ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
706/10.6PHLSB.S1
DATA DO ACÓRDÃO 12/15/2011
SECÇÃO 5ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL RECURSO PENAL
DECISÃO PROVIDO PARCIALMENTE
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR RODRIGUES DA COSTA

DESCRITORES CULPA
FACA
FINS DAS PENAS
HOMICÍDIO
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO ESPECIAL
PREVENÇÃO GERAL
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA DUPLA VALORAÇÃO
TENTATIVA

SUMÁRIO

I - A determinação da pena concreta obedece a parâmetros rigorosos que têm como elementos nucleares de referência a prevenção e a culpa ─ cf. n.ºs 1 e 2 do art. 71.º do CP.
II - Ao elemento prevenção, no sentido de prevenção geral positiva ou de integração, vai-se buscar o objectivo de tutela dos bens jurídicos, erigido como finalidade primeira da aplicação de qualquer pena, na esteira de opções hoje prevalecentes a nível de política criminal e plasmadas na lei, mas sem esquecer também a vertente da prevenção especial ou de socialização, ou, segundo os termos legais: a reintegração do agente na sociedade (cf. art. 40.º, n.º 1, do CP).
III - Ao elemento culpa, enquanto traduzindo a vertente pessoal do crime, a marca, documentada no facto, da singular personalidade do agente (com a sua autonomia volitiva e a sua radical liberdade de fazer opções e de escolher determinados caminhos) pede-se que imponha um limite às exigências, porventura expansivas em demasia, de prevenção geral, sob pena de o condenado servir de instrumento a tais exigências.
IV - A medida da tutela dos bens jurídicos, como finalidade primeira da aplicação da pena, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime. Entre esses limites devem satisfazer-se, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva.
V - Os factores a que a lei manda atender para a determinação concreta da pena são os que vêm indicados no n.º 2 do art. 71.º do CP e (visto que tal enumeração não é exaustiva) outros que sejam relevantes do ponto de vista da prevenção e da culpa, mas que não façam parte do tipo legal de crime, sob pena de infracção do princípio da proibição da dupla valoração.
VI - O arguido foi condenado pela prática de dois crimes de homicídio, na forma tentada, dos arts. 131.º, n.º 1, 22.º, 23.º, n.ºs 1 e 2, e 73.º, n.º 1, als. a) e b), todos do CP, na pena de 6 anos de prisão por cada um deles e, em cumulo jurídico, na pena única de 8 anos de prisão, porquanto no dia 05-11-2010, munido de uma faca de cozinha, desferiu 2 golpes na zona do abdómen do ofendido A, ao mesmo tempo em que lhe dizia “tu já estás”, vindo, de seguida, a dirigir-se ao ofendido B e, sem lhe dirigir qualquer palavra, desferiu-lhe violento golpe na zona do abdómen, enquanto dizia “e tu também já estás”.
VII - O tribunal de 1.ª instância hipervalorizou a ilicitude dos factos, considerando-a “extremamente elevada”, quando, na realidade, essa ilicitude é acentuada, mas sem revestir um grau muito elevado e, muito menos, extremo. Também não se valorizaram devidamente aspectos que têm a ver com o processo de socialização do arguido (agregado familiar numeroso, precárias condições sócio-económicas, morte do progenitor quando era de tenra idade, emigração na tentativa de melhorar as suas condições materiais) e que condicionaram a sua personalidade em sentido negativo, mas que, sendo de origem exógena e não dependentes da sua vontade, têm reflexo na culpa, já que traduzem condicionamentos que normalmente dificultam a adesão aos valores e padrões sociais da sã convivência. Tendo em atenção esses factores, a pena mais ajustada para cada um dos crimes de homicídio tentado é a de 5 anos de prisão.
VIII - Em cúmulo jurídico das penas aplicadas, considerando que os factos tiveram lugar na mesma ocasião e são fundamentalmente idênticos, agredindo o mesmo e mais importante bem jurídico (a vida) e traduzindo uma ilicitude global que é aumentada pela repetição da conduta, sem contudo evidenciar uma tendência para a prática destes crimes, a pena única mais adequada é a de 7 anos de prisão.





DECISÃO TEXTO INTEGRAL
           

            I. RELATÓRIO

            1. Na 4.ª Vara Criminal de Lisboa, no âmbito do processo comum colectivo n.º 706-10.6PHLSB, foi julgado o arguido AA, identificado nos autos e condenado pela prática de dois crimes de homicídio simples, na forma de tentativa, previstos e punidos pelos artigos 131., n.º 1, 22.º, 23.º, n.ºs 1 e 2 e 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), todos do Código Penal (CP), na pena de 6 anos de prisão por cada um deles e, em cúmulo jurídico dessas penas, na pena única de 8 anos de prisão.

            2. Inconformado, o arguido interpôs recurso directo para este Tribunal, concluindo a sua motivação da forma seguinte:

            1. Os atos do arguido decorreram no âmbito de uma discussão, de um desentendimento, entre o arguido e um grupo de cidadãos de origem indiana, Não tendo sido — ao contrário do afirmado no acórdão — atos efetuados com facilidade e frieza, antes atos praticados no calor de uma discussão, que implica sempre alteração de condições psicológicas, para pior e no sentido de descontrolo e agressividade.

2. O arguido era, à data dos factos, dependente de álcool e praticou os atos (aparentando (e isso foi notado por todos aqueles com quem discutiu, que o ignoraram por isso mesmo) estar influenciado por bebidas alcoólicas, o que diminui a sua culpa, por estar o seu entendimento toldado, sendo certo que não se provou que o arguido se colocou nesse estado propositadamente para vir a praticar os atos dos autos, nem que anteriormente alguma vez o arguido tivesse agido com violência sob influência do álcool.

3. O arguido efetuou os ilícitos com uma arma de oportunidade, um objeto corriqueiro, de uso corrente e normal, não com um artefacto especificamente destinado a ferir ou matar, uma simples e prosaica faca de cozinha.

4. Tendo embora o arguido já sido condenado por vários crimes, nenhum dos crimes que anteriormente cometeu foram crimes contra a vida ou a integridade física.

5. A medida das penas parcelares deverá, com maior justiça e equilíbrio, ser fixada em 3 anos e 6 meses por cada crime de homicídio tentado, devendo fixar-se o cúmulo jurídico em cinco anos de prisão.

6. Ao fixar as medidas das penas parcelares e do cúmulo na dimensão em que o fez, o Tribunal Coletivo violou, por erro de interpretação, considerando em desfavor do arguido, e em medida exagerada, circunstâncias que como tal não devem ser consideradas, ou não o devem ser em tanto desfavor como foi feito, o art. 7l.º do CP e, em conjunto, os arts. 131., n.2 1, 22., 23., n.s 1 e 2, 73, n. 1, als. a) e b) e 77.º do Código Penal, normas essas que deveriam ter sido interpretadas e aplicadas no sentido de fixar, não as medidas das penas fixadas pelo Tribunal Coletivo, mas as propostas pelo recorrente nesta motivação.

Termina pedindo que seja dado provimento ao recurso e, em consequência, alterada a decisão recorrida.

3. Respondeu o Ministério Público junto do tribunal “a quo”, concluindo no sentido de se lhe não afigurar merecer provimento o recurso.

4. No Supremo Tribunal de Justiça, o Ministério Público apôs o seu visto.

5. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para discussão e deliberação, não tendo sido requerida a audiência de julgamento.

II. FUNDAMENTAÇÃO

6. Matéria de facto

6.1. Factos dados como provados:

Na noite de 05/11/2010, na Rua do Benformoso, em Lisboa, ocorreu um desentendimento entre o arguido e alguns indivíduos indianos, por motivos não esclarecidos.

Na noite de 5/11/2010, antes das 22h36m, na referida Rua do Benformoso, em frente ao n° 228, o arguido munido de uma faca de cozinha, de características não concretamente apuradas, que guardou num dos bolsos da roupa que vestia, dirigíu-se a um grupo de indianos que ali estava a conviver e começou a discutir com eles, não tendo nenhum dos indivíduos indianos respondido ou dado qualquer atenção ao que o arguido lhes disse, por se terem apercebido que o mesmo aparentemente se encontrava influenciado por bebidas alcoólicas.

Nesse grupo de indivíduos indianos encontrava-se o ofendido BB. A dado momento o arguido dirigiu-se ao ofendidoBB e, sem qualquer justificação começou a discutir com o mesmo.

Então, o ofendido CC, que é proprietário de uma pequena loja sita no referido n° 228 da mencionada Rua do Benformoso, saiu do interior do seu estabelecimento e ao aperceber-se da discussão que decorria entre o arguido e o ofendido BB, dirigiu-se para junto destes e tentou terminar com a discussão, proferindo a seguinte expressão: "vão os dois para casa que não quero aqui mais discussão", e dirigindo-se ao arguido, num tom calmo disse-lhe - "Vá-se embora, vá descansar".

O arguido, no seguimento daquelas palavras do ofendido CC, empunhou a referida faca que tinha num dos bolsos da roupa que trajava, dirigiu-se ao mesmo e desferiu com violência dois golpes, atingindo-o na zona do abdómen, ao mesmo tempo que dizia para o referido ofendido CC :"tu já estás".

De seguida, sempre empunhando a referida faca, dirigiu-se ao ofendido BB, que na altura se encontrava a cerca de dois metros, encostado a um veículo automóvel e, sem lhe dirigir qualquer palavra, desferiu-lhe violento golpe na zona do abdómen com a faca dizendo; " e tu também já estás".

Nenhum dos ofendidos emitiu qualquer som quando foram agredidos e a única reacção que tiveram foi cambalear até que se conseguiram encostar à parede mais próxima, até que decorridos alguns momentos começaram a desfalecer tombando para o chão.

O arguido após praticar os factos descritos retirou-se para a sua residência, sita no n° 218 -2.º da referida rua do Benformoso.

Os ofendidos vieram a ser assistidos por pessoas que se encontravam na referida rua que de imediato se aproximaram e diligenciaram no sentido de lhes ser prestado auxílio, tendo sido transportados para o Hospital de S José e, posteriormente, para o Hospital de Santo António dos Capuchos, para serem submetidos a cirurgias.

Com consequência dos dois violentos golpes desferidos pelo arguido com a mencionada faca sofreu o ofendido CC as lesões melhor descritas e examinadas na perícia de avaliação de dano corporal, do INML, de fls. 104 a 106 e 304 a 307, aqui dado por reproduzido, designadamente, "ferida penetrante do quadrante inferior direito do abdómen com cerca de 2-3 cm de diâmetro", tendo sido transferido para cirurgia, por revelar hemorragia grave e choque, "laparotomia mediana, hemoperitoneu por ferida da veia cava, feridas ileais, enterorrafías e laparorrafia", que lhe demandaram directa e necessariamente um período de doença fixável em 60 dias, sendo 20 dias com afectação da capacidade para o trabalho geral e 60 dias com afectação da capacidade para o trabalho profissional, tendo estado internado até ao dia 22.11.2010.

Como consequência do golpe desferido pelo arguido com a mencionada faca sofreu o ofendido BB as lesões melhor descritas e examinadas na perícia de avaliação de dano corporal, do INML, de fls, 187 a 189 e 292 a 295, aqui dados por reproduzidos, designadamente, ferida penetrante da região inguinal direita provocando lesão transfixiva extramucosa da bexiga e ferida do cólon sigmóide (hemoperitoneu de 1 000 cc), pelo que necessitou de ser submetido a intervenção cirúrgica no Hospital de Santo António dos Capuchos, que lhe demandaram directa e necessariamente um período de doença fixável em 45 dias, todos com afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional, tendo estado internado até ao dia 15/11/2010.

O arguido ao desferir os golpes com a mencionada faca nos ofendidos, tendo em conta o meio utilizado, uma arma branca, a zona dos corpos para que dirigiu e atingiu os mesmos - abdómen, que como é sabido aloja órgãos essenciais à vida - pretendeu causar-lhes a morte, o que só não conseguiu por motivos estranhos á sua vontade, devido á assistência atempada e qualificada em meio hospitalar, recebida pelos mesmos.

O arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

Conforme resulta do CRC do arguido que faz fls. 427 a 431 dos autos e aqui se dá por reproduzido, o mesmo foi já julgado pela prática do crime de violação na forma tentada e resistência e coacção sobre funcionário, tendo sido condenado na pena única de três anos de prisão, pela prática do crime do crime de tráfico de produtos estupefacientes tendo sido condenado na pena de cinco anos e dez meses de prisão e pela prática do crime de falsificação de documentos na pena de um ano e seis meses de prisão.

Conforme decorre do relatório social do arguido que faz fls. 420 a 425 dos autos, e aqui se dá por integralmente reproduzido, o arguido à data da prática dos factos vivia com uma companheira, ocupando-se profissionalmente a fazer "biscates e ingeria bebidas alcoólicas em excesso o que condicionava a sua vida familiar bem como a sua saúde.

Factos provados do pedido Cível (para além dos supra referidos):

A Assistência prestada pelo Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E., a BB, e os treze dias de internamento, conforme resulta do doc. n.° l, que faz fls. 361 dos autos e aqui se dá por integralmente reproduzido, tem o preço total de 7.984,56 Euros;

A Assistência prestada pelo Centro Hospitalar de Lisboa Central, E.P.E., a CC, e os dezassete dias de internamento, conforme resulta do doc. n° 2, que faz fls. 362 dos autos e aqui se dá por integralmente reproduzido, tem o preço total de 7.354,75 Euros;

6.2. Factos dados como não provados:

Não se provou que:

O arguido na prática dos factos descritos na factualidade assente utilizou a faca apreendida nos autos e descrita a fls. 37, 99 elOO e praticou tais factos pelas 00h25 do dia 6/11/2010.

7. Questões a decidir:

A medida da pena de cada um dos crimes e da pena única.

7.1. A determinação da pena concreta, como se sabe, obedece a parâmetros rigorosos, que têm como elementos nucleares de referência a prevenção  e a culpa, tudo nos termos dos números 1 e 2 do art. 71.º do CP.

            Ao elemento prevenção, no sentido de prevenção geral positiva ou de integração, vai-se buscar o objectivo de tutela dos bens jurídicos, erigido como finalidade primeira da aplicação de qualquer pena, na esteira de opções hoje prevalecentes a nível de política criminal e plasmadas na lei, mas sem esquecer também a vertente da prevenção especial ou de socialização, ou, segundo os termos legais: a reintegração do agente na sociedade  (art. 40.º n.º 1 do CP).

            Ao elemento culpa, enquanto traduzindo a vertente pessoal do crime, a marca, documentada no facto, da singular personalidade do agente (com a sua autonomia volitiva e a sua radical liberdade de fazer opções e de escolher determinados caminhos) pede-se que imponha um limite às exigências, porventura expansivas em demasia, de prevenção geral, sob pena de o condenado servir de instrumento a tais exigências.

            Neste sentido é que se diz que a medida da tutela dos bens jurídicos, como finalidade primeira da aplicação da pena, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime. Entre esses limites devem satisfazer-se, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização (Cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas Do Crime, Editorial de Notícias, pp. 227 e ss.).
Quer isto dizer que as exigências de prevenção traçam, entre aqueles limites óptimo e mínimo, uma submoldura que se inscreve na moldura abstracta correspondente ao tipo legal de crime e que é definida a partir das circunstâncias relevantes para tal efeito e encontrando na culpa uma função limitadora  do máximo de pena. Entre tais limites é que vão actuar, justamente, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, cabendo a esta determinar em último termo a medida da pena, evitando, em toda a extensão possível (...) a quebra da inserção social do agente e dando azo à sua reintegração na sociedade (FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 231).
Ora, os factores a que a lei manda atender para a determinação concreta da pena são os que vêm indicados no referido n.º 2 do art. 71.º do CP e (visto que tal enumeração não é exaustiva) outros que sejam relevantes do ponto de vista da prevenção e da culpa, mas que não façam parte do tipo legal de crime, sob pena de infracção do princípio da proibição da dupla valoração.

O recurso foi interposto directamente da 1.ª instância para o STJ nos termos do art. 432.º, n.º 1, alínea c) do CPP, pois as penas aplicadas (quer as singulares, quer a pena única) foram fixadas em medida superior a 5 anos de prisão e a revisão de tais  penas traduz-se indubitavelmente na aplicação de matéria de direito. Os poderes cognitivos do STJ, como se sabe, abrangem, no tocante a esta matéria, entre outras, a avaliação dos factores que devam considerar-se relevantes para a determinação da pena: a questão do limite ou da moldura da culpa, a actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e também o quantum da pena, ao menos quando se mostrarem violadas regras da experiência ou quando a quantificação operada se revelar de todo desproporcionada (Cf. FIGUEIREDO DIAS, Ob. Cit., p. 197).

Ora, é precisamente no referente ao quantum aplicado que o recorrente mostra a sua discordância, pretendendo o abaixamento de cada uma das penas singulares para 3 anos e 6 meses de prisão e a fixação da pena única em 5 anos de prisão.

Alega que os factos decorreram no âmbito de uma discussão, o que excluiria a facilidade e frieza de actuação, a sua dependência do álcool e a circunstância de estar influenciado pela bebida alcoólica, não se tendo provado que esse estado tivesse sido propositadamente procurado, a utilização de uma arma de oportunidade, um objecto corriqueiro de uso normal, a ausência de antecedentes criminais contra a vida ou a integridade física.

A decisão recorrida é parca na fundamentação da medida da pena:

Na determinação da medida das penas de prisão, a aplicar ao arguido atender-se-à gravidade dos ilícitos praticados, à culpa do agente a apurar em função das atenuantes e agravantes gerais às finalidades de prevenção geral e especial evidenciadas no caso, tudo conforme art°71° do Cod. Penal.

Assim nos termos desta última disposição legal é tido em conta relativamente ao arguido:

- A ilicitude da sua conduta, que se considera extremamente elevada, tendo em conta a forma como o arguido levou a cabo a sua conduta, bem como a facilidade e frieza com que actuou revelando um enorme desprezo pela vida humana e pelo sofrimento das vítimas (cf. ai. a) do n°2 do art°71 do Cód. Penal);

- A intensidade do dolo (que foi directo) (cfr. ai. b) do n°2 do art° 71 do CP);

- As   circunstâncias   em   que   os   factos   ocorreram   e   as   suas consequências;

- O teor do CRC do arguido, donde resulta ter já sido condenado e cumprido penas de prisão efectiva;

- A situação social, profissional, económica e familiar do arguido, bem como a sua dependência de álcool à data dos factos.

Atentas as agravantes e atenuantes expostas e as finalidades preventivas da pena e tendo em conta as exigências de prevenção geral e especial, evidenciados no caso, que se consideram elevadas, o Tribunal entende adequado condenar o arguido pela prática de cada um dos crimes de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelo art° 131º n°l, 22°, 23° n°s 1 e 2 e 73° n°l al.s a) e b) todos do Código Penal, na pena de seis anos de prisão.

 Ora, a ilicitude é acentuada, tendo em vista a gravidade das ofensas, as consequências que dela derivaram e o modo de actuação do arguido. É preciso considerar, no entanto, que há casos bem mais graves de homicídios tentados e com mais nefastas consequências. O modo de actuação do arguido é que revestiu uma elevada gravidade, pois os ofendidos encontravam-se num grupo a conviver e o arguido entrou a discutir com eles, que todavia não lhe ligaram importância, à vista dos sinais alcoólicos que aquele apresentava, tendo inclusive um deles tentado evitar o confronto, aconselhando o arguido a ir-se embora e descansar. A resposta deste foi vibrar, com a faca de cozinha que trazia consigo, dois golpes com violência na zona do abdómen desse ofendido. Seguidamente, dirigindo-se ao outro ofendido, com quem inicialmente começara a discutir sem qualquer justificação, e desferiu-lhe um violento golpe na mesma região corporal.

Alega o arguido na sua motivação de recurso que os factos ocorreram no âmbito de uma discussão. E, na verdade, consta logo no primeiro facto que «na noite de 05/11/2010, ocorreu um desentendimento entre o arguido e alguns indivíduos indianos, por motivos não esclarecidos». Porém, releva-se nos factos seguintes que o arguido se dirigiu a um grupo de indianos que convivia pacificamente e começou a discutir com eles, virando depois a sua animosidade para o ofendido BB e começando a discutir com ele “sem qualquer justificação”, momento em que o ofendido CC saiu da sua pequena loja para intervir, aconselhando calma. Este foi a primeira vítima e o ofendido BB, a segunda.

Ora, como se vê, não havia razão para o arguido os ter agredido, tendo sido ele a desencadear a discussão com todos e depois, sem nada que o justificasse, com o ofendido BB, vindo a atingir com a faca primeiramente o ofendido CC, que nem sequer se encontrava no grupo, mas unicamente apareceu para evitar qualquer confronto.

Por conseguinte, não se pode dizer que as agressões tivessem ocorrido no calor de uma discussão e, muito menos, que as vítimas estivessem no centro dessa discussão. O arguido demonstrou, pois, uma personalidade agressiva – factor que releva sobretudo em termos de culpa, por revelar aspectos desvaliosos da personalidade.

O facto de o arguido ser dependente do álcool (“ingeria bebidas alcoólicas em excesso, o que condicionava a sua vida familiar, bem como a sua saúde”, segundo o relatório social e os factos provados) e de se encontrar, na noite da ocorrência, “aparentemente influenciado por bebidas alcoólicas” não atenua a sua responsabilidade. Em primeiro lugar, porque não ficou provado que ele estivesse num estado que lhe diminuísse a capacidade para inteligir o sentido dos seus actos, formulando sobre eles um adequado juízo ético-social e ético-jurídico, e para se determinar de acordo com esse juízo. Pelo contrário: ficou provado que ele agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que os seus actos eram proibidos e punidos por lei.

Em segundo lugar, porque se o arguido consumia “bebidas alcoólicas em excesso, o que condicionava a sua vida familiar, bem como a sua saúde”, a verdade é que, segundo o relatório social, dado como integrado na matéria provada, perante o “abuso de álcool” demonstrou «uma postura de desvalorização do mesmo, não aparentando qualquer motivação para aderir a um tratamento de desintoxicação» - o que pode revelar culpa pela modelação do seu comportamento no que diz respeito a esse particular modo de manifestação de anti-socialidade, principalmente quando  ela se revele na prática de factos lesivos de bens jurídicos protegidos pelas normas criminais.

De qualquer modo, no caso concreto, provou-se que o estado de “aparentemente influenciado por bebidas alcoólicas” não afectou a sua capacidade para se determinar voluntária e livremente, tendo agido com dolo directo – a forma mais grave de culpa.

Relativamente a ter usado «uma arma de oportunidade, um objecto corriqueiro, de uso corrente e normal», tal circunstância também não tem consequências algumas a nível da atenuação da culpa ou da ilicitude. A arma, embora sendo uma vulgar faca de cozinha, sempre era um instrumento apto a ferir e a causar a morte.

Quanto à ausência de antecedentes criminais no domínio da prática de factos típicos contra a vida ou a integridade física, não tem, igualmente, qualquer relevância. O que conta é um passado criminal limpo, isento da prática de qualquer ilícito criminal e não a «estreia» em determinado tipo legal de crime. Se assim fosse, chegar-se-ia ao absurdo de considerar como atenuante o facto de um indivíduo, tendo embora praticado antes vários crimes, ser um iniciado em determinado tipo de delito. No caso, o arguido foi, por sinal, condenado anteriormente por uma série de crimes de certa gravidade – violação na forma tentada, resistência e coacção sobre funcionário, tráfico de estupefacientes, falsificação de documentos.

A tudo isto deve acrescentar-se que as exigências de prevenção são bastante acentuadas, quer no âmbito da prevenção geral, quer especial. Na verdade, os crimes em causa nestes autos ofendem bens jurídicos de primeira grandeza (contra a vida), suscitando justificado alarme social e fazendo subir a fasquia das exigências comunitárias na manutenção e reforço das normas jurídicas violadas. Por outro lado, a carência de socialização do arguido é manifesta, decorrendo do relatório social dificuldade em assumir os seus comportamentos, imputando a terceiros a sua responsabilidade, concluindo-se, entre o mais, que «as lacunas apresentadas ao nível da capacidade de desenvolvimento de postura reflexiva e de uma atitude crítica face ao seu percurso de vida e um fraco empenho para uma mudança são factores que poderão antever risco de reincidência».

Ainda assim, cremos que as penas aplicadas pelos crimes singulares se mostram desajustadas e algo excessivas. Isto porque o tribunal de 1.ª instância hipervalorizou a ilicitude dos factos, considerando-a “extremamente elevada”, quando, na realidade, como nos esforçamos por demonstrar, essa ilicitude é acentuada, sem revestir um grau muito elevado e, muito menos, extremo.

A forma como o arguido actuou, principalmente no que traduz aspectos desvaliosos da personalidade manifestados no facto, tem mais a ver com a culpa e, eventualmente, também, com a prevenção especial.

Por outro lado, não se valorizaram devidamente aspectos pessoais que resultam do relatório social e que têm a ver com o processo de socialização do arguido – agregado familiar numeroso, condições muito precárias do ponto de vista sócio-económico e relacional, morte do progenitor quando era de tenra idade, insucesso escolar, emigração para a Venezuela com a mãe e alguns irmãos e, mais tarde, já sozinho, para França, Suíça e Espanha, sempre na tentativa de melhorar as suas condições materiais de existência, partilha de vida, no continente, com uma irmã e um cunhado, ambos portadores de HIV - circunstâncias que necessariamente condicionaram a sua personalidade em sentido negativo, sobretudo na fase da sua formação, e pelas quais, sendo as mesmas de ordem exógena e não dependentes da sua vontade, não pode ser responsável. Essas circunstâncias, se se  traduzem em carência de socialização, por falhanço das várias instâncias institucionais, têm reflexo na culpa, na medida em que se traduzem em condicionamentos internos que normalmente dificultam a adesão aos valores e padrões sociais da sã convivência.

Tendo, pois, em atenção esses factores, entende-se que a pena mais ajustada para cada um dos crimes de homicídio tentado - considerando os limites mínimo de 1 ano, 7 meses e 6 dias e máximo de 10 anos e 8 meses de prisão, nos termos do art. 73.º, n.º 1 alíneas a) e b), por referência ao art. 131.º do CP - será a de 5 (cinco) anos de prisão.

7.2. Em cúmulo jurídico das penas aplicadas, considerando, nos termos do art. 77.º, n.ºs 1 e 2 do CP, que os factos cometidos tiveram lugar na mesma ocasião e são fundamentalmente idênticos, agredindo o mesmo e mais importante bem jurídico – a vida – e traduzindo uma ilicitude global que é aumentada pela repetição da conduta, sem contudo evidenciar uma tendência para a prática destes crimes, considerando ainda que aqueles factos revelam aspectos desvaliosos da personalidade do arguido e que este não tem manifestado grande empenho numa mudança de vida, entende-se que a pena única mais adequada – entre o mínimo de 5 anos e o máximo de 10 anos de prisão – é a de 7 anos de prisão.

III. DECISÃO

8. Nestes termos, acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, revogando-se a decisão recorrida no tocante às penas aplicadas, e fixando-se a pena de 5 (cinco) anos de prisão para cada um dos crimes de homicídio tentado e, em cúmulo jurídico destas penas, a pena única de 7 (sete) anos de prisão.

Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 15 de Dezembro de 2011

                                                Rodrigues da Costa (relator)

                                               Arménio Sottomayor