Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:82/17.6BCLSB
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:03/15/2018
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:ARBITRAGEM
FUNDAMENTAÇÃO
INTELIGIBILIDADE
EQUIDADE
PRESUNÇÃO JUDICIAL
Sumário:I - A nulidade decisória da falta de fundamentação, como causa de anulação juridisdicional de uma decisão arbitral emitida no âmbito da LAV/2011, refere-se apenas ao seguinte: (i) falta total de fundamentação (quando a fundamentação não seja dispensada pelas partes) ou (ii) ininteligibilidade da fundamentação apresentada.

II – Tal regime jurídico, diferente do previsto no CPC e no CPTA, pode ser explicado (i) pela origem, (ii) pela natureza e (iii) pelos fins da arbitragem voluntária, de onde se retira que: (i) a decisão arbitral que se pronuncie sobre o fundo da causa ou que, sem conhecer deste, ponha termo ao processo arbitral, só é susceptível de recurso para o tribunal estadual competente no caso de as partes terem expressamente previsto tal possibilidade na convenção de arbitragem e desde que a causa não haja sido decidida segundo a equidade ou mediante composição amigável; (ii) a decisão arbitral só pode ser invalidada pelo tribunal estadual competente nos estritos casos previstos no nº 3 do artigo 46º da LAV de 2011 (cf. nomeadamente o artigo 42º, nº 3, 1ª parte e o artigo 46º, nº 3, al. a), ponto vi), da LAV de 2011).

III – Não pode, assim, o tribunal estadual analisar o mérito jurídico da decisão arbitral, como, por exemplo, se os árbitros decidiram acertadamente ou incorretamente um litígio com base na tutela da confiança legítima para efeitos de modificação objetiva do contrato administrativo e de reposição do equilíbrio financeiro do contrato de concessão.

IV - De acordo com o artigo 185º, nº 2, do CPTA, a arbitragem jurídica administrativa não pode recorrer à equidade para dirimir os litígios.

V – A equidade pode ser definida como um critério de solução de casos ou uma solução normativa que prescinde de apoio direto nas fontes de Direito, por ter de se adaptar às especificidades do caso concreto sob a égide do princípio jurídico da justiça.

VI – Diferente da equidade é a possibilidade que os árbitros e os tribunais em geral têm de utilizar presunções judiciais, em sede de motivação do julgamento da matéria de facto.

VII – Na presunção judicial, o julgador utiliza (i) máximas da experiencia (regras de validade universal, a normalidade no que diz respeito ao principio da causalidade, ao princípio da contiguidade ou ao princípio da semelhança), (ii) juízos correntes de probabilidade, (iii) de lógica e de intuição humana, como meios (em termos de nexo lógico, num juízo de probabilidade qualificada) de, a partir de um facto conhecido (o facto-base ou indiciário, a premissa maior), chegar a um facto desconhecido que deve ser provado em juízo (o facto presumido alegado e relevante para o processo, a premissa menor).

VIII - No caso presente, o tribunal arbitral (i) apresentou uma fundamentação de facto e uma fundamentação de direito inteligíveis e (ii) recorreu, não a um juízo de equidade, mas a uma presunção judicial quando considerou prudente aceitar que o desvio apurado por referência ao ano de 2011 se viesse a manter o mesmo ao longo de todos os anos subsequentes de vigência da concessão (2012 a 2034)
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA 1ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL:

I - RELATÓRIO

O ESTADO PORTUGUÊS intenta neste TCA Sul

Ação administrativa de anulação de deliberação arbitral, ao abrigo do artigo 46º da LAV e do artigo 185º-A do CPTA, com o valor processual de € 213.550.000,00 (duzentos e treze milhões, quinhentos e cinquenta mil euros), contra

A….– AUTO-………………., S.A., com sede na Quinta …………………….., Edifício………., …….-599 …………………..

A pretensão apresentada foi a seguinte:

- Declaração de nulidade parcial do acórdão arbitral prolatado em 7 de fevereiro de 2017, tal como clarificado e retificado pela decisão do tribunal arbitral de 5 de abril de 2017, nos autos de processo de arbitragem voluntária que o opôs à R.

Citada, a demandada opôs-se.

Seguiu-se o previsto no artigo 46º/2-e) da L.A.V. de 2011.

Colhidos os vistos, vêm os autos à conferência para decisão.

*

II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – FACTOS ALEGADOS E PROVADOS por documentos

1) Em 28 de Dezembro de 2007, o Estado outorgou com a ora R. o Contrato de Concessão cuja cópia se junta e se dá por inteiramente reproduzido, como todos os documentos juntos com este articulado (cf. doc. 1), em que esta ocupa a posição jurídica de concessionária.

2) Em 16 de Janeiro de 2013, a R. requereu, em carta que dirigiu ao Estado (cf. doc. 2), a constituição de um tribunal arbitral destinado a dirimir uma série de litígios que ali identificou, desde logo juntando a petição inicial, aliás em cumprimento do disposto na cláusula compromissória.

3) Aceite a constituição de tribunal arbitral e contestada a ação, foi o tribunal arbitral instalado em 17 de dezembro de 2013, ficando a ser árbitro-presidente o Sr. Professor Doutor António …………………. e sendo árbitros-adjuntos os Srs. Professores Doutores António …………………., indicado pela ora R., e José ………………………, indicado pelo ora A. (cf. doc. 3).

4) Em 8 de Setembro de 2016, foi proferido pelo tribunal arbitral, e notificado às partes (cf. doc. 5), o acórdão em matéria de facto.

5) Tendo sido solicitada pelo ora A. a correção de lapso cometido naquela decisão, foram as partes notificadas da respetiva retificação (cf. doc. 5), efetuada através do Acórdão de 22 de setembro de 2016.

6) Em 7 de Fevereiro de 2017, foi notificado às partes (cf. doc. 6) o Acórdão Arbitral final (cf. doc. 7).

7) Em 21 de Fevereiro de 2017, o ora A. solicitou ao tribunal arbitral o esclarecimento de obscuridades e a retificação de erros materiais do referido acórdão (cf. docs. 8 e 9).

8) Em 6 de Abril de 2017, foi notificado às partes o acórdão de aclaração que incidiu sobre o referido pedido (cf. doc. 7).

9) Do texto dos capítulos “I - As partes, a convenção de arbitragem e o tribunal arbitral”, “II – O objeto do litígio e o desenvolvimento da instância” e “III – Os factos” do Acórdão arbitral, tal como pontualmente corrigidos pelos acórdãos de aclaração de 22 de setembro de 2016 e de 5 de abril de 2017, consta a descrição do iter processual, das posições das partes e da matéria dada como assente ou provada pelo tribunal, dando-se por reproduzido tudo o que ali inscreveu o tribunal arbitral.

10) A decisão final do tribunal pode ler-se na parte “VII - Decisão” e é composta por cinco alíneas, correspondentes aos vários pedidos que haviam sido inicialmente formulados pela ora R.

11) Em particular, o tribunal arbitral condenou o Estado português nos seguintes termos (cf. alínea e) do ponto 1. da decisão):

- Por conta da não construção e consequente não entrada em serviço do Lanço IC2, o Demandado deverá pagar à Demandante uma compensação faseada, cujo valor deverá ser calculado nos seguintes termos:

- Para o período de 31 de dezembro de 2011 até à presente data, a quantia de €42.000.000,00 (quarenta e dois milhões de euros), a qual deverá ser paga no prazo de 60 (sessenta) dias contados da notificação do presente Acórdão;

- Para cada período semestral subsequente e até ao final do prazo da Concessão D........... L........, as quantias indicadas na tabela seguinte:

(tabela-quadro no original)

- O caso base deverá passar a refletir a reposição decretada pelo Tribunal Arbitral no presente Acórdão, originada pela não construção do Lanço IC2, devendo ser alterado de acordo com as seguintes indicações:

(tabela-quadro no original)

12) Ao processo arbitral foi também aplicável o regulamento fixado pelo próprio tribunal, com o acordo das partes, uma vez que se tratava de uma arbitragem ad-hoc, aplicando-se, ainda, nos seus termos e nos casos omissos, a LAV/2011 e a versão de 2008 do Regulamento de Arbitragem do Centro de Arbitragem Comercial da Associação Comercial de Lisboa (cf. art.º 7.º da ata de instalação do tribunal).

13) Conforme decorre da exposição do iter processual que consta das partes I e II do acórdão arbitral, a factualidade em que assentava o pedido da ora R. de pagamento de uma compensação com base no reequilíbrio financeiro, que veio a ser parcialmente julgada procedente no segmento decisório que está em crise nesta ação, ordenou-se em torno de saber:

a. Se a ora R. formou uma certa convicção sobre a futura existência de uma autoestrada, ligando Oliveira de Azeméis e Coimbra, que ficou no autos arbitrais designada de forma abreviada por “Lanço IC2”, expressão que se passará a usar também nesta peça, explorada em regime de sem cobrança de portagem aos utilizadores, com perfil de 2x2 vias e com um certo traçado;

b. Se a proposta final da ora R. no concurso público que conduziu à assinatura do Contrato de Concessão que liga A. e R. até 2034 (adiante “BAFO”) indicava essa convicção;

c. Se eram patentes na BAFO os resultados dessa convicção, designadamente por a ora R. ter previsto nas projeções de tráfego então apresentadas um certo volume de tráfego “induzido”33 pela futura existência daquela nova via;

d. Em que elementos de informação se fundara a alegada convicção da ora R.;

e. Se esses elementos de informação eram atribuíveis ao Estado ou da sua autoria;

f. Se esses elementos de informação eram aptos, idóneos e suficientes para sustentar a convicção da ora R.; e

g. Se a convicção da ora R., assim formada, foi desfeiteada por ato do Estado, posterior à assinatura do Contrato de Concessão.

14) O tribunal arbitral decidiu afirmativamente, no acórdão em matéria de facto, as questões factuais descritas em a., b. e c.

15) O tribunal arbitral decidiu igualmente, no mesmo acórdão e no que respeita à questão elencada em d., listar um conjunto de cinco documentos que, no seu entender, foram aqueles em que a convicção da R. se fundou

16) O tribunal arbitral decidiu, no que respeita à questão elencada em e., que todos aqueles documentos se devem ter por juridicamente atribuíveis ao Estado

17) O tribunal deu resposta afirmativa à questão descrita em g.

18) O tribunal concluiu que a ora R. (i) formou certa convicção sobre o futuro Lanço IC2, (ii) que a sua proposta BAFO refletia, (iii) desde logo porque as projeções de tráfego aí apresentadas indicavam um aumento de tráfego no ano de 2011, que (iv) essa convicção se fundara num conjunto de cinco documentos, (v) juridicamente atribuíveis ou da autoria direta do Estado, (vi) tendo este desfeiteado tal convicção por ato seu, posterior à assinatura do Contrato de Concessão.

19) Da decisão colegial arbitral impugnada consta, nomeadamente, o seguinte (com interesse para as 6 ilegalidades invocadas na p.i.):

“A Demandante (A.....) é patrocinada pelos Senhores Drs. Rodrigo …………., Paulo de ……….. e Inês ……….., de Vieira ………….., Sociedade de Advogados, R. L., e o Demandado (ESTADO) é patrocinado pelos Senhores Drs. Pedro ………….. e Diana …………., de ………….. ………a e Associados, Sociedade de Advogados.

Em conformidade com o previsto no número 100 do Contrato de Concessão - Concessão …………… -, celebrado entre o Estado Português e a A..... - Auto- Estradas do …………, S. A., em 28 de Dezembro de 2007 (doravante designado, abreviadamente, "Contrato de Concessão" ou "Contrato"), e das correspondentes Bases da Concessão aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 392-A/2007, de 27 de Dezembro de 2007 (doravante, abreviadamente, "Bases da Concessão"), as Partes submeteram a Tribunal Arbitral, para ser julgado segundo o direito constituído, o litígio que as opõe quanto ao pedido de reposição do equilíbrio financeiro do Contrato, em função dos seguintes eventos:

-A criação da Taxa de Regulação das Infra-Estruturas Rodoviárias (TRIR);

-A introdução das tarifas a cobrar pela SIEV - Sistema de Identificação Eletrónica de Veículos (SIEV);

-A suspensão do concurso para a adjudicação da subconcessão usualmente designada por "Auto-Estradas do Centro".

A Demandante nomeou como Árbitro o Prof. Doutor António ……………….; o Demandado nomeou como Árbitro o Prof Doutor José ………………..; os dois primeiros designaram como Árbitro Presidente o Prof. Doutor ………………………..

Estamos, inequivocamente, perante um contrato administrativo de concessão, modalidade daquilo que a doutrina designa como contratos administrativos de colaboração em que o contraente privado assume a responsabilidade pela execução de uma atividade pública em vez da administração, ficando-lhe confiada, “em nome próprio e com imputação própria, uma missão de carácter público.

Fala-se, a este propósito, de uma partilha de riscos entre as partes, que resulta da lei e do próprio contrato, e que deve ser feita de acordo com um critério de otimização na alocação de riscos, fazendo-os correr por aquele que se encontra em melhor situação para os suportar e gerir.

Entre os riscos que se entende deverem ser suportados pelo contraente privado estão os designados riscos próprios do contrato, nos quais se incluem, nomeadamente, o "risco da procura " (ligado à inexistência de procura ou à procura abaixo do nível necessário para cobrir os custos e proporcionar a receita esperada) e o "risco financeiro" (relativo à variação dos encargos financeiros suportados pelo contraente privado).

Relacionado com a assunção do risco da procura pelo concessionário está o facto de a contrapartida que aufere estar dependente, ao menos em parte, dos resultados da exploração.

Pelo contraente público correrá, em regra, o chamado risco político, ligado à ocorrência de custos a suportar pela concessionária resultantes de medidas administrativas ou mesmo legislativas que importam uma alteração do conteúdo do contrato ou, em certos termos, uma alteração das circunstâncias que constituem a base do negócio.

Relaciona-se com esta partilha de riscos a questão, central na presente ação, da assunção por uma ou outra das partes, e em que te1mos, dos efeitos de factos que implicam uma alteração do equilíbrio financeiro do contrato por serem causa de maiores custos ou de diminuição dos resultados de exploração do contraente privado.

Conforme a doutrina tem reconhecido, a alteração do equilíbrio financeiro dos contratos administrativos, em prejuízo do contraente privado, pode resultar de situações de diferente natureza e origem, que se podem apresentar do seguinte modo:

-Situações originadas por uma conduta ilícita e culposa do contraente público;

-Situações de modificação unilateral, pelo contraente público, do conteúdo do contrato, nomeadamente quanto às prestações a cargo do contraente privado;

-Situações de adoção, pelo contraente público (ou, segundo alguns, também por outrem no exercício de poderes públicos), de medidas legislativas, políticas ou administrativas (de carácter geral ou concreto) que não modificam o conteúdo do contrato, mas se projetam indiretamente, e em termos específicos, sobre a relação contratual, tomando mais oneroso o cumprimento pelo cocontratante ou agravando por outra via a posição patrimonial deste último;

- Situações em que ocorrem alterações anormais e imprevisíveis das circunstâncias em que assentou o contrato, não imputáveis a nenhuma das partes.

O equilíbrio financeiro do contrato tem a ver com a proporção entre as prestações a que se obriga o contraente privado e as contraprestações a cargo do contraente público, sendo que para a definição dessa proporção ou equilíbrio inicial são feitas estimativas de custos e de receitas que o contraente privado irá obter ao longo da execução do contrato. Quando, por efeito de uma modificação unilateral do contrato promovida pelo contraente público, este equilíbrio é desfeito em resultado de uma diminuição das receitas ou de um aumento dos custos, a lei considera adequado fazer crer pelo contraente público o encargo correspondente, através do mecanismo da reposição do equilíbrio financeiro do contrato.

Por seu turno, os casos de adoção de medidas que não modificam o conteúdo do contrato, mas que se projetam indiretamente, e em termos específicos, sobre a relação contratual, correspondem à chamada alteração de circunstâncias por efeito de facto do príncipe (factum principis, fait du prince), entendido como um "ato jurídico de carácter geral, por isso estranho à relação contratual, mas com impacto sobre a execução do contrato administrativo".

Ora, tem-se entendido que tal alteração das circunstâncias, quando preencha determinados pressupostos, pode ser fundan1ento de modificação do contrato através da reposição do seu equilíbrio financeiro, à semelhança do que ocorre quando tem lugar uma modificação unilateral do conteúdo contratual promovida pelo ente público.

Na verdade, num caso e noutro, estamos perante situações em que o equilíbrio contratual é posto em causa por um ato de autoridade do contraente público, pelo que se situa ainda na esfera do acima mencionado risco político ou político-administrativo, que é, em princípio, assumido pelo ente público. Ora, sendo esse o caso, é razoável que o remédio proporcionado ao contraente privado neutralize os efeitos desse ato sobre o contrato e reponha a proporção financeira em que este assentou originariamente o contrato.

Isso mesmo se entende resultar hoje da norma do artigo 314.º, n.º l, alínea a), do Código dos Contratos Públicos, mas era também já defendido antes da entrada em vigor do referido diploma, perante o regime constante das normas dos artigos 178. ° e seguintes do Código do Procedimento Administrativo, aplicáveis ao contrato em apreço. Nas palavras de LICÍNIO LOPES MARTINS, "perante alterações causadas pela Administração, a aplicação do princípio do equilíbrio financeiro assume um duplo título de concretização: o reequilíbrio impõe-se seja pela alteração das circunstâncias, seja por via da modificação unilateral, por neste caso, estar desde logo em causa um dever - em rigor, um dever extracontratual imposto por lei, na medida em que o contraente público, por virtude da sua atuação, frustra as expectativas económico- financeiras do seu contraente, tendo, por isso, de o indemnizar. Orientação que já tem, entre nós, precedentes doutrinais e jurisprudenciais desde o início do Século transato.

A matéria da alocação dos riscos do Contrato e da manutenção do equilíbrio financeiro do mesmo é tratada no seu capítulo XXII, que tem por epígrafe "Condição financeira da Concessionária" e que prevê, nomeadamente, o seguinte:

Quanto à alocação de riscos, estipula-se no número 86.1 que a Concessionária "assume, expressa, integral e exclusivamente, a responsabilidade por todos os riscos inerentes à Concessão, exceto nos casos especificamente previstos no Contrato de Concessão", e acrescenta-se, no número 86.2, que a Concessionária assume, designadamente, o risco integral de tráfego inerente à exploração da autoestrada, neste se incluindo o risco emergente de qualquer causa que possa dar origem à redução de tráfego ou à transferência de tráfego da autoestrada para outros meios de transporte ou outras vias.

Salvaguarda-se, porém, no número 86.3, que a entrada em serviço de vias rodoviárias concorrentes pode conferir à concessionária o direito à reposição do equilíbrio financeiro da concessão.

São também cláusulas com direta atinência à matéria da alocação dos riscos as do número 88.l do Contrato, que preveem que a Concessionária terá direito à reposição do equilíbrio financeiro da Concessão nas seguintes situações:

- Modificação unilateral, imposta pelo Concedente, do conteúdo das obrigações contratuais da Concessionária ou das condições de desenvolvimento das atividades concessionadas, desde que, em resultado da mesma, se verifique para a Concessionária um aumento de custos ou uma perda de receitas;

-Ocorrência de casos de força maior nos termos do número 80, de que não decorra a resolução do Contrato;

- Alterações legislativas de carácter especifico que tenham um impacto direto sobre as receitas, custos ou resultados relativos às atividades Concessionadas;

- Quando o direito de aceder à reposição do equilíbrio financeiro seja expressamente previsto no contrato de concessão.

Provou-se na presente ação, por acordo das Partes, que, até à data da propositura da ação, a variação provocada pela TRJ R nos montantes dos custos previstos no Caso Base foi de € 725.479,00 e que, entre a data da propositura da ação e o termo da Concessão D........... L........, a variação provocada pela TRIR nos montantes dos custos previstos no Caso Base será igual à totalidade das quantias que, a esse título, já foram e vierem a ser pagas pela Demandante (ponto 17.1 da decisão sobre a matéria de facto, constante do Despacho n.º 51).

Está também provado que a TRJR se projeta apenas sobre as condições económicas particulares ou específicas das concessionárias diretas do Estado em matéria de infraestruturas rodoviárias e não sobre os operadores económicos em geral (facto provado gg) do Despacho nº 9).

Provado ficou igualmente que o Instituto de Infra-Estruturas Rodoviárias, I.P., declarou que o Estado reconhecia a incidência da TRIR sobre a Demandante como evento gerador do direito ao reequilíbrio financeiro e propôs a celebração de um acordo escrito entre as Partes que consagrasse o direito à devolução, pela EP - Estradas de Portugal, S. A., dos montantes que, em cada período, fossem efetivamente pagos pela Demandante a título de TRIR (facto assente w) do Despacho n.º 9).

Está ainda assente que a Demandante, considerando não existirem motivos que legitimassem, no que respeita ao instituto da reposição do equilíbrio financeiro, a diferença de tratamento entre as soluções a dar à TRlR e às tarifas da SIEV, transmitiu ao Instituto de Infra-Estruturas Rodoviárias, LP., que a fo1malização do acordo referente à TRIR deveria abranger também as tarifas da SIEV e que, não tendo aquele Instituto acedido a tal pretensão, o acordo acabou por não ser celebrado (factos assentes y) e z) do Despacho n.º 9).

V

A NÃO CONSTRUÇÃO DO LANÇO IC2

A questão sobre a qual recaiu a maior parte da atividade probatória desenvolvida pelas Partes na presente ação, bem como o essencial do seu esforço argumentativo, foi a dos efeitos sobre o Contrato de Concessão da não construção e não entrada em serviço do Lanço IC2, entre Coimbra e Oliveira de Azeméis.

Para a Demandante, estamos perante um evento que é suscetível de se enquadrar quer na alínea a) quer na alínea e) do número 88.l do Contrato de Concessão.

O Demandado, por seu turno, defende que a não construção do Lanço IC2 não é evento capaz de se integrar em nenhuma das hipóteses em que o Contrato de Concessão reconhece o direito à reposição do equilíbrio financeiro, alegando, nomeadamente, que a Demandante assumiu integralmente no Contrato o risco de tráfego, que não existe uma situação de confiança atendível da Demandante relativamente à construção e entrada em exploração da referida estrada (quanto aos quatro elementos que reputa essenciais, do perfil, traçado, data da entrada em serviço e regime de exploração) e que os factos provados não suportam a alegação da Demandante quanto aos danos que o referido evento lhe teria provocado e provocará no futuro e ao modo como pretende a reposição do equilíbrio financeiro do Contrato.

A NÃO CONSTRUÇÃO DO LANÇO IC2 COMO UM EVENTO QUE ALTERA AS CONDIÇÕES DE DESENVOLVIMENTO DAS ACTIVIDADES CONCESSIONADAS

É entendimento do Tribunal que o número 88.1.a) do Contrato abrange na sua letra dois tipos distintos de eventos geradores de desequilíbrio financeiro do contrato decorrentes de ato unilateral do Concedente: a modificação do conteúdo do contrato pelo Concedente e a adoção, também por este, de medidas que não modificam o conteúdo do contrato, mas que afetam diretamente, e em termos específicos, a relação contratual, em prejuízo da Concessionária.

Na verdade, a formulação adotada na referida cláusula indicia claramente que não foi propósito das Partes restringirem o direito à reposição do equilíbrio financeiro somente às situações em que o ato do Concedente se traduziu em direta modificação das condições do contrato através do exercício do ius variandi -essa é a hipótese visada na primeira parte da cláusula, relativa à "modificação unilateral [...] do conteúdo das obrigações contratuais da Concessionária" --, mas que se quis também atribuir tal direito à Concessionária no caso de o facto da príncipe não visar diretamente o Contrato mas implicar uma alteração das circunstâncias que o Contrato pressupõe com específica repercussão na situação da Concessionária, traduzida no aumento de custos ou na perda de receitas - é a "modificação unilateral [...] das condições de desenvolvimento das atividades concessionadas" de que se fala na segunda parte desta cláusula.

O que, aliás, coloca o Contrato em linha com aquilo que se viu ser defendido já em face das regras legais vigentes à data da celebração do Contrato e que hoje encontra mais clara expressão no artigo 314, n.º 1, do Código dos Contratos Públicos.

Comecemos por ver se a não construção do Lanço IC2 se pode considerar como uma modificação unilateral, imposta pelo Concedente, das condições de desenvolvimento das atividades concessionadas suscetível de gerar a direito à reposição do equilíbrio financeiro da Contrata.

A ALTERAÇÃO DOS PRESSUPOSTOS EM QUE ASSENTOU O CONTRATO

A Demandante defende na ação que entre os pressupostos da rede viária assumidos pela A..... na sua proposta de contrato, expressa na BAFO, estava a construção do Lanço IC2 e a sua entrada em exploração em 2011, que esse pressuposto foi relevante na sua decisão de contratar e que a sua não verificação originou um desequilíbrio financeiro do Contrato, suscetível de correção por via do mecanismo da reposição.

Com direta relevância para a questão ora em debate, está provado na ação:

- Que a A..... assumiu, na sua Proposta BAFO, que o Lanço A32/IC2 teria continuidade para Sul, com ligação ao Lanço IC2, entre Coimbra Norte e São João da Madeira, e que este efeito de continuidade aumentaria a atratividade da concessão, face aos outros corredores de autoestrada já existentes (Al/IPl e A29/IC21);

- Que a A..... assumiu, na sua Proposta BAFO, que o Lanço IC2 entraria em serviço em 2011, que teria um perfil de 2x2, ou seja, de autoestrada, e que viria a ser explorado sem cobrança de portagem aos utilizadores;

- Que os pressupostos de rede viária assumidos na Proposta BAFO influenciaram os termos dessa proposta;

- Que os mencionados pressupostos de rede viária foram explicitados no relatório do estudo de tráfego apresentado com a BAFO e que o Estado teve deles conhecimento;

- Que o Agrupamento A..... teve acesso, antes da apresentação da BAFO, pelo menos aos seguintes documentos, com relevância para a definição, na BAFO, dos pressupostos da rede viária acima identificados:

-Plano Rodoviário Nacional, aprovado pelo Decreto-Lei nº 222/98, de17 de junho.

-Estudo Prévio do Lanço A32, entregue ao Agrupamento A..... em 23.5.2007 (Documento n.0 3 do requerimento de prova da Demandante de 15.7.2014), que contém em anexo um Estudo de Tráfego (Documento n.º 3 do requerimento do Demandado de l.8.2014).

-Resumo Não Técnico do Estudo de Impacto Ambiental do Lanço A32, datado de março de 2006.

-Programa de desenvolvimento futuro da rede viária previsto para a área em estudo (distritos de Braga, Porto e Aveiro), enviado por e-mail de 19.6.2007 por Joaquim ………….. a Francisco …………… e Frederico ………………..(Documento n.º l3 da p. i.).

-Esboços corográficos do Lanço IC2 (Documento n.0 14 da p. i.).

- Que o tráfego na concessão, em especial no Lanço A32, seria influenciado pelo tráfego potenciado pela subconcessão Auto-Estradas do Centro entre Coimbra e o Porto, e poderia vir a beneficiar de um corredor alternativo Lisboa/Coimbra/Porto pela Subconcessão Pinhal Interior entre Lisboa e o Porto;

- que, sem o Lanço 1C2, o lanço da A32 ficou conectado a Sul à N224, servindo as cidades de Oliveira de Azeméis e de Vale de Cambra, ligando esta ainda ao atual IC2 (com perfil de estrada nacional em lx2), que se dirige para Sul, servindo outras localidades, e que, não havendo ligação a Sul à rede primária de estradas (isto é, autoestradas ou vias rápidas), a função do lanço da A32 fica essencialmente confinada à distribuição de tráfego local e a viagens de curto ou médio curso, não captando o tráfego de longo curso;

- Que a entrada em serviço do Lanço IC2 teria, em 2011, um impacto médio estimado na concessão D........... L........, a partir das previsões do Estudo de Tráfego da BAFO, que seria de um acréscimo de entre cerca de 3.400 e cerca de 4.000 veículos por dia (secção média ponderada - 3.385 ou 4.028 veículos x km/hr), correspondente a um aumento percentual entre cerca ele 15,9% e 19,6%;

- Que esse é o impacto mínimo, podendo o impacto ser maior se o tráfego que viria do Lanço IC2 não se estabilizasse em 2011, mas somente nos anos seguintes;

- Que uma redução de TMDA igual a 19,6% no Caso Base para todos os sub- lanços durante a vigência do Contrato de Concessão corresponde a uma diminuição das receitas de portagens num valor global de € 584.238.080,00 (a preços correntes).

Da matéria provada resulta que a Demandante, na Proposta BAFO, pressupôs que o Lanço IC2 iria ser construído e entrar em serviço em 2011, com características de autoestrada sem cobrança de po1iagem, e que iria existir uma ligação entre a Concessão, em particular o Lanço A32, e o referido Lanço IC2, o que potenciaria a atratividade da Concessão e a sua competitividade em razão da ligação da autoestrada a Coimbra, e ainda, da possibilidade de vir a beneficiar de um outro corredor de auto- estrada entre Lisboa e o Porto, tendo tais assunções influenciado os termos da referida Proposta BAFO.

Está também provado que o Estado teve conhecimento de que a proposta da AED L assentava nesses pressupostos.

A proposta, integrada pelo conjunto da documentação apresentada pela A..... na sessão de negociações que ocorreu em 4 de outubro de 2007 (documento nº 5 junto com a contestação), é um dos documentos contratuais aplicáveis à Concessão, conforme previsto no número 5.1.d) do Contrato, e o caso base faz parte integrante desse mesmo Contrato, como seu Anexo 5 (número 2).

A relevância objetiva dos pressupostos em que assentou a proposta apresentada pela A..... também se pode dar como assente, tendo presente que se apurou que, sem o Lanço IC2, o Lanço A32 ficou essencialmente confinado a servir o tráfego local e de curto e médio curso e que a entrada em serviço desse Lanço IC2 teria provocado em 2011, à luz das previsões do Estudo de Tráfego, um acréscimo de tráfego de entre cerca de 3.400 e cerca de 4.000 veículos por dia.

Pode afirmar-se com segurança, portanto, que a construção e entrada em serviço do Lanço IC2, nos termos referidos, estava entre os pressupostos em que assentou a decisão da Demandante de celebrar o Contrato nos termos em que o fez e que isso foi do conhecimento do Demandado. A estruturação financeira da proposta da Demandante foi efetuada também em função destes pressupostos.

Será porventura duvidoso se isso basta para que os referidos pressupostos integrem a base negocial, no sentido de serem pressupostos não só conhecidos pelo Demandado como também aceites ou assumidos por ele enquanto circunstâncias em que também teria fundado a decisão de contratar.

Afigura-se, porém, que não se tomará necessário ir tão longe. Basta a constatação, em face da matéria provada, de que estamos perante “pressupostos nos quais o cocontratante determinou o valor das prestações a que se obrigou", conhecidos do Demandado, e que a não construção do Lanço IC2 surge como um facto que, tendo em conta a repartição do risco entre as partes altera os referidos pressupostos. É isso que hoje se prevê no art. 282. do CCP, mas que se julga ser o precipitado de doutrina que já valia em face do regime anterior, aplicável na situação em apreço, contido no Código de Procedimento Administrativo As fontes dos pressupostos em que assentou a proposta da A......

O Demandado contrapõe que a pressuposição, pela Demandante, de que seria construído o Lanço IC2 não assenta em bases que permitam atribuir-lhe relevância, por não provir de documentos emitidos pelo próprio Estado ou por entidades que ajam em seu nome, mas antes arrancar de documentos e informações provenientes de fontes que o não vinculam.

Vejamos.

Os documentos acima referidos que não foram emitidos pelo Estado são imputáveis à Estradas de Portugal. E.P.E., que sucedeu ao IEP - Instituto das Estradas de Portugal, por serem da sua responsabilidade ou de funcionários seus.

Ora, como lembra a Demandante na ação, ao IEP - instituto das Estradas de Portugal, depois Estradas de Portugal, E.P.E., foi atribuída pelo Estado a direção do concurso da concessão Domo L........ -conforme resulta do artigo 4 do Programa de Concurso, aprovado por Despacho Conjunto dos Ministérios das Finanças e das Obras Públicas, Transportes e Comunicações n.º 55/2004. de 5 de janeiro, que reza que "O Estado é a entidade adjudicante, correndo o concurso na dependência do Ministro das Obras Públicas, Transportes e Habitação e sob a direção do IEP -· Instituto da Estradas de Portugal".

Não se vê, por conseguinte, como não atribuir ao Demandado os atos praticados pela Estradas de Portugal, E.P.E. e pelos seus funcionários no âmbito do Concurso, e nomeadamente o Estudo Prévio do Lanço A32, o Resumo Não Técnico do Estudo de Impacto Ambiental do Lanço A32, o Programa de desenvolvimento futuro da rede viária previsto para a área em estudo e os esboços corográficos do Lanço IC2.

Aliás, o teor convergente destes documentos, no sentido da construção do Lanço 1C2, foi depois diretamente confirmado pelo próprio Demandado, ainda que em momento posterior à adjudicação, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 181/2007, de 29 de novembro de 2007, na qual se determinava que a EP - Estradas de Portugal, S. A., lançasse, durante o 1º trimestre do ano de 2008, o concurso público internacional para a subconcessão IC 2, entre a Mealhada e Oliveira de Azeméis.

A este propósito, o Demandado suscita nas suas alegações a questão da eventual inconstitucionalidade da resposta aos temas de prova 12 (segunda parte) e 15 (terceiro parágrafo), "na parte que que julgaram provado que as decisões sobre "calendarização, lançamento e anulação de concursos, bem como de definição e redefinição do objeto dos contratos de subconcessão de infraestruturas rodoviárias" cabem ao Governo, que dá sobre tal instruções à EP, S.A.".

Ressalvado o devido respeito pelo entendimento manifestado pelo Demandado, considera o Tribunal que o julgamento sobre a matéria de facto, em si mesmo, não é suscetível de um juízo de inconstitucionalidade, qualquer que seja o entendimento que se tenha sobre a realidade a que aquele julgamento se reporta - sobre a qual não compete ao Tribunal agora pronunciar-se. O Tribunal considerou que ficou demonstrado na ação que as referidas decisões eram da responsabilidade do Estado, e é isso que releva para efeitos de se imputar ao Demandado os atos acima referidos.

Questão diversa da anterior é a de saber se, em face dos documentos acima identificados, documentos com base nos quais a Demandante assumiu como pressuposto da sua proposta a construção e entrada em serviço do Lanço IC2, deve considerar-se justificada a confiança neles depositada pela Demandante. Ora, perante a prova produzida, que revelou que os referidos documentos foram emitidos e obtidos pela Demandante no quadro da dinâmica própria de um processo concursal com estas características e da negociação que este envolve, o Tribunal entende que deles podia a Demandante legitimamente inferir que existia um propósito sério, por parte do Estado, de construir o Lanço IC2 e de o ter em serviço em 2011.

Retrospetivamente, poderá talvez dizer-se que a Demandante, perante a relevância que para a sua proposta tinha a construção do Lanço IC2, poderia ter procurado obter da parte do Demandado ou de quem por ele agia uma mais firme explicitação do seu propósito de construir aquela estrada, nos prazos e com as características pressupostas na sua proposta, e que se não devia ter bastado com documentos ou informações dos quais apenas se retira indiciariamente ou de forma indireta aquele propósito; no entanto, considera-se que a prova produzida na ação esclareceu que o ambiente em que a negociação decorreu era de convicção generalizada de que o Lanço IC2 iria efetivamente "para a frente", pelo que a confirmação obtida pela Demandante através dos apontados documentos era suficiente, repete-se, para fundar uma situação de confiança justificada e legítima.

OS ESCLARECIMENTOS PRESTADOS EM abril DE 2004 E novembro DE 2007

A este respeito, o Demandado alega que a relevância dos documentos acima referidos enquanto base para a criação de uma situação de confiança na construção do Lanço IC2 seria posta em crise por dois outros documentos:

Em ambos os casos, sustenta o Demandado que as afirmações contidas nos mencionados documentos impedem a formação de uma situação de confiança (o primeiro) ou que esta se pudesse manter para lá de 23.11.2007 (o segundo, aliás pouco tempo anterior à adjudicação provisória, que ocorreu em 7.12.2007).

Sucede que, como bem assinala a Demandante, o esclarecimento de Abril de 2004, prestado pelo IEP - Instituto das Estradas de Portugal, depois Estrada de Portugal, E.P. E. é anterior a outros documentos, também da autoria ou imputáveis à Estradas de Portugal, E.P.E., dos quais resulto, no entendimento do Tribunal, a formação de uma situação de confiança atendível sobre o perfil, a data de entrada em serviço e o tipo de exploração do Lanço IC2 (em particular, o Estudo Prévio do Lanço A32 e o Resumo Não Técnico do Estudo de Impacto Ambiental do Lanço A32, o Programa de Desenvolvimento Futuro da Rede Viária e os Esboços Corográficos do Lanço IC2).

Ora, não faria sentido atribuir relevo decisivo àquele esclarecimento de abril de 2004 quando seria legítimo à A..... supor que o seu conteúdo estava de alguma forma superado pelos novos elementos transmitidos à A..... durante a segunda fase do Concurso.

Quanto ao segundo documento, não se vê que ele infirme o que resulta dos anteriores documentos da Estradas de Portugal, E.P.E., sobre a construção e características do Lanço IC2, nem que seja suscetível de pôr em causa a confiança neles depositada. Lido com atenção o referido documento, nomeadan1ente na passagem sublinhada pelo Demandado (que, aliás, somente versa sobre a questão de o Lanço IC2 vir a ser ou não p01iajado), em lado algum se nega nele a realidade das informações anteriormente transmitidas pela Estradas de Portugal, E.P.E., e mesmo o que se diz sobre a competência do Estado para definir o regime de exploração das autoestradas não é de molde a pôr em crise as informações que a Estradas de Portugal, E.P.E., em representação desse mesmo Estado, anteriormente havia transmitido aos Concorrentes.

O Tribunal não considera, em suma, que os dois documentos assinalados pelo Demandado fossem capazes de impedir ou destruir uma situação de confiança da Demandante relativamente à construção, entrada em serviço e características do Lanço…

Uma vez assente que a proposta da Demandante assentou no pressuposto da construção do IC2 e da sua entrada em serviço em 2011, não cabem dúvidas de que a não construção dessa autoestrada significa uma alteração desse mesmo pressuposto.

A este respeito, discutiu-se na ação se o facto de a autoestrada não ter sido até ao presente construída poderá realmente tomar-se como um evento modificador de um pressuposto contratual, tendo em conta que a Concessão vai perdurar por bastantes anos e a estrada em causa poderá ainda ser construída.

É verdade que não existe uma impossibilidade absoluta de construção do Lanço IC2 na vigência da Concessão, mas os factos apurados em nada indiciam que tal venha a ocorrer. Tenha-se em conta, nomeadamente, a este respeito, os factos dados como provados nas alíneas qq) a ww) do Despacho n.º 6, de 2 de Junho de 2014, dos quais decorre não só que o primeiro concurso público internacional da subconcessão "Auto- Estradas do Centro" foi anulado mas também que o segundo concurso lançado com o mesmo objeto sofreu adiamentos sucessivos do prazo de apresentação de propostas, bem como os factos provados em sede de julgamento da matéria de facto, no quadro da resposta à questão litigiosa nº 11, matéria da qual é possível retirar, se não a caducidade das propostas apresentadas no concurso da EP - Estradas de Portugal, S.A. de Outubro de 2009 para a adjudicação da subconcessão Auto-Estradas do Centro (como sustenta a Demandante), pelo menos que a situação de facto existente é de uma suspensão síne die do referido concurso.

Por conseguinte, é adequado tomar, na presente decisão, esta situação como permanente e estrutural, ou seja, como destinada a afetar a Concessão durante todo o período de vida do Contrato.

Isto sem prejuízo de que uma eventual modificação da situação de facto que passe pela efetiva construção e entrada em serviço do Lanço IC2 ou de outra alteração da rede viária que importe um efeito benéfico sobre a Concessão poderá sempre ser considerada nos termos legais.

A NÃO CONSIRUÇÃO DO IC2 COMO UMA MODIFICAÇÃO OBJECTIVA, ESPECÍFICA, DIRECIA E SUBSTANCIAL DAS CONDIÇÕES DE DESENVOLVIMENTO DA ACTIVIDADE CONCESSIONADA

A não construção do Lanço IC2, apesar de não importar uma modificação dos termos do Contrato de Concessão, teve sobre as receitas que ele é capaz de proporcionar à Demandante um efeito direto, já que limitou a capacidade de atração de tráfego pela Concessão, face à não continuação da autoestrada até Coimbra e mesmo face à impossibilidade de se constituir como uma alternativa aos condutores de autoestrada já existentes, e implicou uma "perda" de tráfego (no sentido de perda de tráfego potencial) entre cerca de 3.400 e cerca de 4.000 veículos por dia, correspondente a um aumento percentual entre cerca de 15,9% e t 9,6%.

Esse impacto da não construção e entrada em serviço do Lanço IC2 sobre a Concessão afeta também especialmente o Contrato, porque se revelou que era sobremaneira relevante para a Concessão poder dispor dessa vantagem competitiva que se traduzia na ligação a sul através de uma autoestrada com o perfil que se assumiu iria ter o Lanço IC2. Não está em causa um efeito geral sobre a atividade económica decorrente desse ato do ente público que a Demandante suporte, como empresária, no mesmo plano dos demais agentes económicos, mas antes de um facto que provoca sobre a Concessão um efeito especial de diminuição da capacidade de atração de tráfego.

Em face da dimensão que esta perda de atratividade da Concessão assume, demonstrado fica ainda que a não construção e entrada em serviço do IC2 importa um efeito substancial sobre os termos em que é exercida a atividade concessionada, que se prolonga no tempo e não é, por isso, meramente conjuntural.

Conclui-se, portanto, que a não construção e entrada em serviço do IC2 constitui uma modificação objetiva, específica, direta e substancial das condições de desenvolvimento da atividade concessionada que decorre de ato unilateral do Concedente e que gera para a Concessionária um efeito de perda de receitas relativamente ao assumido nas previsões do Estudo de Tráfego da BAFO.

A ALOCAÇÃO CONTRATUAL DO RISCO DE NÃO CONSTRUÇÃO DO IC2

Outro ponto que cumpre aqui discutir é o da relação entre a alteração de pressupostos verificada e a distribuição contratual do risco; por quem corria, nos termos do Contrato, o risco da não construção do Lanço IC2?

A este respeito, o Demandado chama a atenção para o disposto nos números 86.1 e 86.2 do Contrato de Concessão, dos quais decorre que a Concessionária assume integral e exclusivamente todos os riscos inerentes à Concessão, designadamente o risco de tráfego.

Trata-se de urna questão muito pertinente a que é suscitada pelo Demandado, se tivermos em conta que, como acima se viu, o contrato é terreno próprio para se proceder a esta alocação de riscos entre as partes no contrato administrativo (ainda que, porventura, dentro de certos limites insuperáveis) e que as disposições em causa são particularmente contundentes quanto ao modo como nelas se declara fazer correr pela Concessionária a generalidade dos riscos da Concessão.

Sucede que, como acima se viu também já, isso não significa que tal assunção do risco pela Concessionária seja absolutamente irrestrita, e que não haja riscos que devam continuar a ser suportados pelo Concedente, como o risco político ou político-administrativo ligado a factos imputáveis à vontade do Concedente com impacto específico na Concessão.

Ora, a alteração verificada decorre de uma decisão pública de não construção do Lanço JC2, tomada pelo Estado no uso dos seus poderes de autoridade, que, não visando diretamente o Contrato de Concessão, o afeta direta e especificamente. Pode assim dizer-se, com PEDRO GONÇALVES, que o evento causador do desequilíbrio financeiro do Contrato se insere na zona de risco do ente público, ou seja, que integra o risco político assumido pelo Demandado.

Em face do exposto, julga-se preenchida, relativamente à não construção e consequente não entrada em serviço do Lanço IC2, a hipótese do número 88.1.a), segunda parte, do Contrato de Concessão: estamos perante uma modificação unilateral, imposta pelo Concedente, das condições de desenvolvimento das atividades concessionadas que importa para a Concessionária uma perda de receitas, que é capaz de atribuir à Demandante o direito à reposição do equilíbrio financeiro da Concessão.

Consequentemente, considera-se prejudicada a apreciação do fundamento subsidiário invocado pela Demandante, de a decisão de não construir o Lanço lC2, alegadamente expressa em vários atos formais do Estado que teriam alterado a Resolução do Conselho de Ministros n.º 181/2007, ser tida como uma alteração legislativa de carácter específico com impacto direto nas receitas das atividades concessionadas, assim se preenchendo a hipótese do número 88.1.c) do Contrato de Concessão.

O Demandado invoca, em contra-alegações de Direito, que existiria abuso do direito por parte da Demandante ao vir suscitar nesta ação a questão da frustração da base negocial relativamente à não construção do Lanço IC2, pois deveria ter antes reagido (i) quando tomou conhecimento da resposta às pronúncias em sede de audiência prévia; (ii) quando soube, em 18 de Novembro de 2007, que o Demandado ordenara à EP, S.A., que lançasse o concurso para a construção de, entre outras vias, o Lanço IC2, sem definir o seu regime de portagem, a data da sua entrada em serviço, o seu traçado ou, sequer, o seu perfil; (íii) quando, em Março de 2008, soube que a EP, S.A. lançara a concurso a construção do Lanço IC2 com portagem; (iv) e quando, em Outubro de 2009, soube que a EP, S.A. lançara novo concurso para o Lanço IC2 de novo com portagem e sem perfil de autoestrada até que certo volume de tráfego se verificasse.

Afigura-se não ter razão o Demandado quanto a este ponto. Primeiramente, a Demandante reagiu logo em 28 de julho de 2011 e não somente com a propositura da ação, através de carta pela qual invocava a não construção do Lanço IC2 como fundamento de um pedido de reposição do equilíbrio financeiro da Concessão (alínea r) dos factos assentes; documento n.º 4 junto com a petição inicial).

Depois, quanto à resposta às pronúncias dos dois concorrentes em sede de audiência prévia, datada de 23.11.2007, esta, no juízo que o Tribunal acima fez, não é de molde a pôr em causa a situação de confiança da Demandante relativamente à construção do Lanço IC2.

Ainda por outra via, o que resulta dos factos provados, nomeadamente dos constantes das alíneas qq) a ww} e da resposta à questão litigiosa n.º 10, é que foram sendo praticados diversos atos, relacionados com o lançamento de concursos para a subconcessão Auto-Estradas do Centro, que, ao invés do que sustenta o Demandado, de certa forma sustentavam as expectativas de construção do Lanço IC2 -sendo certo que o prazo de apresentação de propostas no concurso lançado em 2009 foi por último prorrogado até 4 de Fevereiro de 2010 (alínea ww) dos factos assentes).

Não se vê, por isso, que a reação da Demandante, em julho de 2011, seja tardia ou que seja contraditória com o seu comportamento anterior, em termos tais que a pudessem fazer incorrer em abuso do direito.

Está provado na ação que a entrada em serviço desse lanço de autoestrada teria, em 2011, um impacto médio estimado na concessão D........... L........, a partir das previsões do Estudo de Tráfego da BAFO, que seria de um acréscimo de entre cerca de 3.400 e cerca de 4.000 veículos por dia, correspondente a um aumento percentual entre cerca de 15,9% e 19,6%.

Apurou-se também que esse é o impacto mínimo, podendo o impacto ser maior se o tráfego que viria do Lanço 1C2 não se estabilizasse em 2011, mas somente nos anos seguintes.

E provou-se, ainda, que uma redução de tráfego médio diário anual (TMDA) igual a 19,6% no Caso Base (isto é, considerados os valores de tráfego do Caso Base) para todos os sublanços durante a vigência do Contrato de Concessão corresponde a uma diminuição das receitas de portagens num valor global de € 584.238.080,00 (a preços correntes).

Ao dizer-se que a construção e entrada em serviço do Lanço IC2 provocaria um acréscimo de tráfego em 2011, à luz das previsões do Estudo de Tráfego, que seria no mínimo de entre cerca de 3.400 e cerca de 4.000 veículos por dia (secção média ponderada - 3.385 e 4.028 veículos x km/km), está-se com isto a expressar que a pai1e que, no desvio verificado relativamente à estimativa de tráfego em que assentou a BAFO, é devida especificamente àquele fator é de pelo menos aquele número de veículos. Conforme foi amplamente debatido entre as Partes e esteve na base da redução do pedido feita pela Demandante em alegações de Direito, demonstrou-se em juízo que aquele desvio teve também outras causas, mas a única que aqui releva, por ser aquela que é suscetível de desencadear o mecanismo da reposição do equilíbrio financeiro, é justamente aquela que tem a ver com o facto do príncipe de não construção do IC2.

Uma vez que se trata de um valor mínimo, já que não ficou esclarecido se não poderia ainda haver algum efeito de ramp up nos anos seguintes que levasse a que a estabilização das consequências da não construção do IC2 viesse a ocorrer somente mais tarde, considera-se razoável que seja tomado como relevante o valor mais alto daquele intervalo, de 4.028 veículos por dia, correspondentes a um acréscimo de 19,6%.

Assinale-se que este valor de 19,6%, que foi indicado no Relatório de Perícia de Tráfego em resposta ao quesito 35, visa traduzir o crescimento de tráfego que seria provocado pela construção e entrada ao serviço do Lanço IC2 e não o decréscimo de tráfego provocado pela não existência do referido Lanço IC2. Ora, uma vez que o que está em causa na ação é a redução do tráfego por referência às previsões do Estudo de Tráfego da BAFO, entende-se que o valor percentual relevante não será de 19,6%, mas de 16,3%, que é o que corresponde à apontada diminuição de 4.028 veículos por dia relativamente a um total estimado de 24.775 veículos por dia.

Dir-se-á que temos aqui os elementos de que carecemos para determinar o montante da compensação que será necessário para operar a reposição do equilíbrio financeiro do Contrato. Um conjunto de problemas tem ainda, porém, de ser encarado.

ALCANCE DO RECURSO AO CASO BASE

Em primeiro lugar, cabe perguntar se o desvio que releva deve ser aquele que se verifica entre os valores estimados no caso base e os que resultem da correção dessa estimativa que se considere ser devida em função da não construção do Lanço IC2 ou se, diversamente, se deverá considerar a concreta diferença entre o tráfego que circula na concessão e aquele que circularia se aquele lanço de estrada estivesse construído e em serviço.

A opção pela segunda via indicada leva a que a reposição do equilíbrio financeiro se faça numa lógica indemnizatória mais próxima da responsabilidade civil: o Demandado teria que pagar à Demandante uma quantia que a ressarcisse da diminuição do número de veículos que efetivamente circulam na Concessão (ou mais rigorosamente, do não aumento do tráfego) em resultado da não construção do IC2, sem recurso ao caso base. Se, por hipótese, se apurasse que a não construção do Lanço IC2 importou no não aumento de 4.000 automóveis por dia na Concessão, haveria que atribuir à Demandante urna indemnização que a compensasse de tal "perda", indemnização essa que seria igual à valorização da diferença entre o número total de veículos que efetivamente circulam na Concessão e o número dos que circulariam se o Lanço IC2 estivesse em funcionamento.

A aplicação deste critério indemnizatório esbarra, porém, parece-nos, na escolha de um diferente critério de reposição do equilíbrio financeiro que foi feita pelas Partes no Contrato -escolha essa que, diga-se, está em sintonia com o entendimento da doutrina.

É que o Contrato de Concessão, em matéria de reposição do equilíbrio financeiro, não manda reparar danos, mas sim restaurar a proporção financeira do Contrato, e prevê, ainda, que isso seja alcançado por recurso ao caso base -que este forneça, em suma, o critério que se deverá utilizar para operar tal reposição. Ora, como bem assinala a Demandante nas suas alegações, se o critério de determinação da compensação fosse o indemnizatório, onde é que ficava a utilização do caso base? Para que é que este servia, afinal, num cenário em que o montante a entregar pelo Demandado à Demandante se destinasse a pagar o valor correspondente ao dano apurado, ou seja, o valor da perda de receita da Demandante decorrente do número de veículos que circula a menos na Concessão? Para nada, efetivamente.

O que respeita o comando do Contrato é, antes, jogar com a estimativa de tráfego constante do caso base, que é aquela que foi utilizada pela Demandante nos cálculos que fez para determinar a rendibilidade da Concessão que lhe proporcionaria um certo equilíbrio financeiro, e apurar em que medida é que a não construção do Lanço IC2 obriga a uma correção dessa estimativa.

Como se disse, o Tribunal, ainda que reconhecendo a delicadeza da questão, considera que esta última opção é aquela que está de acordo com a escolha feita no número 86.1 do Contrato e com, reconheça-se, aquilo que em geral se entende ser a lógica subjacente a estes processos de reposição do equilíbrio financeiro, que não é de urna pura e simples indemnização de danos mas, antes, de preservação das perspetivas de obtenção de um ganho por parte do concessionário -perspetivas que, em rigor, em contratos assentes em modelos de project finance, não são somente dele mas também dos próprios bancos financiadores, que aceitam financiar o projeto a partir da análise que fazem da viabilidade do negócio tal como ele resulta do caso base, ou seja, da assunção de que o exercício da atividade concessionada se irá fazer em circunstâncias que gerarão determinados fluxos financeiros que serão suficientes para satisfazer os encargos com o financiamento.

É essa a função do caso base, de pe1mitir que se determine uma certa relação que deve ser mantida entre os rendimentos e os custos do Concessionário, que as Partes aceitaram corresponder a um modelo de equilíbrio contratual e que deve ser reposta quando o desequilíbrio se deve a um facto que provém da zona de risco do contraente público.

Deve ter-se em conta, a este respeito, que a remissão para o caso base é feita não somente no Contrato de Concessão, mas também nas respetivas Bases, aprovadas pelo Decreto-Lei nº 392-AJ2007, de 27 de setembro, dispondo a Base 83 que "o Caso Base representa a equação financeira com base na qual é efetuada a reposição do equilíbrio financeiro da concessão ".

Assinale-se também que era para uma reposição do equilíbrio financeiro assente no caso base que apontava já, à época do Contrato de Concessão, o regime aplicável às parcerias público-privadas constante do Decreto-Lei n.º 86/2003, de 26 de abril, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 141/2006, de 27 de julho, cujo artigo 14.º-C, n.º 4 dispunha que "a aferição do equilíbrio financeiro da parceria tem em conta o modelo financeiro que constituí o respetivo caso-base".

O Contrato de Concessão prevê que a reposição do equilíbrio financeiro se faça por forma a que a TIR acionista e o Rácio de Cobertura Anual do Serviço da Dívida Sem Caixa sejam repostos nos valores definidos no Anexo 9 ao Contrato, no qual se estipula que os valores mínimos dos critérios chave constantes do caso base são os seguintes: (a) Rácio de Cobertura Anual do Serviço da Dívida Sem Caixa: 1,20; (b) TIR Acionista, em termos nominais, para todo o prazo da Concessão: 6,83%.

É, pois, de acordo com o apontado critério que deverá ser feita a reposição do equilíbrio financeiro da Concessão.

Isto posto, entende o Tribunal não dever alterar a decisão provisoriamente proferida em sede de despacho saneador relativamente à matéria do pedido deduzido pelo Demandado sob a alínea e), que visava que se ordenasse à Demandante "que indique nos autos o valor do lucro por si projetado para o período pelo qual reclama do Estado indemnização fundada na teoria da imprevisão".

Como se referiu nesse despacho, a questão suscitada pelo Demandado contende com o que este alega, nomeadamente, nos art. 182 e 183 da contestação, sobre o que considera ser a necessidade de se indicar qual o valor do lucro projetado para o período afetado pela alteração das circunstâncias, quando o pedido indemnizatório se funda na teoria da imprevisão.

Ora, a tutela concedida à pretensão da Demandante não se funda no regime da alteração das circunstâncias e a reposição do equilíbrio financeiro do Contrato não se fará segundo uma lógica estritamente indemnizatória nos termos referidos pelo Demandado, pelo que não se justifica aceder àquela pretensão.

Ao que acresce que, conforme também adiantado no despacho saneador, não parece que coubesse nos poderes do Tribunal Arbitral convidar a Demandante a completar ou a aperfeiçoar a sua petição inicial.

A QUESTÃO DOS "DANOS FUTUROS"

Uma segunda questão que aqui se coloca tem a ver com o facto de a matéria provada se reportar somente à quantificação do desequilíbrio decorrente da não construção do IC2 em 2011, mas já não relativamente ao que ocorrerá nos anos subsequentes da Concessão.

Todavia, entende o Tribunal que a matéria provada permite assumir, com razoável segurança, que o efeito de "perda de tráfego" decorrente da não construção do IC2 que se julgou verificado em 2011 tem carácter permanente, ou seja, subsistirá enquanto a situação de facto não se alterar por efeito de uma eventual entrada ao serviço da referida estrada, facto que não se demonstrou, neste momento, ser provável que ocorra na vigência da Concessão.

Aliás, o valor apurado para 2011 foi até um valor mínimo, pois que se verificou que o impacto da construção do IC2 sobre a Concessão seria maior do que um acréscimo de tráfego de entre 15,9% e 19,6% se o tráfego que viria do Lanço IC2 não se estabilizasse em 2011, mas somente nos anos seguintes.

Por conseguinte, considera o Tribunal que não deixará de ser prudente no seu juízo se aceitar que o desvio apurado relativamente ao tráfego esperado em 201 l por efeito da não construção do Lanço IC2 se manterá ao longo de toda a vida da Concessão.

Nessa medida, o Tribunal não acompanha a alegação do Demandado na parte em que este invoca a impossibilidade de consideração de "danos futuros" não provados na ação.

A CONSIDERAÇÃO DO CONTRIBUTO DA DEMANDANTE PARA A CRIAÇÃO DE UMA SITUAÇÃO DE CONFIANÇA

Uma terceira questão a ter em conta nesta sede de definição do modo de cálculo do montante necessário à reposição do equilíbrio financeiro da Concessão versa sobre a eventual ponderação, nesta sede, daquilo que acima se qualificou como alguma menor cautela da Demandante na não obtenção junto da contraparte, em sede negocial, de uma posição mais explícita sobre a construção e entrada em serviço do Lanço IC2. Poderá algum contributo da "atuação do lesado", nessa fase decisiva da formação da sua vontade de contratar, ser tido em conta neste momento em que se está a tratar de apurar um critério de determinação do valor da quantia que lhe deverá ser atribuída de modo a obter o reequilíbrio financeiro do Contrato?

Já se disse que a lógica desta reposição financeira não é puramente ressarcitória, pelo que, à partida, não têm por que se aplicar aqui as regras da responsabilidade civil, em particular as relativas à determinação das consequências do facto danoso, entre as quais a do artigo 570.º do Código Civil.

É legítimo inquirirmo-nos, porém, se a referida norma da lei civil não é um precipitado de um princípio geral do nosso Direito, de autorresponsabilização por condutas que signifiquem uma deficiente proteção dos próprios interesses e que, apesar de não gerarem qualquer reprovação por parte do ordenamento jurídico, podem ser fonte de imputação de consequências patrimoniais desvantajosas.

Aceitando que este princípio de autorresponsabilidade por opções livres que vêm a revelar-se desfavoráveis tem virtualidades que ultrapassam o estrito domínio da responsabilidade civil, o Tribunal considera razoável que na fixação do quantum adequado à reposição do equilíbrio financeiro da Concessão se atenda ao contributo da atuação da Demandante na fase negocial para a produção do efeito que a não construção e entrada em serviço do Lanço IC2 veio a ter sobre o equilíbrio financeiro da Concessão.

Para o efeito, o Tribunal entende ser adequado que se reduza em 8 (oito) pontos percentuais o valor do desvio a atender para efeitos do cálculo dos montantes necessários à reposição financeira, pelo que este deverá ser de 8,3%.”

*

II.2 – DIREITO

A)

A decisão arbitral colegial em causa nesta ação de impugnação jurisdicional anulatória decidiu condenar o Estado Português

-A indemnizar o agrupamento empresarial A....., repondo o equilíbrio financeiro da Concessão D........... L........, pagando-lhe

-Um montante de 725.479,00 EUROS,

-Outro montante de 3.110,41 EUROS,

-Os montantes correspondentes às quantias que a então demandante pagou na pendencia da ação arbitral referentes às tarifas de SIEV e TRIR acrescidos de juros de mora,

-Os montantes correspondentes às quantias que a A..... venha a pagar referentes às tarifas do SIEV e à TRIR que lhe vierem a ser aplicadas, e

-Uma compensação monetária faseada, por conta da não construção e não entrada em serviço do Lanço IC2, sendo 42 milhões de Euros relativamente a 31-12-2011 e a data da decisão arbitral e um total de cerca de 94 milhões de euros até maio de 2026.

B)

O aqui autor, Estado Português, derrotado no processo arbitral voluntário que se autoimpôs através do DL 392-A/2007 e da convenção de arbitragem constante do artigo 100º do Contrato de Concessão – Concessão D........... L........ (entre o Estado e a A..... em 28-12-2007), invoca perante este tribunal superior várias nulidades decisórias (parciais) contra a decisão arbitral colegial da autoria de uma entidade jusarbitral ad hoc, constituída pelos Prof. António ………………… (presidente escolhido), Prof. António ………………… (árbitro indicado pela A.....) e Prof. José …………… (árbitro indicado pelo Estado).

O Estado ora autor reconduz todas essas alegadas nulidades à violação do dever de fundamentação das decisões dos tribunais arbitrais, que simultaneamente, aqui e ali, faz coincidir com a ininteligibilidade daquela deliberação arbitral:

1ª nulidade parcial - em sede de convicção pré-contratual da aqui ré A.....: os árbitros nada escreveram sobre a aptidão-idoneidade-suficiência dos 5 documentos que invocaram a favor da versão da A....., afinal o essencial; os árbitros utilizaram um discurso autojustificativo (vd. artigos 47 a 49, 57 a 62, 65, 68 e 69 da p.i.);

2ª nulidade parcial - em sede de convicção pré-contratual da aqui ré A..... e daquilo que os árbitros designaram como “ambiente de convicção generalizada” em que decorreu a fase de negociações do concurso público que conduziu à assinatura do Contrato de Concessão que liga A. e R. até 2034 (supomos, aqui, que se trata de figura próxima do facto notório), não há qualquer decisão de facto (vd. artigos 81 a 87 da p.i.);

3ª nulidade parcial - ausência de explicação ou fundamentação para a opção pelos 8% para efeitos de fixação do valor da corresponsabilidade da A..... na formação da sua convicção pré-contratual, cuja violação teria de ser indemnizada (vd. artigos 89 a 91, 97, 109 e 110 da p.i.);

4ª nulidade parcial - ausência de explicação ou fundamentação para a fixação de um valor quanto à não indução de tráfego entre 2012 e 2034 (vd. artigos 112 a 158 da p.i.);

5ª nulidade - violação de cláusula compromissória, ao se socorrer da equidade para afirmar que o desvio apurado relativamente ao tráfego esperado em 2011 por efeito da não construção do Lanço IC2 se manterá ao longo de toda a vida da Concessão (vd. artigos 162 a 170 da p.i.);

6ª nulidade - ausência de explicação ou fundamentação quanto ao próprio direito da A..... ao reequilíbrio financeiro em concreto, tendo presente a cláusula 88, por não haver prova de perda de receita (vd. artigos 172, 173 e 182 a 188 da p.i.).

C)

Vamos começar por transcrever as conclusões dos 3 pareceres jurídicos juntos a este processo, por serem particularmente pertinentes no caso presente. Um parecer do professor e jurisconsulto Doutor Paulo ………., outro parecer do professor jubilado e jurisconsulto Doutor Sérvulo …………. e do advogado e jurisconsulto dr. José ……………, e um terceiro parecer do advogado e jurisconsulto dr. José …………………

Vejamos.

C.1)

O Senhor Professor Paulo Otero concluiu o seu douto parecer assim:

“O estudo realizado em torno das questões suscitadas pela presente Consulta permitiu extrair a seguinte síntese das principais conclusões da investigação:

A) Quanto à relevância do Lanço A32/IC2 como pressuposto de formulação da proposta do Agrupamento A.....:

1) A convicção do Agrupamento A..... de que o Lanço A32/IC2 entraria em serviço, em 201 L enquanto elemento de formulação da sua proposta apresentada na fase BAFO, enferma de erro na respetiva génese, isto por duas ordens de razões:

a) Em primeiro lugar, alicerça-se em elementos factuais que, sendo posteriores à data de apresentação da proposta BAFO, nunca poderiam. retroativamente. gerar essa convicção - regista-se aqui, por conseguinte. um erro na identificação dos alicerces factuais da convicção:

b) Em segundo lugar, diz alicerçar-se em atos que, atendendo ao seu conteúdo. jamais poderiam fornecer qualquer base de convicção sobre a construção e a entrada em serviço do Lanço A32/IC2 - observa-se aqui, deste modo, um erro sobre o sentido interpretativo dos alicerces da convicção:

2) As situações de erro na génese da convicção conduzem à impossibilidade de a proposta concursal de o Agrupamento AEDI. ter sido formulada com base no pressuposto da construção e entrada em serviço do Lanço A32/IC2. alicerçada nos seguintes elementos: (i) exteriorizações governamentais posteriores a 4 de outubro de 2007; (ii) intervenção concursal do concorrente Agrupamento Lusoporto: (iii) Resolução do Conselho de Ministros nº 18112007, de 29 de novembro de 2007: (iv) Programa do XVII Governo Constitucional: (v) Plano Rodoviário Nacional;

3) Os estudos técnicos disponibilizados pela Estradas de Portugal. enquanto alegados elementos fundamentadores da convicção do Agrupamento A..... para formular a sua proposta concursal, não se mostram juridicamente idóneos, todavia, a alicerçar essa convicção, isto por três ordens de razões:

a) Desde logo. não estamos aqui diante de qualquer decisão administrativa, antes deparamos com esboços preparatórios de eventuais ou potenciais decisões, tendo a particularidade de terem sido seguidos pelo Agrupamento A..... em sentido precisamente contrário ao esclarecimento administrativo feito nesse mesmo procedimento concursal face a uma pergunta colocada pela Brisa. S.A., em 4 de março de 2004: de modo negligente ou imprevidente, o Agrupamento A..... resolveu formular a sua proposta concursal em sentido contrário ao esclarecimento administrativo. sendo abusivo e infundado vir agora pedir uma indemnização por não se ter verificado a convicção que resolveu construir em sentido oposto ao esclarecimento administrativo feito nesse procedimento administrativo;

b) Por outro lado, no que se especificamente se refere ao designado pela Demandante "programa de desenvolvimento futuro da rede viária", estamos diante de um documento sem idoneidade material e jurídica para alicerçar qualquer convicção sobre o momento da entrada em serviço do lanço da autoestrada entre Coimbra e Oliveira de Azeméis: trata-se de um documento sem caráter oficial, formal ou vinculativo da Estradas de Portugal, E.P.E., sob pena de, em sentido alternativo, se estar perante de um ato decisório ferido de nulidade, por incompetência absoluta do seu autor, sem que, em qualquer das hipótese, exceto por erro de interpretação, o seu conteúdo permita alguma vez extrair um sentido suscetível de formular uma proposta concursal, nos termos reivindicados pela Demandante;

c) Por último, fazer dos esboços corográficos do lanço IC a base da convicção subjacente à formulação da proposta concursal revela um comportamento imprevidente e pouco diligente do concorrente ou, em alternativa, uma conduta ferida de erro na interpretação do conteúdo, valor e força jurídica de tais esboços corográficos;

4) Uma vez que nem todas as crenças, tal como nem todas as convicções, assim como nem todas as expectativas, se mostram aptas a merecer tutela jurídica por via do principio da proteção da confiança, verifica-se que as convicções do Agrupamento A..... sobre o lanço IC2 Coimbra­ Norte/São João da Madeira, uma vez que se encontram alicerçadas nos elementos técnicos disponibilizados pela Estradas de Portugal, E.P.E., não se mostram juridicamente idóneas a merecer tutela ao abrigo do princípio da proteção da confiança: o Agrupamento A..... adotou uma conduta inversa aos cuidados e precauções devidos a quem pretende reivindicar proteção do investimento da confiança;

5) Nem as declarações públicas do Ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, Eng.º. Mário Lino, em 2006, permitem extrair qualquer ilação sobre os momentos temporais de inicio de construção e de entrada do serviço do troço do IC2 entre Coimbra e Oliveira de Azeméis: salvo erro grosseiro de interpretação, nunca uma pessoa de normal diligência poderia de tais declarações ministeriais extrair qualquer conclusão sobre tais os momentos temporais de inicio de construção e de entrada do serviço desse troço rodoviário, motivo qual não há aqui qualquer convicção do Agrupamento A..... que se mostre material e juridicamente alicerçada ou idónea a merecer tutela jurídica ao abrigo do princípio da proteção da confiança;

6) Aliás, mesmo que tivessem existido declarações públicas ministeriais especificando uma data previsível (ou aproximada) de lançamento do concurso de construção do troço do IC2 entre Coimbra e Oliveira de Azeméis ou, em alternativa, a indicação de uma data de entrada em serviço desse lanço, o certo é que, (i) por via do regime jurídico aplicável ao conteúdo de tais promessas, estar-se-ia sempre perante uma mera obrigação de meios e nunca ante uma obrigação de resultado, (ii) além de que a promessa em causa assume inequívoca natureza política: o Agrupamento A..... nunca poderia, por qualquer uma destas razões, fundamentar, em nome da proteção da confiança, um pedido de indemnização, por ter formulado a respetiva proposta concursal alicerçada nessa convicção e a mesma não se ter verificado a final. O excesso de confiança não merece tutela jurídica;

7) Considerando que todos os elementos factuais indicados pelo Agrupamento A..... como alicerces da sua alegada convicção sobre a data de construção e entrada em serviço do troço em causa do IC2 não têm suporte jurídico consistente, estamos diante de uma mera convicção psicológica, sem qualquer alicerce que permita atribuir-lhe relevância jurídica em termos de investimento de confiança, sob pena de existir uma situação de ''excesso de confiança··ou de abuso de direito na utilização do princípio da proteção da confiança;

8) O Estado, por via da adjudicação concursal à proposta do Agrupamento A....., não expressou, à luz da legalidade administrativa aplicável, qualquer acordo de reconhecimento sobre a essencialidade da entrada em serviço do referido lanço do 1C2, antes se limitou a aceitar essa proposta: os princípios da transparência e da prossecução do interesse público obstam a qualquer juízo administrativo sobre os motivos ou convicções psicológicas subjacentes às propostas concursais dos intervenientes privados;

9) Uma vez que se encontra proibida a formulação de propostas concursais condicionadas, assim como a existência de uma adjudicação em sentido contrário às regras de distribuição do risco de tráfego. qualquer solução argumentativa em torno da ausência de verificação do pressuposto relativo ao reconhecimento da essencialidade da entrada em serviço do referido lanço do IC2, enquanto alicerce de um pedido de reequilíbrio financeiro, revela uma conduta presente da Demandante que, procurado servir-se de uma pretérita conduta do ilegal do Agrupamento A..... está excluída de tutela ao abrigo do princípio da proteção da confiança. assim como carece de relevância indemnizatória;

B) Quanto à alteração das condições de desenvolvimento da concessão por efeito da não verificação do pressuposto relativo à entrada em funcionamento do Lanço A32/IC2:

10) Se se admitisse que a convicção do Agrupamento A..... a propósito da construção e entrada em serviço do troço entre Coimbra e Oliveira de Azeméis com perfil de autoestrada, assumia relevância jurídica, funcionando como quadro circunstancial que, pressuposto à data da formulação da proposta concursal constituiu "'base do negócio", tendo corrido. admita-se também, o acordo do Estado sobre a essencialidade dessa motivação, poder-se-ia dizer que a não verificação da entrada em serviço desse lanço do IC2 se pode configurar, conceptualmente, como uma alteração das circunstâncias pressupostas sobre a base do negócio:

a) Haverá aqui num tal cenário, uma alteração das circunstâncias resultante do confronto entre um juízo de prognose formulado no passado e aquela que vem a ser a efetiva realidade futura, reconduzível a um erro de prognose;

b) Observa-se, por parte do Agrupamento A....., um equívoco ou erro sobre um juízo de prognose anteriormente realizado ante algo que não existia e continuou a não existir;

c) Pode fazer-se. neste sentido, uma alteração omissiva de puras circunstâncias psíquicas ou erro emissivo sobre um juízo de prognose relativo a uma realidade intelectual;

11) A alteração das circunstâncias não é uma figura homogénea, pois mostra­ se passível de albergar um diversificado quadro tipológico, desde a (i) supressão da realidade factual, (ii) a acessão material, (iii) a sua reconfiguração e ainda (iv) a inalterabilidade do quadro circunstancial intelectualmente pressuposto. por via de um puro juízo de prognose - esta última hipótese corresponde à situação subjacente ao caso da Concessionária;

12) À luz do princípio da proporcionalidade, a situação da Concessionária revela um cenário factual em que, tendo presente a não entrada em serviço do troço entre Coimbra e Oliveira de Azeméis com perfil de autoestrada, ocorre uma menor intensidade operativa da alteração das circunstâncias, pois, em vez de algo que desaparece, se transforma ou que surge. inesperadamente. deparamos antes com algo que, sendo materialmente inexistente no passado, continua a não existir no presente, isto apesar de se ter tomado como certo que a evolução futura seria no sentido de que passaria a existir;

13) Não obstante se estar diante de uma simples alteração omissiva de puras circunstâncias psíquicas pressupostas pelo Agrupamento A....., a verdade é que deparamos com uma alteração de circunstâncias cujo juízo de prognose subjacente se mostra juridicamente inoperativo, pois, alicerçando-se em elementos factuais que não têm suporte jurídico habilitante ou suficiente para edificar esse mesmo juízo, carece de relevância modificativa ou ressarcitória da obrigação assumida à luz de um quadro factual que não se alterou;

14) O certo, porém. é que, ainda que se tivesse perante uma clássica alteração de circunstâncias, não se produziria uma aplicação do específico regime jurídico. pois, apesar de se saber. segundo o Tribunal Arbitral, "que a não construção da ligação entre Coimbra e Oliveira de Azeméis com perfil de autoestrada altera as condições de desenvolvimento, pela Demandante, das atividades concessionadas' ', a verdade é que nenhum reequilíbrio financeiro há a pagar por parte do Estado à Concessionária, pois tais factos estão cobertos pelo risco e ocorreu violação da boa-fé:

a) Existe cobertura pelas regras de distribuição do risco de tráfego. uma vez que. à luz do Contrato de Concessão. qualquer causa que possa dar origem à redução de tráfego, corre por conta da Concessionária;

b) Salvo se existir uma situação de erro de Direito, a conduta procedimental e processual da Concessionária mostra-se passível de ser violadora do princípio da boa-fé;

C) Quanto à imputabilidade ao Estado dos pressupostos relativos ao Lanço A32/IC2:

15) Centrando-se a análise nos estudos técnicos disponibilizados pela Estradas de Portugal, E.P.E., verifica-se que a matéria de facto decidida pelo Tribunal Arbitral. em 8 de setembro de 2016, considerando que o Governo "dá instruções à EP - Estradas de Portugal, S.A.", mostra-se uma solução juridicamente desconforme à Constituição, salvo se existir lapso, pois envolve a fixação de alegada matéria de facto em sentido inconstitucional: a Estradas de Portugal, E.P.E., nunca poderia estar adstrita ao cumprimento de instruções do Governo;

16) Mesmo que os estudos técnicos da Estradas de Portugal, E.P.E., tivessem sido produzidos na sequência de ordens ou instruções governamentais, nunca os seus efeitos seriam imputáveis ao Estado, antes são total e integralmente imputáveis à Estradas de Portugal, E.P.E.;

17) Aliás, se a génese da convicção ou do investimento da confiança da Demandante se encontra em estudos técnicos imputáveis à Estradas de Portugal, o pedido de reequilíbrio financeiro formulado contra o Estado só pode terminar com a sua absolvição da instância: o Tribunal Arbitral deve abster-se de conhecer deste pedido, atendendo ao presente fundamento, uma vez que a ação não foi intentada contra a Estradas de Portugal, e o Estado carece de legitimidade processual para o efeito;

18) Num derradeiro sentido argumentativo, sempre se poderá afirmar que a Demandante, ao alicerçar a formulação da proposta em elementos técnicos de natureza interna e preparatória, sem qualquer decisão, e até em sentido contrário ao esclarecimento conferido pelo Estado, por via da Comissão de Apreciação de Propostas, revela uma conduta cujos inerentes riscos lhe são totalmente imputáveis: o Estado não pode ser responsabilizado por cumprir o conteúdo da informação por si prestada e ignorada pelo Agrupamento A....., ao formular a sua proposta concursal assente num juízo de prognose contrário à informação administrativa.”

C.2)

O Senhor Professor Sérvulo Correia e o Senhor Dr. José ………………. concluíram o seu douto parecer assim:

“(A)

Sobre o dever de fundamentar decisões arbitrais no Direito português

1.ª Ancorada no princípio do Estado de Direito, a obrigação constitucional de fundamentação das decisões jurisdicionais (n.º 1 do artigo 205.º) obedece a razões endo (v.g., efetivação do direito ao recurso) e extraprocessuais (v.g., transparência e legitimação perante a comunidade da atividade dos Tribunais e dos seus intervenientes) que se refletem por qualquer domínio em que se exerça a função jurisdicional.

2.ª O fundamento convencional da arbitragem voluntária não afasta que, estrutural e funcionalmente, resida aí um método jurisdicional de resolução de conflitos; por essa razão, no que de mais tipicamente jurisdicional se colocar em relação à atuação dos árbitros, não podem senão valer os padrões jus-processuais que integram o sistema jurídico português.

3.ª Nestes termos, o comando da LAV segundo o qual "a sentença deve ser fundamentada" (nº 3 do artigo 42.º) deve ser lido em harmonia com os parâmetros a que, nas leis processuais gerais, se encontra sujeita a fundamentação das decisões dos Tribunais estaduais (v.g., n.°5 3 e 4 do artigo 607.0 do CPC e n.05 3 e 4 do artigo 94.º do CPTA).

4.ª. Nesse âmbito, encontram-se os árbitros adstritos a, entre outros aspetos:

(i) Indicar, interpretar e aplicar a normas jurídicas (ou os critérios de decisão) que sejam, em cada caso e sobre cada questão, pertinentes, ainda que no quadro de autonomia (jura novit curia) reconhecidamente alargado;

(ii) Discriminar os factos que consideram provados, enunciação que decorre do julgamento de facto que decorre da instrução, com apuramento daquilo que se provou, mas também do se não provou, com a amplitude instrutória que os temas de prova para o efeito enunciados garanta;

(iii) Apreciar criticamente a prova produzida, sem que, no entanto, se possa exigir dos árbitros mais do que aquilo que a lei processual impõe aos juízes estaduais, sobretudo em áreas onde vigore a livre convicção do julgador;

(iv) E, por essa razão, deve ter-se em conta que a enunciação dos fundamentos de facto não se confunde com a motivação da decisão de facto, com a consequência principal a residir no facto de (i) a falta absoluta da primeira ditar a nulidade da sentença (alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC) mas (ii) a falta da segunda ditar apenas, em sede recursai, a possível baixa do processo para que o tribunal de 1.ª instância motive devidamente a sua decisão de facto (alínea d) do n.º 2 do artigo 662.º do CPC).

5.ª A previsão de anulação de sentenças arbitrais por violação do dever de fundamentação, nos termos da subalínea vi) da alínea a) do n.º 3 do artigo 46.º da LAV, não cobre todos os casos em que se identifiquem insuficiências no discurso fundamentador dos árbitros.

6.ª Essa disposição cobre, apenas, as situações extremas em que a falha de fundamentação de um aresto arbitral conduza à ininteligibilidade da decisão, por ausência total da enunciação dos fundamentos de facto ou de Direito, por oposição de tais fundamentos com o resultado alcançado a final ou, finalmente, por ambiguidade ou obscuridade que impossibilite os destinatários de compreender e por isso cumprir o comando inscrito nesse resultado decisório.

7.ª. Assim, ao abrigo da subalínea vi) da alínea a) do n.º 3 do artigo 46.º da LAV:

(i) Serão seguramente de anular pelos Tribunais estaduais as decisões arbitrais às quais falte qualquer enunciação da matéria de facto ou das razões jurídicas que ditaram o resultado obtido;

(ii) Mesmo contendo a sentença ou acórdão arbitral a enunciação desses factos ou a explanação dessas razões jurídicas, será ainda assim de invalidar o aresto cuja concatenação fáctica e jurídica se revele deficiente a ponto de o tornar ininteligível para os seus destinatários;

(iii) Ao invés, não cabe na apreciação de uma ação de anulação de sentença arbitral por falta de fundamentação: (i) o modo como o Tribunal arbitral valorou cada um dos elementos probatórios de que dispunha; (ii) o modo - mais ou menos elaborado - como o Tribunal arbitral procedeu à apreciação crítica da prova produzida; (iii) o modo como no processo arbitral foram ponderadas, acolhidas ou afastadas as versões fáctico-jurídicas carreadas pelas partes ou, finalmente, (iv) o modo como o Tribunal arbitral, utilizando regras de experiência pertinentes tendo em conta a matéria em discussão na lide, formulou e laborou na base de eventuais esquemas presuntivos.

(B)

Sobre a (im)procedência das causas de nulidade imputadas ao Acórdão Arbitral proferido no caso "Concessão D........... L........"

8.ª Nenhuma das seis nulidades imputadas pelo Estado ao Acórdão Arbitral proferido no caso "Concessão D........... L........" reúne condições de procedência para ditar a anulação (mesmo que apenas parcial) desse aresto; aliás, por detrás dessas nulidades residem quase sempre apenas discordâncias quanto ao iter cognoscitivo ou os resultados obtidos pelos árbitros ou, de outro modo, erros ou imperfeições de julgamento cuja apreciação não cabe em sede de anulação de decisão arbitral.

9.ª. Quanto à primeira nulidade, foi-nos possível concluir que:

(i) Por conta de uma alegada invalidade da sentença por falta de fundamentação, o Estado limita-se a suscitar um alegado erro de julgamento conexo com a eventualmente insuficiente apreciação crítica que foi feita, pelo Tribunal Arbitral, dos cinco documentos com base nos quais considerou fundada a convicção pré­ contratual da A..... quanto à construção do Lanço IC2.

(iii) No Acórdão, o Tribunal procedeu à formulação de juízos de valor sobre a relevância probatória desses cinco documentos, tendo realizado um adequado e inteligível exercício de análise crítica da prova;

(iv) Mesmo que o tenha feito sinteticamente, o Tribunal apelou ao conteúdo dos documentos em causa; não se coibiu de explicar a razão pela qual considerou tais documentos pertinentes para este efeito; para além disso, e em direto contraponto com os elementos probatórios que o Estado havia indicado em sentido contrário (esclarecimentos de 2004 e 2007), o Tribunal aderiu, explicando as razões concretas por que o fez, à tese propugnada nos autos pela A....., dessa forma desmerecendo a contra-tese que foi nos autos sustentada pelo Estado.

10.ª. Quanto à segunda nulidade, foi-nos possível concluir que:

(i) Mesmo que eventualmente remotas, há referências na matéria de facto dada por provada que habilitam a que o Tribunal tenha apelado ao ambiente de convicção generalizada (quanto à construção e entrada e serviço do Lanço IC2) em que decorreu a negociação entre as partes;

(ii) Em qualquer caso, do facto de essa referência factual (que se reconduz a um facto instrumental) poder não ter apoio nessa matéria provada pelo Tribunal não se segue qualquer problema de validade da sentença arbitral.

(iii) Se entendida por sua vez como mero obiter dictum, a consideração ou desconsideração dessa referência no contexto global da lide é totalmente incapaz de comprometer a inteligibilidade da decisão e, com isso, a validade do Acórdão.

11.ª. Quanto à terceira nulidade, foi-nos possível concluir que:

(i) Com alegação de que a decisão do Tribunal Arbitral quanto à repartição de cujas na formação da convicção pré-contratual da A....., e caso fosse a mesma verdadeira e procedente, o resultado da ação de anulação instaurada pelo Estado resultaria em coloca-lo em pior situação da que resultou dos termos e dos limites da condenação ditada pelos árbitros; e, assim, faz despertar a falta de interesse processual do Estado quanto à sua alegação;

(ii) Em qualquer caso, a alegação do Estado a este respeito assenta, mais uma vez, numa confusão entre os planos de uma suposta invalidade da decisão arbitral por falta de fundamentação e da suficiência ou insuficiência dessa fundamentação, no plano da matéria de facto dada por provada; e, por ser assim, não releva do âmbito de uma ação de anulação de decisão arbitral;

12.ª. Quanto à quarta e sexta nulidades, foi-nos possível concluir que:

(i) Quanto ao modo como o Tribunal apurou o nível de não indução de tráfego na concessão entre os anos de 2012 e 2034 e o modo como, na sequência desse apuramento, o repercutiu no dever de o Estado proceder ao seu reequilíbrio, o percurso decisório estribou-se numa argumentação linear e perfeitamente inteligível, fundada em factos dados por provados e em considerações técnicas e jurídicas consideradas pertinentes;

(ii) A ser verdadeira a alegação do Estado, a fundamentação de facto da sentença arbitral poderia qualificar-se como insuficiente, por aí não se ter feito prova de factos que seriam essenciais para o julgamento da lide; mas isso não se confunde com a questão de saber se, sob o ponto de vista formal e da sua inteligibilidade intrínseca, a sentença está ou não fundamentada;

(iii) Para além disso, e (i) independentemente de ser ou não de acolher a tese de que a matéria de facto relevante neste contexto não podia ser obtida por via presuntiva e, (ii) independentemente da questão de saber se, in casu, foi ou não assim obtida pelos árbitros, seguro é que qualquer uma destas questões não cabe no âmbito funcional de uma ação de anulação.

13.ª. Quanto, por fim, à quinta nulidade, interessa considerar que:

(i) A equidade é um método de determinação de parâmetros autónomos de decisão a aplicar como forma de solucionar um litígio; julgando segundo a equidade, o decisor exerce, por isso, liberdade decisória. Ao invés, em exercícios de apreciação da prova submetidos ao critério da livre convicção do julgador, não está em causa nenhuma liberdade decisória, mas sim a adoção do raciocínio mais conforme à experiência comum;

(ii) O contexto em que no Acórdão arbitral se fez referência à prudência - em rigor: em que o Tribunal considerou prudente aceitar que o desvio apurado por referência ao ano de 2011se viesse a manter estável entre os anos de 2012-2034 - era de apreciação probatória, não de determinação do critério a aplicar para solucionar o litígio; significa isto que, quanto a este ponto, o Tribunal não julgou segundo a equidade, tendo-se limitado a exercer a sua livre convicção em matéria probatória.”

C.3)

O Senhor Dr. Robin De Andrade concluiu o seu douto parecer assim:

“1ª. A norma da LAV de 2011 que exige que a decisão arbitral seja fundamentada tem como fonte o art.º 31 da Lei Uniforme da UNCITRAL, que exige que a decisão arbitral indique as suas razões.

2ª. Sendo a decisão arbitral visada pela LAV de 2011 e pela Lei Uniforme uma decisão definitiva, e estando vedado o reexame do mérito pelos tribunais estaduais, a exigência da fundamentação da decisão, ou da indicação das suas razões, visa apenas assegurar a inteligibilidade da decisão.

3ª. Deve assim distinguir-se claramente esta exigência de uma fundamentação genérica ou elementar, da necessidade de uma fundamentação especifica de factos e de direito, imposta pelo Código do Processo Civil, enquanto meio para garantir o reexame efetivo do mérito da sentença do tribunal estadual por um tribunal superior.

4ª. Já anteriormente, face à Lei 31/86, a doutrina e a jurisprudência dos tribunais superiores sempre consideraram que só a falta absoluta de fundamentação, e não a mera deficiência ou obscuridade da mesma, seria motivo da declaração da nulidade da decisão arbitral.

5ª. Também à luz da LAV de 2011, o Supremo Tribunal de Justiça numa orientação minimalista quanto á fundamentação exigida às decisões arbitrais definitivas, considera corretamente que inquirir acerca da consistência ou correção dos fundamentos invocados pelas decisões arbitrais, equivaleria a um reexame do mérito dessas decisões, que sai dos limites em que se deve contar a apreciação de um pedido de anulação.

6ª. Aplicando ao acórdão em apreciação, a metodologia que vem sendo adotada pelo STJ de análise genérica da fundamentação, deve reconhecer-se que é perfeitamente inteligível o raciocínio jurídico que conduz à decisão deste acórdão e são totalmente claros os fundamentos de facto e de direito em que se apoia.

7ª. Ainda que se examinem de forma especificada os diversos juízos de facto e de direito em que se desdobra a fundamentação do acórdão, como faz o Estado na sua petição anulatória, não se encontra base para se concluir pela falta de fundamentação desses juízos, uma vez que em todos os pontos onde se pretende arguir essa falta, se encontram, no próprio texto do acórdão, as indicações necessárias para compreender as razões pelas quais o tribunal arbitral decidiu como decidiu.

8ª. Julgamos, assim, dever improceder totalmente o pedido da anulação do acórdão arbitral por falta de fundamentação legalmente exigida.”

D)

Embora seja delicada a matéria da arbitrabilidade em Direito Público e ou em litígios que envolvam dinheiros públicos, o nosso legislador infraconstitucional é, num caso raro na Europa, afoitamente adepto da arbitragem jurídica intrafronteiras.

Nesse contexto específico, vem ocorrendo um curioso fenómeno: as entidades públicas acabam voltando aos tribunais estaduais, por vezes interpondo ações de anulação manifestamente infundadas à luz do artigo 46º/3 da Lei da Arbitragem Voluntária.

E)

Ora, “a sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se:

a) A parte que faz o pedido demonstrar que:

i) Uma das partes da convenção de arbitragem estava afetada por uma incapacidade; ou que essa convenção não é válida nos termos da lei a que as partes a sujeitaram ou, na falta de qualquer indicação a este respeito, nos termos da presente lei; ou

ii) Houve no processo violação de alguns dos princípios fundamentais referidos no n.º 1 do artigo 30.º com influência decisiva na resolução do litígio; ou

iii) A sentença se pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou contém decisões que ultrapassam o âmbito desta; ou

iv) A composição do tribunal arbitral ou o processo arbitral não foram conformes com a convenção das partes, a menos que esta convenção contrarie uma disposição da presente lei que as partes não possam derrogar ou, na falta de uma tal convenção, que não foram conformes com a presente lei e, em qualquer dos casos, que essa desconformidade teve influência decisiva na resolução do litígio; ou

v) O tribunal arbitral condenou em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento ou deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar; ou

vi) A sentença foi proferida com violação dos requisitos estabelecidos nos nºs 1 e 3 do artigo 42.º; ou

vii) A sentença foi notificada às partes depois de decorrido o prazo máximo para o efeito fixado de acordo com ao artigo 43.º; ou

b) O tribunal verificar que:

i) O objeto do litígio não é suscetível de ser decidido por arbitragem nos termos do direito português;

ii) O conteúdo da sentença ofende os princípios da ordem pública internacional do Estado português” (artigo 46º/3 da Lei da Arbitragem Voluntária/2011).

E.1)

A Lei da Arbitragem Voluntária nada diz (talvez por desnecessidade, no âmbito da unidade e racionalidade do sistema jurídico) sobre o tipo ou a densidade da fundamentação das decisões arbitrais (v. artigo 42º/3).

Mas, as razões para a exigência de fundamentação das sentenças dos tribunais em geral são as seguintes:

(1) controlo da administração da justiça;

(2) exclusão do carácter voluntarístico e subjetivo do exercício da atividade jurisdicional e abertura do conhecimento da racionalidade e coerência argumentativa dos juízes;

(3) melhor estruturação dos eventuais recursos, permitindo às partes um recorte mais preciso e rigoroso dos vícios das decisões judiciais recorridas (GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 4.ª Edição, 2000, p. 651).

Com efeito, a exigência de fundamentação das decisões que resolvam litígios jurídicos integra o elenco de princípios concretizadores do processo justo (muitas vezes designado “due process of law”), o qual tem como conteúdo fundamental a conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela jurisdicional efetiva (assim, PATRÍCIA GUIA PEREIRA, “Fundamentos de Anulação da Sentença Arbitral”, in O Direito, 142º, 2010, V, pp. 1081-1082).

GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4ª ed., Coimbra Editora, 2010, pp. 414-415, referem que “o due process positivado na Constituição Portuguesa deve entender-se num sentido amplo, não só como um processo justo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais”.

Ora, por isso, parece que também a fundamentação da decisão arbitral visa, lógico-juridicamente, impedir o caráter aleatório da decisão tomada pelos árbitros, assegurando a transparência e a reflexão decisória, convencendo e não apenas impondo.

O dever de fundamentação das decisões arbitrais, em sede de arbitragem nacional, poderia assim constituir, desde logo, uma garantia das partes contra o arbítrio do julgador, mesmo que estas tenham uma grande confiança na arbitragem e, em particular, nos juizes-árbitros escolhidos para resolver o litígio.

Mas, em sede da (muito) diferente arbitragem comercial internacional, pelo menos, também existem vantagens compreensíveis na dispensa da fundamentação da decisão final, quais sejam a promoção da celeridade do processo, o aumento do grau de confidencialidade dos factos objeto do litígio e a dificuldade de impugnar a decisão arbitral nesse contexto internacional, conferindo-lhe, assim, um caráter mais definitivo (cf. PETER BINDER, International Commercial Arbitration and Conciliation in Uncitral Model Law Jurisdictions, 3.ª Ed., Sweet & Maxwell, London, 2009, p. 354).

Por outro lado, a justificação de as partes poderem dispensar a fundamentação da decisão arbitral, em arbitragem voluntária nacional como a presente, radica, desde logo, na própria natureza jurídica da arbitragem, enquanto meio de resolução de litígios de direito privado, em que as partes têm a possibilidade de acordar, livre e conscientemente, as regras relativas ao processo arbitral, desde que respeitado o princípio do processo justo. Esta faculdade das partes pode constituir, porém, um desvio ao princípio constitucional da fundamentação das decisões plasmado no citado n.º 1 do artigo 205.º (a não ser que o artigo 205º da CRP também não esteja a referir-se à arbitragem).

E.2)

Nas ações de anulação de decisões arbitrais, no âmbito das arbitragens voluntárias (ad hoc) (não tratamos aqui da arbitragem forçada ou necessária, naturalmente excecional e subsidiária), aquilo que resulta

(i) da conjugação dos artigos 19º(1), 39º/4(2), 46º/3(3) e 42º/3 (A sentença deve ser fundamentada, salvo se as partes tiverem dispensado tal exigência ou se trate de sentença proferida com base em acordo das partes, nos termos do artigo 41.º) da LAV/2011, e ainda

(ii) de quase toda a nossa jurisprudência (cf., por exemplo, Ac. do STA de 22-02-2017, proc. nº 0995/15; Ac. do STA de 25-01-2018, proc. nº 01472/17; Ac. do STJ de 22-09-2016, proc. nº 660/15.8YRLSB.L1.S1(4); Ac. do STJ de 16-03-2017, proc. nº 1052/14.1TBBCL.P1.S1(5); Ac. do TRL de 28-01-2016, proc. nº 660/15.8YRLSB-2(6); Ac. do TRC de 09-01-2018, proc. nº 191/17.1YRCBR(7)) e da doutrina (cf., por exemplo, e sem prejuízo de ser um dos membros do colégio arbitral desta ação arbitral, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado da Arbitragem, 2016, in comentários aos artigos 42º e 46º; JOSÉ ROBIN DE ANDRADE, in LAV Anotada, coord. de Dário Moura Vicente, 3ª ed., pp. 121 ss) existentes em Portugal – com alguns argumentos oriundos da arbitragem comercial internacional, acriticamente transpostos para a arbitragem nacional) –

é o seguinte:

(1) - as entidades arbitrais ad hoc portuguesas seriam verdadeiros tribunais (vd. artigos 110º e 209º/2 da CRP);

(2) - tais entidades, porém, não seriam – e não são – órgãos de soberania segundo a CRP (vd., no entanto, o artigo 110º da CRP);

(3) - embora tais entidades fossem tribunais sem serem órgãos de soberania portugueses, (4) qualquer fundamentação de facto e ou de direito das decisões arbitrais é aceitável e insindicável, desde que essa fundamentação seja inteligível.

(5) E é assim, não apenas no âmbito dos litígios relacionados com atividades económicas privadas, mas também quando estão em causa interesses públicos e dinheiros públicos (aqui são mais de 213 milhões de euros); dinheiros públicos cuja disciplina é, porém, e por princípio, muito rigorosa, dependente de um heterocontrolo técnico-financeiro e jurídico-financeiro, tudo com expressa base constitucional.

E assim é, independentemente de uma “fundamentação meramente formal” poder trazer sérios inconvenientes contra o erário público ou de a execução coerciva da decisão arbitral competir a uma jurisdição a se, no sentido da jurisdictio estadual ou soberana.

E.3)

Ora, concordamos com a ré A..... em se dever aplicar aqui a tese largamente maioritária entre nós, em sede de arbitragem ad hoc nacional, expressa através da afirmação supra sob (4):

-Qualquer fundamentação de facto e ou de direito das decisões arbitrais, em arbitragem voluntária, é aceitável e insindicável, desde que a fundamentação apresentada seja inteligível.

O fundamento de tal afirmação ou conclusão jurídico-legal, quanto à arbitragem voluntária nacional, que aqui temos de adotar, é, consabidamente, o seguinte:

i)- Não há lugar ao reexame do mérito da decisão arbitral, o que aliás resulta da Convenção de Nova Iorque de 1958, que vincula Portugal;

ii)- Como não há tal reexame (uma vez que as partes resolveram obter justiça privada), o dever constitucional de fundamentação poderá ser meramente formal e uma mera exigência de inteligibilidade; é assim irrelevante, nesta sede, o argumento – utilizado para os tribunais órgãos de soberania - de que as resoluções imparciais e justas de conflitos jurídicos deveriam também se esforçar, com o máximo rigor, para convencer também as partes e a comunidade jurídica em geral (cf. o Ac. do TC nº 27/2007);

iii)- Assim, as decisões arbitrais apenas terão o dever de dizer, de modo entendível, o direito, no que aos três elementos da fundamentação diz respeito (factos provados e não provados; motivação da decisão de facto; aplicação do direito objetivo);

iv)- A fundamentação das decisões arbitrais em arbitragem voluntária pode, por isso, ser deficiente, incompleta, insuficiente, ligeira, medíocre ou errada, continuando essas decisões a serem lícitas e insindicáveis, ou seja, definitivas; o que bem se compreende dada a natureza da arbitragem voluntária;

v)- Assim, o padrão jusprocessual, de transparência e de legitimação comunitária da decisão arbitral, é diferente e menos exigente na justiça privada realizada pelas arbitragens voluntárias, quando comparado com o padrão exigido aos tribunais judiciais ou aos tribunais administrativos e fiscais (cf. artigo 607º/3/4 do CPC);

vi)- O paradigma da decisão arbitral em arbitragem voluntária é, pois, a busca da célere e discreta decisão definitiva (o que sempre poderia implicar uma enorme exigência de fundamentação, se o legislador o decidisse);

vii)- A CRP, nesta matéria, autoriza que a lei ordinária seja menos exigente relativamente aos árbitros jurídicos (em arbitragem voluntária) do que aos juizes do Estado, embora, seguramente, desde que não estejam em causa direitos-liberdades-e-garantias.

Este “laxismo jurídico-legal” quando ao dever de fundamentar as decisões arbitrais, em arbitragem voluntária, estende-se, logicamente, à motivação do julgamento da matéria de facto respetiva (vd. ainda o artigo 42º/3 da LAV/2011). Esta questão faz parte da fundamentação de facto em sentido amplo (cf. o Acórdão do TCA Sul de 26-04-2012, processo n.º 02276/07).

Eis de novo uma grande diferença quanto àquilo que é exigido à atividade jurisdicional pública ou soberana nos nucleares artigos 607º/3/4 do CPC e 94º do CPTA. É mais uma diferença que o aqui autor ESTADO, talvez arrependido de se ter vinculado à arbitragem ad hoc (pois são tantas as faltas de fundamentação que “encontra” numa deliberação arbitral com dezenas de páginas), parece esquecer na sua alegação ou petição inicial.

Portanto, o dever de fundamentar decisões que resolvam litígios jurídicos tem, i.a., no âmbito da arbitragem voluntária segundo a LAV/2011, a seguinte característica compósita intrínseca:

- qualquer fundamentação de facto das decisões arbitrais é de aceitar e é insindicável ou definitiva, desde que a fundamentação apresentada seja inteligível;

- qualquer motivação do julgamento da matéria de facto é de aceitar e é insindicável, desde que a motivação apresentada seja inteligível; e

- qualquer fundamentação de direito é de aceitar e é insindicável, desde que a fundamentação apresentada seja inteligível.

E inteligível quer dizer: entendível, compreensível, claro, acessível. Nada mais.

Fundamentar, aqui, é apenas expor um texto escrito, sobre o objeto do processo, que um jurista médio entenda. Nada mais. O que, naturalmente, não significa que os jusárbitros ad hoc não possam ou não exponham uma fundamentação de facto e uma fundamentação de direito completas, profundas e claras.

Em conclusão, uma decisão arbitral, em arbitragem voluntária, segundo a Lei da Arbitragem Voluntária (como na arbitragem comercial internacional), só poderá ser anulada por um tribunal (de entre os referidos no artigo 110º da CRP) se o seu discurso fundamentador for incompreensível, obscuro ou inacessível ao comum e mediano dos juristas.

Isto, porém, poderia ser visto como um paradoxo nas arbitragens em geral, porque os árbitros contratados tendem a ser bons ou excelentes juristas, logo, capazes de sérios, profundos e rigorosos discursos fundamentadores.

Este paradoxo revela, no entanto, que o objetivo da exigência de uma fundamentação meramente formal ou apenas inteligível é outro: é, evitando a fiscalização por outrem, obter uma facilitada celeridade e discrição. Faz sentido nas arbitragens internacionais, mas talvez seja pouco defensável nas arbitragens nacionais, num plano de direito a constituir. Com efeito, não parece haver um fundamento expresso na CRP e na legislação ordinária, ou na natureza da arbitragem jurídica nacional, que sirva para alicerçar a tese de que, aqui, fundamentação seria apenas uma fundamentação meramente formal e apenas inteligível. Note-se que, como dissemos, o argumento da tendencial e lógica irrecorribilidade das decisões arbitrais poderia servir para fundar a tese oposta, isto é, para se ser tão ou ainda mais exigente do que é o artigo 607º do CPC.

Mas, enfim, como vimos e citámos, a Lei da Arbitragem Voluntária terá consagrado, segundo a jurisprudência e doutrina portuguesas largamente dominantes, um dever de fundamentação meramente formal das decisões de justiça arbitral, uma fundamentação de tipo obiter dictum. Ao contrário do dever de fundamentação das decisões de justiça estadual (cfr. artigos 110º e 205º/1 da CRP e 607º do CPC).

F)

Passemos agora ao caso em apreço.

F.1)

Adiantamos já a nossa conclusão relativamente a 5 das 6 alegadas nulidades da decisão arbitral, invocadas na p.i. desta ação administrativa:

(i) sem prejuízo do interessante teor do cit. parecer do Professor Paulo Otero relativo ao fundo do litígio na ação e a um pressuposto processual (ii) e das reservas oponíveis à conceção dominante, (iii) este tribunal, quanto à questão formal abordada nos outros pareceres, na p.i. desta ação de anulação e na resposta da aqui ré A....., tem de concordar com a visão do STA e do STJ de que o dever de fundamentação da decisão arbitral, de acordo com a melhor interpretação da Lei da Arbitragem Voluntária, se trata de uma formalidade minimalista; e temos de aplicá-la ao caso presente, portanto.

Assim, salvo as exceções previstas na LAV, qualquer fundamentação das decisões arbitrais, em arbitragem voluntária, é de aceitar e é insindicável, desde que essa fundamentação não seja incompreensível, obscura ou inacessível ao comum ou mediano dos juristas.

O que, como veremos já, quer dizer que o aqui autor, o ESTADO, não tem razão, porque a fundamentação (ou fundamentações) da deliberação arbitral ora anulanda, fundamentação que existe, é compreensível e clara, independentemente, como sublinhámos, de ser ou não ser correta, de ser ou não ser frágil, de ser ou não ser conclusiva ou de ser ou não ser suficiente.

E é assim (i) quanto aos factos provados e não provados (julgamento da matéria de facto e motivação probatória desse julgamento), como (ii) quanto ao julgamento da matéria de direito. Basta reler a fundamentação atrás transcrita no probatório.

Com efeito:

a) na 1ª nulidade invocada –

(i) o que está em causa não é omissão da enunciação dos factos provados, nem nenhuma contradição entre fundamentos e decisão nem, por fim, qualquer ambiguidade que afete, diretamente, a condenação contida na alínea e) da decisão; trata-se de um problema de atribuição de valor probatório - em rigor: de explicação das razões pelas quais se atribuiu dado valor probatório - a determinados meios de prova; só que a falta ou deficiência na apreciação crítica da prova e, em função dela, a falta ou deficiência da motivação da decisão da matéria de facto não se convola, no Direito português, num problema de validade da decisão, antes respeita ao seu mérito;

(ii) importa ter presente, no entanto, as seguintes passagens da decisão arbitral:

-a referência dos árbitros ao "teor convergente destes documentos, no sentido da construção do Lanço IC2"; -a conclusão de que "perante a prova produzida, que revelou que os referidos documentos foram emitidos e obtidos pela Demandante no quadro da dinâmica própria de um processo concursal com estas características e da negociação que este envolve, o Tribunal entende que deles podia a Demandante legitimamente inferir que existia um propósito sério, por parte do Estado, de construir o Lanço IC2 e de o ter em serviço em 2011”; -"sucede que (...) o esclarecimento de abril de 2004, prestado [pela Estradas de Portugal] é anterior a outros documentos, também da autoria ou imputáveis à Estradas Portugal, dos quais resultou, no entendimento do Tribunal, a formação de uma situação de confiança atendível sobre o perfil, a data de entrada em serviço e o tipo de exploração do Lanço 1C2 (em particular, o Estudo Prévio do Lanço A32 e o Resumo Não Técnico do Estudo de Impacto Ambiental do Lanço A32, o Programa de Desenvolvimento Futuro da Rede Viária e os Esboços orográficos do Lanço 1C2). Ora, não faria sentido atribuir relevo decisivo àquele esclarecimento de abril de 2004 quando seria legítimo à A..... supor que o seu conteúdo estava de alguma forma superado pelos novos elementos transmitidos à A..... durante a segunda fase do Concurso. Quanto ao segundo documento, não se vê que ele infirme o que resulta dos anteriores documentos da Estradas de Portugal sobre a construção e características do Lanço 1C2, nem que seja suscetível de pôr em causa a confiança neles depositada. Lido com atenção o referido documento (...), em lado algum se nega nele a realidade das informações anteriormente transmitidas pela Estradas de Portugal, e mesmo o que se diz sobre a competência do Estado para definir o regime de exploração das autoestradas não é de molde a pôr em crise as informações que a Estradas de Portugal, em representação desse mesmo Estado, havia transmitido aos Concorrentes “; -"o Tribunal não considera, em suma, que os dois documentos assinalados pelo Demandado fossem capazes de impedir ou destruir uma situação de confiança da Demandante relativamente à construção, entrada em serviço e características do Lanço IC2”.

b) na 2ª nulidade invocada –

(i) o colégio arbitral extraiu, entre o mais, a seguinte matéria provada: "o Agrupamento AE DL assumiu, na sua Proposta BAFO, que o Lanço A32 teria continuidade para Sul, com ligação do Lanço 1C2 ";

(ii) pode seguramente questionar-se se são ou não suficientes estas referências para que, mais adiante, o tribunal arbitral convoque o tal ambiente de convicção generalizada (quanto à construção e entrada em serviço do Lanço IC2) em que teria decorrido a negociação entre as partes;

(iii) mais uma vez, porém, não é questão que se coloque no plano da invalidade da decisão arbitral, mas sim no da suficiência ou insuficiência da matéria de facto dada por provada ou da fundamentação em geral (assim, o parecer de Sérvulo Correia e José Duarte Coimbra, cit.);

(iv) enfim, como já referido por outros tribunais, o peso que, na solução adotada, o tribunal arbitral, no amplo universo factual fornecido pelo processo, confira ou deixe de conferir à factualidade é questão que excede a ação de anulação;

c) na 3ª nulidade invocada –

(i) preliminarmente, é muito estranho que o Estado perspetive como boa a estratégia de querer fazer anular a decisão arbitral quanto a este segmento; repare-se que, acaso fosse verdadeira e relevante a falta de suporte factual desta parcela da decisão arbitral, a conclusão seria uma só: ter-se-ia de anular tudo quanto os árbitros exararam e ponderaram sob o ponto de vista do eventual contributo da própria A..... para a verificação dos prejuízos resultantes da não indução de tráfego na A32; o resultado seria um só: a redução em 8% do valor do desvio a atender para efeitos do cálculo dos montantes necessários à reposição financeira da Concessão deixaria de ter força decisória, em prejuízo ainda maior para o Estado;

(ii) a imputação de atuações culposas ao Estado e a discriminação de quais tenham sido resultam, no essencial, de fls. 115-117;

(iii) quanto à imputação da conculpa da A....., consta da passagem em que a decisão arbitral se refere à "menor cautela da Demandante na não obtenção junto da contraparte, em sede negocial, de uma posição mais explícita sobre a construção e entrada em serviço do Lanço IC2" (fl. 135);

(iv) finalmente, quanto à ponderação efetuada pelos árbitros, está também expressa de modo perfeitamente percetível e inteligível no texto da decisão arbitral, com a enunciação de que "o Tribunal considera razoável que na fixação do quantum adequado à reposição do equilíbrio financeiro da Concessão se atenda ao contributo da atuação da Demandante na fase negocial para a produção do efeito que a não construção e entrada em serviço do Lanço IC2 veio a ter sobre o equilíbrio financeiro da Concessão" (fl. 135), com o resultado final dessa ponderação a ser apresentado logo de seguida, com redução em 8% do valor do desvio a atender para efeitos do cálculo dos montantes necessários à reposição financeira.

d) na 4ª nulidade invocada –

(i) Por referência à questão litigiosa 16.3 («Quebra de TMDA [tráfego médio diário] e decréscimo de receitas), o decisor arbitral deu por provado que a entrada em serviço do Lanço IC2 teria, em 2011, um impacto médio estimado na concessão Doutro Literal, a partir das previsões do Estudo de Tráfego da BAFO, que seria de um acréscimo de entre cerca de 3.400 e cerca de 4.000 veículos por dia (secção média ponderada - 3.385 ou 4.028 veículos x km/km), correspondente a um aumento percentual entre cerca de 15,9% e 19,6 %;

(ii) os árbitros reconheceram expressamente que "a matéria provada se reporta somente à quantificação do desequilíbrio decorrente da não construção do IC2 em 2011, mas já não relativamente ao que ocorrerá nos anos subsequentes da Concessão"; não obstante, os árbitros entenderam que a matéria provada permite assumir, com razoável segurança, que o efeito de «perda de tráfego» decorrente da não construção do IC2 que se julgou verificado em 2011 tem caráter permanente, ou seja, subsistirá enquanto a situação de facto não se alterar por efeito de uma eventual entrada em serviço da referida estrada; e, nessa linha, "consider[ou] o Tribunal que não deixará de ser prudente no seu juízo se aceitar que o desvio apurado relativamente ao tráfego esperado em 2011 por efeito da não construção do Lanço IC2 se manterá ao longo de toda a vida da concessão", razão pela qual fizeram refletir o desvio de tráfego apurado para o ano de 2011 (8,3%, já depois de operada a redução em oito pontos percentuais) ao longo de todos os anos subsequentes de vigência da concessão (2012-2034), com reflexos no âmbito e extensão do direito da A..... a ver reposto o reequilíbrio da concessão por conta desse evento;

(iii) é argumentação ou fundamentação linear e perfeitamente inteligível.

e) na 6ª nulidade invocada – ibidem.

É isto o suficiente para não darmos razão ao Estado nesta impugnação anulatória, entidade que discorda de alguma fundamentação e que acha outra insuficiente, para acabar por falar em ininteligibilidade de um modo precipitado e infundado.

Só que não há qualquer ininteligibilidade na existente fundamentação (onde se inclui a motivação do julgamento da matéria de facto), fundamentação de facto e de direito que é compreensível ou entendível.

É um dos sortilégios – óbvios - de o aqui autor ter aceite um modo de resolução de litígios jurídicos que, licitamente, impede o reexame da decisão de 1ª instância, ainda que numa questão que envolve muitos milhões de euros no âmbito do interesse público e do bem comum.

F.2

Queda, porém, a 5ª nulidade invocada (cf. o artigo 46º/3-a)-iii) da LAV): a questão da violação de cláusula compromissória igual ao artigo 185º/2 do CPTA (Nos litígios sobre questões de legalidade, os árbitros decidem estritamente segundo o direito constituído, não podendo … julgar segundo a equidade.), porque a decisão arbitral se teria socorrido da equidade para afirmar que o desvio apurado relativamente ao tráfego esperado em 2011, por efeito da não construção do Lanço IC2, se manterá ao longo de toda a vida da Concessão (vd. artigos 162 a 170 da p.i.).

Será tal trajeto intelectivo dos árbitros equidade (proibida por cláusula compromissória e pelo artigo 185º/2 do CPTA) (cf. artigo 4º do CC) ou, como defemde a ré, será presunção judicial em sede de prova (cf. artigo 351º do CC)?

F.2.1

A equidade, incorretamente posta no CC como fonte de Direito, pode ser vista como um modo de desenvolvimento do Direito para além da lei. Como uma solução normativa, que prescinde de apoio direto nas fontes e adaptada às especificidades do caso concreto, que não se baseia no arbítrio ou na graça, mas no princípio jurídico da justiça como exposto por Aristóteles (cf. MIGUEL NOGUEIRA DE BRITO, Introdução ao Estudo do Direito, AAFDL Ed., Lisboa, 2017, pp. 290-298). Exemplos: artigo 4º, artigo 400º/1, artigo 494º e artigo 566º/3 do CC.

Mas é de um critério de solução de casos de que se trata (MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Introdução ao Direito, 2012, pp. 414 ss).

F.2.2.

Já a presunção judicial, referida no artigo 351º do CC, é outra coisa. Esta, porque é uma atividade de risco (LUIS MUNOZ SABATÉ, Fundamentos de Prueba Judicial Civil, L.E.C. 1/2000, Bosch, Barcelona, 2001, p. 406), exige rigor e transparência especiais, dado que se trata (i) de máximas da experiencia (regras de validade universal, a normalidade no que ao principio da causalidade ou ao princípio da contiguidade ou ao princípio da semelhança diz respeito), (ii) de juízos correntes de probabilidade, (iii) de lógica e de intuição humana, como meios (em termos de nexo lógico, de juízo de probabilidade qualificada) de, a partir de um facto conhecido (o facto-base ou indiciário, a premissa maior), chegar a um facto desconhecido que deve ser provado em juízo (o facto presumido alegado e relevante para o processo, a premissa menor).

A máxima da experiencia é ali o objeto de prova.

Atua no âmbito (i) da chamada livre apreciação da prova e (ii) do importante artigo 607º/4 do CPC. Releva assim na fundamentação de facto, ou melhor, na motivação do julgamento da matéria fáctica relevante.

Por isso, não deve haver recurso à presunção judicial só na fundamentação de direito, sob pena de ficar aberta a via para suprir a falta de prova de factos (cf. Ac. do TRP de 15-05-2008, pr. 0832044).

Ora, o raciocínio presuntivo tem o seguinte iter: um princípio presuntivo de carater geral; um caso particular subsumido a tal princípio; uma presunção específica e particularizada; a inexistência de razões para refutar a presunção particularizada; uma conclusão genérica (LUIS F. P. DE SOUSA, A Prova por Presunção no Direito Civil, 2012, p. 13).

Como se vê, nada tem a ver com o arbítrio, com o capricho lógico ou pessoal, com a irracionalidade.

Mas, claro está, como não tem de haver contraditório a propósito de presunção judicial oficiosamente atuada pelo julgador, isso quer dizer que, na arbitragem voluntária, a utilização oficiosa da presunção judicial – surgida pela 1ª vez na sentença - pode nunca ser minimamente fiscalizada, nem pelas partes pelo menos.

F.2.3.

Ora, a fl. 134 da decisão arbitral, os árbitros escrevem: “não deixará de ser prudente aceitar que o desvio apurado relativamente ao tráfego esperado por efeito da não construção do Lanço IC2 (refere-se ao ano 2011) se manterá ao longo de toda a vida da Concessão”.

O tribunal arbitral, portanto, considerou prudente aceitar que o desvio apurado por referência ao ano de 2011 se viesse a manter estável entre os anos de 2012 e 2034.

É uma apreciação probatória, uma presunção judicial, ainda que pudesse ser violadora do rigor exigível na colocação sistemática da mesma no esquema das sentenças (motivação do julgamento de facto) e do artigo 351º do CC, quando este se refere à prova testemunhal (que recorre apenas às perceções da testemunha sobre factos, e não às suas opiniões ou pensamentos) – cf. artigos 393º e 364º do CC.

Seja como for, certo é que não se tratou de um critério de solução deste caso. Sim da motivação probatória, no âmbito de uma presunção judicial.

A referência à prudência tem o significado de o colégio arbitral ter considerado verosímil, em face da inexistência de outros elementos que resultassem da instrução, a conclusão probatória de que o desvio referente ao ano de 2011 se manteria ao longo de todos os demais anos de vigência da concessão. E o colégio arbitral não deixou de avançar as razões que, no seu entender, tornavam legítima e razoável, no caso dos autos, essa conclusão fáctica: é que "o valor apurado para 2011 foi até um valor mínimo, pois que se verificou que o impacto da construção do IC2 sobre a Concessão seria maior do que um acréscimo de tráfego de entre 15,9% e 19,6 % se o tráfego que viria do Lanço IC2 não se estabilizasse em 2011, mas somente nos anos seguintes".

Não se tratou, como se vê, de recurso à equidade. Os árbitros limitaram-se a aplicar – bem ou mal - o Direito constituído, expondo essa aplicação de um modo inteligível, utilizando uma presunção judicial. É o que basta para considerar fundamentada a decisão: a inteligibilidade do discurso dos árbitros.

Portanto, também nesta questão, o Estado não tem razão ao pedir a anulação da decisão dos árbitros a que o Estado decidiu recorrer.

*

III - DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em absolver a ré do pedido, indeferindo o pedido de declaração de nulidade da decisão arbitral cit.

Custas a cargo do recorrente.

Registe-se e notifique-se.

Lisboa, 15-03-2018

Paulo H. Pereira Gouveia – Relator

Catarina Jarmela

Conceição Silvestre


(1)ARTIGO 19º
Nas matérias reguladas pela presente lei, os tribunais estaduais só podem intervir nos casos em que esta o prevê.
(2)ARTIGO 39º
1- Os árbitros julgam segundo o direito constituído, a menos que as partes determinem, por acordo, que julguem segundo a equidade.
2- Se o acordo das partes quanto ao julgamento segundo a equidade for posterior à aceitação do primeiro árbitro, a sua eficácia depende de aceitação por parte do tribunal arbitral.
3- No caso de as partes lhe terem confiado essa missão, o tribunal pode decidir o litígio por apelo à composição das partes na base do equilíbrio dos interesses em jogo.
4- A sentença que se pronuncie sobre o fundo da causa ou que, sem conhecer deste, ponha termo ao processo arbitral, só é suscetível de recurso para o tribunal estadual competente no caso de as partes terem expressamente previsto tal possibilidade na convenção de arbitragem e desde que a causa não haja sido decidida segundo a equidade ou mediante composição amigável.
(3)ARTIGO 46º
Pedido de anulação

3 - A sentença arbitral só pode ser anulada pelo tribunal estadual competente se:
a) A parte que faz o pedido demonstrar que:
i) Uma das partes da convenção de arbitragem estava afetada por uma incapacidade; ou que essa convenção não é válida nos termos da lei a que as partes a sujeitaram ou, na falta de qualquer indicação a este respeito, nos termos da presente lei; ou
ii) Houve no processo violação de alguns dos princípios fundamentais referidos no n.º 1 do artigo 30.º com influência decisiva na resolução do litígio; ou
iii) A sentença se pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou contém decisões que ultrapassam o âmbito desta; ou
iv) A composição do tribunal arbitral ou o processo arbitral não foram conformes com a convenção das partes, a menos que esta convenção contrarie uma disposição da presente lei que as partes não possam derrogar ou, na falta de uma tal convenção, que não foram conformes com a presente lei e, em qualquer dos casos, que essa desconformidade teve influência decisiva na resolução do litígio; ou
v) O tribunal arbitral condenou em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento ou deixou de pronunciar-se sobre questões que devia apreciar; ou
vi) A sentença foi proferida com violação dos requisitos estabelecidos nos n.os 1 e 3 do artigo 42.º; ou
vii) A sentença foi notificada às partes depois de decorrido o prazo máximo para o efeito fixado de acordo com ao artigo 43.º; ou
b) O tribunal verificar que:
i) O objeto do litígio não é suscetível de ser decidido por arbitragem nos termos do direito português;
ii) O conteúdo da sentença ofende os princípios da ordem pública internacional do Estado português.

9 - O tribunal estadual que anule a sentença arbitral não pode conhecer do mérito da questão ou questões por aquela decididas, devendo tais questões, se alguma das partes o pretender, ser submetidas a outro tribunal arbitral para serem por este decididas.
10 - Salvo se as partes tiverem acordado de modo diferente, com a anulação da sentença a convenção de arbitragem volta a produzir efeitos relativamente ao objeto do litígio.
(4)Sumário
I. O regime específico constante do art. 39º da LAV não pode ser convocado e aplicado quando o tribunal arbitral tiver de aplicar uma norma legal cuja factispecie contiver uma específica remissão para a aplicação pelo tribunal – por qualquer tribunal que for chamado a aplicar essa norma, estadual ou arbitral – de critérios de equidade, já que, neste tipo de situações, o apelo à equidade não resulta de opção das partes, tomada no exercício da sua autonomia da vontade acerca dos critérios que devem presidir à composição do litígio, mas de opção do próprio legislador, que considerou mais adequada à peculiar fisionomia do caso a dirimição do litígio segundo critérios que ultrapassam o direito estrito.
II. O preciso âmbito do dever de fundamentação, no que toca à decisão proferida em sede de matéria de facto, tem de atender, em termos funcionalmente adequados, às particularidades relevantes da concreta situação litigiosa, cumprindo verificar se os alegados vícios / nulidades têm, no caso concreto, a relevância substancial suscetível de determinar – atenta a sua influência decisiva na composição do litígio - o gravoso efeito pretendido, traduzido na anulação do acórdão arbitral.
III. Num litígio em que os factos essenciais alegados como causa de pedir são factos plenamente provados por documento, não tendo sido produzida prova sujeita a livre apreciação do tribunal, deve considerar-se suficientemente fundamentado o acórdão arbitral quando –apesar de, na sua estrutura lógico argumentativa, se não ter autonomizado formalmente um capítulo em que se enunciam os factos considerados provados e não provados –se tomou posição clara e perfeitamente inteligível sobre a questão da existência e significado dos factos essenciais articulados pelo A. , valorados segundo regras ou máximas de experiência, apreciando ainda as objeções fundamentalmente deduzidas pelo R. na contestação que apresentou.
IV. Em processo arbitral, a parte que - confrontada com um juízo explícito do tribunal acerca da irrelevância de certos factos articulados e com a desnecessidade de produção dos meios probatórios requeridos- não deduz qualquer oposição imediata a tal despacho interlocutório, conformando a sua subsequente atuação processual com o teor tal decisão, sem reiterar claramente ao Tribunal a essencialidade das diligências probatórias requeridas, vê precludida a possibilidade de, após prolação da decisão final, vir invocar a anulação da sentença arbitral com fundamento num juízo de irrelevância factual ou probatória com que se conformou.
(5)Sumário
I. A LAV apenas permite a impugnação da sentença arbitral pela via do pedido de anulação dirigido ao competente tribunal estadual – só prevendo, como forma de reação à dita sentença, a via do recurso nos casos em que as partes tiverem acordado na recorribilidade da decisão dos árbitros para os tribunais estaduais, pressupondo o pedido de anulação – que origina uma forma procedimental autónoma, moldada pelas regras da apelação no que se não mostre especialmente previsto no nº 2 do art. 46º da LAV – a verificação de algum ou alguns dos fundamentos taxativamente previstos na lei, cumprindo, em regra, à parte que faz o pedido o ónus de demonstrar a respetiva verificação.
II. Tal pretensão não envolve um amplo conhecimento do mérito da decisão que se pretende anular, estando a competência do tribunal estadual circunscrita à matéria da verificação do específico fundamento da pretendida anulação, cabendo, mesmo nos casos em que proceda a pretensão anulatória, a reapreciação do mérito a outro tribunal arbitral, nos termos do nº9 do citado art. 46º.
III. Está suficientemente fundamentada a decisão arbitral que enuncia, de forma perfeitamente inteligível e apreensível pelos respetivos destinatários, os fundamentos factuais e normativos da decisão, tornando percetível o iter lógico jurídico seguido na resolução do litígio.
(6)In: www.dgsi.pt.
(7)Sumário
I – As sentenças arbitrais só podem ser anuladas nos casos referidos no nº 3 do artº 46º da Lei nº 63/2011, de 14/12, designadamente, no que importa ao caso, quando a sentença tenha sido proferida com violação dos requisitos estabelecidos nos nºs 1 e 3 do artº 42º – conforme ponto vi) da al. a) desse nº 3.
Os referidos requisitos são:
- nº1 – a sentença deve ser reduzida a escrito e assinada pelo árbitro ou árbitros.
- nº3 – a sentença deve ser fundamentada, salvo se as partes tiverem dispensado tal exigência ou se trate de sentença proferida com base em acordo das partes, nos termos do artigo 41º.
II - Está suficientemente fundamentada a decisão arbitral que enuncia, de forma perfeitamente inteligível e apreensível pelos respetivos destinatários, os fundamentos factuais e normativos da decisão, tornando percetível o iter lógico jurídico seguido na resolução do litígio.
III - Só a falta absoluta de motivação implicará uma nulidade da sentença arbitral, invocável através da ação de anulação.
IV - A decisão da impugnação pelo Tribunal de 2ª Instância é puramente cassatória e não permite que o Tribunal estadual conheça do mérito das questões decididas pela sentença arbitral, conforme decorre do estatuído no artigo 46º, nº 9, da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), anexa à Lei nº 63/2011, de 14 de dezembro