Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2887/16.6BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:07/05/2017
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:LEI Nº 27/2008
Sumário:Qualquer cidadão que pretenda beneficiar de um dos mecanismos de proteção previstos na Lei nº 27/2008, deve densificar e provar factos a que tais mecanismos dêem resposta, sob pena de inaplicabilidade de tal diploma legal.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO


M... intentou no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa ação administrativa contra

M.A.I./SEF.

O pedido formulado foi o seguinte:

- Anulação da decisão do Director Nacional Adjunto do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), de 25 de Outubro de 2016, que considerou infundado o pedido de protecção internacional apresentado pelo Requerente, tanto na espécie asilo como na espécie autorização de residência por protecção subsidiária, ou a concessão desta última modalidade de protecção internacional.

Por sentença de 03-03-2017, o referido tribunal veio a prolatar decisão, onde absolveu o réu do pedido.

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Inconformado com tal decisão, o autor interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua incomum alegação as seguintes conclusões:

“Imagem no original”

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O recorrido contra-alegou:

“Imagem no original”

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O digno magistrado do M.P. junto deste tribunal foi notificado para se pronunciar em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n.º 2 do artigo 9.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, como previsto no nº 1 do art. 146º.

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

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Delimitação do objeto do recurso - questões a apreciar:

Cabe, ainda, sublinhar que os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso (cfr. artigos 144º/2 e 146/4 do CPTA, 5º, 608º/2, 635º/4/5, e 639º do CPC/2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA), alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou declare nula, deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, reunidos que se mostrem no caso os pressupostos e condições legalmente exigidos.

As questões a resolver neste recurso são as identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS

O tribunal “a quo” deu como provada a seguinte matéria de facto

1) No dia 13 de Setembro de 2016 o Requerente apresentou no Gabinete de Asilo e Refugiados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras pedido de protecção internacional às autoridades portuguesas (fl.s 15 do PA);

2) Ouvido sobre os fundamentos do pedido, o ora Requerente prestou as declarações que foram reduzidas a auto e juntas a fl.s 22-26 do PA e cujo teor se dá por reproduzido;

3) Nas quais declarou, inter alia, o seguinte: que saiu do Bangladesh (em data de que não se recorda), munido de um visto de estudo, com destino a Londres, onde estudou em Waltham Forest College, Walthamstow Forest Gate, durante um ano (de 2012 a 2013); que uma vez concluídos os estudos, solicitou a renovação do visto, mas não lhe foi dada qualquer resposta durante dois anos, pelo que em 2013 resolveu vir para Portugal, onde chegou em Junho de 2015; que, já em Portugal, converteu-se ao cristianismo, tendo sido baptizado na “Igreja Católica de Odivelas”, cujo nome desconhece e que passou a frequentar todos os domingos; que, por ter mudado de religião, teme que, se regressar ao Bangladesh, a sua família o não apoie (os pais já não atendem o telefone), antes o denuncie à Polícia (como o seu pai disse que ia fazer) e que esta o prenda;

4) No inquérito preliminar o Requerente havia declarado ter saído do Bangladesh no dia 9 de Agosto de 2014 (fl.s 4 do PA);

5) Por decisão do Directora Nacional Adjunto do SEF, de 25 de Outubro de 2016, foi o pedido considerado infundado, com base na Informação n.º 2038/GAR/16 do Gabinete de Asilo e Refugiados e nos termos dos art.ºs 19º, n.º 1, al. d) e e), e 33º-A, n.º 5, da Lei n.º 27/2008, de 30 de Junho (Lei de Asilo ou LA), na redacção da Lei n.º 26/2014, de 5 de Maio (fl.s 39 do PA, cujo teor se dá por reproduzido);

6) Decisão que foi notificada ao Requerente no dia 26 de Outubro de 2016 (fl.s 55 do PA, cujo teor se dá por reproduzido);

7) No dia 28 de Outubro de 2016 o Requerente requereu à Segurança Social a concessão de apoio judiciário (fl.s 60 a 63 do PA, cujo teor se dá por reproduzido);

8) No dia 21 de Novembro de 2016 foi comunicada à defensora oficiosa a nomeação (fl.s 67 do PA, cujo teor se dá por reproduzido);

9) O requerimento inicial (r.i.) foi enviado por correio electrónico ao Tribunal no dia 18 de Dezembro de 2016.

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II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Aqui chegados, há, pois, condições para se compreender esta apelação e para, num dos momentos da verdade do Estado de Direito (o do controlo jurisdicional), ter omnipresentes, “inter alia”, os seguintes princípios jurídicos fundamentais: (i) juridicidade e legalidade da administração pública, ao serviço do bem comum; (ii) igualdade de tratamento material axiológico de todas as pessoas humanas, que têm todas a mesma dignidade; (iii) certeza e segurança jurídicas; e (iv) tutela jurisdicional efetiva dos direitos das pessoas.

A decisão jurisdicional é continuação do processo de criação jurídica, mas não é o momento inicial criador. Por isso, na decisão jurisdicional, o tribunal, no pressuposto da existência prévia de lei no sentido do artigo 1º/2/1ª parte do Código Civil, procede a várias operações consecutivas relativas à correção externa e à correção interna da sua decisão: (1º) a obtenção legal racional da premissa menor da sentença, isto é, da factualidade relevante; (2º) a interpretação jurídica prescritiva das fontes de direito, de acordo com os artigos 9º e 10º do Código Civil e orientada pela CRP (em que o tribunal deve ter particular contenção na utilização do perigoso argumento teleológico-objetivo, face aos artigos 3º/3, 111º/1, 203º e 204º da CRP[1]), para obtenção da premissa maior; e, finalmente, (3º) a escolha racional-prática da solução que, no estrito espectro das possibilidades reveladas pelo direito objetivo aplicável, (i) seja aceitável de um ponto de vista jurídico-racional e (ii) possa ser generalizável para casos análogos futuros (cf. artigos 2º, 13º e 202º ss da CRP e artigos 8º ss do Código Civil). Os pontos (2º) e (3º) representam aquilo que Hans Kelsen considerava como a “interpretação jurídica autêntica”.

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Ora, o presente recurso de apelação coloca as seguintes questões:

Erro na apreciação jurídica dos factos provados (erro de direito, que o recorrente designa como erro de facto)

É manifesto que este recurso não tem fundamento.

Basta-nos remeter para a sentença, dada a pobreza ou superficialidade da alegação de recurso:

“A motivação do pedido de protecção internacional resume-se na alegação do Requerente de que receia regressar ao Bangladesh porque teme que a família o denuncie à polícia, e esta o prenda, por se ter convertido ao Cristianismo, o que é proibido pela religião muçulmana, a que pertencia.

“No entanto, é o próprio Requerente que no artigo 14º do r.i. afirma que a conversão não é proibida por lei, embora, devido ao crescimento do extremismo muçulmano, os cristãos convertidos do islamismo, como é o caso do Requerente, enfrentem forte pressão dos familiares “por mudarem a fé islâmica”, e confessa que não sabe se será preso se regressar ao Bangladesh(porque não sabe se o seu pai apresentou queixa à polícia), «mas pode acontecer. Se o meu pai tiver apresentado queixa na Polícia» (p. 3 do Auto de Declarações junto a fl.s 22-26 do PA).

“Não há notícia de que as autoridades do Bangladesh persigam os cidadãos não muçulmanos ou que não lhes assegurem protecção contra actos de agentes de perseguição, designadamente contra os actos de violência ou as ameaças dos extremistas islâmicos.

“Saliente-se, enfim, que, apesar de ter declarado que se converteu ao Cristianismo – mais precisamente à Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias – e ter recebido o baptismo e a confirmação, e de ir à missa todos os domingos, não sabe dizer uma oração, nem o nome do padre que costuma presidir aos actos religiosos, nem os nomes dos principais personagens do Mormon Book que diz possuir, nem sequer o nome da igreja onde costuma assistir à missa (só sabe que fica perto do Metro de Odivelas).

“Em suma, as declarações do Requerente carecem de credibilidade, por se basearem em simples conjecturas, não confirmadas por factos concretos relativos à realidade do país de origem, e por serem contraditórias”.

Ao que aditamos uma conclusão essencial. Não há qualquer indício de que o interessado é cristão ou religioso em geral, ainda que posteriormente à saída do seu país para Inglaterra, pelo que não interessava sequer apurar se o mesmo poderia ser perseguido por motivos religiosos no Bangladesh.

Portanto, a sentença recorrida aplicou corretamente a Lei 27/2008, nomeadamente os seus artigos 3º, 5º e 7º.

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III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes deste Tribunal Central Administrativo Sul em, negando provimento ao recurso, julgá-lo manifestamente improcedente.

Sem custas.

Lisboa, 05-07-2017


(Paulo Pereira Gouveia - relator)

(Nuno Coutinho)

(J. Gomes Correia)



[1] Cf. MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, Introdução ao Estudo do Direito, AAFDL, Lisboa, 2017, págs. 182 ss, 192-228, 263 e 285 ss, espec. págs. 194, 195 e 221. Segundo o professor de Lisboa, com apoio em R. ALEXY e em H-J KOCH/H. RÜβMANN, em caso de dúvida ou de conflitos entre os usuais 4 argumentos ou critérios do processo de obtenção da norma jurídica como ponto de chegada da interpretação, sempre enquadrada no texto da lei, a ordem de prevalência relativa é a seguinte. 1º) o argumento gramatical, 2º) o argumento sistemático e o argumento histórico, 3º) o argumento teleológico-objetivo. Com efeito, é o que a segurança jurídica e a divisão de poderes num Estado democrático exigem.
Quanto ao elemento sistemático, vitorioso na ciência jurídica dos últimos 2 séculos, cabe sempre lembrar, porém, os perigos inerentes à natureza arquitetónica da razão humana, como o fez KANT (cf.  Crítica da Razão Pura, 2ª ed., 1787, nº 490 ss, maxime nº 502 e 503; na tradução portuguesa publicada pela FCG, 8ª ed., 2013, págs. 419-427). Afinal, como já KANT referiu na sua Doutrina Universal do Direito (1797, §45; in Metafísica dos Costumes), o Estado moderno implica um silogismo prático, em que a premissa maior é a lei, a menor é a sua execução e a conclusão é a decisão do juiz.
É de sublinhar que a norma-regra obtida pelo juiz – interpretação jurídica prescritiva - terá sempre um sentido normativo que subsiste em abstrato (cf. F. MÜLLER/R.C., Juristische Methodik, I, 10ª ed., Duncker & Humbolt, Berlim, 2009, pág. 276).