ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
3504/07.OTVLSB.L1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 12/06/2011
SECÇÃO 1. ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO NEGADA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR AZEVEDO RAMOS

DESCRITORES PROCESSO EXECUTIVO
VENDA JUDICIAL
NOTIFICAÇÃO DOS PREFERENTES
COTA
VALOR PROBATÓRIO

SUMÁRIO I – Os titulares do direito de preferência, na alienação dos bens em processo executivo, são notificados para a abertura das propostas, a fim de poderem exercer o seu direito de preferência, no próprio acto.

II – A tal notificação aplicam-se as regras relativas à citação, salvo no que se refere à citação edital, que não terá lugar.

III – Por isso, a notificação devia revestir a forma de contacto pessoal do funcionário judicial com o citando ou de carta registada, com aviso de recepção, nos termos do art. 233, nº2, al. a) e b), do C.P.C., na redacção aqui aplicável.

IV- As “cotas” lavradas no processo são simples registos de ocorrências que interessam aos autos.

V- As “cotas” valem apenas como referenciais, sem serem providas de fé pública ; o seu valor corresponde a um documento particular, não havido como autenticado, sujeito à livre apreciação do tribunal.

VI – Admitem a mais ampla prova, no sentido de um incorrecto cumprimento do acto da secretaria que é noticiado.

VII – Se a “cota” lavrada no processo executivo apenas afirma que determinado preferente foi notificado do dia da abertura das propostas, para a venda de determinado bem, e se não foi junta a certidão de notificação ou o aviso de recepção da notificação postal, subsiste a dúvida sobre se o preferente, que impugnou a notificação, recebeu ou não tal notificação.

VIII – Perante essa dúvida, assiste ao autor o direito de intentar acção de preferência, nos termos gerais.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL

         Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA e mulher BB intentaram a presente acção ordinária contra a ré CC-“C... G... de D..., S.A.”, alegando, em síntese, que:

Por contrato celebrado em 23/9/1993, os AA tomaram de arrendamento uma fracção autónoma, com a letra “L”, com destino à sua habitação, sendo que as respectivas rendas têm sido, desde Maio de 1997, depositadas à ordem do Tribunal, por ordem judicial.

Em 9/5/2007, os AA tomaram conhecimento de que a referida fracção “L”foi adquirida pela CC-CGD, em 14/4/1999, em processo de venda judicial.

Gozam os AA. do direito de preferência, que, por via desta acção, vêm exercer.

Concluem, pedindo:

- Seja reconhecido aos AA o direito de preferência que invocam;

- Seja cancelada a inscrição de aquisição a favor da ré;

- Seja a ré condenada a restituir-lhes todas as rendas depositadas a partir de 14/4/1999, no montante de, pelo menos, EUR 3.000,00.

A acção foi contestada.

A ré defende-se por impugnação e por excepção.

Além do mais, invoca a caducidade da acção, alegando que os autores tiveram conhecimento dos elementos essenciais do negócio em 14/4/99, data da venda, legalmente publicitada, ou, pelo menos, em 2 de Novembro de 2006.

         Houve réplica.

                                                        *

No despacho saneador, julgou-se improcedente a excepção de ilegitimidade passiva e relegou-se o conhecimento das demais excepções para a sentença final.

                                                        *

Mostra-se comprovado o registo da acção (cf. certidão de registo predial de fls. 111).

                                               *

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a ré dos pedidos.

                                                       

                                                        *

Apelaram os autores e a Relação de Lisboa, através do seu Acórdão de 12-4-2011, concedendo parcial provimento ao recurso, decidiu (sic):

- “reconhecer ao autor o direito de preferência invocado e, consequentemente, a sua qualidade de titular do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “...”, correspondente ao primeiro andar, porta “...”, do prédio sito na C... das L..., lote ..., inscrito na matriz urbana     da freguesia de S. J..., sob o art. .... e descrito na ...ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº 00.../0... – ..., da freguesia do Beato;

- ordenar o cancelamento das inscrições prediais a favor da ré, determinando-se a inscrição a favor do autor;

- absolver a ré do pedido formulado pela autora “.

 

                                                        *

         Agora, é a ré CC-C... G... de D..., S.A., que pede revista, onde resumidamente conclui:

         1 – Constitui matéria assente que o recorrido foi notificado no âmbito do processo executivo, através do qual a recorrente adquiriu a propriedade sobre a fracção dos autos, para o exercício do direito de preferência.

         2 – A cota lavrada na execução constitui documento autêntico, por ter sido lavrada por funcionário judicial no exercício das suas competências – art. 363, nº2, do C.P.C.

         3 – Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados – art. 371, nº1, do C.C.

         4 – A presunção de autenticidade pode ser ilidida mediante prova em contrário - art. 370, nº2, do C.C.,

         5 – No caso dos autos, tal elisão não ocorreu, tendo o recorrido apenas afirmado que não recebeu a notificação ali referida.

         6 – Quem tem a seu favor uma presunção legal, não carece de provar o facto que a ela conduz – art. 350, nº1 do C.C.

         7 – Ora, existindo nos autos documento autêntico que comprova que a notificação foi efectivamente feita, do qual emerge uma presunção legal a favor da recorrente, não carece esta de fazer qualquer prova em contrário, antes cabendo ao recorrido ilidir a presunção, demonstrando que o documento autêntico não tem qualquer valor.

         8 – O recorrido limitou-se a afirmar que não recebeu a notificação, não tendo impugnado o valor da cota lavrada nos autos de execução, designadamente impugnando a autenticidade da mesma.

         9 – Donde decorre, sem margem para dúvidas, que a notificação foi efectivamente feita, tanto mais que os seus outros destinatários compareceram no acto da venda.     

         10 – Não é pelo facto de não terem ficado nos autos de execução cópias das notificações feitas aos preferentes que se poderá concluir, como parece decorrer do Acórdão recorrido, que a mesma notificação não revestiu todas as formalidades legais.

         11 – O Acórdão impugnado fez uma incorrecta interpretação e aplicação do direito aos factos, designadamente do disposto nos arts 363, nº2, 371, nº1 370, nº2 e 350, nº1, todos do C.C., pelo que deve ser revogado e substituído por outro que reconheça a inexistência do direito de preferência na esfera jurídica do recorrido, declarando improcedente a acção e absolvendo a recorrente do pedido.     

                                                        *

         O recorrido contra-alegou em defesa do julgado.   

 

                                                        *

Corridos os vistos, cumpre decidir.

                                                        *

         A Relação considerou provados os factos seguintes:

1. Em 23.09.1993, o A. celebrou com a DD-“Sociedade de Construções D... M..., Lda.”, o contrato de arrendamento junto a fls. 13 e 14, relativo à fracção autónoma designada pela letra “L”, correspondente ao ...º andar, porta ..., do prédio sito na C... das L..., lote ..., inscrito na matriz urbana da freguesia de São J... sob o art. ... e descrito na ...ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa no nº 00.../0... – “...”, da freguesia do B..., pelo prazo de cinco anos, com início em 01.11.1993 e termo em 31. 10.1998, considerando-se prorrogado por sucessivos e iguais períodos se não for denunciado, pela renda mensal de Esc.: 100.000$00, actualizada de acordo com os coeficientes legais, a que acrescerá a prestação de condomínio, no valor de Esc.: 10.000$00 (ponto n.º 1 do elenco dos factos assentes);

2. No acordo referido em 1. lia-se “(…) O destino do arrendamento é exclusivamente o de habitação (…)” (teor do escrito de fls. 13 e 14);

3. Por termo datado de 26.02.1997, de que existe cópia a fls. 147,foi penhorada entre outras, a fracção “...” do prédio identificado em 1., no âmbito do Proc. de execução ordinária (hipotecária) n.º .../1996, da 2ª Vara Cível de Lisboa, 3ª Secção, que a CC-C... G... de D..., S.A. move contra à DD-“Sociedade de Construções D... M..., Lda.” (ponto n.º 2 do elenco dos factos assentes);

4. EE-“R... – Estabelecimento de Leilões, Lda.”, enviou ao 1º A. a carta datada de 05.05.1997, junta a fls. 33, com o seguinte teor:

“Exmº. Senhor, Tendo sido nomeado o senhor FF, sócio-gerente desta empresa, depositário do andar que V. Exª. habita, conforme fotocópia do termo de penhora, de que se junta fotocópia, vimos informar V. Exª. de que deverá depositar, na CC-C... G... de D..., a partir desta data, o montante da renda à ordem do Meritíssimo Juiz de Direito da 3ª Secção, do 2° Juízo  cível de Lisboa, Proc. nº .../96, enviando-nos, de seguida, fotocópia da guia de depósito. (…)” (ponto n.º 3 do elenco dos factos assentes);

5. Os AA. depositaram as rendas a partir de Maio de 1997 (ponto n.º 8 do elenco dos factos assentes);

6. A fls. 216, do Proc. .../1996, da 2ª Vara Cível de Lisboa, 3ª Secção, de que existe certidão a fls. 146 a 174, consta o seguinte despacho:

Para venda por proposta em carta fechada, com os valores indicado pela exequente (fls. 214/5), designa-se o próximo dia 14 de Abril, pelas 10,00 horas. Notifique.” (ponto n.º 4 do elenco dos factos assentes);

7. Após o despacho atrás referido, ficou lavrada, no citado processo, a seguinte cota:

“NOT. 23.02.99, Mandt. Exequente e Executado, dos Reclamantes (GG, HH e II) e ainda dos arrendatários referidos a fls. 58 (AA, JJ, LL e MM), de todo o conteúdo do despacho supra com cópia deste e de fls. 215 e ainda ao Mandtº Exeqte. Para proceder à publicação do anúncio cuja minuta enviei. Not. Ainda o depositário judicial do despacho supra e para os efeitos do art. 891º do C. P. Civil. ENT.

Nesta data, editais e cópias ao Sr. Pina, funcionário nesta secretaria.” (ponto n.º 5 do elenco dos factos assentes);

8. A venda da fracção “L” foi publicitada por dois anúncios publicados no “Diário de Notícias” de 10.03.1999 e 11.03.1999, de que exista cópia a fls. 158 (ponto n.º 6 do elenco dos factos assentes);

9. Em 14.04.1999, procedeu-se à abertura das propostas, conforme auto de fls. 159, nos termos do qual, a fracção “L” foi adjudicada à CC-C... G... de D... pelo valor de Esc.: 13.600.000$00 (ponto n.º 7 do elenco dos factos assentes);

10. Em reunião ocorrida nas instalações da R. em 02.11.2006, a R. informou o A. que o preço de venda era de € 163.000,00, tendo o A ficado de pensar e de apresentar uma contra-proposta (resposta ao quesito 5º);

11. O Autor encontrou uma proposta de venda de uma outra fracção do mesmo prédio (resposta ao quesito 8º);

12. A R. enviou ao 1º A. a carta datada de 05.02.2007, junta a fls. 35 e 36, com o seguinte teor:

“Exmº. Senhor,

Na sequência da reunião ocorrida em 02.11.2006, neste serviço, ficou V. Exª de apresentar uma proposta tendo em vista a aquisição da fracção autónoma designada pela letra “F”, correspondente ao 1º andar, letra F, do prédio constituído em propriedade horizontal, sito na C...das L..., lote..., em Lisboa, propriedade da CC-C... G... de D..., S.A., e que ocupa abusivamente.

          Uma vez que até à presente não recepcionamos qualquer comunicação da v/ parte, solicita-se a V. Exª. que, num prazo máximo de 15 (quinze) dias, a contar da data da recepção da presente carta, proceda à sua desocupação e à consequente entrega das respectivas chaves neste Núcleo.

Aproveita-se para informar V. Exª. de que o não cumprimento do prazo acima estabelecido implicará o desencadear por parte da C-CC... de diligências por via  judicial com vista à tomada efectiva de posse da fracção em causa e, consequentemente, ressarcimento dos danos emergentes e lucros cessantes causados desde  14.04.1999 (data da compra por parte da CC-C...) até ao dia em

que se concretizar a efectiva e total desocupação do bem.” (ponto n.º 9 do elenco dos factos assentes);

13. O mandatário dos AA. enviou à R. a carta registada datada de14.02.2007, de que existe cópia a fls. 37 e 38, com o seguinte teor:

“Exmos. Senhores,

Dirijo-me a V. Exa. na qualidade de mandatário do Sr. AA, a quem Vs. Exas. dirigiram a carta em referência. Estranho muito o teor da mesma missiva, uma vez que, conforme vos foi comunicado na reunião de 02/11/2006, o m/ cliente reside na fracção na qualidade de arrendatário desde 1993.

Referem agora, e pela primeira vez, que essa instituição é dona e legítima proprietária da fracção, por a terem adquirido em 14/04/1999, facto que é completamente novo para o m/ constituinte.

Aliás, até agora, sempre esteve o m/ cliente convencido de que a indefinição se devia ao processo de falência da DD-Sociedade de C... D... M..., Lda., seu senhorio.

Assim, com vista ao eventual exercício do direito de preferência do meu constituinte, solicito que me informem quais as condições do negócio de aquisição, com cópia do título de transmissão da propriedade.

Informo ainda que à data da v/ aquisição os m/ constituintes estavam a depositar as rendas na conta nº ..., do v/ balcão da M... S..., conforme ordem do 2º Juízo Cível de Lisboa, 3ª Secção, Proc. .../96, conforme poderão confirmar. (…)” (ponto n.º 11 do elenco dos factos assentes);

14. A R. enviou ao 1º A. a carta registada datada de 27.02.2007, junta a fls. 40, com o seguinte teor:

“Exmº. Sr. Dr.,

Acusamos a recepção da carta enviada por Vexas., datada de 14 de Fevereiro de 2007, que mereceu a nossa melhor atenção.

Na sequência da mesma, cumpre-nos informar V. Exas. que, tal como referimos na nossa missiva de 05/02/2007, esta foi endereçada na sequência de uma reunião tida em 02/11/2007, na qual o seu constituinte manifestou interesse na aquisição do imóvel em causa. Quanto ao mais, solicitamos a V. Exas. que nos seja remetida cópia do contrato de arrendamento, bem como do primeiro e último recibo da renda paga. (…)”(ponto n.º 12 do elenco dos factos assentes);

15. O mandatário dos AA. enviou à R. o fax datado de 06.03.2007, de que existe cópia a fls. 42, com o seguinte teor:

“Exma. Colega:

Acuso a recepção da v/ carta de 27/02/2007, que agradeço,

Em resposta ao solicitado, junto remeto cópia do contrato de arrendamento, do talão de depósito do mês da transmissão de propriedade, que interessa ao caso, bem como da carta que ordenou o depósito na v/ instituição bancária.

         Solicito-lhe assim o envio, com urgência, do título de transmissão de propriedade. (…)”(ponto n.º 12 do elenco dos factos assentes);

16. A R. enviou ao mandatário dos AA., a carta datada de 27.06.2007, junta a fls. 44, com o seguinte teor:

         “Temos presente a vossa carta que nos causou a maior perplexidade, uma vez que está perfeitamente documentado que o cliente de V. Exª. teve cabal conhecimento do processo de execução no âmbito do qual esta instituição adquiriu a fracção ocupada.

         De resto, foi na sequência de uma notificação que teve lugar no âmbito da mesma execução, datada de 05.05.1997, que o Sr.. AA passou a depositar rendas na CC-C... G... de D... à ordem do Meritíssimo Juiz do processo.

Aliás, na reunião que teve lugar nesta instituição em 02.11.2006, o

cliente de V. Exª., não só não manifestou qualquer surpresa pelo facto de a CC-C... G... de D... ser a proprietária da fracção, como se revelou um perfeito conhecedor das circunstâncias e termos em que a aquisição teve lugar.

Assim, não aceitando e não reconhecendo, embora, os pressupostos em que assenta a solicitação de V. Exª., juntamos cópia do título de aquisição da fracção em causa.

Finalmente, a CC-C... G... de D... insiste na imediata desocupação da fracção por parte do cliente de V. Exª, uma vez que o mesmo não tem qualquer título oponível a esta instituição. (…)” (ponto n.º 13 do elenco dos factos assentes);

17. A petição inicial da presente acção entrou em juízo em 24 de Julho de 2007 (teor de fls. 2 do presentes autos);

18. Em 31.07.2007, os AA. efectuaram um depósito autónomo de EUR 67.836,51 (ponto n.º 14 do elenco dos factos assentes).

                                                        *

         A questão a decidir consiste unicamente em saber se, face à referida “cota”, lavrada a fls 216, do aludido Proc. .../1996, da 3ª Secção, da 2ª Vara Cível de Lisboa, constante da certidão de fls 119 e segs destes autos, o autor se deve considerar devidamente notificado do dia e hora judicialmente marcado para abertura das propostas em carta fechada, a fim de poder exercer o seu direito de preferência no acto da venda da mencionada fracção “L”, de que era arrendatário habitacional há mais de um ano.

                                                        *

         Vejamos:

         O art. 892 do C.P.C. (na redacção anterior às alterações introduzidas pelo dec-lei nº 38/2003, de 8 de Março), subordinado à epígrafe “Notificação dos preferentes “, dispõe o seguinte:

         “1- Os titulares do direito de preferência na alienação dos bens são notificados para abertura das propostas, a fim de poderem exercer o seu direito no próprio acto, se alguma proposta for aceite.

          2 – A falta de notificação tem a mesma consequência que a falta de notificação ou aviso prévio na venda particular.

          3 – À notificação prevista no nº1 aplicam-se as regras relativas à citação, salvo no que se refere à citação edital, que não terá lugar.    

          4 – A frustração da notificação do preferente não preclude a possibilidade de propor acção de preferência, nos termos gerais”.

           

         O objectivo deste preceito é o de ficar definida, na execução, em princípio, a questão do eventual direito de preferência, evitando-se futuros litígios.

         Tal notificação tem finalidade idêntica à da comunicação prevista no art. 416 do C.C., que é imposta ao obrigado à preferência.

         Notificado o titular da preferência, na execução, ele deve comparecer na abertura das propostas, para aí exercer o seu direito de preferência, sob pena de caducidade.

         Por força do citado art. 892, nº2, do C.C. a omissão da notificação equivale à falta da referida comunicação, ficando o preferente com o direito de intentar a respectiva acção no prazo legal, previsto no art. 1410, nº1, do C.C.

         Aplicando-se à notificação em questão as regras relativas à citação (salvo no que se refere à citação edital, que não terá lugar), tal notificação devia ser efectuada por carta registada com aviso de recepção ou por contacto pessoal do funcionário judicial com o citando, nos termos do art. 233, nº2, al. a) e b) do C.P.C., na redacção anterior ao dec-lei 183/2000, de 10 de Agosto, vigente à data dos factos.  

         No caso concreto, a recorrente sustenta que a notificação do recorrido se mostra efectuada, em virtude da “cota” que foi lavrada no processo de execução e cujo teor consta do nº7 do anterior elenco dos factos provados, “cota” essa que considera ter o valor probatório de documento autêntico.

         Só que tal matéria da notificação, através da referida cota,  não foi alegada nos articulados, designadamente na contestação da ré.

         Daí que o autor ficasse impedido de a impugnar ou discutir na réplica, sendo certo que na petição inicial (art. 29º) o autor apenas produziu a afirmação genérica de que “não houve por parte da ré, nem por parte de ninguém, a comunicação com vista ao eventual exercício do direito de preferência previsto na lei”. 

         Com efeito, tal matéria da “cota” só veio aos autos, por iniciativa do Ex-mo Juiz que, já após o termo dos articulados, determinou que se oficiasse à 3ª Secção, da 2ª Vara Cível de Lisboa, Proc. .../96, a pedir informação sobre se o autor havia sido notificado para os fins do art. 892 e, em caso afirmativo, em que data tal ocorreu.

          Então, a  3ª Secção, da 2ª Vara Cível de Lisboa, remeteu a certidão constante de fls 119 e segs destes autos, donde constam o despacho e a cota que constituem os nºs 6º e 7º do anterior elenco dos factos provados.

         Notificado da junção dessa certidão, logo o autor veio impugnar o seu valor, dizendo o seguinte, na parte que agora interessa considerar (fls 127):

         “ 1 - Não é verdade que os autores tenham sido notificados, em Fevereiro de 1999 ou em qualquer outra data, do teor de fls 119, nem por qualquer outra forma, para procederem, querendo, ao exercício do direito de preferência, nem tal resulta dos documentos ora juntos.

            2- Caso assim seja entendido, poderá ser requerido aos autos da 2ª Vara a junção do comprovativo da notificação postal ou pessoal, referida na cota de fls 119, que impugna para todos os efeitos “.

         Ora, as “cotas” são simples registos, notas ou apontamentos de ocorrências que interessam ao processo (Alberto dos Reis, Comentário do Código do Processo Civil, Vol. 2º, pág. 201).

         A “cota” noticia o cumprimento de um acto de expediente da secretaria.

         No caso de se referir a uma notificação postal, deve juntar-se o recibo do registo postal, o que é bem elucidativo no sentido de não valer como prova plena da notificação.

         Já se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-2-94 (Bol. 434-574) “que as “cotas” valem apenas como referenciais, sem serem providas de fé pública ; o seu valor corresponderá a um documento particular, não havido como autenticado, sujeito à livre apreciação do tribunal.

         Admitem, portanto, a mais ampla prova no sentido de um incorrecto cumprimento do acto da secretaria que é noticiado.

         Porém, à parte que afirme a não correspondência da “cota” com o que efectivamente aconteceu, não basta afirmá-lo – tem que convencer o tribunal que assim foi”.        

         Não vemos razão para deixar de seguir esta jurisprudência, que foi reafirmada nos Acórdãos do S.T.J. de 26-4-95 (Bol. 446-201) e de 8-4-08 (Col. Ac. S.T.J., XVI, 2º, 20), este último relatado pelo mesmo Relator e subscrito pelos mesmos Ex.mos Adjuntos.

         No caso dos autos, apenas se provou que, no processo executivo, foram lavrados o despacho e a “cota” com o teor de fls 119 (nºs 6 e 7º do elenco dos factos provados).

          Todavia, não se provou que a notificação fosse efectuada por contacto pessoal do funcionário judicial com o autor, ou através de carta registada com aviso de recepção, já que não constam dos autos a respectiva certidão de notificação ou o aviso de recepção da carta.  

         Só através de qualquer um desses meios, exigidos por lei,  podia haver a certeza do autor ter sido legal e efectivamente notificado – art. 892, nº3, e 233, nº2, al. a) e b), do C.P.C., na aludida redacção.

         O uso de mera notificação postal, sem registo, como parece resultar da “cota”, contraria a lei e não confere essa certeza, tanto mais que o autor impugnou a recepção dessa notificação. 

         Não tendo sido observadas estas formalidades legais da notificação, a responsabilidade pelo seu incumprimento só pode ser atribuída ao tribunal, não podendo recair sobre o autor.

         De nada vale argumentar que foi considerado “não provado“ o quesito 2º da base instrutória, onde se perguntava se os autores não receberam a questionada notificação.

         É que a resposta negativa a um quesito apenas significa não se ter provado o facto quesitado, e não que se tenha demonstrado o facto contrário.

         O que acontece é que, para este efeito, tudo se passa como se o facto não tivesse sido articulado.

         A dúvida sobre se o autor recebeu ou não a notificação subsiste.

         Assim sendo, assiste ao autor o direito de intentar acção de preferência, nos termos gerais.   

         Improcedem, pois, as conclusões do recurso.

                                                        *

         Verifica-se, porém, que existe um lapso de escrita na parte decisória do Acórdão proferido pela Relação, quanto à identificação da fracção autónoma objecto da preferência, correspondente ao 1º andar, porta “F”, do prédio sito na C... das L..., lote ..., inscrito na matriz urbana da freguesia de S... J..., sob o art. ... e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº .../..., da freguesia do B..., que tem a letra “L”, e não a letra “I”, como por lapso consta da referida parte decisória do Acórdão recorrido.

         Por se tratar de simples erro de escrita, rectifica-se agora tal erro, ao abrigo do art. 249 do C.C., para efeito de passar a constar, da parte decisória, a referência à letra “L”, em vez da menção da letra “I”.

                                                        *

         Termos em que negam a revista, confirmando o Acórdão recorrido, com a sobredita fundamentação,  e, após a mencionada rectificação, na parte decisória do mesmo Acórdão da Relação, decidem ficar a valer o seguinte :

         - reconhecer ao autor o direito de preferência invocado e, consequentemente, a sua qualidade de titular do direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “L”, correspondente ao primeiro andar, porta “F”, do prédio sito na C... das L..., lote ..., inscrito na matriz urbana da freguesia de S... J... sob o artigo ... e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº .../... – L, da freguesia do Beato;  

         - ordenar o cancelamento das inscrições prediais a favor da ré, determinando-se a inscrição a favor do autor:

         - absolver a ré do pedido formulado pela autora. 

         Custas pela recorrente.

      Lisboa, 6-12-2011

Azevedo Ramos (Relator)

Silva Salazar

Nuno Cameira