qualificação que é atribuída ao contrato pela Autora.
Na verdade e como emerge do probatório, esta e a Ré, no domínio do princípio da liberdade contratual ínsito no artº 406º do CC – sempre aplicável, mesmo na tese da sentença - celebraram entre si um contrato, mediante o qual acordaram a cedência de um espaço individualizado relativamente ao restante complexo do Mercado de ....., para que a OPERADORA (a recorrente) ali exerça a actividade comercial de talho, mediante o pagamento mensal de uma quantia monetária, como contrapartida de um conjunto de serviços que a Ré se obrigou a prestar-lhe, como a limpeza dos espaços comuns, a segurança e a promoção daquele complexo comercial.
Não há dúvida de que resulta do contrato uma dupla responsabilização da Operadora (a Recorrente), em que esta fica sujeita ao cumprimento de obrigações com o Réu, ao mesmo tempo que se obriga a cumprir a disciplina da unidade comercial a que está agregada, formada pelos restantes espaços e partes comuns, exemplo disso são os Considerandos B, C, D e F, e as cláusulas 6ª, n° 5 e 6 da cláusula 7ª, 11ª e 12ª.
Nessa senda, consignou-se no Considerando B que o MERCADO constituirá uma universalidade de direito de facto concebido e construído para o funcionamento integrado de um conjunto de instalações comerciais, doravante designados por ESPAÇOS distribuídos de acordo com uma cuidada planificação técnica e destinados à actividade de comércio, bem como de outras actividades complementares.
Já no considerando C se define que à MM… competirá elaborar, fazer cumprir e alterar, o Regulamento Interno do MAERCADO o qual não alterará ou revogará os direitos contratualmente adquiridos.
Explicita-se depois no Considerando D que a MMF cederá a ocupação de ESPAÇOS disponíveis no MERCADO e assegurará a prestação de serviços de natureza diversa, o que fará nos termos e para os efeitos do disposto neste contrato.
Flui do considerando F que o presente contrato, sendo um contrato atípico, consagra a forma de remuneração pela gestão e serviços prestados, pela integração e funcionamento das actividades que ao OPERADOR são permitidos no MERCADO.
Por assim ser, concorda-se com a recorrente no sentido de que o contrato está sujeito às regras próprias de funcionamento que caracterizam os Centros Comerciais, as quais, no âmbito do direito português, contrariamente ao que se refere na decisão recorrida, é Jurisprudência pacífica qualificá-los pela sua natureza, como contratos atípicos ou inominados, por não se coadunaram com as regras do arrendamento urbano, nem com as regras de um contrato de cessão de exploração, e extravasando as regras de um contrato misto de arrendamento e prestação de serviços, sujeito ao estipulado nas cláusulas convencionadas por mútuo acordo, na conformidade do disposto no n°1, do art. 406°, do CC, em que os limites que a lei imponha à liberdade negocial constituem uma excepção.
Isso por adesão ao doutrinado no Acórdão do STJ de 01.07.2010, Proc.° 4477/05.0TVLSB.LI.SI, citado pelo recorrente e publicado em www.dgsi.pt de acordo com o qual:
“1. As lojas que integram centros comerciais deixam de se regular exclusivamente pelo que diz respeito à relação entre o dono do local e aquele que o explora, mas também pelo que se reporta à disciplina da unidade comercial assim agregada, que impõe a assunção de obrigações que possibilitem o exercício da actividade comercial do conjunto dos lojistas.
Devido a essa sua especificidade, é hoje pacífica a doutrina e a jurisprudência no sentido de considerar como contrato atípico ou inominado a cedência de espaços ou a instalação de lojas em centros comerciais, por se não coadunarem essas suas especificidades com as regras do arrendamento urbano, não se reduzindo, pela sua complexa natureza jurídica, a um contrato de arrendamento, nem a um contrato de cessão de exploração, e extravasando de um contrato misto de arrendamento e prestação de serviços.
2. Para que o contrato fica sujeito ao regime das cláusulas contratuais gerais necessário se torna, desde logo, que as condições negociais previamente elaboradas pelo proponente tenham de ser aceites tal como apresentadas, sem possibilidade de negociação individual. O requisito da rigidez constitui um dos pressupostos indispensáveis para que o contrato se passe a reger pela disciplina daquele diploma legal.
Uma vez que o contrato não foi apresentado hermeticamente fechado, tendo a autora prévio conhecimento das suas cláusulas e a elas aderido livremente e sem restrições, podendo sugerir alterações, na ausência da característica da imodificabilidade, essencial à sujeição do contrato ao regime das cláusulas contratuais gerais, há que acolher o presente contrato como contrato atípico sujeito ao estipulado nas cláusulas convencionadas por mútuo acordo, na conformidade do disposto no nº 1 do art. 406º C.Civil.”
Lapidar sobre a questão em análise é também o Ac. proferido pelo STJ, em 20.05.2015, no Proc.° 6427/09.5TVLSB.SB.L1.S1, (disponível em www.dgsi.pt), igualmente citado pelo recorrente.
I - Resulta do n.º 1 do art. 405.º do CC a seguinte regra: os particulares, na área dos contratos, podem agir por sua própria e autónoma vontade. Os limites que a lei imponha constituem a excepção.
II - A uniformidade e constância de grande parte das necessidades que estão na génese da contratação fizeram surgir, ao longo dos tempos, modelos ou tipos de contratos que a lei acolheu desenhando em abstracto os seus contornos e efeitos, os contratos nominados. A permanente agitação da vida social e económica criou novas necessidades, levando os interessados a procurarem novas soluções contratuais, fora dos esquemas formais da lei, os contratos inominados.
III - A questão dos centros comerciais (shopping centers), no que concerne à natureza jurídica dos contratos de instalação dos lojistas, tem merecido da doutrina estudo cuidado sem que, contudo, seja unânime a sua caracterização.
IV - É, no entanto, jurisprudência dominante do STJ que, na sua grande maioria, tais contratos são inominados, não existindo razões para, no estádio actual dos estudos doutrinais e das realidades da vida jurídica, ser afastado este entendimento.
V - Trata-se de um contrato atípico ou inominado, cuja origem jurídica ainda não está directamente traçada na lei, sem que possa ser considerado um contrato de arrendamento comercial, ou uma cessão de exploração de estabelecimento comercial ou um contrato misto.
VI - A cedência de um dado espaço num centro comercial pode configurar um contrato inominado cuja regulamentação se encontra em primeiro lugar nas suas próprias cláusulas, depois nas disposições gerais e, finalmente, nas normas da figura típica mais próxima.
VII - Não compete ao STJ, em abstracto, dizer que todos os contratos celebrados no âmbito de um centro comercial são contratos atípicos ou inominados. A sua caracterização há-de decorrer das cláusulas contratuais em concreto estipuladas pelos contraentes.”
Ou seja, a interpretação de uma declaração negocial é matéria de direito quando tenha de ser feita segundo critério ou critérios legais, sendo que a cláusula 2ª estabelece que o contrato em causa terá a vigência de um ano renovável automaticamente até ao ano 2025, conferindo apenas à Autora, na qualidade de operador, o direito de denunciar o contrato obstando à sua renovação.
Assim, por força do contrato só a Autora pode opor-se à renovação do contrato, o que quer dizer que só no caso da caducidade em 2025 (ressalvadas as situações que conferem ao Réu o direito de resolução do contrato em caso de incumprimento pelo lojista dos deveres e obrigações decorrentes do contrato de utilização), é que poderá a Ré reassumir a detenção da loja.
A cláusula 2ª foi livremente negociada entre as partes, sendo que a actuação do Réu está ancorada numa cláusula consensualmente elaborada pelas partes, de acordo com o princípio da liberdade de fixação do conteúdo dos contratos, afigurando-se justificado e ajustado o teor da cláusula, o que vale por dizer a sua não desconformidade com quaisquer princípios legais, designadamente os referidos na sentença recorrida.
Do que vem dito, impõe-se concluir que o contrato em apreço (independentemente até da sua qualificação) resultou do princípio da autonomia privada, titulado constitucionalmente e ligado ao valor de autodeterminação da pessoa, mas que deve estar em consonância com outros princípios como o da protecção das expectativas de confiança do destinatário e o princípio de protecção de segurança do tráfego jurídico, cuja função social é diferente do arrendamento e também da mera prestação de serviços (nesse sentido, vide o Ac. proferido pelo STJ em 30.06.2009, no Proc.° 1398°/03.4TVLSB.SI, (disponível em www.dgsi.pt).
Donde que somos forçados a concordar com a recorrente quando afirma que que quando foi acordado pelas partes contratantes que a cedência titulada pelo referido contrato seria pelo prazo de doze meses, contados desde a entrega do identificado espaço, (7 de Fevereiro de 2007), renovando-se automaticamente por iguais períodos de tempo, salvo denúncia a efectuar pela F....., Lda., por meio de carta registada com aviso de recepção a enviar com a antecedência mínima de sessenta dias em relação ao termo inicial ou de qualquer uma das suas renovações, e que o mesmo caducaria em 11 de Dezembro de 2025, pretenderam, claramente, impedir a MM…, E.M., de vir a denunciar o respectivo contrato durante a vigência do mesmo.
E também não pode deixar de considerar-se que a negociação do prazo do contrato, do regime de renovações e a respectiva caducidade foram determinantes para a sua outorga e que criaram à Autora expectativas de confiança que, naturalmente, permitiram um investimento nas obras de instalação e adaptação do estabelecimento ao espaço, de acordo com a longevidade daquele contrato e a certeza de que a MM… não frustraria tal expectativa pelo modo ora questionado.
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Chegados aqui, estamos em condições de solver a 2ª questão supra enunciada e que é a de saber se por força do contrato o direito de denúncia ou oposição à renovação é exclusivo da recorrente não sendo configurável qualquer sacrifício para o recorrido que lhe confira igual direito de denúncia ou oposição à renovação por haver abuso de direito por parte da recorrente à luz do princípio pacta sunt servanda.
Arrimados ao Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em 24.04.2012, no Proc.° 2357/07.3TVLSB.L1-1, publicado em www.dgsi.pt, é inquestionável que a fixação da cláusula 2ª relativa ao prazo no contrato sub judice, em homenagem ao princípio de que pacta sunt servanda ( ou seja, os pactos devem ser cumpridos, tê força obrigatória) consagrado no art. 406° do Código Civil, deve ser respeitada pelos contraentes que terão de cumprir adequadamente as suas obrigações durante todo o período de tempo convencionalmente acordado e que só findo este é que os contraentes recuperam a sua liberdade em consequência da extinção automática por caducidade do vínculo contratual assumido, só podendo extinguir-se antes do decurso do prazo nele estipulado para a sua vigência por mútuo consentimento dos contraentes.
Daí que se considerem espúrias as considerações tecidas na sentença e sufragadas pela Ré, fiel à sua tese de que uma leitura literal da cláusula 2ª do contrato celebrado representaria uma desproporcionalidade entre a vantagem conferida à recorrente face à total inexistência de direito de denúncia ou oposição à renovação por parte do recorrido do contrato, que se traduziria num sacrifício com o qual o recorrido não tem de se conformar enquanto manifestação típica do abuso de direito por parte da recorrente, devendo, a essa luz, considerar-se válida a oposição à renovação comunicada pelo Recorrido à Recorrente nos termos legais, com a consequente cessação do contrato a 07-02-2011, e a constituição da RECORRENTE no dever de proceder à entrega da loja por si ocupada ao abrigo do contrato celebrado, que não mais se encontra em vigor.
Mas será que se prova que houve uma “manifestação típica do abuso de direito por parte da recorrente”?
O abuso de direito é um dos expedientes técnicos ditados pela consciência jurídica para obtemperar a situações em que um preceito lega, certo e justo para as situações normais, venha a revelar-se injusto na sua aplicação a uma hipótese concreta, por virtude das particularidades ou circunstâncias especiais que nela concorram. Ocorrerá esta figura quando um determinado direito – em si mesmo válido – seja exercido de modo que ofenda o sentimento da justiça dominante na comunidade social. E, então, apresentam-se duas possíveis soluções sancionatórias: ou a ordem jurídica trata o titular do direito cujo exercício se torna abusivo como se esse direito não existisse; ou estatui consequências menos enérgicas, v.g., condena-o a simples indemnização dos danos sofridos pelo prejudicado.
São as seguintes as concepções que procuram precisar a essência do abuso de direito:
Uma primeira, denominada teoria subjectiva, considera decisiva a atitude psicológica do titular do direito, ter ele agido com o único propósito de prejudicar o lesado (acto emulativo), ou seja, centra-se o problema na intenção do agente.
Já para a teoria objectiva, o que importa averiguar não é a intenção do agente, mas apenas os dados de facto, o alcance objectivo da sua conduta, de acordo com o critério da consciência. Uma fórmula vulgarizada pelos objectivistas consiste em considerar abusivo o uso antifuncional do direito. Isso verifica-se quando exista um contraste nítido entre a finalidade própria do direito em causa e a sua actuação no caso concreto.
Existe ainda uma teoria intermédia, que é defendida, por exemplo, por Manuel de Andrade, para a qual deve-se considerar abusivo que o comportamento do respectivo titular se mostre, no caso concreto, gravemente chocante e reprovável para o sentimento ético-jurídico prevalente na colectividade. Mas esta reacção da consciência pública tanto pode ter na sua base factores subjectivos, como objectivos, ou factores de uma e outra ordem.
O nosso legislador aceitou no artº 334º do CC a teoria objectiva:não é preciso que o agente tenha consciência da contraditoriedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito exercido. Basta que o acto se mostre contrário, mas exige-se que o titular do direito tenha exercido manifestamente esses limites impostos ao seu exercício.
Sobre exta temática, vejam-se Almeida e Costa, Dir. Obrig., 4ª ed-52 e ss; Orlando de Carvalho, Teoria Geral de Direito Civil, 1981-65; Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, 1982-2º-83 e Jorge Coutinho de Abreu, Dos Abuso de Direito, 1983, 43).
Ora, tendo em conta tudo o que se apurou nos autos, e levando em conta o conteúdo da cláusula 2ª do contrato supra analisado e qualificado, em face do artº 334º do CC, é manifesto que não se prova estarmos perante o exercício, por parte da Autora, de qualquer direito por forma anormal, quanto à sua intensidade ou à execução do contrato, de modo a poder comprometer o gozo dos direitos de terceiros e a criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular, e as consequências que outros têm de suportar. Dito de ouro modo: não se prova que o direito da Autora seja exercido para além da sua finalidade plasmada no contrato em apreço pois, com base neste, aquela faz uma uso normal do seu direito nem causa danos à Ré por factos manifestamente contrários à consciência jurídica dominante na colectividade social, sendo exercido dentro do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência, sem causar danos a terceiros.
E, suma: o exercício do poder formal realmente conferido pela ordem jurídica à Autora no âmbito do contrato, não está em aberta contradição, seja como o fim económico ou social a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé, bons costumes) que, no presente, envolve o seu reconhecimento, sendo que não se antolha, com base em factos provados, que dessa cláusula imponha à Ré um sacrifício incomportável.
Termos em que procedem as conclusões recursórias o que impõe a revogação da sentença e a procedência da acção.

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3-.DECISÃO

Nesta conformidade, acordam, em conferência, os Juízes do 2º Juízo do Tribunal Central Administrativo Sul, em, concedendo provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e, na procedência da acção, declarar que o acordo celebrado entre a A. e R. vigorará desde 11 de Junho de 2010 até 11 de Dezembro de 2025, só podendo ser denunciado pela A., mais se condenando a R a abster-se de qualquer conduta que possa pôe em acusa a normal fruição da loja identificada nos autos, tendo em conta o fim a que a mesma se destina.

Custas a cargo do Recorrido.
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Lisboa,10-05-2018
José Gomes Correia
António Vasconcelos
Sofia David