ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
238/10.2JACBR.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/30/2011
SECÇÃO 3ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL RECURSO PENAL
DECISÃO PROVIDO
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR RAUL BORGES

DESCRITORES HOMICÍDIO QUALIFICADO
HOMICÍDIO TENTADO
FRIEZA DE ÂNIMO
MEIO INSIDIOSO
UNIÃO DE FACTO
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA PARCELAR
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA DUPLA VALORAÇÃO
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
CULPA
ILICITUDE
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CÚMULO JURÍDICO
PENA ÚNICA

SUMÁRIO I  -   As circunstâncias contempladas no n.º 2 do art. 132.º do CP não são taxativas, nem implicam só por si a qualificação do crime; tais circunstâncias não são elementos do tipo e antes elementos da culpa, não sendo o seu funcionamento automático.
II -  A noção de meio insidioso não é unívoca, girando sempre à volta de uma ideia que envolve elementos materiais e circunstanciais, estes ligados a uma certa imprevisibilidade da acção. Por outras palavras, poderá dizer-se que a subsunção não pode ficar-se por uma interpretação que se quede pela consideração apenas do meio utilizado, da forma como é executado o facto, atendendo à natureza do instrumento, mas antes tendo em consideração uma visão mais abrangente, completa, em que entra a imagem global do facto, o que é dizer no caso, apreciar os factos na sua globalidade, analisar a conduta no seu conjunto, avaliar a atitude do agente, o que será avaliado em função das específicas nuances do evento e do pleno das circunstâncias enformadoras do concreto sucesso submetido a juízo.
III - Na análise a efectuar há que ter presente, por um lado, a “natureza do meio/instrumento/arma, que é utilizado”, e por outro, averiguar as “circunstâncias acompanhantes”, isto é, o real, o naturalístico modo de execução do facto, e o conjunto concreto de circunstâncias em que aquela concreta arma/meio/instrumento de agressão, no caso de bens eminentemente pessoais, foi utilizada: a distância a que o agressor se encontrava da vítima (a curta distância, com disparo à queima roupa, ou não), a situação em que esta se encontrava (prevenida ou desprevenida, desprotegida, descuidada, indefesa, com possibilidade de resistência ao agressor ou não), a zona do corpo atingida, o momento e o local escolhido para a agressão, com actuação em espaço fechado, ou aberto, com ou sem espera, com ou sem emboscada, com ou sem estratagema, com ou sem traição, com ou sem perfídia, disfarce, surpresa, dissimulação, engano, abuso de confiança, ou distracção da vítima, ou não, de forma subreptícia, ou não, de forma imprevista ou não, com ataque súbito, inesperado, sorrateiro, ou não, com ou sem possibilidade de a vítima oferecer resistência, enfim, todo o conjunto de factores envolventes e circunstâncias acompanhantes/determinantes do evento letal, ou quase letal, no traço de um desenho panorâmico, de uma imagem multifacetada, de supervisão, de síntese, a final, de um retrato vivencial, de uma fotografia, guardadora de eventos ocorridos, condensada, definida, a juzante, com todos os contornos e pormenores, independentemente dos retoques, e que mais do que a natureza da arma ou instrumento utilizado, indiciam o meio utilizado naquele analisado concreto agir, como particularmente perigoso ou insidioso.
IV - No caso concreto apurou-se, além do mais, que:
- no dia 19-05-2010, o arguido pernoitou na casa da A (com quem mantinha há algum tempo uma relação de natureza sexual), como já noutras ocasiões e com regularidade vinha acontecendo;
- no final da noite desse dia, por volta das 23h30, o arguido dirigiu-se ao quarto onde habitualmente dormia quando pernoitava na referida casa, enquanto a menor filha da A e o B (que o arguido desconfiava que mantinha um relacionamento sexual com a A) foram dormir no outro quarto da casa onde já se encontrava a A, deitando-se a menor na cama onde a mãe já se encontrava deitada e o B num colchão colocado no chão do referido quarto;
- o arguido deitou-se em cima da cama com a roupa que vestia e assim permaneceu até por volta das 4h30 do dia 20-05-2010, altura em que se levantou e saiu do quarto, tendo, pelo menos então, formulado o propósito de durante essa noite tirar a vida aos mencionados A e B enquanto dormiam, utilizando para o efeito um dos machados que dias antes havia trazido para a dita casa com o objectivo de cortar lenha para consumo da mesma;
- movido por tal propósito, que formulou pelo facto de estar cansado de entregar quantias monetárias à mencionada A e da mesma se recusar a relacionar-se sexualmente com ele, enquanto o fazia com outros homens, entre os quais o B, dirigiu-se ao corredor e muniu-se de um dos referidos machados que se encontrava encostado a uma das paredes desse corredor e junto à porta de entrada da casa, composto por cabo de madeira, com o comprimento de 71,5 cm, e por lâmina com 12 cm de comprimento;
- empunhando tal machado o arguido entrou no quarto onde os mencionados A e B se encontravam a dormir e dirigiu-se em primeiro lugar à cama onde a A se encontrava deitada com a filha e desferiu com a lâmina do machado, pelo menos, dois golpes na cabeça daquela, sem que a mesma se apercebesse sequer da presença do arguido, uma vez que dormia;
- com tais golpes de machado, o arguido causou à A lesões que foram causa adequada da sua morte, esta atestada pelas 5h30 do referido dia;
- logo de seguida, o arguido, que continuava munido do dito machado, dirigiu-se ao colchão onde se encontrava o B, o qual, momentos antes, havia acordado, por se ter apercebido de barulho no quarto, que, contudo, não conseguira identificar;
- apesar de tal quarto estar iluminado apenas com a luz provinda do quarto ao lado onde o arguido pernoitava, o mencionado B conseguiu aperceber-se que alguém se dirigia a si, empunhando um machado, pelo que iniciou o seu levantamento do colchão onde estava deitado, com o propósito de se defender da agressão que lhe pareceu iminente;
- acto contínuo o arguido desferiu-lhe um golpe dirigido à cabeça, quando aquele se encontrava na posição de semi-erguido, com o tronco já levantado do colchão e com as pernas ainda estendidas sobre este, tendo o B conseguido diminuir a velocidade de progressão da lâmina do machado na direcção da sua cabeça, protegendo-a com o braço direito;
- contudo, a lâmina do machado, ainda assim, atingiu a cabeça do mencionado B, provocando-lhe lesão que demandou 20 dias para cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional e sem quaisquer consequências permanentes.
V -  Face à facticidade apurada, dúvidas não há de que, atendendo não só à natureza do instrumento utilizado, mas ao modo e conjunto de circunstâncias em que actuou, visando a A, aproveitando o facto de esta se encontrar a dormir, sem qualquer possibilidade de defesa, agindo de forma traiçoeira e subreptícia, é de ter a conduta do arguido como especialmente censurável e agindo de modo perverso, ao cometer o crime que vitimou aquela com meio insidioso.
VI - Mas já no que toca à tentativa de homicídio na pessoa de B, pese embora tenha sido utilizado exactamente o mesmo instrumento, a situação apresenta já contornos algo diferentes. Não houve surpresa, pois que o B apercebeu-se a tempo das intenções do arguido, tendo ao levantar o braço diminuído a velocidade de progressão da lâmina na direcção da sua cabeça. A conduta do arguido consubstanciada na agressão a B não será pois reveladora de especial censurabilidade e perversidade, pelo menos em função deste exemplo regra (utilização de meio insidioso), por não preenchimento do mesmo.
VII - A persistência na consumação da morte da vítima A, evidenciada pela agressão plúrima na zona da cabeça da mesma com o machado com as características referidas, a inconsideração da extrema vulnerabilidade das vítimas, que se encontravam a dormir quando o arguido entrou no quarto com o propósito de lhes tirar a vida já munido do dito machado, da vítima A nem sequer se ter apercebido da presença do arguido por estar a dormir quando foi atingida pelos golpes do machado utilizado pelo arguido, a circunstância da vítima A se encontrar deitada na mesma cama e ao lado da filha então com 9 anos de idade, a vontade de acabar com a vida de ambas as vítimas ao mesmo tempo, manifestam na sua globalidade, uma atitude interna, um estado de espírito de franca e evidente insensibilidade e desprezo, indiferença para com o valor jurídico da vida e uma deficiência de carácter, que por isso refrange qualidades desvaliosas ao nível da sua personalidade, e, deste modo, não pode deixar de se considerar que é com frieza de ânimo que o arguido cometeu os dois crimes de homicídio, consumado e tentado, em apreço.
VIII - A relação conjugal e outras aparentadas, actualmente, integra um novo exemplo típico, na previsão da alínea b) do n.º 2 do art. 132.º do CP. É assim introduzida uma nova situação padrão qualificativa do homicídio. A consagração da importância da relação conjugal e “associadas” justifica-se como corolário da evolução legislativa no tratamento destas matérias, que tem tido em vista o fenómeno da violência doméstica (conjugal), violência familiar e os maus tratos familiares.
IX - Haverá, porém, que indagar se a situação vivida pelo arguido e vítima se enquadra numa união de facto juridicamente protegida. Quando se iniciou o relacionamento sexual de ambos em 2002, o arguido tinha 64 anos de idade e A 24 anos. Evidente é que não estamos perante um casal com uma comunhão de vida, assente em bases que vão para além do trato sexual, com projectos, anseios, projecções de realizações numa vida futura.
X -  O que ressalta da matéria de facto provada é uma situação em que se está perante um entendimento sexual que durou de 2002 a 2009, em que o arguido não era o único homem com quem A se relacionava, e que veio a determinar uma dependência afectiva do arguido em relação àquela A, a quem dava praticamente todo o seu dinheiro, o que gerava problemas com os filhos, tudo num quadro em que o arguido acalentava a esperança de um dia ainda poder merecer a atenção da destinatária das entregas, numa situação de espera de reponderação por parte de A e eventual retoma de actividade sexual, nada que se compare com um contrato de casamento ou uma união de facto que efectivamente não existia, que não funcionava como tal.
XI - Na verdadeira união de facto não há retribuição, contrapartida, remuneração, subvenção, contraprestação por serviços prestados, isto é, prestações de cariz sexual, mas antes uma verdadeira comunhão de vida. Não se está no âmbito de um contrato sinalagmático, a que uma prestação tem de corresponder a correspectiva, há uma comunhão de vida duradoura, com um mínimo de estabilidade, em muitíssimos aspectos análoga à dos cônjuges.
XII - O arguido, solitário, carente, sem o apoio dos filhos, com a idade que tinha, procurou arrimo e conforto, mas tornou-se dependente afectivamente, entregando à vítima quase todo o seu rendimento da reforma, sendo-lhe conferida a possibilidade nos últimos tempos de uma vez por outra pernoitar na casa da vítima. A situação de facto descrita não chega para preencher o exemplo padrão em causa.
XIII - A alteração ao CP operada pelo DL 48/95, de 15-03, proclamou a necessidade, proporcionalidade e adequação como princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental, introduzindo a inovação, com feição pragmática e utilitária, constante do art. 40.º, ao consagrar que a finalidade a prosseguir com as penas e medidas de segurança é «a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade», ou seja, a reinserção social do agente do crime, o seu retorno ao tecido social lesado.
XIV - A intervenção do STJ em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”.
XV - Em casos como o presente, em que se esteja perante uma única qualificativa, há que ter em conta o princípio da proibição da dupla valoração da culpa, impedindo que esta actue como factor de ponderação da medida de pena, uma vez que já foi considerada na própria qualificação do crime.
XVI - No caso presente é elevadíssimo o grau de ilicitude do facto, atenta a gravidade das consequências da conduta do arguido, no que respeita à vítima A. O grau de culpa é muito acentuado, com elevada intensidade do dolo, na modalidade de directo, pela manifestação da vontade firme dirigida ao facto. A actuação do arguido foi extremamente censurável, não se coibindo de atingir a vítima A, quando esta se encontrava deitada na sua cama, a dormir, e a seu lado dormia a filha desta, sendo este crime cometido contra pessoa com quem se relacionara sexualmente ao longo de sete anos, no interior de casa onde pernoitava, encontrando-se a vítima à sua completa mercê.
XVII - Ao tirar a vida a A, para além da perda da vida desta, e exactamente em resultado dessa definitiva privação, o comportamento desviante do arguido conduziu à produção de efeitos colaterais, com intenso grau de lesividade de direitos de personalidade de outrém, da filha menor daquela, que ficou privada de sua mãe, deixando-a na orfandade, quando contava apenas 9 anos de idade.
XVIII - São intensas as necessidades de prevenção geral. Na realização dos fins das penas as exigências de prevenção geral constituem nos casos de homicídio uma finalidade de primordial importância. O bem jurídico tutelado nas normas incriminadoras de homicídio é a vida humana inviolável, reflectindo a incriminação a tutela constitucional da vida, que proíbe a pena de morte e consagra a inviolabilidade da vida humana. A função de prevenção geral que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial tem de ser eminentemente assegurada, sobrelevando, decisivamente, as restantes finalidades da punição.
XIX - No que toca à prevenção especial avulta a personalidade do arguido na forma como actuou, com absoluta indiferença e insensibilidade pelo valor da vida e dignidade da pessoa humana, não se esgotando na mera prevenção da reincidência, sendo indiscutível que carece de socialização. A ter em consideração a idade do arguido, que à data da prática dos factos tinha 72 anos, contando actualmente 73 anos.
XX - No que toca a antecedentes criminais do recorrente, nada se regista. E no caso de infractores ocasionais, a ter de ser aplicada uma pena, é esta mensagem punitiva dissuasora o único sentido da prevenção especial. Por último, ter-se-ão em consideração os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, fazendo-se a comparação do caso concreto com situações análogas equacionadas noutras decisões judiciais, não se perdendo de vista a especificidade do caso sujeito.
XXI - Nestas condições e tendo em conta todo o exposto, tendo sido respeitados os parâmetros legais, cremos que se justificará no caso intervenção correctiva do STJ, no que toca à pena parcelar fixada pelo homicídio qualificado, que será de reduzir, fixando-a em 18 anos de prisão e em 3 anos de prisão quanto ao crime de homicídio tentado, que atentas as molduras penais abstractas a ter em conta, não afrontam os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas – art. 18.º, n.º 2, da CRP –, nem as regras da experiência comum, antes são adequadas e proporcionais à defesa do ordenamento jurídico e não ultrapassam a medida da culpa do recorrente.
XXII - Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso.
XXIII - No caso é evidente a conexão e estreita ligação entre os dois crimes cometidos pelo recorrente, um cometido a seguir ao outro, no mesmo espaço, sendo atingido o mesmo bem jurídico. A facticidade provada não permite formular um juízo específico sobre a personalidade do arguido que ultrapasse a avaliação que se manifesta pela própria natureza dos factos praticados, não se mostrando provada personalidade por tendência, ou seja, que o ilícito global seja produto de tendência criminosa do agente, antes correspondendo a um episódio isolado de vida, restando a expressão de uma ocasionalidade procurada pelo arguido.
XXIV - A pena unitária tem de responder à valoração, no seu conjunto e interconexão, dos factos e personalidade do arguido. Atentos os vários cenários possíveis, a nível de singularidade ou pluralidade de circunstâncias especialmente censuráveis, e mesmo da intensidade de cada uma das circunstâncias qualificativas poder ser maior ou menor, defende-se que o julgador deve ser muito exigente quando opta por uma pena máxima ou próxima da máxima, pois o princípio da igualdade está intimamente ligado ao da justiça relativa e, portanto, há que reservar tais penas para os casos excepcionais de rara violência. E assim sendo, tudo ponderado, será de fixar a pena conjunta em 19 anos de prisão.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL

      No âmbito do processo comum com intervenção de tribunal colectivo n.º 238/10.2JACBR, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Santa Comba Dão, integrante do Círculo Judicial de Viseu, foi submetido a julgamento o arguido AA, viúvo, aposentado, nascido em 17 de Janeiro de 1938, natural de ............. Mortágua, residente habitualmente no lugar de Calvos, freguesia de Sobral, concelho de Mortágua, actualmente detido no Estabelecimento Prisional Regional de Viseu, à ordem destes autos.

     

       Foi-lhe imputada na acusação do Ministério Público, a prática, em autoria material, e em concurso efectivo, de:

- Um crime de homicídio qualificado, consumado, p. e p. nos termos dos artigos 131.º e 132.º, n.º s 1 e 2, alíneas h) e j), ambos do Código Penal;

- Um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelas disposições dos artigos 31.º, 132.º, n.º s 1 e 2, alíneas h) e j), 22.º, n.º 1, 23.º, n.º s 1 e 2 e 73.º, todos do Código Penal.

                                                            ****

      Foram deduzidos pedidos de indemnização civil contra o arguido, por:

- CC, representada pelo pai BB, no montante de € 145.000,00, acrescido de juros vencidos desde a notificação e até integral pagamento, indemnização referente a danos de natureza patrimonial e não patrimonial – (fls. 332 a 338, e em original, de fls. 336 a 339).

- DD, no montante de € 30.000,00, acrescido de juros vencidos desde a notificação e até integral pagamento, montante peticionado a título de danos de natureza não patrimonial (fls. 372 a 382).
                                               ****
     
Realizado o julgamento, da “acta de leitura do acórdão”, constante de fls. 625 a 628, consta ter o Colectivo julgador, necessariamente, após a produção de prova, deliberado ser de proceder a uma alteração não substancial de factos descritos na acusação, enunciando na sequência, os novos propostos factos, tendo, por outro lado, procedido a uma requalificação jurídica, por ter entendido que os factos descritos na dita acusação pública integravam, para além das qualificativas dos crimes de homicídio, que vinham imputadas na peça acusatória [as constantes das alíneas h) e j)], ainda, a qualificativa prevista na alínea i) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal – utilização de meio insidioso – abrangendo a nóvel qualificação, quer o crime de homicídio consumado, quer o tentado.
     As alterações de matéria de facto e de qualificação jurídica foram comunicadas ao arguido, nos termos do artigo 358.º, n.º s 1 e 3, do CPP, nada sendo oposto ou requerido pela defensora do arguido.
                                                            ******
      Por acórdão do Tribunal Colectivo da Comarca de Santa Comba Dão, datado de 29 de Março de 2011, constante de fls. 546 a 625, e depositado no mesmo dia (fls. 629), foi deliberado:
    1. Julgar provada e procedente a acusação deduzida contra o arguido AA, e, consequentemente:
a) Condenar o mesmo, em concurso real, pela prática, como autor material, de:
- Um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º s 1 e 2, alíneas j) e i), do Código Penal, na pena de 18 anos e 6 meses de prisão.
- Um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º s 1 e 2, alíneas j) e i), 22.º, n.º 1, 23.º, n.º s 1 e 2 e 73.º, todos do Código Penal, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão.
b) Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena conjunta de 21 anos de prisão.
   2. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido contra o arguido pela demandante CC, e, consequentemente:

- Condenar o arguido a pagar-lhe o montante global de € 105.000,00, acrescido de juros, à taxa legal de 4%, desde a decisão e até integral pagamento, montante esse, dos quais € 25.000 são referentes a danos de natureza patrimonial e os restantes € 80.000,00, a danos de natureza não patrimonial.
    3. Julgar totalmente improcedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante DD, absolvendo o arguido de tal pedido.

                                                      

     Inconformado com o assim deliberado, o arguido interpôs recurso para este Supremo Tribunal, apresentando a motivação de fls. 638 a 641, que remata com as seguintes conclusões (em transcrição integral):

I - Afastada a qualificativa da premeditação, em face dos argumentos fácticos que lhe serviram de base, não poderia o Douto Acórdão acolher a conclusão simplista de que o arguido agiu com frieza de ânimo apenas porque logrou entrar no quarto onde as vitimas estariam a dormir esperando daquelas inacção ou ausência de resistência.

II - Em nenhum momento lança mão o Douto Acórdão do principio in dubio pro reo concluindo pela respectiva vontade de tirar a vida ao GG apenas pelo facto de se lhe ter dirigido empunhando o machado sem que as particulares circunstâncias em que tal facto o correu tivessem sido convenientemente esclarecidas, limitando-se o tribunal a concluir do pensamento do arguido e respectivas formulações em sede de cogitações que supostamente teriam presidido à acção daquele.

III - Inexistindo prova de tais processos volitivos e à mingua de prova não poderia igualmente deixar de ponderar-se outros factores que inversamente retirassem discernimento e frieza de animo pensamento ao arguido, como seja o facto de ser idoso e analfabeto e com um elevado nível de dependência da vítima FF.

IV - E por assim ser é das regras da experiência que a elaboração de um projecto criminoso num quadro de frieza, pragmatismo e insensibilidade não terá assentimento relativamente a quem vivendo em regime de dependência emocional e dela não pretendendo libertar-se viesse afinal a concluir pela vontade de eliminar a fonte dessa dependência.

V - O que no mínimo permitiria duvidar se o arguido teria reflectido friamente sobre as consequências do intento criminoso que viria a praticar mostra-se violadora dos princípios jurídico -penais vertidos no artigo 40 n° 1 do CP por referência à CRP. ou se teria antes sido acometido de motivação subjectiva de o impediu sequer de avaliar da concreta censurabilidade de tal conduta.

VI - A ambivalência do presente argumentário serve apenas para pugnar pela ideia de que o Tribunal não dispunha de elementos de prova suficientes para concluir da motivação da conduta do arguido e assim a subsumir na qualificativa em causa que assim não deveria ter-se por verificada.

VII - Sendo inegável a confissão dos factos em relação ao tipo legal de crime preenchido já a tanto não poderia ter chegado tribunal, relativamente à motivação pela ausência de prova da sua concreta génese.

VIII - E por assim ser a medida da pena não poderia deixar de reflectir a insuficiência de prova da concreta ratio que presidiu à prática da conduta ilícita.

IX - A ausência de prova inequívoca das particulares circunstâncias em que os facto ocorreram determinaria a conclusão de que as exigências de prevenção especial fossem conjugadas com o facto de ter o arguido desenvolvido todo o seu projecto de vida dentro de pressupostos de regulação social até ao momento em que passou a depender da vítima, sendo primário, analfabeto e de avançada idade.

X - A ponderação da pena parcelar relativamente ao crime tentado não teve em conta as consequências do mesmo nem o desvalor que a própria vitima lhe deu a não intervir sequer nos autos como assistente ou demandante.

XI - O que deveria ter militado a favor da fixação de pena inferior conjugado com a particular fragilidade intelectual do arguido que não viu o tribunal valorar a respectiva confissão sentido de arrependimento e culpa por deficiente análise das concretas limitações da idade e ruralidade do arguido.

XII - Uma pena de 21 anos privativa de liberdade, atenta a idade do arguido, impede em absoluto a sua concreta eficácia ressocializadora e

XIII - Por todo o exposto deve o presente recurso ser julgado procedente dando-se por violada a norma supra referida e assim substituindo por outro que reduza as penas parcelares aplicadas ao arguido, assim se permitindo em cúmulo jurídico a fixação de pena em limite inferior que permita acautelar ainda possibilidade de ressocialização do arguido.

                                                            *****

      O Ministério Público junto do Tribunal “a quo” respondeu, conforme fls. 650 a 662, concluindo:

1 - O acórdão impugnado não enferma de qualquer dos vícios previstos no artigo 410°, do C.P.P., designadamente, da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e ou de erro notório na apreciação da prova.

2 - A factualidade enumerada na decisão recorrida e que é imodificável fora das balizas estabelecidas pelo artigo 431°, do Código de Processo Penal, resulta de uma ponderada apreciação de todos os meios probatórios, entre si conjugados e aferidos pelas regras da experiência, relegando a aplicação do princípio "in dubio pro reo".

3 - Essa estabelecida factualidade preenche todos os elementos constitutivos dos dois crimes de homicídio qualificado, um na forma consumada, outro na forma tentada, imputados ao arguido AA.

4 - Diversamente do que o recorrente-arguido pretende, não ocorre, no caso, circunstância alguma que constitua fundamento suficientemente relevante para efeitos de atenuação especial da pena.

5 - Assim, quer as penas parcelares, quer a pena única de 21 anos de prisão, resultante de cúmulo jurídico daquelas duas penas respectivamente impostas pelos referidos crimes de homicídio qualificado, merecem conformação.

6 - O acórdão recorrido não ofendeu qualquer preceito legal e, designadamente, os artigos 22°, 40°, 71° a 73°, 131° e 132, n.° 2, alíneas i) e j), do Código Penal.

     Defende, a final, a improcedência do recurso e a consequente manutenção do acórdão recorrido.

                                                            *****

     O recurso foi admitido por despacho de fls. 664-5.

                                               *****      

     A Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal emitiu douto parecer, constante de fls. 673 a 681, onde considera na conduta do arguido poder estar afastada a actuação com frieza de ânimo, mas por outro lado, considerando haver uma outra circunstância, que demonstra especial censurabilidade e que consta largamente da matéria de facto – o acto ter sido praticado contra pessoa com quem o arguido tinha mantido uma relação análoga à dos cônjuges e ainda com coabitação intermitente -, mostrando-se, assim, preenchida a qualificativa da alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, por ter sido praticado na pessoa de FF, com quem o arguido havia mantido uma relação análoga à dos cônjuges e nos últimos oito meses coabitado frequentemente com ela.

      Quanto ao crime de homicídio qualificado, na forma tentada, entende não se mostrarem preenchidas circunstâncias que o agravem, afirmando que, quanto à frieza de ânimo (tal como o considerou o Colectivo, também considera não poder extrair-se dos factos provados que a formação de vontade do arguido tenha resultado de uma preparação fria e persistente) e ao meio insidioso, qualificativas previstas nas alíneas j) e i) do n.º 2 do artigo 132.º, não parece que resultem da matéria de facto provada.

       Afasta-se do Colectivo, quando os julgadores consideram que, apesar de tal ausência de preparação, integra a frieza de ânimo a persistência na própria agressão da vítima FF na cabeça, quando bastaram duas pancadas com a lâmina do machado, defendendo que a inconsideração da vulnerabilidade e a persistência têm de fazer parte da formação da vontade da prática do ilícito e não do próprio acto de execução do crime.

        E em relação à vítima EE, não se encontra tenacidade nem persistência na sua execução, muito menos prévia preparação.

        Quanto à qualificação pelo meio insidioso afasta a qualificativa na agressão a EE, concluindo que a conduta do arguido será merecedora de juízo de censura quanto a tal vítima, mas não será reveladora de especial censurabilidade ou perversidade.

        No que respeita à medida da pena, defende que, no que toca à autoria do homicídio de FF, a pena poderá vir a situar-se nos 18 anos de prisão.

        No que tange ao homicídio tentado, na pessoa de EE, que defende deverá ser censurado apenas como homicídio tentado simples, a pena poderá ser fixada próxima dos 2 anos e 6 meses.

        A fixação da pena única poderá ser de 19 anos e 3 meses.

        Defende assim o parcial provimento do recurso quanto ao crime de homicídio tentado, e ainda, quanto às medidas das penas, especialmente, a única resultante do concurso.

                                                            *****

        Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, veio o recorrente, a fls. 686, reiterar o teor das conclusões vertidas na motivação do recurso, afastando a proposta configuração de situação análoga a conjugal, concretamente a união de facto, mas aceitando as conclusões do parecer do M.º P.º, no que tange à matéria do homicídio, na forma tentada, e quanto à não verificação da qualificativa de frieza de ânimo.

                                                            *****

          Não tendo sido requerida audiência de julgamento, o processo prossegue com julgamento em conferência, nos termos dos artigos 411.º, n.º 5 e 419.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal.

                                                            *****

          Colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

                                               *****

          Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal - acórdão do Plenário da Secção Criminal, de 19-10-1995, no processo n.º 46580, Acórdão n.º 7/95, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28-12-1995 (e BMJ n.º 450, pág. 72), que fixou jurisprudência, então obrigatória, no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito” e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do CPP - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.

       Questões a decidir.
      
     O recorrente afirma a sua discordância, conforme resulta do exposto na motivação e levado às conclusões, que traduzem, de forma sintética, as razões de divergência com o decidido, em dois pólos centrais, a saber:
     - Da não verificação da qualificativa da alínea j) do artigo 132.º do Código Penal.

     - Da violação dos princípios da adequação e proporcionalidade na medida da pena do artigo 40.º, n.º1, do Código Penal.

     Em função da posição assumida pela Exma. Procuradora-Geral Adjunta no parecer emitido, haverá que analisar a questão da verificação ou não da qualificativa “meio insidioso”, constante do acórdão recorrido, que entende ser de afastar, e por outro lado, a consideração da existência de relação análoga à dos cônjuges, que defende estar presente, face a existente união de facto.

    

      Assim são questões a decidir:

     I Questão – Utilização de meio insidioso

     II Questão – Frieza de ânimo - Conclusões I a VII

     III Questão – Relação análoga à dos cônjuges - União de facto

     IV Questão – Medida das penas parcelares e única – Conclusões VIII a XIII

 

Factos Provados

         

         Foi dada como provada a seguinte matéria de facto, que é de ter-se por imodificável e definitivamente assente, já que da leitura do texto da decisão, por si só considerado, ou em conjugação com as regras de experiência comum, não emerge a ocorrência de qualquer vício decisório ou nulidade de conhecimento oficioso, mostrando-se a peça expurgada de insuficiências, erros de apreciação ou contradições que se revelem ostensivos, sendo o acervo fáctico adquirido suficiente para a decisão, coerente, sem contradição, harmonioso, e devidamente fundamentado.
 
     1. O arguido, pelo menos em 2002, iniciou um envolvimento sexual com FF, encontrando-se, para tal, com a mesma, na zona de Mortágua, onde ambos residiam.
     2. Em troca de tal relacionamento sexual, o arguido ajudava financeiramente a FF, sendo que tal ajuda, por solicitação da mesma, foi aumentando ao longo do tempo, o que desagradava aos filhos do arguido.
     3. Enquanto tal relacionamento sexual se manteve, o arguido sabia que a FF se relacionava sexualmente com outros homens.
     4. Em Junho de 2008, a FFs deixou de residir na zona de Mortágua e passou a residir na Avenida ............, nº ...., ......., em Santa Comba Dão, onde o arguido a continuou a visitar e a relacionar-se sexualmente com ela.
     5. Pelo menos desde o Verão de 2009, EE, passou a pernoitar em casa da FF e a relacionar-se sexualmente com a mesma, facto que, numa primeira fase, era desconhecido do arguido, uma vez que aqueles diziam ser apenas amigos.
     6. Desde Setembro de 2009, a FF passou a recusar ter relações sexuais com o arguido, alegando ter contraído doenças genitais que a impediam do acto sexual.
     7. Sem embargo, o arguido continuou a ajudá-la monetariamente, sendo que, no início do ano 2010, lhe passou a entregar a quase totalidade da reforma que auferia, no valor de € 440,00 mensais.

     8. Em data indeterminada o arguido começou a desconfiar que a FF e o mencionado EE se relacionavam sexualmente, designadamente, a partir do momento em o arguido se apercebeu de que este passou a dormir no quarto onde também dormiam a FF e a filha desta, CC, nascida em 30 de Outubro de 2000, apesar de ambos lhe dizerem que o EE dormia num colchão, no chão, ao lado da cama onde a mãe e filha dormiam, tendo tido a certeza que os mesmos lhe mentiam a partir duma ocasião ocorrida em data não concretamente determinada mas anterior a 19 de Maio de 2010 em que viu aqueles dois juntos deitados na dita cama.
     9. No dia 19 de Maio de 2010, o arguido pernoitou na casa da FF identificada em 4., como já noutras ocasiões e com regularidade vinha acontecendo.

     10. No final da noite desse dia, por volta das 23.30 horas, o arguido dirigiu-se ao quarto onde habitualmente dormia quando pernoitava na referida casa, enquanto a mencionada filha da FF e o EE foram dormir no outro quarto da casa onde já se encontrava a FF, deitando-se a CC na cama onde a mãe já se encontrava deitada e o mencionado EE num colchão colocado no chão do referido quarto.
    11. O arguido deitou-se em cima da cama com a roupa que vestia e assim permaneceu até por volta das 4.30 horas da madrugada do dia 20 de Maio de 2010, altura em que se levantou e saiu do quarto, tendo pelo menos então formulado o propósito de durante essa noite tirar a vida aos mencionados FF e EE enquanto dormiam, utilizando para o efeito um dos machados que dias antes havia trazido para a dita casa com o objectivo de cortar lenha para consumo da mesma.
     12. Movido por tal propósito, que formulou pelo facto de estar cansado de entregar as referidas quantias monetárias à mencionada FF e da mesma se recusar a relacionar-se sexualmente com ele, enquanto o fazia com outros homens, entre os quais o EE, dirigiu-se ao corredor e muniu-se de um dos referidos machados que se encontrava encostado a uma das paredes desse corredor e junto à porta de entrada da casa, composto por cabo de madeira, com o comprimento de 71,5 cm, e por lâmina com 12 cm de comprimento.
     13. Empunhando tal machado o arguido entrou no quarto onde os mencionados FF e EE se encontravam a dormir e dirigiu-se em primeiro lugar à cama onde a FF se encontrava deitada com a filha e desferiu com a lâmina do machado, pelo menos, dois golpes na cabeça daquela, sem que a mesma se apercebesse sequer da presença do arguido, uma vez que dormia.
     14. Com tais golpes de machado, o arguido causou à FF feridas incisas nas regiões occipital e temporal esquerdas, no pavilhão auricular esquerdo e no 2º dedo da mão esquerda, fractura esquirilosa da abóbada e do crânio, com hematoma subdural, lesões estas melhor descritas no relatório de autópsia de fls. 297-300 e que foram causa adequada da sua morte, esta atestada pelas 5 horas e 30 minutos do referido dia.
     15. Logo de seguida, o arguido, que continuava munido do dito machado, dirigiu-se ao colchão onde se encontrava o EE, o qual, momentos antes, havia acordado, por se ter apercebido de barulho no quarto, que, contudo, não conseguira identificar.
     16. Apesar de tal quarto estar iluminado apenas com a luz provinda do quarto ao lado onde o arguido pernoitava, o mencionado EE conseguiu aperceber-se que alguém se dirigia a si, empunhando um machado, pelo que iniciou o seu levantamento do colchão onde estava deitado, com o propósito de se defender da agressão que lhe pareceu iminente.
     17. Acto contínuo o arguido desferiu-lhe um golpe dirigido à cabeça, quando aquele se encontrava na posição de semi-erguido, com o tronco já levantado do colchão e com as pernas ainda estendidas sobre este, tendo o EE conseguido diminuir a velocidade de progressão da lâmina do machado na direcção da sua cabeça, protegendo-a com o braço direito.
    18. Contudo, a lâmina do machado, ainda assim, atingiu a cabeça do mencionado EE, provocando-lhe ferida incisa linear na região fronto-parietal, com cerca de 3 cm de comprimento, lesão esta que demandou 20 dias para cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional e sem quaisquer consequências permanentes.
     19. De seguida, o arguido e o EE envolveram-se, numa luta corpo a corpo, conseguindo este tirar o machado das mãos do arguido, numa altura em que ambos já se encontravam no corredor da residência e o EE já identificara o agressor.
     20. Posteriormente, o EE conseguiu manietar o arguido, junto à entrada do apartamento, onde gritou por ajuda, mantendo-o imobilizado até à chegada das autoridades policiais.
     21. O arguido formulou o propósito de tirar a vida à FF e ao EE, escolhendo a melhor forma de concretizar tal intento e o instrumento que achou mais adequado para o fazer, pondo em prática o seu plano quando aqueles se encontravam a dormir, bem sabendo que, ao usar um machado contra as vítimas enlevadas no sono, as impossibilitava de se defenderem da agressão ou diminuía consideravelmente as possibilidades de o fazerem.
     22. O arguido só não conseguiu tirar a vida ao EE, em virtude de este se ter apercebido a tempo das suas intenções e de ter diminuído a velocidade de progressão da lâmina na direcção da sua cabeça, o que evitou que os ferimentos que sofreu tivessem sido letais.
     23. O arguido agiu com o propósito de tirar a vida aos mencionados FF e EE, bem sabendo que o instrumento que quis utilizar e que utilizou para o efeito dirigido às zonas que visou no corpo das vítimas, era idóneo para atingir órgãos vitais e a produzir o resultado que almejava, agindo de forma livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua relatada conduta era proibida por lei e punida como crime.
     - Provou-se ainda que:
     24. Á data dos factos o arguido encontrava-se reformado, situação em que continua a encontrar-se, e aufere a título de reforma o montante aludido em 7.
     25. É analfabeto.
     26. Antes de reformado trabalhava no corte de madeiras e na agricultura.
     27. Desde há 3-4 anos vivia alternadamente ou na sua casa ou na casa da vítima FF.
     28. A circunstância do arguido se tornar cada vez mais dependente do relacionamento que vinha mantendo com a vítima FF, levou-o também a contrair dívidas junto de familiares e amigos, dando origem ao seu afastamento da família e ao seu isolamento.
     29. No estabelecimento prisional onde se encontra recluído cumpre as normas e tem um comportamento estabilizado, sendo medicado com anti-diabéticos.
     30. É visitado pelos seus dois filhos e por um neto, este com mais regularidade do que aqueles.
     31. É reputado por aqueles que o conhecem e que com ele se relacionam como pessoa pacífica, respeitadora e trabalhadora.
     32. Não consta do seu CRC junto aos autos qualquer condenação.
    - Mais  provou-se que:
     33. A mencionada CC encontra-se registada como filha da mencionada FF e de BB.
     34. Após a morte da mãe a CC foi confiada à guarda e cuidados da sua professora GG, vindo posteriormente, por decisão proferida em 15.07.2010, a ficar entregue à guarda e cuidados do pai, o qual se obrigou a zelar pelo bem estar e pela educação da mesma.
     35. A mencionada FF tinha 32 anos de idade à data da sua morte e era uma pessoa saudável.
     36. Entre as mencionadas FF e CC existiam fortes laços afectivos, reforçados pelo facto de até à morte da primeira daqueles serem ténues os laços afectivos existentes entre a CC e o pai.
     37. A morte da mãe causou e continuará a causar à menor CC desgosto e tristeza.
     38. Aquando dos factos atrás descritos a CC acordou e apercebeu-se que a mãe não se mexia e tinha sangue na cabeça.
     39. À data da morte da FF o pai da menor CC contribuía mensalmente com a quantia de cerca de € 150 para os alimentos e despesas de educação e escolares da mesma.
     40. Em alimentação, vestuário, calçado, despesas escolares, ATL e outras actividades de natureza formativa e lúdica, a menor CC fazia um gasto mensal médio mensal não concretamente apurado, o qual era custeado pela mãe na medida da diferença da comparticipação do pai supra referida.
     41. A demandante DD enviava roupa e dinheiro para apoio da FF e da filha desta CC, respectivamente filha e neta da mesma.


*
Factos não provados:
- Da acusação e dos Pedidos de Indemnização Civil deduzidos nos autos:
- o mencionado EE tenha passado a  pernoitar em casa da FF e a relacionar-se sexualmente com a mesma em Maio de 2009.
- o arguido continuasse a ajudar monetariamente a FF depois dela recusar ter relações sexuais com ele na esperança que ela reconsiderasse.
- a desconfiança do arguido relativamente ao relacionamento sexual entre a FF e o EE se tivesse adensado no início do mês de Maio de 2010.
- no início do mês de Maio de 2010 o arguido tivesse sabido que a FF se encontrava grávida, de cerca de 2 meses.
- no dia 19 de Maio de 2010 o arguido tenha decidido pernoitar em casa da FF pelo facto de durante esse dia ter formulado a ideia de, durante a noite, tirar a vida aquela e ao mencionado EE, utilizando um dos machados que, dias antes, tinha trazido com o objectivo de cortar lenha para consumo da casa.
- no circunstancialismo referido em 11. (O arguido deitou-se em cima da cama com a roupa que vestia e assim permaneceu até por volta das 4.30 horas da madrugada do dia 20 de Maio de 2010, altura em que se levantou e saiu do quarto, tendo pelo menos então formulado o propósito de durante essa noite tirar a vida aos mencionados FF e EE enquanto dormiam, utilizando para o efeito um dos machados que dias antes havia trazido para a dita casa com o objectivo de cortar lenha para consumo da mesma) o arguido não tenha adormecido e tenha aguardado que os restantes ocupantes da casa adormecessem, com o firme propósito de por termo à vida da FF e do EE.
- o machado de que o arguido se muniu no circunstancialismo descrito na factualidade provada se encontrasse em cima de um móvel.
- o mencionado EE se tivesse levantado totalmente quando se apercebeu de que alguém se dirigia a si empunhando um machado e que já se encontrasse de pé quando foi atingido.
- a ferida provocada no mencionado EE tenha sido na região fronto-temporal.
- o arguido tenha reflectido durante várias horas sobre a melhor forma de tirar a vida aos mencionados FF e EE.
- Do pedido de indemnização civil deduzido por CC:
- a menor CC viu a mãe já morta com a cabeça praticamente desfeita e cheia de sangue.
- em alimentação, vestuário, calçado, despesas escolares, ATL e outras actividades de natureza formativa e lúdica, a menor CC fazia um gasto mensal médio mensal não inferior a € 350, o qual era custeado pela mãe em cerca de € 200.
- o demandado seja detentor de diversos bens imóveis de valor considerável.
- Do pedido de indemnização civil deduzido por DD:
- a menor CC tenha assistido aos golpes de machado desferidos pelo arguido na pessoa da sua mãe e do mencionado EE.
- a mencionada FF tenha nascido no Luxemburgo, na residência dos pais e aí tenha vivido parte da sua infância e juventude.
- a mencionada FF tenha passado a residir em Portugal com carácter de regularidade desde há cerca de 10 anos.
- o modo de vida da FF fosse uma fonte de permanente sobressalto e preocupação para a demandante DD.
- a demandante DD tivesse conseguido a sua aposentação em 1 de Abril de 2010 e se preparasse para passar longos períodos em Portugal na companhia da FF e assistindo ao crescimento da sua neta .
- a demandante DD viva em contínuo estado de revolta, incontido desgosto, exaltação, angústia, tristeza, vigília e total descontrolo emocional em consequência da conduta do arguido e dos factos que se lhe seguiram.

       Apreciando.

       

       Certo sendo que foi afastada pelo acórdão recorrido, de fls. 591 a 594, a qualificativa da alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, constante da acusação - “utilização de meio particularmente perigoso” -, restará a discussão do preenchimento ou não de outros três exemplos padrão, a saber, os dois que determinaram a qualificação da condenação  - alíneas i) e j) - e o avançado pela Exma. PGA no parecer emitido – alínea b) -, pelo que convirá passar em revista tais circunstâncias.

      

       Estabelece o artigo 132.º do Código Penal, na redacção actual dada pela 23.ª alteração do diploma, operada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, entrada em vigor em 15 seguinte, e vigente à data da prática dos factos – 20-05-2010 – e inalterado pelas subsequentes modificações (introduzidas pela Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro, pela Lei n.º 32/2010, de 2 de Setembro, sendo que esta entrou em vigor apenas em 2 de Março de 2011, pela Lei n.º 40/2010, de 3 de Setembro, pela Lei n.º 4/2011, de 16 de Fevereiro e ainda pela Lei n.º 56/2011, de 15 de Novembro, que aprovaram, respectivamente, as 24.ª, 25.ª, 26.ª, 27.ª e 28.ª alterações ao Código Penal):

1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

2 – É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau;

h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum.

i) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso;

j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.

      (Apenas se transcrevem as que se mostram pertinentes no caso sub judice).

      

       Utilização de meio particularmente perigoso

      

       Embora não esteja aqui em causa a verificação deste facto-índice, far-se-á breve referência ao mesmo, atenta a conexão de tal exemplo-padrão com o uso de “meio insidioso”, face ao tipo de instrumento utilizado na comissão dos crimes em análise.      

       A qualificativa de utilização de meio particularmente perigoso foi introduzida na reformulação da alínea g) do n.º 2 do artigo 132.º, operada pela alteração ao Código Penal de 1998 (Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro), constituindo actualmente a alínea h).
       A acusação pugnou pela incriminação à luz da alínea h), mas atendendo apenas ao tipo de instrumento utilizado, como de resto, e bem, acentuou o acórdão recorrido, ao afirmar “No caso vertente a única circunstância das previstas em tal alínea susceptível de verificação prende-se com a utilização de meio particularmente perigoso, uma vez que as demais se mostram fora de cogitação”.

      O arguido cometeu os crimes de homicídio fazendo uso de um machado com cabo de madeira com o comprimento de 71,5 cm e lâmina de 12 cm de comprimento.

      A decisão da 1.ª instância afastou o enquadramento do machado utilizado como meio particularmente perigoso com a seguinte argumentação: «Posto que tal instrumento seja necessariamente perigoso, pela potencialidade específica que tem para provocar ofensa à integridade física e a morte, não se apresenta, no entender do Tribunal, como sendo, como é indispensável para preenchimento da qualificativa em apreciação, particularmente perigoso».

      Finaliza nestes termos: «(…) não vemos que seja susceptível de sustentação a especial censurabilidade ou perversidade do arguido, assente na utilização de meio particularmente perigoso com correspondência no exemplo padrão previsto na alínea h) do n.º 2 do art. 132.º do C. Penal, visto que, de toda a factualidade provada não se extraem quaisquer elementos susceptíveis de enquadrar-se em tal previsão legal».  

      A opção do acórdão recorrido mostra-se acertada e de acordo com as posições assumidas pela Doutrina e em variadíssimos acórdãos deste Supremo Tribunal.

      Isto posto, passemos à

      Questão I - Utilização de meio insidioso – alínea i) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal

      Na versão originária do Código Penal, de 1982, o exemplo padrão em causa estava previsto na alínea f) do n.º 2 do artigo 132.º nestes termos:

Utilizar veneno, qualquer outro meio insidioso ou quando o meio empregado se traduzir na prática de um crime de perigo comum”.

      Com a alteração de 1995 manteve-se a previsão na alínea f), mas com nova redacção:

f) “Utilizar veneno, qualquer outro meio insidioso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum”.

      Com a alteração introduzida pela Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro, passou para a alínea h), com o texto que ainda hoje se mantém:

Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso”.

      Com a revisão operada pela Lei n.º 59/2007, de 04-09, entrada em vigor em 15-09-2007, por força da introdução da inovação da alínea b), passou a ocupar o lugar seguinte, e assim a actual alínea i) comporta a previsão constante da anterior alínea h).


      Afastada, que foi, e bem, a qualificativa de “utilização de meio particularmente perigoso”, sabido que o exemplo ora em causa é circunstância atinente à forma como o agente executa o facto, vejamos se o instrumento utilizado pelo arguido no cometimento dos dois crimes de homicídio será de ter-se, de per si, ou atendendo às concretas circunstâncias do caso, como “meio insidioso”.

      Como se viu, esta qualificação não constava da acusação, tendo sido introduzida pelo Colectivo no final do julgamento e devidamente comunicada ao arguido, tendo o acórdão recorrido considerado como integrada a qualificativa em causa.

      Certo que o arguido na motivação do recurso não colocou qualquer entrave, ou por qualquer forma manifestou divergência quanto à integração deste exemplo padrão, a que de resto, antes da leitura do acórdão, dera a sua aquiescência.

      No entanto, porque é oficioso o conhecimento da correcta qualificação jurídico-criminal, há que ver se assim é, pois pelo menos no que toca ao homicídio tentado na pessoa de EE, a questão será duvidosa, como de resto, e bem, salientou a Exma. Procuradora-Geral Adjunta no seu douto parecer.

      Em causa o exemplo padrão previsto actualmente na alínea i), na parte em que prevê a utilização de “qualquer outro meio insidioso”.

      As circunstâncias contempladas no n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal não são taxativas nem implicam só por si a qualificação do crime; tais circunstâncias não são elementos do tipo e antes elementos da culpa, não sendo o seu funcionamento automático.

      Como referia o acórdão de 13-03-1997, processo n.º 1138/96-3.ª, SASTJ n.º 9, pág. 74, a enumeração das circunstâncias com “qualidade” para revelarem especial censurabilidade ou perversidade é exemplificativa e não taxativa. Por si mesmo não determinam a qualificação do crime, uma vez que elas afirmam-se de modo vivencial e essencial como elementos da culpa e não do tipo.

       Para Margarida Silva Pereira, Direito Penal II - Os Homicídios, págs. 40 e 41,  “quem preenche uma das alíneas do art. 132º não «entra» automaticamente no âmbito da norma”, só entrando quando , sujeito ao «crivo normativo» do nº 1, se ajuíze que “há mesmo uma culpa especial”.

     

       Como se colhe dos acórdãos de 15-05-2002, processo n.º 1214/02-3.ª e de 11-07-2007, processo n.º 1583/07-3.ª, a noção de meio insidioso, embora tenha recebido contributos úteis da doutrina e jurisprudência, não é unívoca, girando sempre à volta de uma ideia que envolve elementos materiais e circunstanciais, estes ligados a uma certa imprevisibilidade da acção.  

       Por outras palavras, poderá dizer-se que a subsunção não pode ficar-se por uma interpretação que se quede pela consideração apenas do meio utilizado, da forma como é executado o facto, atendendo à natureza do instrumento, mas antes tendo em consideração uma visão mais abrangente, completa, em que entra a imagem global do facto, o que é dizer no caso, apreciar os factos na sua globalidade, analisar a conduta no seu conjunto, avaliar a atitude do agente, o que será avaliado em função das específicas nuances do evento e do pleno das circunstâncias enformadoras do concreto sucesso submetido a juízo.

       Há que avaliar a conduta global do recorrente com vista a perscrutar uma especial censurabilidade da sua culpa, que o faça distinguir dos casos vulgares - acórdãos de 03-04-1991, CJ1991, tomo 2, pág. 15 e BMJ n.º 406, pág. 314; de 18-10-1991, processo n.º 42116, BMJ n.º 410, pág. 367.

       Como se extrai do acórdão de 27-09-2000, processo n.º 280/00-3.ª, in CJSTJ 2000, tomo 3, pág. 179, e BMJ n.º 499, pág. 122 «Para a verificação de especial censurabilidade da culpa do agente na prática do crime de homicídio voluntário, é necessário avaliar a sua conduta global».

       Segundo o acórdão de 16-02-2005, processo n.º 3131/04-3.ª, CJSTJ 2005, 1, pág. 196, para detecção de qualquer dos efeitos – padrão enumerados no n.º 2 do artigo 132.º, usa-se o método que atende ao princípio da ponderação global do facto e do autor.         

       Como se pode ler nos acórdãos de 15-10-2003, processo n.º 2024/03-3.ª, SASTJ, n.º 74, pág. 126; de 28-09-2005, processo n.º 2537/05-3.ª, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173 e de 21-01-2009, processo n.º 4030/09-3.ª, todos do mesmo relator, “A decisão sobre a integração do crime de homicídio qualificado exige que se proceda à definição da imagem global do facto, de modo a logo aí detectar a particular forma de culpa que justifica a qualificação do homicídio, sem esquecer, na dimensão da integração diferencial, a circunstância de que o tipo geral de homicídio constitui já, por si mesmo, um crime de acentuada gravidade que protege o bem vida como valor essencial inerente à pessoa humana”.

       Por seu turno, o acórdão do STJ de 15-05-2008, processo n.º 3979/07- 5.ª Secção, refere a “imagem global do facto agravada", podendo resultar da frieza de ânimo posta na actuação.

       Figueiredo Dias, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pág. 26, refere: «…a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade” do agente referida no n.º 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2».

       Adianta que a verificação desses elementos, por um lado, não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; por outro lado, a sua não verificação não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (não deve recear-se o uso da palavra “análogos”!) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador. E finaliza: “Deste modo devendo afirmar-se que o tipo de culpa supõe a realização dos elementos constitutivos do tipo orientador - o Leitbildtatbestand (…) – que resulta de uma imagem global do facto agravada correspondente ao especial conteúdo de culpa tido em conta no art. 132º- 2”.

       Teresa Serra, Homicídio Qualificado, Almedina, 1990, pág. 63, refere “Dominantemente entende-se que só se pode decidir que a morte foi causada em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente através de uma ponderação global das circunstâncias externas e internas presentes no facto concreto”, reportando ainda a necessidade da apreciação global das circunstâncias relativas ao facto e ao autor presentes no caso concreto, a págs. 56, 105 e 106.

       Como refere Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, AAFDL, 2007, págs. 24 e 29, o indício de presença de um caso de especial censurabilidade ou perversidade dado pela verificação de um exemplo padrão tem de ser confirmado através de uma ponderação global das circunstâncias do facto e da atitude do agente nelas expressa, uma ponderação final da atitude do agente.

     Na análise a efectuar há que ter presente, por um lado, a “natureza do meio/instrumento /arma, que é utilizado”, e por outro, averiguar as “circunstâncias acompanhantes”, isto é, o real, o naturalístico modo de execução do facto, e o conjunto concreto de circunstâncias em que aquela concreta arma/meio/instrumento de agressão, no caso de bens eminentemente pessoais, foi utilizada: a distância a que o agressor se encontrava da vítima (a curta distância, com disparo à queima roupa, ou não), a situação em que esta se encontrava (prevenida ou desprevenida, desprotegida, descuidada, indefesa, com possibilidade de resistência ao agressor ou não), a zona do corpo atingida, o momento e o local escolhido para a agressão, com actuação em espaço fechado, ou aberto, com ou sem espera, com ou sem emboscada, com ou sem estratagema, com ou sem traição, com ou sem perfídia, disfarce, surpresa, dissimulação, engano, abuso de confiança, ou distracção da vítima, ou não, de forma subreptícia, ou não, de forma imprevista ou não, com ataque súbito, inesperado, sorrateiro, ou não, com ou sem possibilidade de a vítima oferecer resistência, enfim, todo o conjunto de factores envolventes e circunstâncias acompanhantes/determinantes do evento letal, ou quase letal, no traço de um desenho panorâmico, de uma imagem multifacetada, de supervisão, de síntese, a final, de um retrato vivencial, de uma fotografia, guardadora de eventos ocorridos, condensada, definida, a juzante, com todos os contornos e pormenores, independentemente dos retoques, e que mais do que a natureza da arma ou instrumento utilizado, indiciam o meio utilizado naquele analisado concreto agir, como particularmente perigoso ou insidioso.

       Daí que, a análise da jurisprudência não se possa ficar apenas pelo que é dito a propósito da (ir)relevância configuradora do instrumento utilizado, de per si, desligado do contexto da, por vezes, complexa, acção em que determinado meio é empregado. 

       Como resulta das Actas das Sessões Parte Especial, 21/26, no seio da Comissão Revisora do Código Penal, a propósito desta circunstância, então prevista na alínea e) do n.º 2 do artigo 138.º do Anteprojecto da Parte Especial, foi proposto pelo Dr. Fernando Lopes que deveriam aditar-se ao adjectivo “insidioso” os adjectivos “traiçoeiro” ou “desleal”, com o fundamento de que mereciam a mesma previsão.

       O Autor do Anteprojecto, Professor Eduardo Correia, em resposta, referiu que a proposta podia retirar elasticidade à estrutura da circunstância pelo que não era aconselhável, na sequência do que a Comissão se pronunciou contra tal proposta, tendo concluído que o sentido da expressão “meio insidioso” contém em si o sentido da expressão “meio insidioso traiçoeiro ou desleal”.

      Atendendo ao modo de execução do facto, rectius, quanto ao instrumento utilizado na agressão, a doutrina e a jurisprudência afastam, de forma uniforme, a qualificação de “meio particularmente perigoso”, circunstância integrante do exemplo padrão previsto na alínea h) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, quando está em causa o uso de armas de fogo ou outras.

      Já quanto à qualificação do instrumento utilizado como integrando a expressão de “meio insidioso”, há diferenças no enquadramento.

      No sentido de que a arma ou outro instrumento utilizado na prática do crime não constitui só por si um meio insidioso, pronunciou-se este Supremo Tribunal por várias vezes.

      Como se refere no acórdão de 11-06-1987, processo n.º 39009, BMJ n.º 368, pág. 312, em caso em que a mulher mata marido batendo-lhe com um pé de cabra Quando a lei (artigo 132.º, n.º 2, alínea f), do Código Penal) fala em «meio insidioso» não quer necessariamente abarcar os instrumentos usuais de agressão (o pau, o ferro, a faca, a pistola, etc.), ainda que manejados de surpresa, mas sim aludir tanto às hipóteses de utilização de meios ou expedientes com uma relevante carga de perfídia, como aos que são particularmente perigosos e que, não pondo em risco o agente, do mesmo passo tornam difícil ou impossíveis a defesa da vítima.

      A título exemplificativo e enquanto extravasam o que se prevê no âmbito dos crimes de perigo comum, estão previstos na referida alínea f) a utilização de certas armadilhas, as instalações eléctricas em casas de banho adrede preparadas para matar logo que se ligue o chuveiro, a introdução de ar ou de vírus mortais no sistema venoso sob o pretexto de se injectar um medicamento, a narcotização do paciente para depois o matar, o acto de conduzir enganosamente a futura vítima a local isolado para aí ser abatida, etc. 

      Esses e outros “meios” similares não deixarão de ser insidiosos e susceptíveis de revelarem a especial censurabilidade do arguido ou a sua perversidade”.

11-12-1991, processo n.º 42286, BMJ n.º 412, pág. 183 – O meio insidioso previsto na al. f) do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal, abrange a espera, a emboscada, o disfarce, a surpresa, a traição, a aleivosia, o excesso de poder, o abuso de confiança, ou qualquer fraude. O uso de uma navalha – instrumento traiçoeiro – no cometimento do crime de homicídio não implica necessariamente a qualificação de perversidade ou maior censurabilidade.

08-01-1992, processo n.º 42205, BMJ n.º 413, pág. 161 – Em caso de pacto de suicídio de dois jovens é afastada a qualificação de faca de cozinha (com 16 cm de lâmina e comprimento total de 28 cm) como meio insidioso. 

04-02-1993, processo n.º 42873, CJSTJ 1993, tomo 1, pág. 186 – Em caso de participação em rixa, em que o arguido foi condenado pelo crime de perigo comum do artigo 260.º do Código Penal, é afastada a qualificativa, sufragando-se a posição da decisão recorrida, quando afirma que no meio de uma refrega generalizada em que eram usados, de um lado e do outro, os mais diversos instrumentos de agressão (vassoura, um tubo de ferro, garrafas, um martelo de cozinha, grades vazias e mesmo uma pistola de pressão de ar), a navalha de ponta e mola utilizada pelo arguido era apenas mais um instrumento (porventura o mais perigoso) que, no circunstancialismo concreto de grande alvoroço e de perigo comum de cada grupo antagonista, não faz inculcar, só por si, a especial censurabilidade ou perversidade.   

 04-05-1994, processo n.º 45661, BMJ n.º 437, pág. 154 - A arma (no caso, uma pistola de calibre 7,65) não pode ser considerada meio insidioso, porque não tem as características de dissimulação na sua influência maléfica, no sentido de meio traiçoeiro e desleal em que a vítima nada desconfia e é apanhada desprevenida.

11-01-1995, processo n.º 46631, BMJ n.º 443, pág. 54 - No mesmo sentido, seguindo os acórdãos de 11 e 26 de Junho de 1987, in BMJ n.º 368, págs. 312 e 340.

17-05-1995, processo n.º 46965, CJSTJ 1995, tomo 2, pág. 201 – Caso em que é considerado verificado o meio insidioso, não pelo uso de navalha, que é considerado e punido como crime autónomo, mas pelo uso de meio traiçoeiro e pérfido, que ocorre quando se distrai a vítima apresentando-lhe um cenário que a esta inspire confiança, por forma a que neutralize as suas possibilidades de reagir àquilo que pretende fazer. 

13-12-1995, processo n.º 48590, in BMJ n.º 452, pág. 248 e CJSTJ 1995, tomo 3, pág. 255 - Citando o referido acórdão de 11-06-1987, diz: “a pistola - semi-automática de calibre 7,65, “Browning” - de que o arguido se serviu é um tipo de arma usualmente empregada no cometimento de homicídios; por outras palavras, a sua vulgarizada utilização não revela, por si só, especial censurabilidade ou perversidade de quem usa esse género de armas para matar alguém”.

17-10-1996, processo n.º 634/96 – 3.ª - Uma pistola de 6,35 mm é um meio usualmente empregue no cometimento de homicídios e um instrumento usual de agressão, pelo que não constitui um meio insidioso para efeitos do artigo 132.º do CP, ainda que manejado de surpresa.

13-02-1997, processo n.º 986/96, SASTJ, n.º 8, pág. 92 – A expressão meio insidioso, embora tenha uma grande amplitude, não abarca necessariamente o homicídio com uma pistola (no caso de calibre 6,35 mm) ou outra arma. (Só merecem qualificar o meio como insidioso, os “instrumentos incomuns de agressão, como por exemplo faca de ponta e mola, gadanha, machado, etc. que praticamente não deixam margem de defesa para a vítima”).

10-12-1997, processo n.º 1207/97-3.ª, SASTJ, n.ºs 15 e 16, pág. 203 e BMJ n.º 472, pág. 142 - Uma navalha não constitui, em si mesma, meio insidioso de produzir a morte, e no caso concreto, não permitindo a forma como a mesma foi utilizada pelo arguido classificá-la como tal, deu-se por não configurada a agravante (citados aqui os acórdãos de 11-06-1987 e de 13-12-1995).

18-02-1998, processo n.º 1086/97-3.ª - Uma pistola de calibre 6,35 mm não constitui só por si, um meio insidioso.

21-01-1999, processo n.º 1099/98, CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 198 – Em caso de tentativa de homicídio, com dolo necessário, de esposa, a viver separadamente, com pistola de calibre 6,35 mm, é seguido o acórdão de 18-02-1998, citado anteriormente. (Lê-se no acórdão: o uso da pistola referida, ainda que com elevada persistência e até com alguma inépcia… não constitui, só por i e em si mesmo, o uso de um meio insidioso).

29-09-1999, processo n.º 184/98-3.ª, SASTJ n.º 33, pág. 88 - Meio insidioso é aquele que torna especialmente difícil a defesa da vítima, por traiçoeiro, desleal, enganador, dissimulado, subreptício, em si mesmo ou na forma da sua concreta utilização.  Um machado, composto de cabo de madeira, com 74 cm de comprimento, tendo a lâmina, de ferro, 10 cm de comprimento, não é em si mesmo um meio insidioso, no sentido de traiçoeiro ou desleal, sendo normalmente bem visível e de previsível efeito agressivo grave. (Caso de ofensa à integridade física, no âmbito de discussão entre dois irmãos, por causa de estremas de propriedades).

23-02-2000, processo n.º 1187/99-3.ª, SASTJ, Edição anual 2000, pág. 34 e BMJ n.º 494, pág. 123 - Em caso de uxoricídio, estando os cônjuges separados, considera-se que não utiliza um meio insidioso o arguido que, na sequência de um encontro dos dois, tira do bolso uma pistola de calibre 6,35 mm, por si usada frequentemente para defesa pessoal, já que era soldado da GNR, e dispara seis tiros seguidos, à distância de cerca de 1 m, sobre a mulher.

     Afastada a qualificativa com estas considerações: “Se é certo que o meio insidioso abrange não só os meios materiais perigosos, mas também um processo enganador, dissimulado, elegendo o agente as condições favoráveis para apanhar a vítima desprevenida, implícita está também no exemplo padrão em causa uma componente subjectiva ao nível da representação e da vontade por forma a que possa fundamentar uma atitude do agente susceptível de um juízo de maior censurabilidade, entenda-se ou não essa componente como integrando dolo em relação aos elementos do exemplo padrão”, concluindo que no caso essa componente subjectiva não existe nos factos provados. 

01-03-2000, processo n.º 17/2000, SASTJ, Edição Anual 2000, pág. 43 - Em caso de ofensa à integridade física sequente a roubo, entende-se que a utilização da navalha não constitui, por si só, nas circunstâncias descritas, um meio insidioso, porque, tendo ela sido usada imediatamente antes para constranger o ofendido a entregar o dinheiro, não se traduziu para este num meio de carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto, caracterizador da insídia que a agravante pressupõe.

17-01-2001, processo n.º 2843/00-3.ª, SASTJ 2001, n.º 47, pág. 68 – Um canivete é um objecto de uso corrente e, como arma branca que também é, pode servir, frequentemente, como arma letal de agressão. Mas, não pode integrar-se no conceito jurídico-penal de meio insidioso. (Em declaração de voto, refere-se que meio insidioso não tem a ver exclusivamente com o instrumento utilizado, mas essencialmente, com o modo e as circunstâncias com que foi usado).

21-11-2001, processo n.º 2447/01-3.ª – Afastada a qualificativa em caso de uso de arma de fogo de calibre 6,35.

15-05-2002, processo n.º 1214/02 – 3.ª – Segue a orientação do supra referido acórdão de 18-02-1998, processo n.º 1086/97-3.ª.

16-10-2003, processo n.º 3280/03-5.ª, SASTJ n.º 74, págs. 183/5 – Em situação em que o sogro mata o genro com um tiro de caçadeira na cabeça, num quadro de violência doméstica exercido pela vítima sobre a filha e netos do arguido, refere-se: “A circunstância de, no caso, a arma do crime ter sido uma espingarda de caça, reforça a ideia de total desajustamento ao conceito de “meio insidioso”, pois uma arma desse tipo, quando comparado com uma pistola ou um revólver, pela sua maior dimensão – para mais usada nos confins necessariamente acanhados de uma casa de habitação, no caso, de um quarto de dormir - torna-se, notoriamente, num instrumento de muito mais difícil manuseamento, e ainda de mais difícil dissimulação. Por mais abrupta que seja ou tivesse sido a intervenção do agressor, jamais se pode equiparar, para efeitos de capacidade de dissimulação do meio e correspondente inconsciência de necessidade de defesa da vítima, essa utilização com a de um outro que, pelo seu carácter dissimulado, oculto, subreptício, enganador, assuma características análogas às do veneno, a ponto de, como regra, a vítima nem sequer suspeitar que está a ser atingida”.   

      

       Noutros casos não se atende apenas à natureza do meio utilizado.

       Como pode ler-se no acórdão de 19-06-1996, processo n.º 203/96-3.ª, SASTJ n.º 2, pág. 51, , na jurisprudência do STJ sobre o assunto é detectável uma concepção segundo a qual, não é o instrumento em si que constitui o “meio insidioso”, mas antes o seu uso em determinadas circunstâncias, que revelam uma carga de perfídia e tornam difícil ou impossível a defesa da vítima. E são precisamente essas circunstâncias, as decisivas para conduzir a um juízo sobre a verificação do requisito de agravação especial contemplado no tipo de homicídio agravado.

      E de acordo com o acórdão de 13-12-2000, processo n.º 2753/00-3.ª, CJSTJ 2000, tomo 3, pág. 241, após referir-se que “Uma pistola de calibre 6,35 mm, o usual nas pistolas de defesa, não constitui, em si mesmo, um meio particularmente perigoso; sendo perigoso, não corresponde ao nível de exigência qualificativa pressuposto na alínea g); mas adianta que a utilização de uma pistola, em certas circunstâncias, como ocorre no caso aí em apreciação, pode constituir meio insidioso”, salienta-se: “ É que, por vezes, a insídia não se situa no tipo de arma que é utilizada na acção, mas no conjunto de circunstâncias que envolvem tal utilização, residindo aí sim, a especial censurabilidade ou perversidade do agente”.

       Vejamos essa outra abordagem acerca dos meios utilizados, nos acórdãos de:

25-06-1987, processo n.º 39061, BMJ n.º 368, pág. 340 – Em caso em que foi utilizada caçadeira, pode ler-se: A expressão “meio insidioso” contem um conceito amplo ou elástico por forma a abranger as hipóteses de uso de meio que, nas circunstâncias concretas, revele a especial censurabilidade ou perversidade do agente que estão na base da qualificação do crime. Por conseguinte, só o apelo a essas circunstâncias pode conduzir ao juízo, positivo ou negativo, sobre a verificação da agravação especial. (Critério adoptado no acórdão de 10-10-2002, processo n.º 2577/02 – 5.ª).

25-09-1997, processo n.º 611/97-3.ª, SASTJ 1997, n.º 13, pág. 141 e BMJ n.º 469, pág. 359 – Em caso de uxoricídio, após considerar-se que a jurisprudência e a doutrina têm considerado que o meio insidioso tem uma grande amplitude, comprGGndendo os meios aleivosos, traiçoeiros e desleais, mas que tem-se defendido que tal amplitude não abarca desde logo as formas comuns de agressão, só devendo considerar-se como meio insidioso o instrumento incomum de agressão que deixa à vítima uma margem de defesa reduzida, afirma-se: “Tratando-se de um meio incomum de agressão que deixa à vítima uma margem de defesas reduzida, o uso de um martelo de orelhas, em ferro, como arma deve considerar-se meio insidioso, qualificando o crime de homicídio (art. 132.º, n.º 2, alínea f) do Código Penal).

10-10-2002, processo n.º 2577/02 – 5.ª - Com várias referências jurisprudenciais, adopta o critério do acórdão de 25-06-1987, em situação em que o arguido, sem que nada o fizesse prever, sem qualquer aviso, quando o assistente se encontrava em cima de um  telhado a trabalhar, especialmente exposto, vulnerável e indefeso, disparou contra ele um tiro de caçadeira e como este amedrontado se tivesse refugiado agachado atrás de uma porta, o arguido perseguiu-o com a caçadeira e uma pistola e com esta desferiu-lhe dois tiros de cima para baixo na cara e pescoço, socorrendo-se de meio insidioso.

     A jurisprudência do STJ tem considerado abrangidos nesta alínea os casos particulares de disparos à traição ou quase à queima roupa, onde a surpresa somada à posição tomada pelo arguido tornam praticamente impossível qualquer defesa da vítima.

     Assim, a título de exemplo, nesta vertente, nos acórdãos seguintes.

11-05-1983, processo n.º 36693, BMJ n.º 327, pág. 458 – Caso de arguido que interceptado por patrulha da GNR, sendo mandado entrar na viatura onde os soldados se deslocavam para os acompanhar ao posto, logo que se sentou, sacou da pistola Walter e inclinando-se sobre o encosto do banco do condutor, disparou a uma distância inferior a quinze centímetros do condutor, concluindo-se ter o arguido utilizado um meio insidioso por ter disparado à traição (género de que são espécies a emboscada e a surpresa), não deixando à vítima qualquer possibilidade de defesa. 

02-05-1996, processo n.º 148/96, SASTJ n.º 1, pág. 34 – O conceito de meio insidioso para qualificar o homicídio é amplo, e pode abranger a traição, a emboscada e a simulação, ou seja, os meios aleivosos, traiçoeiros e desleais. Ele não resulta do mero uso de espingarda caçadeira, mas de todo o conjunto de circunstâncias em que ela foi utilizada, designadamente disparos à traição e quase à queima roupa e surpresa pelos disparos, tudo tornando quase impossível qualquer defesa. Assim, é desta forma qualificado o homicídio praticado pelo arguido, que à porta do quarto de dormir da vítima apontou uma arma carregada, a cerca de dois metros de distância desta e disparou 4 vezes, sendo a vítima amigo da família, cuja residência o arguido costumava frequentar.

21-05-1997, processo n.º 188/97 – A utilização de uma pistola de defesa pode ser considerada instrumento insidioso, se o agente a usou de maneira insidiosa. Age à traição e sem piedade, o arguido que puxa de uma pistola, reduz a distância que o separa da vítima e com ela dispara quando esta se encontrava de costas, tendo a vítima se baixado após o primeiro disparo e sido atingida na cabeça com um segundo que lhe causou a morte.

24-02-1999, processo n.º 1365/98-3.ª, SASTJ n.º 28, pág. 86 – Caso de arguido que surge repentinamente junto da vítima e por trás, com uma navalha de ponta e mola com a respectiva lâmina já aberta, que media 10,5 cms, desfere um golpe no abdómen, e de seguida outro, atingindo-a no flanco esquerdo. Considera-se que o arguido ao utilizar um instrumento traiçoeiro, provocando a oportunidade e o momento para a agressão, surpreendendo a vítima por forma repentina e traiçoeira e insistindo na actuação criminosa, actuou de modo insidioso intenso.

20-05-1999, processo n.º 1455/98-3.ª, SASTJ n.º 31, pág. 88 - Sob o conceito de insídia visa-se abranger todo aquele conjunto de situações em que, no fundo, a traição e a surpresa estão subjacentes. Em caso em que o marido, encontrando-se com a mulher no interior do carro, de repente, sacou do porta luvas uma pistola e que empunhando-a e apontando-a em direcção à cabeça daquela, desferiu um tiro, que lhe veio a provocar a morte, considera-se que esta dissimulação da pistola no porta luvas e o repentismo da actuação são de molde a consubstanciar a insídia.

07-12-1999, processo n.º 1034/99-3.ª, CJSTJ 1999, tomo 3, pág. 234, e BMJ, n.º 492, pág. 168 - São meios insidiosos aqueles que possam rotular-se de traiçoeiros, desleais ou perigosos, ou em que haja a ideia de estratagema, de disfarce ou artimanha daquele que o usa.

      Faz uso de meio insidioso aquele que, ao procurar a vítima, com a qual altercara por duas vezes, munido de uma espingarda de pressão de ar, transformada, não saindo de dentro da sua viatura, com a arma ocultada deitada sobre os joelhos e com o cano virado para a direita, tendo chamado a vítima para logo de seguida disparar à “queima-roupa”, de tal forma inesperada que o tiro já estava consumado quando a vítima esboçava o gesto de afastar de si o cano da arma.

         Vejamos agora outras decisões em que são fornecidos contributos para a definição e enquadramento da qualificativa em causa.

        

          Assim, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de:  

19-12-1989, processo n.º 40392, BMJ n.º 392, pág. 243 – Quando na alínea f) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, se fala em meio insidioso, a lei quer aludir não só às hipóteses de utilização de meios ou expedientes com uma relevante carga de perfídia, mas também aos que são particularmente perigosos, e que não pondo em risco o agente, do mesmo passo torna difícil ou impossível a defesa da vítima. O conceito abrange os meios aleivosos, traiçoeiros ou desleais, abarcando, atentas a sua latitude e elasticidade, os crimes cometidos com emboscada, traição, aleivosia ou estratagema.  

06-06-1990, processo n.º 41009, CJ 1990, tomo 3, pág. 19 e BMJ n.º 398, pág. 269 – Em caso de tentativa de homicídio, refere-se: Aquele que, num lar de idosos, tendo havido anteriores discussões, inopinadamente sem que alguém se apercebesse das suas intenções, levantando-se da sua mesa e aproximando-se da mesa da vítima, colocando-se atrás desta – que dormitava com a cabeça apoiada nos braços e sobre a mesa – desfere com uma navalha três golpes na cabeça do ofendido, actua utilizando um meio insidioso que se traduz num meio traiçoeiro e desleal com um instrumento gravemente perigoso. Considera-se que a agressão foi ainda cometida com motivo fútil, utilizando instrumento gravemente perigoso, com frieza de ânimo e reflexão sobre os meios empregados.

14-04-1994, processo n.º 46437, CJSTJ 1994, tomo 1, pág. 263 – Comete o crime de homicídio qualificado tentado, o arguido que, sem qualquer troca de palavras, de noite, golpeou o ofendido, no peito e na face, com uma faca de que estava munido, com o propósito de lhe retirar a vida, visto se ter socorrido de meio insidioso, que é sinónimo de traiçoeiro.

26-06-1996, processo n.º 533/96, SASTJ n.º 2, pág. 60 – A utilização pelo arguido de uma arma de fogo, tirando a vida à vítima com ela, sem lhe dar qualquer possibilidade de defesa, integra a agravante da alínea f) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.   

4-07-1996, processo n.º 48774, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 222 – Em caso de homicídio qualificado tentado, decide-se: “Age à traição, utilizando meio insidioso, o arguido que, munido de uma faca de cozinha, se dirige para o quarto da ofendida, sua esposa, e quando esta se encontrava deitada a dormir, desferiu um golpe com esse instrumento, atingindo-a no abdómen”.

      Considera-se que “a surpresa e a deslealdade do ataque deram origem à completa desprotecção da ofendida, aumentando seriamente as probabilidades de lesão do bem jurídico vida”. (Seguem-se aqui os acórdãos de 11-06-1987 e de 19-12-1989, publicados no BMJ, n.º s 368 e 392, a págs. 312 e 243).

31-10-1996, processo n.º 725/96, BMJ n.º 460, pág. 444 – Considera-se preenchida a circunstância em caso em que, decidido a vingar-se, o arguido muniu-se de uma caçadeira, escondeu-se na berma da estrada e aguardou a passagem do veículo. Depois, de forma traiçoeira, efectuou vários disparos a curta distância do automóvel do assistente de modo que este nem sequer se apercebesse que estava a ser objecto de um atentado, tornando impossível a sua defesa, a tudo acrescendo a perigosidade da arma utilizada, o local escolhido e a desprotecção do ofendido. Pelo crime de homicídio qualificado tentado é aplicada a pena de 10 anos de prisão. (Com o mesmo relator do acórdão anterior que é citado, bem como os aí citados).

9-10-1997, processo n.º 1319/96, BMJ n.º 470, pág. 217 – Em caso de ofensa à integridade física corporal qualificada, considera-se que “Uma pedra, mesmo utilizada na mão, porque meio objectivamente apto a provocar ferimentos ou lesões graves, é de considerar insidioso”.

29-10-1997, processo n.º 647/97-3.ª, SASTJ n.º 14, pág. 162 – Meio insidioso é o que utiliza a insídia. Esta é aleivosia, traição, o mesmo é dizer, ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima descuidada, antes de perceber o gesto criminoso.

      Revela especial censurabilidade ou perversidade, na medida em que utiliza meio insidioso, a conduta do arguido que, transportando uma arma de fogo (espingarda caçadeira) embrulhada num saco de papel, sem a exibir à vítima nem trocar com esta qualquer palavra, apanhando-a desprevenida, disparou com aquela arma sobre esta, causando-lhe a morte.

29-10-1997, processo n.º 1081/97-3.ª, SASTJ n.º 14, pág. 166 – Constitui meio insidioso, revelando uma espacial censurabilidade e perversidade, o seguinte quadro de circunstâncias:

- Se o arguido, munido de uma arma de fogo, se aninhou entre giestas, junto a uma estrada, esperando que outra pessoa ali passasse, como o fazia habitualmente;

- Se, quando a pessoa se aproximou, conduzindo a sua motorizada, na qual transportava a sua mulher, o arguido se levantou, fez pontaria na direcção e à altura da cabeça daquela e, à distância de cerca de dois metros, disparou voluntariamente um tiro com a arma referida, com intenção de atingir e tirar a vida da mesma;

- Se o arguido disparou a arma de fogo sem qualquer troca de palavras com a vítima, que se encontrava desarmada, desprevenida e indefesa, pretendendo vingar-se da imputação por esta feita acerca dos ferimentos ocasionados num cão.  

12-11-1997, processo n.º 1203/97-3.ª, SASTJ n.º 15 e 16, pág. 164, e BMJ n.º 471, págs. 47 a 114 – Em caso de arguidos ligados ao movimento de skinheads em Portugal, afirma-se: “Constitui meio insidioso de provocar a morte, revelando uma especial censurabilidade e perversidade, o seguinte quadro de circunstâncias:

- se onze homens, cinco dos quais calçando botas com biqueira em aço, pontapeiam e dão murros a um único homem;

- se, ainda por cima, um dos onze homens pega na base de cimento de um sinal de trânsito e dá com ela duas vezes na cabeça da vítima:

- se, para além daquilo, três dos onze homens voltam depois atrás para darem ainda mais pontapés na vítima já agonizante, tudo numa rua que parece deserta e cerca da 1 H 30 M”.

11-12-1997, processo n.º 1050/97-3.ª, SASTJ, n.ºs 15 e 16 (Novembro e Dezembro de 1997) pág. 209 – No conceito de meio insidioso – cuja amplitude visa especialmente flexibilizar o conceito ou evitar que se lhe retire elasticidade – cabem todos aqueles que possam rotular-se de traiçoeiros e desleais ou perigosos e, gravemente perigosos, enquanto instrumentos de agressão, nele se devem considerar em atenção à experiência comum as armas brancas (facas, punhais, navalhas, etc.), que mais difícil (ou mesmo impossível) tornam a defesa da vítima e de consequências mais graves (ou irreparáveis) a agressão.

     Comete o crime de homicídio qualificado, p. p. pelas alíneas c) e f), do n.º 2 do art. 132.º, o arguido que desfere ao ofendido uma navalhada, atingindo-o em zona do corpo que apanhasse (“onde calhasse”), mesmo que aí tivesse órgãos vitais, conformando-se com qualquer resultado que daí adviesse, designadamente a morte que representou como possível, desferindo-lha pelo simples facto de o ofendido se recusar a acompanhá-lo à discoteca. 

5-02-1998, processo n.º 1159/97, BMJ n.º 474, pág. 300 (citado no acórdão de 02-04-2009, CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 186) - Age com especial censurabilidade e perversidade o arguido que agiu através de um meio traiçoeiro e desleal, com uma arma e diversos cartuchos de zagalote, esperando a vítima, acoitado pelos arbustos e sem que este pudesse contar com a emboscada e assim, defender-se em igualdade de armas ou com alguma possibilidade de resistência. 

1-10-1998, processo n.º 673/98, CJSTJ 1998, tomo 3, pág. 180 – O recurso a uma navalha ou canivete, como arma branca que é, que fica quase escondida na mão, tem sido considerado como utilização cobarde e insidiosa de uma arma de corte, isto é, (no caso) como comissão de um crime de ofensas à integridade física com utilização de meio insidioso. 

14-11-1998, processo n.º 732/98 – A alínea f) do n.º 2 do art. 132.º, do CP, ao falar em meio insidioso quer aludir não só às hipóteses de utilização de meios ou expedientes com uma relevante carga de perfídia, mas também aos que são particularmente perigosos e que, não pondo em risco o agente, do mesmo passo tornam difícil ou impossível a defesa da vítima.

28-10-1999, processo n.º 843/99-5.ª, SASTJ 1999, n.º 34, pág. 84 - O arguido, ao disparar uma caçadeira, alta noite, contra uma pessoa que assoma a uma janela, a cerca de 10 metros de distância, utiliza, para ferir, um meio particularmente perigoso e insidioso.

27-09-2000, processo n.º 292/00-3.ª, SASTJ, Edição Anual 2000, pág. 126 - Meio insidioso é aquele que, tal como o veneno, a que a lei actual o equipara, tem, em si mesmo ou na forma por que é utilizado, um carácter enganador, dissimulado, imprevisto, traiçoeiro, desleal para a vítima, constituindo para esta uma surpresa ou colocando-a em situação de especial vulnerabilidade ou desprotecção que torna para ela especialmente difícil a sua defesa.

     Resultando da matéria de facto que o arguido, quando caminhava à frente da vítima – para fazer a entrega, a esta, das vacas, com o que havia concordado – virou-se de forma repentina e inesperada, e sem aviso, empunhando uma faca, com ela vibrou um golpe na região anterior do hemitorax esquerdo do ofendido, é manifesto que o uso da faca, em tais circunstâncias, constitui meio insidioso.  

28-02-2002, processo n.º 226/02-5.ª – Meio insidioso é aquele “cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas às do veneno – do ponto de vista do seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto”.

15-05-2002, processo n.º 1214/02 – 3.ª – É meio insidioso aquele que tem em si mesmo ou na forma por que é utilizado um carácter enganador, dissimulado, imprevisto, traiçoeiro, desleal para a vítima, constituindo para esta uma surpresa ou colocando-a em situação de especial vulnerabilidade ou desprotecção que lhe dificulta a defesa.

15-10-2003, processo n.º 2451/03-3.ª , SASTJ n.º 74, pág. 133 – A atitude do arguido, ao usar uma arma de guerra (pistola semiautomática de calibre 9 mm Parabellum, previamente municiada com sete balas), e que quando se encontrava a cerca de um metro da vítima, apontou a arma à cabeça desta e sem sequer lhe ter dirigido a palavra, efectuou um disparo, atingindo-o na zona frontal média, sem qualquer hipótese de defesa ou de sobrevivência da vítima, foi traiçoeira e pérfida, revelando uma particular perversidade e uma especial censurabilidade.   

30-10-2003, processo n.º 3252/03-5.ª, SASTJ, n.º 74, pág. 198, e CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208 – Em caso de uxoricídio, punido como homicídio agravado atípico, diz-se: O meio insidioso, justamente por sê-lo, não poderá deixar de ser também, «especialmente perigoso», justamente por causa da dissimulação e, portanto, da sua acrescida capacidade de eficiência por via da natural não oposição de qualquer resistência por parte da vítima que, em regra, perante a insídia, nem sequer suspeitará de que está a ser atingida.

   Adita-se o seguinte “ Se, no caso, não se conhece a razão por que se precipitou a cena violenta de que o arguido e a vítima foram os protagonistas, se, não obstante a surpresa, não foi, naturalmente, possível ao arguido, ocultar o uso das facas com que cometeu o uxoricídio, se, enfim, com conhecimento do arguido havia pessoas no exterior da casa, cuja presença impediria, decerto, qualquer hipótese de o acto criminoso passar despercebido, então só pode concluir-se pela não verificação daquela agravante-padrão.  

20-05-2004, processo n.º 1127/04-5.ª, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 195 (com uma declaração de voto) - O meio é insidioso quando corresponde a um processo enganador, dissimulado, elegendo o agente as condições favoráveis para apanhar a vítima desprevenida. Age de forma desleal e traiçoeira, apanhando a vítima desprevenida, quem, utilizando uma arma de fogo que apenas exibiu junto desta última, logo efectuando o correspondente disparo, não permitiu à mesma qualquer tipo de reacção.

17-03-2005, processo n.º 546/05 – 5.ª, SASTJ, n.º 89, pág. 106 - No conceito de meio insidioso  cabem todos aqueles meios que possam rotular-se de traiçoeiros, desleais ou perigosos. A traição constitui um meio insidioso e pode ser definida como um ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima descuidada ou confiante, antes de perceber o gesto criminoso.

13-07-2005, processo n.º 1833/05-5.ª, CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 244 – Tendo-se tão só provado que a vítima – namorada do arguido, com quem tinha uma relação marcada por ciúmes mútuos – estava na cama quando foi atingida pelo disparo da arma do arguido, não se pode concluir, a partir de tão escassos factos, que foi usado um meio insidioso e/ou que foi utilizado um meio particularmente perigoso.

20-12-2005, processo n.º 2887/05-5.ª, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 238 – Em situação em que encontrando-se a vítima, sozinha no quarto, o marido sem que aquela se apercebesse, entrou no quarto e, empunhando o revolver, dispara sobre a mulher, atingindo-a na cabeça. Considera-se que o agir subreptício, oculto e traiçoeiro do arguido, aproveitando um momento de alguma descontracção e indefesa da vítima quando se preparava para se deitar, configura meio insidioso.

13-07-2006, processo n.º 1926/06-5.ª, CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 244 – O disparo de uma arma de fogo, que o arguido sacou de forma subreptícia de uma mochila, de surpresa, quando as vítimas estavam desprevenidas sentadas, uma num sofá e outra numa cama, consubstancia um meio insidioso para efeitos do artigo 132.º, n.º 2, alínea h), do Código Penal (cita anteriores acórdãos de 20-05-2004 e 17-03-2005).

26-03-2008, processo n.º 292/08 – 3.ª - Actuação do arguido com espera da ex-companheira, surpresa e dissimulação apanhando a vítima inteiramente desprevenida, encurralando-a no veículo e colocando-a completamente à sua mercê, sobre ela disparando sucessivamente quatro tiros à queima roupa.

27-05-2010, processo n.º 58/08.4JAGDR.C1.S1-3.ª, CJSTJ 2010, tomo 2, pág. 210 – O meio insidioso, conceito de difícil definição, tem subjacente uma ideia de utilização de meio dissimulado em relação ao qual se torna mais precária ou ténue, uma reacção defensiva. É uma forma de praticar o crime de homicídio que, normalmente, está associado a uma prévia determinação do meio ou instrumento do crime tornando particularmente difícil uma atitude preventiva pela vítima, ou eventualmente, a própria detecção da existência do crime.

     Não configura esta circunstância, nem a de motivo fútil, o culminar de uma desavença em que as paixões destiladas pelo ódio levaram o arguido a desferir golpes na vítima com uma roçadora na região tempo-occipital, dando além disso murros e pontapés na vítima, tendo de seguida colocado a mesma num poço com água, aí acabando por se afogar.          

09-09-2010, processo n.º 30/08.4PEHRT.S1-5.ª – Afasta a verificação do meio insidioso, em caso em que o arguido depois de uma emboscada à vítima e de lhe tapar a boca e o nariz, impedindo que a vítima respirasse e fazendo com que ela desmaiasse, o arrasta para o interior de uma mata, e inanimada, foi procurar uma pedra, vibrando com a mesma pancadas na face e cabeça, matando-a.  
     Por em rigor não se conseguir estabelecer a conexão entre o crime de homicídio e o meio insidioso usado pelo arguido: este emboscou-se, é certo, e apanhou a vítima desprevenida, mas desconhece-se com que objectivo.
     Mantida a qualificativa da alínea c) – “praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa” - e confirmada a pena de 19 anos de prisão.
02-02-2011, processo n.º 1375/07.6PBMTS.P1.S2-3.ª – Considerada integrada a alínea i) em situação em que o arguido atinge o ofendido na parte superior das costas ao nível do tórax com uma faca de mato, desferindo o golpe com violência, de modo imprevisto, sem que a vítima - ex-colega de trabalho no local - se apercebesse e tivesse tempo de reagir.
04-05-2011- processo n.º 1702/09.1JAPRT.P1.S1-3.ª - A traição como meio insidioso deve ser definida como sendo o ataque súbito e sorrateiro, atingindo a vítima descuidada ou confiante antes de perceber o gesto criminoso.  
07-09-2011, processo n.º 356/09.0JAAVR-3.ª – O arguido de 72 anos, munindo-se de uma arma de fogo e de uma arma branca, introduziu-se na residência dos ofendidos (anexo à sua residência), e entrou no quarto de dormir onde ambos se encontravam deitados, disparando sobre ambos, esfaqueando-os de seguida. Considera que o a arguido agiu insidiosa e traiçoeiramente, pois procurou as condições em que os factos poderiam ser cometidos de forma mais eficaz, sem possibilidade de reacção das vítimas, tendo-se munido de meios materiais particularmente perigosos, factores que conjugadamente colocaram as vítimas em situação de extrema vulnerabilidade.
       Procedeu à convolação do homicídio tentado simples para qualificado (e apenas este por a assistente não ter legitimidade para representar a filha dela e do falecido, tendo sido rejeitado o recurso e em atenção à proibição de reformatio in pejus), sendo aplicada a pena de 9 anos de prisão, em vez da pena de 7 de prisão aplicada na primeira instância, e em cúmulo jurídico com a pena de 12 anos pelo homicídio simples, foi fixada a pena de 17 anos de prisão.

       Passando aos contributos da Doutrina.  

       

       Dentro da elasticidade do conceito, Nelson Hungria, in Comentário ao Código Penal Brasileiro, volume V, págs. 167 a 169, refere que meio insidioso é uma expressão com grande amplitude, que pode ser um “meio dissimulado na sua influência maléfica”, podendo também ser um “meio fraudulento ou subreptício por si mesmo”, que inclui traição (“ataque súbito e sorrateiro, atingida a vítima descuidada ou confiante, antes de perceber o gesto criminoso”), emboscada (“dissimulada espera da vítima em lugar onde terá de passar”), ou simulação (“ocultação da intenção hostil, para acometer a vítima de surpresa e para lhe diminuir e retirar toda a possibilidade de defesa”).
      Para Fernanda Palma, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, 1983, pág. 65, a possibilidade de qualificação deriva da circunstância de os meios utilizados, dado o seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto, tornarem especialmente difícil a defesa da vítima ou arrastarem consigo o perigo de lesão de uma série indeterminada de bens jurídicos.
      Defende a delimitação do outro meio insidioso por referência à utilização do veneno, afirmando: “O insidioso tem a função de exprimir aqueles meios que actuam com a mesma intensidade, facilidade e dificuldade de serem descobertos que o veneno, não tendo pois a função de exprimir uma atitude do agente, mas a eficácia objectiva de um meio”.
      Para o Prof. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, § 27, págs. 38-39, meio insidioso será “todo o meio cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas à do veneno - do ponto de vista pois do seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto”.

      Teresa Serra, in Homicídios em Série, conferência integrada em Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal (de 1995), CEJ, 1998, volume II, págs. 153-154, e Jornadas sobre a revisão do Código Penal, em edição da AAFDL, 1998, págs. 131 a 133, a propósito da questão de saber em que medida o desamparo da vítima pode ou não apresentar uma estrutura valorativa próxima da imagem do exemplo padrão então contido na alínea f), ao contrário de Fernanda Palma para quem o insidioso tem a função de apenas exprimir a eficácia objectiva de um meio, propende a efectuar uma interpretação com sentido amplo, de modo a incluir a função de exprimir uma atitude do agente, que explora e aproveita a vulnerabilidade física e ingenuidade da vítima, revelando uma personalidade especialmente perversa. Refere que “… reconhece-se geralmente que a noção de meio insidioso abrange não apenas meios materiais especialmente perigosos de execução do facto, mas também a eleição das condições em que o facto pode ser cometido de modo mais eficaz, dada a situação de vulnerabilidade e de desprotecção da vítima em relação ao agressor: é o caso da facada traiçoeira pelas costas ou do disparo de arma de fogo em emboscada, meios que retiram à vítima qualquer capacidade de protecção. Aliás, o fundamento da qualificação contida nesta alínea reconduz-se precisamente à utilização de meios pelo agente, por forma a aproveitar-se dessa desprotecção da vítima” (realces nossos).

      Maria Margarida Silva Pereira, in Textos, Direito Penal II. Os Homicídios, volume II, AAFDL, 1998, pág. 42, ao referir-se ao homicídio por traição ou por insídia, para usar a expressão do Código, diz que “Trair é aproveitar distracção, enganar a vítima, criar uma situação que a coloque em posição de não poder resistir com a mesma facilidade”.

       Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes contra as pessoas, 2.ª edição, Quid Juris, 2008, pág. 79, diz a propósito: “Está em causa o modo de execução do crime, nomeadamente através de uma actuação insidiosa. Ou seja, o agente utiliza um meio traiçoeiro, enganador, que expõe a vítima para que se reduzam as suas possibilidades de defesa. A vítima desconhece que o agente está a empreender um processo casual com vista à produção da sua morte, por isso torna-se numa “presa” fácil e desprotegida, sem hipótese de defesa. (…) A pedra de toque que nesta circunstância faz pressupor a maior censurabilidade é a traição, por esse motivo o envenenamento da vítima surge apenas para demonstrar o espírito que a norma pretende alcançar, abrindo a hipótese de utilização de outros meios insidiosos.

       A análise do meio insidioso passa por abordar a forma como a vítima se encontrava, e o modo como o agente empreendeu a sua conduta. Assim, por exemplo, um faca pode ser utilizada de forma insidiosa, se, no meio de uma multidão, alguém atingir outro pelas costas, ou se a vítima se encontrar a dormir”.

       Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado, 18.ª edição, 2007, pág. 517, reportando-se ao meio insidioso entende que se trata de um conceito amplo, onde caberia o próprio veneno, e que abarca os meios aleivosos, traiçoeiros e os desleais. Acrescenta que “não foram particularizados quaisquer meios para não retirar elasticidade ao conceito”, devendo haver, devido a esta elasticidade, “um particular cuidado na concreta indagação e constatação da especial censurabilidade ou perversidade que estão na base da agravação, e que são sua condição sine qua non”.

Revertendo ao caso concreto.

      Versando esta qualificativa disse o acórdão de Santa Comba, a fls. 598 a 602:

       «Vindo provado, como vem, que, o arguido formulou o propósito de tirar a vida aos mencionados FF e EE enquanto estes dormiam, que entrou no quarto onde os mesmos dormiam munido do machado descrito na factualidade provada, com o qual desferiu pelo menos dois golpes da cabeça da FF enquanto a mesma dormia e que, por isso, não se apercebeu da sua presença, e que de seguida, munido do mesmo machado, se dirigiu ao colchão onde se encontrava o EE, o qual, momentos antes, havia acordado, por se ter apercebido de barulho no quarto, que, contudo, não conseguira identificar, e lhe desferiu um golpe dirigido à cabeça, quando o mesmo se encontrava na posição de semi-erguido, com o tronco já levantado do colchão e com as pernas ainda estendidas sobre este, tendo o EE conseguido diminuir a velocidade de progressão da lâmina do machado na direcção da sua cabeça, protegendo-a com o braço direito, mas, ainda assim, tendo a lâmina do machado atingiu a cabeça deste, afigura-se-nos não poder deixar de propender-se para que qualquer uma das duas mencionadas vítimas foi colhida de surpresa pelo arguido, a FF sem qualquer hipótese de defesa porque estava a dormir quando foi golpeada com o machado e o EE com a suas capacidades de defesa fortemente diminuídas, tendo em conta que quando foi golpeado na cabeça ainda não tinha conseguido levantar-se totalmente do colchão onde se encontrava deitado, por apenas momentos antes ter sido despertado por barulho no quarto e se ter apercebido que alguém se dirigia a si, empunhando um machado, só lhe restando proteger, como protegeu com o braço direito, a cabeça, assim tendo conseguido diminuir a velocidade de progressão da lâmina do machado na direcção da sua cabeça, estando assim, no entender do Tribunal demonstrados factos susceptíveis de inculcar que o arguido, à falsa fé, se aproveitou da situação das duas vítimas por si visadas estarem enlevadas no sono, e, por isso, sem possibilidade de esboçarem qualquer reacção tendente a impedi-lo de lhes tirar a vida ou, pelo menos, com essa possibilidade diminuída, no caso de entretanto acordarem.

       É que o arguido, usando esse tipo de comportamento naquelas circunstâncias, tornou-se digno de uma censura especial, por força de uma atitude especialmente desvaliosa, em que demonstrou uma particular insensibilidade e indiferença relativamente a valores tão fundamentais como a vida, matando a mencionada FF com dois golpes desferidos sobre a cabeça desta e desferindo, com vista a alcançar o mesmo resultado, um golpe na direcção da cabeça do mencionado EE, sem aparentemente ter vencido qualquer resistência ética.

      Conclui-se, pois, e em face das considerações acabadas de tecer, pela qualificação dos crimes cometidos pelo arguido nos termos da citada alínea i) do N°2 do Art. 132° do C. Penal, por utilização de meio insidioso».

      Face à facticidade apurada, dúvidas não há de que, atendendo não só à natureza do instrumento utilizado, mas ao modo e conjunto de circunstâncias em que actuou, visando a FF, aproveitando o facto de esta se encontrar a dormir, sem qualquer possibilidade de defesa, agindo de forma traiçoeira e subreptícia, é de ter a conduta do arguido como especialmente censurável e agindo de modo perverso, ao cometer o crime que vitimou aquela com meio insidioso.

      Mas já no que toca à tentativa de homicídio na pessoa de EE, pese embora tenha sido utilizado exactamente o mesmo instrumento, a situação apresenta já contornos algo diferentes. O arguido depois de ter golpeado a FF, dirigiu-se ao EE, que dormia num colchão no chão ao lado da cama (facto provado n.º 10), mas este não foi apanhado de surpresa, nem estava já a dormir quando o arguido a ele se dirigiu. Como resulta dos factos provados n.ºs 15, 16, 17 (este último, aliás, introduzido em aditamento, como facto novo), o EE momentos antes acordara por se ter apercebido do barulho, tendo-se levantado para se defender, e encontrava-se na posição de semi-erguido, tendo levantado o braço direito e impedido que o arguido actuasse como pretendia, após o que se envolveram numa luta corpo a corpo (facto provado n.º 19). 

      Não houve, assim, surpresa, pois que como ficou provado no ponto n.º 22 dos factos provados, o EE apercebeu-se a tempo das intenções do arguido, tendo ao levantar o braço diminuído a velocidade de progressão da lâmina na direcção da sua cabeça.

      A conduta do arguido consubstanciada na agressão a EE não será pois reveladora de especial censurabilidade e perversidade, pelo menos em função deste exemplo regra, por não preenchimento do mesmo.  

      Conclui-se, assim que será de manter a qualificativa da alínea i) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal em relação ao homicídio consumado, mas havendo que alterar a qualificação quanto ao crime de homicídio tentado, retirando-se esta qualificativa.

       II Questão – Frieza de ânimo

      O acórdão recorrido deu por verificada a qualificativa da frieza de ânimo, igualmente imputada na acusação, quer no que respeita ao crime de homicídio consumado, quer mesmo em relação ao homicídio tentado, sendo esta a única qualificativa constante do acórdão recorrido da qual discorda o recorrente na motivação de recurso, contra ela se insurgindo – cfr. conclusões I a VII -, acrescendo que a Exma. Procurador-Geral Adjunta, no douto parecer emitido, entende não se verificar a mesma, ao que parece numa primeira análise apenas relativamente ao homicídio tentado, mas efectivamente reportado a ambos os crimes.

      Vejamos se é de manter essa qualificação, no que tange aos dois crimes de homicídio, quer na forma consumada, quer na tentada.

Estabelece-se na referida alínea j), na redacção actual:

j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas.

     Esta formulação foi introduzida, substituindo a redacção inicial, originária de 1982, então plasmada na alínea g), pela terceira alteração do Código Penal, operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15-03, entrada em vigor em 1 de Outubro de 1995 [conferir a alínea 88) do artigo 3.º- B, da Lei n.º 35/94, de 15-09 - Lei de autorização legislativa para revisão do Código Penal -, de que emanou aquele Decreto-Lei, e da qual consta, i. a., “… substituir a redacção da alínea g) por «Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de 24 horas»”], assim se mantendo o seu conteúdo desde então, apenas se alterando a inserção em diversa alínea do n.º 2 do artigo 132.º, passando o teor dessa alínea g) para a alínea i) em 1998 (mais exactamente aquando da quarta alteração do Código Penal, operada pela Lei n.º 65/98, de 02 de Setembro, entrada em vigor para o território continental, no 5.º dia após a publicação, ou seja, em 7-09-1998 – cfr. “decreto formulário”, i. é, a Lei n.º 74/98, de 11-11), e encontrando-se actualmente prevista na seguinte alínea j), ocupando o lugar subsequente, uma vez que com a reforma de 2007 (Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, entrada em vigor em 15 de Setembro), apenas foi alterada a ordem das alíneas, por força do aditamento do novo índice então introduzido, que passou a partir de então a substanciar a actual alínea b).

Não estando em causa no caso concreto, claramente, situação que corporize persistência na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas, nem mesmo reflexão sobre os meios empregados (o machado havia sido levado pelo arguido há algum tempo para o efeito de cortar lenha para consumo da casa), caberia indagar da integração do caso numa das outras formas ou manifestações de premeditação, mais propriamente, no conceito indeterminado de frieza de ânimo.

O acórdão de Santa Comba Dão optou pela integração desta qualificativa.

      Num primeiro momento, considerando não se ter provado a tese da acusação, entendeu que não poderia considerar-se verificada a qualificativa com base na reflexão sobre os meios empregados ou persistência da intenção por mais de 24 horas, mas contornando o problema, atendendo ao modo de execução e, em seu entender, à persistência posta pelo arguido na acção, decidiu-se pela afirmativa.

      Vejamos o que entender por “frieza de ânimo”.

      Na redacção originária do Código Penal actual, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, entrado em vigor em 1 de Janeiro de 1983 (artigo 2.º), a qualificativa em exame era prevista na alínea g) do n.º 2 do artigo 132.º, então com o seguinte teor:

      “Agir com premeditação, entendendo-se por esta a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados ou o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas”.

      Como em 1984 acentuava Maia Gonçalves, no Código Penal Português Anotado e Comentado, Almedina, 2.ª edição, pág. 224, na formulação da alínea [a ao tempo alínea g), repete-se] teve manifesta influência a lição do Professor Eduardo Correia, autor do Projecto, expressa in Direito Criminal, II, 1965, a págs. 301/3, onde expendia:

      «…É que, diz-se, tal firmeza, tenacidade e irrevogabilidade de uma resolução previamente tomada revela uma forte intensidade da vontade criminosa. Efectivamente, a circunstância de mediar um grande intervalo de tempo entre o momento em que, definitivamente, a resolução criminosa se formou e a sua execução, ou seja a pertinácia da resolução, a mora habens, mostra não só que o criminoso teve uma larga oportunidade, que não aproveitou, para se deixar penetrar pelos contra-motivos sociais e ético-jurídicos de forma a, pelo menos transitoriamente, desistir do seu desígnio, mas ainda que a paixão lhe endureceu totalmente a sensibilidade e sobretudo que a força de vontade criminosa é de tal forma intensa que o agente sem hesitação, como mero “déclancher” da decisão tomada prévia e longinquamente».

       O citado Autor não deixou de clarificar que «o critério referido envolve uma relativa margem de incerteza, na medida em que o tempo de permanência de uma resolução previamente tomada, até à sua execução, considerado necessário para revelar uma especial perigosidade ou a possibilidade de uma normal intervenção de contra - motivos, só pode ser fixada por apelo às regras da experiência. Mas isto corresponde à natural fragilidade de todos os conceitos que se relacionam com os factos humanos e pode ser corrigido pela exigência formal da fixação de um certo lapso de tempo, especialmente quando à premeditação correspondam efeitos agravantes particularmente graves».

       Figueiredo Dias, no Comentário Conimbricense…, § 29, a págs. 39/40 (a obra é de 1999 e já ao tempo a qualificativa mudara de alínea, situando-se então na alínea i) do n.º 2 do artigo 132.º) refere que o Código Penal de 1982 reuniu sob o conceito de premeditação alguns dos entendimentos conferidos por diversos ordenamentos: a frieza de ânimo, a reflexão sobre os meios empregados e o protelamento da intenção de matar por mais de 24 horas, tratando-se de concepção, que (para lá da alteração de redacção de 1982 para 1995, diríamos nós), continuou a ser sufragada pela Reforma de 1995, esta apenas eliminando o conceito englobante de premeditação, mas deixando subsistir os seus possíveis entendimentos.

       Aplaude esta decisão de política criminal, lamentando, porém, a manutenção, vazia de sentido, do limite fixo “de mais de 24 horas” (e se a persistência da intenção de matar se quedar pelas 23 horas?)

        Refutando uma exigência “unitária”, ou seja, a concepção de que a função da circunstância da alínea exige que aquilo que se torna susceptível de revelar especial censurabilidade seja redutível a um único fundamento, defende a possibilidade de uma total harmonização de soluções pela utilização alternativa dos três critérios, ou seja, a afirmação de que qualquer das aludidas manifestações da “premeditação” – e outras estruturalmente análogas (incluída a persistência da intenção de matar por 23 horas!) – é, por si mesma, susceptível de indiciar um tipo de culpa agravado, sem todavia o determinar por necessidade.

      Alerta ainda o Autor para que a hipótese desta alínea será uma daquelas em que mais frequentemente poderá ser ilidido o efeito qualificador do exemplo-padrão (citado neste passo no acórdão de 15-05-2008, processo n.º 3979/07-5.ª, supra referenciado).

        Para Fernando Silva, Direito Penal Especial, Crimes contra as pessoas, 2.ª edição, revista e actualizada de acordo com a Lei n.º 59/2007, Quid Juris, 2008, pág. 80, (retomando o tema já abordado na edição de 2005, a págs. 73), “A ideia fundamental nesta circunstância é a da premeditação. Pressupondo uma reflexão da parte do agente. O que acontece é a influência do factor tempo, e o facto de se ter estudado a forma de preparar o crime, demonstram uma atitude de maior desvio em relação à ordem jurídica. O decurso do tempo deveria fazer o agente cessar a sua vontade de praticar o crime, quanto mais medita sobre a sua prática mais exigível se torna que não actue desse modo”.

“Nestes casos o agente prepara o crime, pensa nele, reflecte sobre o acto, e mesmo assim decide matar, combatendo a ponderação que se lhe impunha.

        A premeditação surge materializada em três situações:

1 - frieza de ânimo - traduzido numa actuação calculada, em que o agente toma a sua deliberação de matar, e firma a sua vontade de modo frio, denotando um sangue frio e alguma indiferença ou insensibilidade perante a vítima. No fundo, o agente teve oportunidade de reflectir sobre o seu plano, e ponderou toda a sua actuação mostrando-se indiferente perante as consequências do seu acto”. (…).

        Vejamos agora o que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado relativamente a esta qualificativa.

Acórdãos de 08-02-1984 e de 15-02-1984, BMJ n.º 334, págs. 251 e 274 - “O novo Código alargou o conceito de premeditação, estendendo-o ao agir «frigido pacatoque animo» (doutrina considerada de origem puramente italiana) e ao agir com reflexão sobre as actividades ou meios necessários para a execução, para o alcance do fim que o agente se propôs atingir, tendo, assim em linha de conta o wie, o como da resolução”.

Acórdão de 18-06-1986, processo n.º 38491, BMJ n.º 358, pág. 260 - Age com frieza de ânimo o réu que sem o mínimo de exaltação provada abate friamente a vítima depois de lhe dizer, cerca de quatro minutos antes, “que ela ainda se sairia mal”, “que a trazia debaixo de olho”, traduzindo uma actuação calma ou imperturbada reflexão no assumir o agente a resolução de matar.

      (O segmento «frieza de ânimo» reporta-se directamente à resolução criminosa e foi introduzido para abarcar situações especialmente graves de insensibilidade, de calculismo, de indiferença ou de desinteresse pela vida de outrem, que não cabiam na formulação excessivamente redigida do art 351.º, n.º 1, do Código de 1886).

Acórdão de 03-06-1987, BMJ n.º 368, pág. 295 - A exaltação é incompatível com a serena reflexão ou frieza de ânimo requerida para integrar a circunstância agravante qualificativa do art. 132.º, n.º 2, alínea g).

Acórdão de 07-10-1992, BMJ n.º 420, pág. 203 - A frieza de ânimo traduz uma conduta insensível, de indiferença, sendo incompatível com estados afectivos e emocionais que podem conduzir a uma resolução precipitada.

Acórdão de 14-10-1992, processo n.º 42918 - A frieza de ânimo traduz uma actuação insensível, de indiferença, incompatível com estados emocionais.

Acórdão de 04-05-1994, BMJ n.º 437, pág. 154 – Afastada a qualificativa, por estar em causa actuação “de cabeça quente” em contraponto à frieza de ânimo, cuja característica é a formação do projecto de actuação de forma lenta e reflectida.

Acórdão de 22-03-1995, BMJ n.º 445, pág. 123 – A propósito da qualificativa diz: actuação eivada de sangue frio, insensibilidade e desrespeito pela vida alheia preenche este requisito.

Acórdão de 17-05-1995, processo n.º 46965, in CJSTJ 1995, tomo 2, pág. 201 – Em caso em que predomina a análise de crimes passionais, é analisado o ciúme (manifestação inacabada de amor ou frustração pelo perdimento de que, independentemente do amor, se sente que faz falta), considerando-se que não é incompatível com a frieza de ânimo no crime de homicídio voluntário, salvo nos casos de flagrante delito de infidelidade. Isto porque a motivação pode levar o agente a uma reflexão sobre as circunstâncias de execução do projecto criminoso.

Acórdão de 01-06-1995, processo n.º 47164, CJSTJ 1995, tomo 3, pág. 178 – Segue de perto o acórdão de 18-06-1986, BMJ n.º 358, pág. 260, afastando a qualificação de crime passional em caso de homicídio do amante da arguida, que ela e seu marido planearam previamente.

Acórdão de 16-04-1997, processo n.º 68/97-3.ª, SASTJ 1997, n.º 10, pág. 98 – A frieza de ânimo a que alude a al. c) do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal traduz-se na persistência da vontade de matar.

Acórdão de 30-04-1997, processo n.º 1400/96-3.ª, SASTJ, n.º 10, pág. 113 - O STJ vem caracterizando a frieza de ânimo, como sangue frio, insensibilidade, indiferença, calma ou imperturbada  reflexão no assumir a resolução de matar. 

Acórdão de 21-05-1997, processo n.º 107/97, SASTJ, n.º 11, pág. 82 – A frieza de ânimo é um conceito que pressupõe uma vontade formada de modo lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e na execução e persistente na resolução. Para tanto, há que provar que um agente decidiu definitivamente tirar a vida à vítima, antes dos factos, aguardando apenas o momento propício para o fazer.  

Acórdão de 25-09-1997, processo n.º 611/97-3.ª, SASTJ 1997, n.º 13, pág. 141 e BMJ n.º 469, pág. 359 – Em caso de uxoricídio, refere-se que a actuação frigido pacatoque animo foi em tempos identificada com a premeditação, depois, considerou-se que todo o crime tinha a sua dose de actuação passional, pelo que tal identificação foi afastada;  cremos que são coisas e conceitos distintos, devendo a actuação com frieza de ânimo corresponder a uma actuação a sangue frio, de forma insensível, com indiferença pela vida humana. 

Acórdão de 02-10-1997, processo n.º 689/97-3.ª, SASTJ n.º 14, pág. 129 - Frieza de ânimo é uma calma ou imperturbada reflexão no assumir o agente a resolução de matar.

Acórdão de 11-12-1997, processo n.º 970/97, SASTJ, n.ºs 15 e 16, pág. 208 e BMJ n.º 472, pág. 154 – Caso em que a insídia e a frieza de ânimo a revelar uma especial censurabilidade, no dizer do acórdão, são patentes.

    Diz: Revela frieza de ânimo, para além de a respectiva conduta ser traiçoeira, desleal e insidiosa, o arguido que sai do veículo que conduzia, dirige-se à bagageira onde guardava a sua caçadeira, municia-a, leva-a à cara e, apontando ao peito da vítima que caminhava na sua direcção, e estava a cerca de 4 metros, prime o gatilho e dispara, atingindo-o na região torácica (pulmão e coração), com a intenção de lhe causar a morte.

     O segmento «frieza de ânimo» reporta-se directamente à resolução criminosa e foi introduzido para abarcar situações especialmente graves de insensibilidade, de calculismo, de indiferença ou de desinteresse pela vida de outrem, que não cabiam na formulação excessivamente redigida do art 351.º, n.º 1, do Código de 1886 – cfr. acórdão  de 18-06-1986, BMJ n.º 358, pág. 260. 

Acórdão de 5-02-1998, processo n.º 1159/97, BMJ n.º 474, pág. 300 – Para além de meio insidioso (cfr. supra), refere-se que age ainda com frieza de ânimo, reveladora de especial perversidade, o arguido que não desistiu de atirar sobre a vítima mesmo depois de a ver mortalmente caída, quando havia persistido na intenção de a matar, formulada na véspera, usando de todo esse tempo para melhor preparar a acção.

Acórdão de 15-04-1998, processo n.º 74/98-3.ª, BMJ n.º 476, pág. 238 – O autor de um crime de homicídio voluntário age com frieza de ânimo, se antes dos factos decidiu definitivamente tirar a vida à vítima, aguardando apenas o momento propício para o fazer, e manifestou, além disso, uma vontade formada de modo lento, reflexivo e cauteloso, na preparação e execução do crime. (No caso é afastada a qualificação).

Acórdão de 30-09-1999, processo n.º 36/99-3.ª, SASTJ n.º 33, pág. 94 - A frieza de ânimo está relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime e é entendida como a conduta que traduz calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença, e persistência na sua execução.

Acórdão de 15-12-1999, processo n.º 1022/99-3.ª, BMJ n.º 492, pág. 221 - Traduz frieza de ânimo a conduta que revela “grande brutalidade, sem qualquer justificação ou perturbação de ânimo”.

  A frieza de ânimo traduz a formação da vontade de praticar o facto de modo frio, pressupondo um lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo e imperturbado processo na preparação e execução do crime, persistente na resolução, por forma a denotar insensibilidade e profundo desrespeito pela pessoa e vida humanas; trata-se assim de uma circunstância agravante relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, devendo reconduzir-se às situações em que se verifica calma, reflexão ou sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução –

Acórdão de 09-02-2000, processo n.º 990/99-3.ª, SASTJ Edição anual 2000, pág. 27 e BMJ n.º 494, pág. 207 - O agir frigido pacatoque animo (com frieza de ânimo) tem sido relacionado pela jurisprudência mais com a conduta prévia do homicida, que de forma calma mas determinada decide tirar a vida a outrem, do que com o seu comportamento posterior aos factos criminosos.

Acórdão de 28-06-2001, processo n.º 1568/01-5.ª, SASTJ 2001, n.º 52, pág. 65 - “Verifica-se frieza de ânimo quando se age a sangue frio, de forma insensível, com indiferença pela vida humana”.

Acórdão de 28-02-2002, processo n.º 226/02-5.ª - O exemplo padrão da alínea i) do n.º 2 é o herdeiro da tradicionalmente chamada premeditação, ligada à censurabilidade da reflexão mais ou menos aturada que precede e acompanha a execução e o protelamento da intenção de matar.

Acórdão de 18-04-2002, processo n.º 847/02-5.ª - A frieza de ânimo exprime uma situação pautada pela firmeza, tenacidade e irrevogabilidade de uma resolução tomada, ou pela indiferença ou insensibilidade, do agente.

Acórdão de 15-05-2002, processo n.º 857/02-3.ª – Considera que o arguido agiu com frieza de ânimo, tendo em atenção a persistência, a violência e todo o circunstancialismo concreto que rodeou e em que se desenvolveu a agressão demonstrativo de que o arguido teve o intuito de massacrar a vítima e de lhe aumentar a angústia e a dor, sendo que o sofrimento físico e psíquico causados, pela sua duração e intensidade, revelam crueldade, resultando também de modo inequívoco que este teve lugar para aumentar o sofrimento da vítima.

Acórdãos de 16-05-2002, processo n.º 585/02-5.ª; de 14-11-2002, processo n.º 3316/02-5.ª e de 30-10-2003, processo n.º 3281/03-5.ª, este in SASTJ n.º 74, pág. 201 (todos do mesmo relator com recensão de vária jurisprudência sobre o tema, sendo o último em caso de arguido filho adoptivo da vítima e da ofendida) - Há frieza de ânimo quando se age a sangue frio, de forma insensível, com indiferença pela vida humana e reflecte-se sobre os meios empregados quando a escolha, o estudo ponderado dos meios de actuação que facilitam a execução do crime ou pelo menos diminuam acentuadamente as possibilidades de defesa da vítima, mercê do modo frio, indiferente, calmo e imperturbadamente reflectido como foi planeada a morte.

       Consta ainda do último: A frieza de ânimo exprime uma situação pautada pela firmeza, tenacidade e irrevogabilidade de uma resolução tomada, ou pela indiferença ou insensibilidade, do agente, quando se age a sangue frio, de forma insensível, com indiferença pela vida humana.

Acórdão de 20-11-2002, processo n.º 2818/02-3.ª - Considera-se em caso de uxoricídio, que tendo o arguido actuado motivado pelo ciúme obsessivo que o dominava desde há vários anos, tal situação não indicia frieza de ânimo, mas antes uma atitude fortemente emotiva.

Acórdão de 15-10-2003, processo n.º 2024/03-3.ª, SASTJ n.º 74, pág. 126 – A “frieza de ânimo” deve entender-se como um estado ou uma atitude interna do agente, que manifesta forte insensibilidade e pensado domínio sobre o desvalor da acção, praticando o facto sem qualquer sentimento de inibição ou de apreensão de carácter perante o sofrimento da vítima, traduzindo uma deficiência de carácter, com manifestações acentuadamente desvaliosas na composição e revelação da personalidade. (Acórdão invocado pelo Colectivo de Santa Comba).

Acórdão de 14-07-2004, processo n.º 1889/04-3.ª – A frieza de ânimo pode definir-se como o agir de forma calculada, com imperturbada calma, revelando indiferença e desprezo pela vida.

Acórdão de 16-02-2005, processo n.º 3131/04-3.ª, CJSTJ 2005, 1, pág. 196 – Em caso de uxoricídio, após afastar-se o motivo fútil, considera-se funcionar, em pleno, o exemplo padrão da persistência, por mais de 24 horas, da intenção de matar, de uma vivência pensada, pré-ordenada a um fim, o que exclui um dolo de ímpeto, antes fundante de um dolo de acção, estado de espírito preenchido pela firmeza, tenacidade e irrevogabiidade de resolução criminosa que torna mais censurável o agente, revelando forte intensidade criminosa, que, tendo, oportunidade para se deixar penetrar, influenciar, por contra-motivos ético–sociais e jurídicos, se deixou contaminar pela paixão, endurecendo-lhe a sensibilidade e, sobretudo, a força de vontade.    

 Acórdão de 10-03-2005, processo n.º 224/05-5.ª - A frieza de ânimo indica firmeza, tenacidade e irrevocabilidade da resolução criminosa.

Acórdão de 20-12-2005, processo n.º 2887/05-5.ª, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 238 (igualmente em caso de uxoricídio) - A frieza de ânimo significa uma calma ou imperturbada reflexão no assumir, o agente, a resolução de matar. Consiste em a vontade se formar de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução e persistente na resolução.

Acórdão de 02-03-2006, processo n.º 472/06-5.ª - A frieza de ânimo deve rever-se na reflexão sobre os meios empregados ou na persistência na intenção de matar por mais de 24 horas.

Acórdão de 09-03-2006, processo n.º 4420/05-5.ª, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 212 – Considera-se que há frieza de ânimo quando o agente age com sangue frio, revelando insensibilidade e indiferença pela vida humana e que a reflexão sobre os meios empregues se exterioriza na escolha dos meios mais idóneos a atingir o resultado “morte” com maior capacidade de êxito, diminuindo as possibilidades de defesa da vítima.

No caso entendeu-se que a execução de um plano pré determinado de matar as vítimas, o anúncio do propósito de as matar, não vacilando quando uma das vítimas (sua irmã) o tentou chamar à razão e ainda o disparo de novo sobre ela, já caída a curtíssima distância e depois de ter recarregado a arma, porque aquela mexia as pernas, justifica a circunstância agravativa referida no artigo 132.º, alínea i), do C. P.

Acórdão de 06-04-2006, processo n.º 362/06-5.ª – A formação do propósito de matar a vítima com antecedência e a sua persistência ao longo de várias horas, em suma, o calculismo e a frieza revelados no planeamento e execução de um crime não são incompatíveis com o surgimento e/ou a provocação de uma discussão entre aquela e o agressor, momentos antes do crime ter lugar.

Acórdão de 17-01-2007, processo n.º 3845/06- 3.ª, CJSTJ 2007, tomo 1, pág. 170 (seguido de muito perto pelo acórdão de 23-05-2007, processo n.º 1495/07-3.ª)

     A frieza de ânimo terá lugar sempre que intercede um hiato temporal entre a ideação do meio a usar e a passagem à acção, por seu intermédio.

     A frieza de ânimo titula firmeza, propósito, tenacidade, irrevogabilidade da decisão, indiciada pela persistência durante um apreciável espaço de tempo, e, como tal, uma forte vontade criminosa, preenchendo o campo da consciência.

     Corresponde à premeditação prevista no CP de 1886, atribuindo-lhe a jurisprudência um sentido uniforme, de processo reflexivo, lento, ponderado e calmo na preparação do projecto criminoso; o agente age com frieza de ânimo quando selecciona os meios a utilizar na agressão; quando reflecte na opção pelo meio mais adequado, repudiando o que menos probabilidade de êxito se lhe oferece de um posto de vista pragmático, por ter em mente o que menos possibilidade de defesa se lhe representa para a pessoa da vítima. 

Acórdão de 14-11-2007, processo n.º 3163/07, CJSTJ 2007, tomo 3, pág. 244 – com definição de frieza de ânimo em caso de “homicídio de mercenário”.

Acórdão de 02-04-2008, processo n.º 4730/07-3.ª (por nós relatado) - No caso considerou-se ser de afastar a qualificativa, por a mesma não ser compatível com estado de irritação (justificado do ponto de vista do arguido, na sequência da expressão injuriosa), devendo por outro lado, a acção sobrevir a uma ideia, a uma tomada de posição pensada, com um mínimo de reflexão antecipada, meditada, amadurecida, a algo que segue a necessário planeamento, a uma previsão e predisposição no sentido de levar por diante a intenção homicida, o que não acontecia no caso.

Acórdão de 19-06-2008, processo n.º 2043/08-5.ª - Frieza de ânimo é uma circunstância relacionada com o processo de formação da vontade de praticar o crime, reconduzindo-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução, em suma, um comportamento traduzido na «firmeza, tenacidade e irrevocabilidade da resolução criminosa» (cf. ac. de 15-05-2008, proc. n.º 3979/07-5.ª e jurisprudência ali citada).

Acórdão de 29-10-2008, processo n.º 3379/08 - 3.ª - A frieza de ânimo está relacionada com o processo de formação de vontade de praticar o crime e é entendida como a conduta que traduz calma, reflexão e sangue-frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução – cf. acórdão do STJ de 30-09-1999, proc. n.º 36/99-3.ª, SASTJ, n.º 33, pág. 94 - , ou consiste em a vontade se formar de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, acalmo na preparação e execução persistente na resolução – cfr. acórdão do STJ de 17-02-2005, processo n.º 4216/04-5.ª, SASTJ, n.º 88, pág. 123).

Acórdão de 12-11-2008, processo n.º 2826/08 - 3.ª  - A frieza de ânimo está relacionada com o processo de formação de vontade de praticar o crime, reconduzindo-se às situações em que se verifica calma, reflexão e sangue-frio na preparação do ilícito, insensibilidade, indiferença e persistência na sua execução, em suma, um comportamento traduzido na «firmeza, tenacidade e irrevocabilidade da resolução criminosa» – cf. acs. do STJ de 15-05-2008, proc. n.º 3979/07 (da 5.ª Secção e supra referido, a propósito da “imagem global do facto agravada”), e jurisprudência ali citada, e do supra referido acórdão de 19-06-2008, processo n.º 2043/08-5.ª.

Acórdão de 11-02-2009, processo n.º 4132/08-3.ª -  Versando caso de uxoricídio com frieza de ânimo (reunindo o arguido informações inclusivamente junto das filhas, que lhe permitissem escolher o dia e a hora propícios para o crime) e subsequente transporte do cadáver e acto de se desfazer dele, com simultânea simulação e meticulosa encenação de um assalto. 

Acórdão de 14-05-2009, processo n.º 389/06.8GAACN.C1.S1-3.ª - Considera a presença de frieza de ânimo com uso por parte de arguido com avançada idade, de forquilha e pau em vítima com 76 anos (Acórdão invocado pelo Colectivo de Santa Comba).

Acórdão de 27-05-2009, processo n.º 58/07.1PRLSB.S1-3.ª - Considerando que o tempo de formação e a permanência da intenção, no caso, «pelo menos em momento anterior a uma semana antes» da data dos factos, revelam especial censurabilidade, a caber na actual al. j).

Acórdão de 09-06-2010, processo n.º 862/09.6TBFAR.E1.S1-5. ª – Para efeito da al. j) do n.º 2 do art. 132.º do C. Penal, agir com frieza de ânimo significa actuar com serenidade, com o espírito límpido de emoções. E agir com reflexão sobre os meios empregados significa actuar depois de escolher e preparar cuidadosamente o modo de praticar o facto, revelando uma vontade especialmente determinada de cometer o crime e uma maior perigosidade, pela significativa diminuição das possibilidades de defesa da vítima.

Acórdão de 14-10-2010, processo n.º 494/09.9GDTVD.L1.S1-5.ª - Afastada a qualificação em caso em que os arguidos actuaram no rescaldo de um confronto físico com a vítima, depois de esta lhes fazer uma grave ameaça e após terem ingerido várias bebidas alcoólicas, o que aponta em sentido contrário ao de actuação com frieza de ânimo, que remete para um estado de serenidade e calma aberto à ponderação.

Acórdão de 20-10-2010, processo n.º 651/09.8PBFAR.E1.S1-3.ª - Em caso de parricídio tentado agindo o arguido com premeditação e frieza de ânimo.

      Sobre o tema podem ver-se ainda os acórdãos de 08-04-1987, BMJ n.º 366, pág. 280; de 12-07-1989, BMJ n.º 389, pág. 310; de 01-03-1990, processos n.º 40601 e n.º 40667, BMJ n.º 395, págs. 210 e 218; de 24-04-1991, processo n.º 41624, BMJ n.º 406, pág. 381; de 26-06-1996, processo n.º 533/96, SASTJ n.º 2, pág. 60; de 17-04-1997, processo n.º 1407/96-3.ª, SASTJ n.º 10, pág. 101 (englobando igualmente meio insidioso); de 13-11-1997, processo n.º 499/97, SASTJ n.º s 15/16, pág. 169; de 12-05-2005, processo n.º 1439/05-5.ª; de 21-06-2006, processos n.ºs 913/06 e 1559/06-3.ª; de 11-07-2007, processo n.º 1583/07-3.ª; de 26-09-2007, processo n.º 2591/07-3.ª; de 21-05-2008, processo n.º 1224/08-5.ª.  

Revertendo ao caso em apreciação.

  O Colectivo de Santa Comba Dão, face à imputação desta qualificativa pela acusação, considerara como factos não provados que:
       - no dia 19 de Maio de 2010 o arguido tenha decidido pernoitar em casa da FF pelo facto de durante esse dia ter formulado a ideia de, durante a noite, tirar a vida aquela e ao mencionado EE, utilizando um dos machados que, dias antes, tinha trazido com o objectivo de cortar lenha para consumo da casa.
       - no circunstancialismo referido em 11. (O arguido deitou-se em cima da cama com a roupa que vestia e assim permaneceu até por volta das 4.30 horas da madrugada do dia 20 de Maio de 2010, altura em que se levantou e saiu do quarto, tendo pelo menos então formulado o propósito de durante essa noite tirar a vida aos mencionados FF e EE enquanto dormiam, utilizando para o efeito um dos machados que dias antes havia trazido para a dita casa com o objectivo de cortar lenha para consumo da mesma) o arguido não tenha adormecido e tenha aguardado que os restantes ocupantes da casa adormecessem, com o firme propósito de por termo à vida da FF e do EE.
- o arguido tenha reflectido durante várias horas sobre a melhor forma de tirar a vida aos mencionados FF e EE.
       Face ao reconhecimento da falta de prova destes factos, o mesmo Colectivo avança, porém, para outra construção, de modo a, não obstante não se terem provado tais factos, ainda assim ser o caso cabível no exemplo padrão em causa.
        E assim justifica o Colectivo de Santa Comba, a opção assumida, a fls. 597-8:
       “Considerando que não logrou provar-se a tese da acusação que apontava para que o arguido tivesse decidido pernoitar na casa da mencionada FF com o propósito, por si formulado durante o dia 19 de Maio de 2010, de tirar a vida aquela e ao mencionado EE, utilizando um dos machados que dias antes levara para a casa daquela para cortar lenha, e que tenha persistido nesse propósito desde a hora em que se dirigiu ao seu quarto, anterior às 23.30 horas do dia 19 de Maio de 2010, e até á hora em que se levantou, cerca das 4.30 horas do dia 20 de Maio de 2010, temos para nós que não poderá considerar-se verificada a qualificativa prevista na citada alínea j) do Nº2 do Art. 132º do C. Penal com base na reflexão sobre os meios empregados ou por ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.
        Todavia, a persistência na consumação da morte da vítima FF, evidenciada pela agressão plúrima na zona da cabeça da mesma com o machado com as características referidas, a inconsideração da extrema vulnerabilidade das vítimas, que se encontravam a dormir quando o arguido entrou no quarto com o propósito de lhes tirar a vida já munido do dito machado, da vítima FF nem sequer se ter apercebido da presença do arguido por estar a dormir quando foi atingida pelos golpes do machado utilizado pelo arguido, a circunstância da vítima FF se encontrar deitada na mesma cama e ao lado da filha então com 9 anos de idade, a vontade de acabar com a vida de ambas as vítimas ao mesmo tempo, manifestam na sua globalidade, uma atitude interna, um estado de espírito de franca e evidente insensibilidade e desprezo, indiferença para com o valor jurídico da vida e uma deficiência de carácter, que por isso refrange qualidades desvaliosas ao nível da sua personalidade, e, deste modo, não pode deixar de se considerar que é com frieza de ânimo que o arguido cometeu os dois crimes de homicídio, consumado e tentado, em apreço – cf. neste sentido o Ac. do STJ de 14-05-2009, in www.dgsi,pt, no qual se remete para o Ac. do STJ, de 15.10.2003, Rec.º n.º 2024/03 -3.ª Sec.
      Assim, conclui-se que se mostra verificada a qualificativa da frieza de ânimo nos crimes de homicídio, consumado e tentado, praticados pelo arguido e prevista no Art. 132º nº2 alínea j) do C. Penal”. (Sublinhados nossos).

       A solução da questão estará em saber se os factos dados por provados ainda preenchem o exemplo em causa, não sendo caso, como pretende o recorrente nas conclusões II e III, de invocação do princípio in dubio pro reo, que respeita à apreciação da prova, não sendo de convocar em sede de tratamento subsuntivo.

       No caso presente é de afastar este exemplo indiciador da cláusula geral, por da matéria de facto dada por provada não resultar uma preparação fria nem tão pouco a persistência na acção, bastando para tanto atender ao que de forma clara consta do rol dos factos não provados.

       Assim sendo, certo também será que não é pelo facto de o arguido ter desferido golpes por duas vezes com o machado na vítima FF, a que o acórdão recorrido apelida de “agressão múltipla”, que se preencherá a qualificativa, não havendo persistência na consumação, tendo o arguido de imediato dirigido a sua acção contra EE, que se encontrava próximo, no mesmo quarto, sendo que por outro lado, a insensibilidade demonstrada pelo arguido perante quem estava completamente desprotegida, como aconteceu com FF, que dormia, integra no caso a traição e deslealdade.

       Como bem observa a Exma. Procuradora-Geral Adjunta no parecer emitido, não integra a frieza de ânimo a persistência na própria agressão da vítima FF na cabeça, quando bastaram duas pancadas com a lâmina do machado, defendendo que “a inconsideração da vulnerabilidade e a persistência têm de fazer parte da formação da vontade da prática do ilícito e não do próprio acto de execução do crime.

        E em relação à vítima EE, não se encontra tenacidade nem persistência na sua execução, muito menos prévia preparação”.

       O recurso procederá, pois, nesta parte, com a consequente desconsideração da qualificativa, a que alude a alínea j) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal.  

       Com esta solução, no que toca ao homicídio tentado, afastada que foi já a qualificativa da alínea i), teremos que a agressão levada a cabo na pessoa de EE consubstancia a prática de um crime de homicídio simples, na forma tentada.

       III Questão – Relação análoga à dos cônjuges - União de facto

     A relação conjugal e outras aparentadas, actualmente, integra um novo exemplo típico - o duodécimo, por ordem de consagração - , na previsão da alínea b).
      A nova formulação do elenco de factores índice, com a introdução da nova alínea b), “reivindicada” por Manuela Valadão Silveira, no trabalho Sobre o crime de maus tratos conjugais, in Revista de Direito Penal, volume I, n.º 2, ano 2002, edição da Universidade Autónoma de Lisboa, pág. 44, vem consagrar a inserção, de forma autónoma, no quadro das situações padrão, do conjugicídio e situações paralelas, para além de outras.
      É assim introduzida uma nova situação padrão qualificativa de homicídio, passando a ser susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade, a circunstância de o agente praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro sexo ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau.
       A consagração da importância da relação conjugal e “associadas”, como referimos nos acórdãos de 02 de Abril de 2008, proferido no processo n.º 4730/07, no acórdão de 21 de Janeiro de 2009, proferido no processo n.º 2387/08, de 16 de Dezembro de 2010, no processo n.º 231/09.8JAFAR.E1.S1 e de 24 de Março de 2011, no processo n.º 322/08.2TARGR.L1.S1, versando casos de homicídio de cônjuge mulher (cfr. ainda, com interesse para o tema, o acórdão de 02-07-2008, proferido no processo n.º 3861/07, versando maus tratos conjugais), justifica-se como corolário da evolução legislativa no tratamento destas matérias, que tem tido em vista o fenómeno da violência doméstica (conjugal), violência familiar e os maus tratos familiares, como, mais especificamente, decorre de várias iniciativas da Assembleia da República, e de diversos diplomas legais, da forma que de seguida se expõe.

      Vejamos então a evolução legislativa, no sentido da recente inclusão/consagração, nos exemplos - regra, da chamada defesa contra a violência doméstica.
 
       A questão da violência intra - familiar foi abordada no Conselho da Europa que no Anexo II - Exposição de Motivos Relativa ao Projecto de Recomendação Sobre a Violência no Seio da Família - elaborada pelo Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna, aprovado na 33.ª Sessão Plenária do Comité Director para os Problemas Criminais (Abril de 1984), especificou o conceito de violência física no seio da família, excluindo a violência sexual, como «Qualquer acto ou omissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade» (cfr. BMJ n.º 335, págs. 5-22).

No plano do direito interno, na consecução destes objectivos de política criminal, temos a considerar os seguintes diplomas legais:
- Lei n.º 61/91, de 13 de Agosto - Garante protecção adequada às mulheres vítimas de violência.
- Decreto-Lei n.º 423/91, de 30 de Outubro (alterado pelas Leis n.º 10/96, de 23-03, e n.º 136/99, de 28-08, e Decreto-Lei n.º 62/2004, de 22-03), aprovando o regime jurídico de protecção às vítimas de crimes violentos, entretanto, revogado pela Lei n.º 104/2009.

- Decreto Regulamentar n.º 4/93, de 22-02, alterado pelo Decreto Regulamentar n.º 1/99, de 15-02), que regulamentou o anterior.  
 - Resolução da Assembleia da República n.º 31/99, de 25 de Março, in DR, I-A, n.º 87, de 14-04-1999, proclamando a necessidade de regulamentação da legislação que garante a protecção às mulheres vítimas de violência.
- Resolução do Conselho de Ministros n.º 55/99, de 27 de Maio, publicada no DR, Série I-B, n.º 137, de 15 de Junho de 1999, aprovando o I Plano Nacional Contra a Violência Doméstica.
- Lei n.º 107/99, de 03 de Agosto - Cria a rede pública de casas de apoio às mulheres vítimas de violência. (Regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 323/2000, de 19-12 e revogada pela Lei n.º 112/2009, de 16-09).
- Lei n.º 129/99, de 20 de Agosto - Aprova o regime aplicável ao adiantamento pelo Estado da indemnização devida às vítimas de violência conjugal, entretanto revogada pela Lei n.º 104/2009.

- A alteração ao Código Penal, com a nova redacção dada ao artigo 152.º, e ao Código de Processo Penal, com a reformulação da redacção dos artigos 281.º e 282.º, operada pela Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio.
- I Relatório Intercalar de Acompanhamento do Plano Nacional Contra a Violência Doméstica, elaborado pela Comissão de Peritos para o acompanhamento da execução de tal plano, em Maio de 2000, definindo violência doméstica como «Qualquer conduta ou omissão que inflija, reiteradamente, sofrimentos físicos, sexuais, psicológicos ou económicos, de modo directo ou indirecto (por meio de ameaças, enganos, coacção ou qualquer outro meio), a qualquer pessoa que habite no mesmo agregado doméstico ou que, não habitando, seja cônjuge ou companheiro ou ex-cônjuge ou ex-companheiro, bem como ascendentes ou descendentes» - cfr. “Violência Doméstica”, Seminário realizado em Lisboa, em 16 de Junho de 2000, promovido pela Procuradoria - Geral da República e pelo Ministério para a Igualdade.

- Decreto-Lei n.º 323/2000, de 19 de Dezembro, regulamentando a Lei n.º 107/99, cria a rede pública de casas de apoio às mulheres vítimas de violência. (Revogado pela Lei n.º 112/2009, de 16-09).
- Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, definindo medidas de protecção para as situações de união de facto.
- Resolução do Conselho de Ministros n.º 88/2003, publicada no Diário da República, Série I-B, n.º 154, de 07-07-2003, aprovando o II Plano Nacional Contra a Violência Doméstica, e definindo a violência doméstica.
- Resolução da Assembleia da República n.º 17/2007, de 12-04-2007, publicada no Diário da República - I Série, n.º 81, de 26-04-07, pronunciando-se sobre a iniciativa “Parlamentos unidos para combater a violência doméstica contra as mulheres”.
- Resolução do Conselho de Ministros n.º 82/2007, de 06-06-2007, aprovando o III Plano Nacional para a Igualdade - Cidadania e Género (2007-2010) – DR, I Série, n.º 119, de 22-06-2007.
- Resolução do Conselho de Ministros n.º 83/2007, de 06-06-2007, aprovando o III Plano Nacional Contra a Violência Doméstica (2007-2010) - DR, I Série, n.º 119, de 22-06-2007.

- Lei n.º 51/2007, de 31 de Agosto – publicada no DR, I Série, n.º 168, entrada em vigor em 15 de Setembro de 2007 - que define os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009, em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio – DR, I Série, n.º 99 - que aprova a Lei Quadro da Política Criminal, proclamando como objectivo específico prevenir, reprimir e reduzir a criminalidade violenta, incluindo a violência doméstica e os maus tratos, englobando os casos de violência doméstica e de maus tratos entre os crimes de prevenção e de investigação prioritária, como resulta dos artigos 2.º, alínea a), 3.º, alínea a) e 4.º, alínea a) e respectivo Anexo, onde se explicita que o período abrangido vai de 1 de Setembro de 2007 a 1 de Setembro de 2009.

- Lei n.º 38/2009, de 20 de Julho, publicada no DR, 1.ª Série, n.º 138, entrada em vigor em 1 de Setembro de 2009 - que define os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2009-2011, em cumprimento da Lei n.º 17/2006, de 23 de Maio – DR, I Série, n.º 99 - que aprova a Lei Quadro da Política Criminal, proclamando igualmente como objectivo específico prevenir, reprimir e reduzir a criminalidade violenta, incluindo a violência doméstica e os maus tratos, englobando os casos de violência doméstica e de maus tratos entre os crimes de prevenção prioritária e de investigação prioritária, como resulta dos artigos 2.º, alínea a), 3.º, n.º 1, alínea a) e 4.º, n.º 1, alínea a) e respectivo Anexo, que delimita com precisão o período temporal abarcado, compreendido entre 1 de Setembro de 2009 e 31 de Agosto de 2011.

- Lei n.º 104/2009, de 14 de Setembro – Aprova o regime aplicável ao adiantamento pelo Estado das indemnizações devidas às vítimas de crimes violentos e de violência doméstica, revogando a Lei n.º 129/99, de 20-08 e o Decreto-Lei n.º 423/91, de 30/10.

- Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, estabelecendo o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas, revogando a Lei n.º 107/99, de 03-08, e o Decreto-Lei n.º 323/2000, de 19-12.

- Portaria n.º 229-A/2010, de 23 de Abril, Suplemento n.º 79, aprovando o modelo de documento comprovativo da atribuição do estatuto de vítima, previsto no n.º 1 do artigo 14.º da Lei n.º 112/2009, estabelecendo os direitos e deveres que aquele estatuto importa.   

- Decreto-lei n.º 120/2010, de 27 de Outubro - Regula a constituição, o funcionamento e o exercício de poderes e deveres da Comissão de Protecção às Vítimas de Crimes, alterando o Decreto-Lei n.º 206/2006, de 27-10, e revogando o Decreto Regulamentar n.º 4/93, de 22-02, alterado pelo Decreto Regulamentar n.º 1/99, de 15-02).

- Resolução do Conselho de Ministros n.º 5/2011, publicado no Diário da República, I Série, de 18-01-2011, n.º 12, que aprova o IV Plano Nacional para a Igualdade – Género, Cidadania e não Discriminação, 2011-2013.

De relevar a autonomização da «Área estratégica n.º 9 - Violência de Género», onde depois de se afirmar que “a violência de género é um obstáculo à concretização dos objectivos da igualdade, desenvolvimento e paz e viola, dificulta ou anula o gozo dos direitos humanos e das liberdades fundamentais” e de se acentuar que “a violência de género está associada a estereótipos, assimetrias de poder e representações sociais  que condicionam atitudes e identidades de masculinidade e feminilidade e conduzem à reprodução das desigualdades. Está relacionada com as desigualdades de género e intimamente ligada aos processos de socialização”, se conclui que “Importa apostar no desenvolvimento de políticas e medidas que combatam a violência de género em todas as suas dimensões, promovendo a eliminação dos estereótipos de género e uma cultura de não violência”.

      Mas não deixa de anotar-se que “Este domínio exige uma particular articulação entre este Plano, o IV Plano Nacional contra a Violência Doméstica e o II Plano Nacional contra o Tráfico de Seres Humanos”.

  
       No contexto, há que anotar que Portugal assinou em 6 de Março de 1997 a Convenção Europeia Relativa à Indemnização das Vítimas de Crimes Violentos, a qual de acordo com o Aviso n.º 148/97, publicado in DR, I Série – A, n.º 108, de 10-05-1997, entraria em vigor em 1 de Fevereiro de 1998, sendo que pelo Aviso n.º 135/2001, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 301, de 31 de Dezembro, foi tornado público que, contrariamente a tal Aviso,  entraria em vigor em 1 de Dezembro de 2001.
 

                                                                     A propósito da inovação de Setembro de 2007, Maia Gonçalves, in Código Penal Português Anotado e Comentado, 18.ª edição, 2007, pág. 509, referia: “Aqui se inclui uma nova circunstância qualificativa do homicídio, que é a relação conjugal ou análoga, incluindo-se a união de facto, ainda que entre pessoas do mesmo sexo. Trata-se de reflexo, na lei, da actual visão da comunidade sobre as uniões de facto e a sexualidade”.

       Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, no Código Penal Anotado e Comentado, 2008, pág. 344, nota 24, afirmam: “É outrossim o terreno dos laços familiares (ou equiparados), a partir da relação matrimonial e alargado a casos que o legislador tomou como análogos, do mesmo passo que com extensão para lá da própria cessação das atinentes relações, pelo entendimento de que tal não destruiu de todo os referidos laços, bem como de que, apesar de tudo, eles continuam a impor-se ao respeito dos que naquelas intervieram”.
     Maria Margarida Silva Pereira, em Direito Penal II - Os Homicídios, 2.ª edição, actualizada em Setembro de 2007, AAFDL, 2008, de fls. 100 a 103, a propósito da inclusão em 2007 no artigo 132.º de casos em que a maior gravidade do facto depende de qualidades ou relações especiais do autor, expende: “É evidente que a ideia, antes expendida, de que a família poderia ver-se incólume ao agravamento no caso de homicídio entre cônjuges claudicou. Sensível ao problema criminal dos maus tratos conjugais evidenciados socialmente em grau crescente, e coerente com a sua incriminação de uma forma agravada, o legislador vem entender que qualidades ou relações como as descritas agravam potencialmente a censurabilidade ou a perversidade com que o homicídio é praticado e integra estes comportamentos no artigo 132.º.
       Ora, trata-se sem dúvida, de comportamentos cuja incriminação em sede de homicídio qualificado se articula com a especial ilicitude, que o legislador reconhece aos crimes de maus-tratos e de violência doméstica (hoje vertidos no artigo 132.º com a epígrafe genérica de violência doméstica). Temos, assim, que a qualidade ou relação especial do autor com a vítima, que reconhecidamente agrava a ilicitude deste crime, repercute na nova alínea do artigo 132.º”.

      Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2.ª edição actualizada, Outubro de 2010, diz a propósito, na página 401: “Os laços familiares básicos com a vítima devem constituir para o agente factores inibitórios acrescidos, cujo vencimento supõe uma especial censurabilidade. A Lei n.º 59/2007 veio alargar ainda mais esta tutela penal, prescindindo mesmo da existência de laços familiares básicos entre a vítima e o agente, ao incluir o homicídio de ex-cônjuge, de pessoa com quem o agente “tenha mantido” relação análoga à dos cônjuges e mesmo de progenitor de descendente comum em 1.º grau. Deste modo, incluem-se sob a tutela penal as relações familiares pretéritas e as relações parentais não familiares. É certo que as relações familiares, presentes e pretéritas, e as relações parentais são também aquelas que permitem uma maior desinibição, mas essa desinibição não pode constituir um factor de tolerância da violência, fundando o legislador precisamente nessas relações um juízo de censura penal agravado”.

  

           Na jurisprudência deste Supremo Tribunal podem ver-se concretizações deste exemplo padrão, para além dos supra citados, nos acórdãos de 25-02-2010, processo n.º 108/08.4PEPDL.L1.S1-5.ª; de 07-04-2010, processo n.º 202/08.1GBPSR.E1.S1-3.ª; de 19-05-2010, processo n.º 459/05.0GAFLG.G1.S1-3.ª; e de 27-05-2010, processos n.º 6/09.4JAGDR.C1.S1-3.ª e n.º 517/08.JACBR.C1.S1-5.ª.

                                                                       

                                                              A questão em apreciação deverá ser vista, à luz desta nova solução legal, que alargando a listagem existente, inclui, entre os exemplos-regra, para além do conjugicídio, várias outras situações, nomeadamente a de união de facto, tratando-se de um novo padrão, indício, sintoma, guia, exemplo, modelo, indicador de situação, que abstractamente poderá ser susceptível de indicar, de sugerir – e apenas isso – que a acção do agente atinge o grau (especial) de culpa revelador de especial censurabilidade ou perversidade.

      Vejamos se a vivência do arguido e da vítima FF se pode considerar como configurando uma situação jurídica de união de facto, o que se fará a partir da análise da concreta situação substantiva, dos específicos contornos e fisionomia do caso retratado nos autos.

      Estabelece o artigo 36.º, n.º 1, da Constituição da República que “Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade”.

      Como se pode ler em Constituição da República Anotada, de Vital Moreira e Gomes Canotilho, 2007, pág. 561, o conceito constitucional de família não abrange apenas a “família matrimonializada”, havendo uma abertura constitucional para conferir o devido relevo jurídico às uniões familiares “de facto”. Constitucionalmente, o casal nascido da união de facto juridicamente protegida também é família.

      Haverá que indagar se a situação vivida pelo arguido e vítima se enquadram numa união de facto juridicamente protegida. 

      As soluções plasmadas pelo legislador desde a reforma de 1977, operada pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25-11, que alterou o Código Civil, foram até hoje no sentido da tendencial e progressiva equiparação, para diversos efeitos, entre as situações próprias do vínculo conjugal e as decorrentes da união de facto, com a efectiva tutela dos agregados familiares constituídos fora das normas do casamento.

      Como concretizações dessa protecção temos as relativas ao exercício do poder paternal (artigo 1911.º do Código Civil), adopção, garantia da casa de morada dos unidos de facto com transmissão ao arrendamento por morte do arrendatário (artigo 1111.º, n.ºs 2 e 3 do Código Civil, transposto para o artigo 85.º do RAU), protecção no caso de morte do proprietário da casa de morada comum, ao unido sobrevivo, ou em matéria de alimentos, reconhecendo ao membro sobrevivo da união de facto o direito de exigir alimentos da herança do falecido (artigo 2020.º do Código Civil).

      Mais recentemente, a partir de 01-01-2011, o reconhecimento do direito a indemnização por danos não patrimoniais com a nova redacção do artigo 496.º, n.º 3, do Código Civil, que passou a dispor que: “Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes”.

      Para além ainda da extensão de direitos sociais próprios da condição de casado, como o direito a pensão de sobrevivência (Lei n.º 135/99, de 28-08, substituída pela Lei n.º 7/2001, de 11-05 e alterada pela Lei 23/2010, de 30-08 (entrada em vigor em 1-01-2011 – que adopta medidas de protecção das uniões de facto).

      A Lei n.º 23/2010 alterou o regime vigente relativo à protecção social na eventualidade de morte do beneficiário da segurança social, previsto no Decreto-Lei n.º 322/90, de 18-10, no Decreto Regulamentar n.º 1/94, de 18-01, e na alínea a) do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 7/2001 (regime de protecção de segurança social referente à protecção por morte).

      Essa tutela manifesta-se mesmo ao nível do Código de Processo Penal [v. g., artigos 68.º, n.º 1, alínea b) e 134.º, n.º 1, alínea b)], ou do Código Penal [artigos 113.º, n.º 2, alínea a), 152.º, n.º 1, alínea b) e 207.º, alínea a), para além do supra citado artigo 132.º, n.º 2, alínea b)].

      França Pitão em “Os novos Casamentos …” in Comemorações dos 35 anos do Código Civil, vol. I, págs. 192/3, refere: “Se a lei apenas atribui relevância à união de facto, muito embora pontualmente, se esta se restringir a uma situação em tudo análoga à dos cônjuges, é óbvio que só se tiveram em conta aqueles casos em que a relação de facto tem um carácter de estabilidade e durabilidade, que nos “convença” da sua tendência de perpetuidade. Não basta uma relação fugaz, uma aventura amorosa ou encontros esporádicos para que possa falar-se e união de facto. É necessário que a relação adquira contornos tais que seja ou possa ser vista, não só pelos intervenientes, mas também pelas pessoas que os rodeiam e com eles convivem como uma relação em tudo semelhante ao casamento, em que as pessoas sejam como tal vistas e tratadas. Em resumo, tem de haver uma “ficção de casamento”.

      Partindo deste enquadramento, e apenas para facilidade de raciocínio, supondo um quadro fáctico em que o arguido falecia, por exemplo num acidente de viação, ou era vítima de um homicídio voluntário, colocar-se-á a questão de saber se nessa hipótese, a então sobreviva FF poderia aceder a todo este conjunto de direitos. Beneficiaria, porventura, v. g., da protecção social em face da morte do seu companheiro, por aplicação do regime de segurança social de que aquele fosse beneficiário?

      A resposta – parece – só poderia ser negativa.

      No caso sujeito, vejamos qual o concreto quadro de vida do arguido, na perspectiva do seu relacionamento com a jovem FF.

      Quando se iniciou o relacionamento sexual de ambos em 2002, o arguido tinha 64 anos de idade e FF, 24 anos (cfr. ponto de facto provado n.º 35), esta então com uma filha que só em 30-10-2002 perfez os dois anos de idade.

      Evidente é que não estamos perante um casal com uma comunhão de vida, assente em bases que vão para além do trato sexual, com projectos, anseios, projecções de realizações numa vida futura.

      Como resulta dos factos provados, o envolvimento de ambos não era afectivo, mas apenas de conjunção carnal; encontravam-se em Mortágua para esses efeitos (1); em troca desse relacionamento sexual, o arguido ajudava a FF financeiramente, ajuda que foi aumentando ao longo do tempo a pedido dela (2); o relacionamento sexual por parte de FF não era em exclusivo para o arguido, relacionando-se com outros homens (3); quando a partir de Junho de 2008 FF foi viver para Santa Comba, o arguido continuou a visitá-la e a relacionar-se sexualmente com ela (4); a partir do Verão de 2009, passou a pernoitar em casa de FF outro homem, EE, que passou a relacionar-se sexualmente com a mesma (5).     

      Desde Setembro de 2009, FF passou a recusar ter relações sexuais com o arguido, alegando ter contraído doenças genitais que a impediam do acto sexual (6), continuando o arguido a ajudá-la financeiramente (7); o arguido pernoitava com alguma regularidade na casa de FF.

      O arguido entregava à vítima quase todo o seu dinheiro, sem que a essa dádiva correspondesse uma efectiva vida em comum, não sendo essas entregas feitas no âmbito de uma efectiva comunhão de vida, sendo as mesmas proporcionadas sem que se traduzissem num auxílio nas despesas encarado na óptica de uma economia de escala advinda da vida em comum.

        A partir de Setembro de 2009 deixaram as entregas de funcionar como contrapartida do sexo permitido e para quem apenas pernoitava de vez em quando seria elevada a contrapartida da hospedagem, de forma que o “relacionamento”e as ajudas financeiras só podem ser entendidas no âmbito de uma efectiva dependência do carente arguido em relação a FF.

      O arguido nunca coabitou com a FF em termos de união de facto, com tudo o que esta convivência tem e se pode assemelhar ou correr em paralelo à da situação albergada pelo contrato previsto no Código Civil, até porque para efeitos de reconhecimento para determinados efeitos colocam-se algumas exigências (artigo 2020.º do Código Civil). Certo que em tempos tiveram relacionamento de cariz sexual, mas tais contactos, mesmo que pernoitando de vez em quando em casa de FF, não chega, pois o arguido não habitava na casa – visitava FF, e por vezes, em casa dela pernoitava.

      O que ressalta da matéria de facto provada é uma situação em que se está perante um entendimento sexual que durou de 2002 a 2009, em que o arguido não era o único homem com quem FF se relacionava, e que veio a determinar uma dependência afectiva do arguido em relação àquela FF, a quem dava praticamente todo o seu dinheiro, o que gerava problemas com os filhos, tudo num quadro em que o arguido acalentava a esperança de um dia ainda poder merecer a atenção da destinatária das entregas, numa situação de espera de reponderação por parte de FF e eventual retoma de actividade sexual, nada que se compare com um contrato de casamento ou uma união de facto que efectivamente não existia, que não funcionava como tal.  

      Na verdadeira união de facto não há retribuição, contrapartida, remuneração, subvenção, contraprestação por serviços prestados, isto é, prestações de cariz sexual, mas antes uma verdadeira comunhão de vida.

      Não se está no âmbito de um contrato sinalagmático, a que uma prestação tem de corresponder a correspectiva, há uma comunhão de vida duradoura, com um mínimo de estabilidade, em muitíssimos aspectos análoga à dos cônjuges

     O arguido, solitário, carente, sem o apoio dos filhos, com a idade que tinha, procurou arrimo e conforto, mas tornou-se dependente afectivamente, entregando à vítima quase todo o seu rendimento da reforma, sendo-lhe conferida a possibilidade nos últimos tempos de uma vez por outra pernoitar na casa da vítima. 

      A situação de facto descrita não chega para preencher o exemplo padrão em causa, que assim não será considerado.

     Questão IV - Medida das penas do homicídio qualificado consumado e homicídio tentado

           Como se viu, o recorrente nas conclusões VIII a XIII pretende a redução das penas parcelares e da pena única.        

     A convolação do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, para tentativa de homicídio simples terá naturais reflexos na dosimetria da pena.

     A moldura abstracta penal cabível ao crime de homicídio qualificado é de prisão de 12 a 25 anos.

     E a correspondente à tentativa de homicídio simples, por força do disposto nos artigos 23.º, n.º 2 e 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal, é de prisão de um ano, sete meses e seis dias a 10 anos e oito meses de prisão.

     Dentro destas molduras funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, designadamente:

- O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

- A intensidade do dolo ou da negligência;

- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

- As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

- A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

        No domínio da versão originária do Código Penal de 1982, alguma jurisprudência, dizendo basear-se em posição do Professor Eduardo Correia (Actas das Sessões, pág. 20), segundo a qual o procedimento normal e correcto dos juízes na determinação da pena concreta, em face do novo Código, seria o de utilizar, como ponto de partida, a média entre os limites mínimo e máximo da pena correspondente, em abstracto, ao crime, adoptou tal orientação, considerando-se em seguida as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depusessem a favor do agente ou contra ele, sendo exemplos de tal posição os acórdãos de 13-07-1983, BMJ n.º 329, pág. 396; de 15-02-1984, BMJ n.º 334, pág. 274; de 26-04-1984, BMJ n.º 336, pág. 331; de 19-12-1984, BMJ n.º 342, pág. 233; de 11-11-1987, BMJ n.º 371, pág. 226; de 19-12-1994, BMJ n.º 342, pág. 233; de 10-01-1987, processo n.º 38627 – 3.ª, Tribuna da Justiça, n.º 26; de 11-11-1987, BMJ n.º 371, pág. 226; de 11-05-1988, processo n.º 39401 – 3.ª, Tribuna da Justiça, n.ºs 41/42.

         Manifestou-se contra esta interpretação Figueiredo Dias em Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, § 277, págs. 210/211.

         A refutação de tal critério foi feita por Carmona da Mota, in Tribuna da Justiça, n.º 6, Junho 1985, págs. 8/9 e Alfredo Gaspar, em anotação ao acórdão de 02-05-1985, in Tribuna da Justiça, n.º 7, págs. 11 e 13, dando-se conta, em ambos os casos, de que o primeiro aresto em que se verificou uma inflexão na jurisprudência foi o acórdão da Relação de Coimbra de 09-11-1983, in Colectânea de Jurisprudência 1983, tomo 5, pág. 73.

         Posteriormente, e ainda antes de 1995, partindo da ideia de que a culpa é a medida que a pena não pode ultrapassar nem mesmo lançando apelo às necessidades de prevenção, mesmo que acentuadas, começou a considerar-se não ser correcto partir-se dum ponto médio dos limites da moldura penal para a agravação ou atenuação consoante o peso relativo das respectivas circunstâncias, como vinha sendo entendido, salientando-se que a determinação da medida da pena não depende de critérios aritméticos. Neste sentido, podem ver-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16-12-1986, BMJ n.º 362, pág. 359; de 25-11-1987, BMJ n.º 371, pág. 255; de 22-02-1989, BMJ n.º 384, pág. 552; de 09-06-1993, BMJ n.º 428, pág. 284; de 22-06-1994, processo n.º 46701, CJSTJ 1994, tomo 2, pág. 255. E no acórdão de 27-02-1991, in A. J., n.º 15/16, pág. 9 (citado no acórdão de 15-02-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 216), decidiu-se que na fixação concreta da pena não deve partir-se da média entre os limites mínimo e máximo da pena abstracta. A determinação concreta há-de resultar de a adaptar a cada caso concreto, liberdade que o julgador deve usar com prudência e equilíbrio, dentro dos cânones jurisprudenciais e da experiência, no exercício do que verdadeiramente é a arte de julgar.

         Anteriormente, não manifestando preocupações de adesão à pena média, pronunciaram-se, v. g.,  os acórdãos de 21-06-1989, BMJ n.º 388, pág. 245 e de  17-10-1991, BMJ n.º 410, pág. 360.

         Hans Heinrich Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, pág. 1194, diz: “o ponto de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois, só partindo dos fins das penas, claramente definidos, se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena”.

         Definindo o papel que cabe à culpa na determinação concreta da pena, nos termos da teoria da margem de liberdade (Claus Roxin, Culpabilidade y Prevención en Derecho Penal, págs. 94 -113) é ele o seguinte: a pena concreta é fixada entre um limite mínimo (já adequado à culpa) e um limite máximo (ainda adequado à culpa), limites esses que são determinados em função da culpa do agente e aí intervindo dentro desses limites os outros fins das penas (as exigências da prevenção geral e da prevenção especial).

             A partir de 1 de Outubro de 1995 foram alterados os dados do problema, passando a pena a servir finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial, assumindo a culpa um papel meramente limitador da pena.

         A terceira alteração ao Código Penal operada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, entrado em vigor em 1 de Outubro seguinte, proclamou a necessidade, proporcionalidade e adequação como princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental, introduzindo a inovação, com feição pragmática e utilitária, constante do artigo 40.º, ao consagrar que a finalidade a prosseguir com as penas e medidas de segurança é «a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade», ou seja, a reinserção social do agente do crime, o seu retorno ao tecido social lesado.

        Com esta reformulação do Código Penal, como se explica no preâmbulo do diploma, não prescindiu o legislador de oferecer aos tribunais critérios seguros e objectivos de individualização da pena, quer na escolha, quer na dosimetria, sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional, de que em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa, dispondo o n.º 2 que «Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».

         Em consonância com estes princípios dispõe o artigo 71.º, n.º 1, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”; o n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o n.º 3, que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, injunção com concretização adjectiva no artigo 375.º, n.º 1 do CPP, ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada. (Em sede de processo decisório, a regulamentação respeitante à determinação da pena tem tratamento autónomo relativamente à questão da determinação da culpabilidade, sendo esta tratada no artigo 368.º, e aquela prevista no artigo 369.º, com eventual apelo aos artigos 370.º e 371.º do CPP).

         Figueiredo Dias, em Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, no tema Fundamento, Sentido e Finalidades da Pena Criminal, págs. 65 a 111, diz que o legislador de 1995 assumiu, precipitando no artigo 40.º do Código Penal, os princípios ínsitos no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, (princípios da necessidade da pena e da proporcionalidade ou da proibição do excesso) e o percurso doutrinário, resumindo assim a teoria penal defendida:

1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.

2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.

3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.

4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.

         No dizer de Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, nas “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, edição 1998, AAFDL, pág. 25, «a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial».

        Américo Taipa de Carvalho, em Prevenção, Culpa e Pena, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 322, afirma resultar do actual artigo 40.º que o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral e especial, e que a culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção.

        Está subjacente ao artigo 40.º uma concepção preventivo-ética da pena. Preventiva, na medida em que o fim legitimador da pena é a prevenção; ética, uma vez que tal fim preventivo está condicionado e limitado pela exigência da culpa.

         Para o efeito de determinação da medida concreta ou fixação do quantum da pena que vai constar da decisão o juiz serve-se do critério global contido no referido artigo 71.º do Código Penal (preceito que a alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, deixou intocado, como de resto aconteceu com o citado artigo 40.º), estando vinculado aos módulos - critérios de escolha da pena constantes do preceito.

         Como se refere no acórdão de 28-09-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173, na dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71.º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

       Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de actuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar.

       O referido dever jurídico-substantivo e processual de fundamentação visa justamente tornar possível o controlo - total no caso dos tribunais de relação, limitado às «questões de direito» no caso do STJ, ou mesmo das relações quando se tenha renunciado ao recurso em matéria de facto – da decisão sobre a determinação da pena.

       Estando a cognoscibilidade em recurso de revista limitada a matéria de direito, coloca-se a questão da controlabilidade da determinação da pena nesta sede.

       Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, págs. 217/8, defende que a questão da determinação da espécie e da medida da sanção criminal redunda numa verdadeira questão de direito.

       Segundo Maria João Antunes, em Consequências Jurídicas do Crime, Lições 2007-2008, págs. 19 e 20, no procedimento de determinação da pena trata-se de autêntica aplicação do direito – na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, por imposição do artigo 71.º, n.º 3, do CP. Consequentemente, há uma autonomização do processo de determinação da pena em sede processual penal (artigos 369.º, 370.º e 371.º do CPP) e a possibilidade de controlo da decisão sobre a determinação da pena em sede de recurso, ainda que este seja apenas de revista.

           

        Figueiredo Dias em Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, edição de 1993, págs. 196/7, § 255, após dar conta de que se revela uma tendência para alargar os limites em que a questão da determinação da pena é susceptível de revista, afirma estarem todos de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Defende ainda estar plenamente sujeita a revista a questão do limite ou da moldura da culpa, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e relativamente à determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, esta será controlável no caso de violação das regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.

        Ainda de acordo com o mesmo Professor, na mesma obra de 1993, § 280, pág. 214 e repetido nas Lições ao 5.º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, págs. 279 e seguintes: «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena (em sentido estrito, ou de «determinação concreta da pena»).

        As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

        Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena».

        Anabela Miranda Rodrigues em “O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril/Junho de 2002, págs. 147 e ss., como proposta de solução defende que a medida da pena há-de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e que será definida e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização; a pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

        Adianta que “é o próprio conceito de prevenção geral de que se parte – protecção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e no reforço) da validade da norma jurídica violada - que justifica que se fale  de uma moldura de prevenção. Proporcional à gravidade do facto ilícito, a prevenção não pode ser alcançada numa medida exacta, uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade. A satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite definido pela medida da pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, que não pode ser excedido em nome de considerações de qualquer tipo, ainda quando se situe abaixo do limite máximo consentido pela culpa. Mas, abaixo daquela medida (óptima) de pena (da prevenção), outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que  considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral”.

        Apresenta três proposições em jeito de conclusões e da seguinte forma sintética:

“Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas”.

         E finaliza, afirmando: “É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, directamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente”.

         Uma síntese destas posições sobre os fins das penas foi feita no acórdão de 10-04-1996, processo n.º 12/96, in CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 168, nos seguintes termos: “ O modelo de determinação da medida da pena no sistema jurídico-penal português comete à culpa (juízo de apreciação, de valoração, que enuncia o que as coisas valem aos olhos da consciência e o que deve ser do ponto de vista da validade lógica e da moral ou do direito) a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena, mas disso já cuidou, em primeira mão, o legislador, quando estabeleceu a moldura punitiva. Acontece, porém, que outras exigências concorrem naquele modelo: a prevenção geral (dita de integração) que tem por função fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite é dado, no máximo, pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e, no mínimo, fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Cabe à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro dessa função, rectius, moldura de prevenção que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares) de advertência ou de segurança”.

         Ainda do mesmo relator, e a propósito de caso de tráfico de estupefacientes, diz-se no acórdão de 08-10-1997, processo n.º 356/97-3.ª, in Sumários de Acórdãos, Gabinete de Assessoria do STJ, n.º 14, volume II, págs. 133/4: «As “exigências de prevenção” variam em função do tipo de criminalidade de que se trata. Na criminalidade relacionada com o tráfico de estupefacientes, com todo o seu cortejo de lesão de bens jurídicos muito relevantes, a carecerem de adequada protecção pelo direito penal - além do efeito propulsor de outras formas de criminalidade, nomeadamente contra as pessoas e contra o património, a que, a justo título, se tem chamado de “flagelo social”  - são de considerar as particulares exigências de prevenção, tanto geral como especial».

         Uma outra formulação, em síntese, na esteira de Figueiredo Dias, “As consequências jurídicas do crime 1993”, § 301 e ss., é a que consta dos acórdãos do STJ de 17-09-1997, processo n.º 624/97; de 01-10-1997, processo n.º 673/97; de 08-10-1997, processo n.º 874/97; de 15-10-1997, processo n.º 589/97, sendo os três últimos publicados in Sumários de Acórdãos do Gabinete de Assessoria do STJ, n.º 14, Outubro de 1997, II volume, págs. 125, 134 e 145, e de 20-05-1998, processo n.º 370/98, este publicado na CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 205 e no BMJ n.º 477, pág. 124, todos da 3.ª Secção e do mesmo relator, nos seguintes termos: “A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites, satisfazem-se, quanto possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.

        Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime, e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal”. No sentido deste último segmento, ver do mesmo relator, os acórdãos de 08-10-1997, processo n.º 976/97 e de 17-12-1997, processo n.º 1186/97, in Sumários de Acórdãos, n.º 14, pág. 132 e n.º s 15/16, Novembro/Dezembro 1997, pág. 214.   

        A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”- cfr. acórdãos de  09-11-2000, processo n.º 2693/00-5.ª; de 23-11-2000, processo n.º 2766/00 – 5.ª; de 30-11-2000, processo n.º 2808/00-5.ª; de 28-06-2001, processos n.ºs 1674/01-5.ª, 1169/01-5.ª e 1552/01-5.ª; de 30-08-2001, processo n.º 2806/01-5.ª; de 15-11-2001, processo n.º 2622/01 – 5.ª; de 06-12-2001, processo n.º 3340/01-5.ª; de 17-01-2002, processo 2132/01-5.ª; de 09-05-2002, processo n.º 628/02-5.ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 193; de 16-05-2002, processo n.º 585/02 – 5.ª; de 23-05-2002, processo n.º 1205/02 – 5.ª; de 26-09-2002, processo n.º 2360/02 – 5.ª; de 14-11-2002, processo n.º 3316/02 – 5.ª; de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208; de 11-12-2003, processo n.º 3399/03 – 5.ª; de 04-03-2004, processo n.º 456/04 – 5.ª, in CJSTJ 2004, tomo1, pág. 220; de 11-11-2004, processo n.º 3182/04 – 5.ª; de 23-06-2005, processo n.º 2047/05 - 5.ª; de 12-07-2005, processo n.º 2521/05 – 5.ª; de 03-11-2005, processo n.º 2993/05 - 5ª; de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, págs. 229 e 235; de 29-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 225; de 15-11-2006, processo n.º 2555/06 – 3.ª; de 14-02-2007, processo n.º 249/07 – 3.ª; de 08-03-2007, processo n.º 4590/06 – 5.ª; de 12-04-2007, processo n.º 1228/07 – 5.ª; de 19-04-2007, processo n.º 445/07 – 5.ª; de 10-05-2007, processo n.º 1500/07 – 5.ª; de 14-06-2007, processo n.º 1580/07-5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 220; de 04-07-2007, processo n.º 1775/07 – 3.ª; de 05-07-2007, processo n.º 1766/07-5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 242; de 17-10-2007, processo n.º 3321/07 – 3.ª; de 10-01-2008, processo n.º 907/07 – 5.ª; de 16-01-2008, processo n.º 4571/07 – 3.ª; de 20-02-2008, processos n.ºs 4639/07 – 3.ª e 4832/07-3.ª; de 05-03-2008, processo n.º 437/08 – 3.ª; de 02-04-2008, processo n.º 4730/07 – 3.ª; de 03-04-2008, processo n.º 3228/07 – 5.ª; de 09-04-2008, processo n.º 1491/07 – 5.ª e processo n.º 999/08-3.ª; de 17-04-2008, processos n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, processo n.º 4723/07 – 3.ª; de 21-05-2008, processos n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5.ª secção; de 29-05-2008, processo n.º 1001/08 – 5.ª; de 03-09-2008, no processo n.º 3982/07-3.ª; de 10-09-2008, processo n.º 2506/08 – 3.ª; de 08-10-2008, nos processos n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3.ª secção; de 15-10-2008, processo n.º 1964/08 – 3.ª; de 29-10-2008, processo n.º 1309/08-3.ª; de 21-01-2009, processo n.º 2387/08-3.ª; de 27-05-2009, processo n.º 484/09-3.ª; de 18-06-2009, processo n.º 8523/06.1TDLSB-3.ª; de 1-10-2009, processo n.º 185/06.2SULSB.L1.S1-3.ª; de 25-11-2009, processo n.º 220/02.3GCSJM.P1.S1-3.ª; de 03-12-2009, processo n.º 136/08.0TBBGC.P1.S1-3.ª; de 28-04-2010, processo n.º 126/07.0PCPRT.S1-3.ª; de 29-06-2011, processo n.º 21/10.5GACUB.E1.S1-3.ª.

       Na determinação da medida concreta da pena deve o Tribunal, em conformidade com o disposto no artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, atender a todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra o agente, abstendo-se no entanto de considerar aquelas que já fazem parte do tipo de crime cometido.

       O limite mínimo da pena a aplicar é assim determinado pelas razões de prevenção geral que no caso se façam sentir; o limite máximo pela culpa do agente revelada no facto; e servindo as razões de prevenção especial para encontrar, dentro daqueles limites, o quantum de pena a aplicar – cfr. Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, págs. 227 e ss..

       Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das penas, mas sem perder de vista a culpa do agente, ou como diz o acórdão de 22-09-2004, processo n.º 1636/04-3.ª, in ASTJ, n.º 83: “a pena, no mínimo, deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva; no máximo, não deve exceder a medida da culpa, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do agente; e, em concreto, situando-se entre aquele mínimo e este máximo, deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todos exigível”.

       Ou, como expressivamente se diz no acórdão deste STJ de 16-01-2008, processo n.º 4565/07 - 3.ª: «A norma do art. 40.º do CP condensa em três proposições fundamentais o programa político-criminal sobre a função e os fins das penas: a) protecção de bens jurídicos; b) a socialização do agente do crime; c) constituir a culpa o limite da pena mas não o seu fundamento.

       O modelo do C P é de prevenção: a pena é determinada pela necessidade de protecção de bens jurídicos e não de retribuição da culpa e do facto. A fórmula impositiva do art. 40.º determina, por isso, que os critérios do art. 71.º e os diversos elementos de construção da medida da pena que prevê sejam interpretados e aplicados em correspondência com o programa assumido na disposição sobre as finalidades da punição.

       O modelo de prevenção acolhido – porque de protecção de bens jurídicos – estabelece que a pena deve ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva, e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

       Dentro desta medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima – limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.

       Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente».

    

Revertendo ao caso concreto.

Neste particular, ter-se-ão em conta, ressalvado por óbvias razões, o caso da tentativa do crime de homicídio na pessoa de EE, que não foi confirmado enquanto qualificado, as concretizações dos critérios legais estabelecidas pela decisão de primeira instância, que recolheu os elementos necessários e suficientes para o efeito e teve em vista, em conseguido e louvável exercício de análise, emergente da imediação do julgamento e do contacto próximo com o autor dos factos, os parâmetros legais a observar e que por isso mesmo a seguir se transcrevem.

Sobre a questão da determinação da medida concreta das penas a aplicar, discorreu o acórdão recorrido, de forma proficiente, como se referiu, de fls. 602 a 609, nos termos que seguem: 

         «Alinhados os princípios que definem e delimitam o quadro onde nos deveremos mover, urge descer ao caso concreto, ponderando na determinação da pena a aplicar ao arguido, e para além da culpa do mesmo e das exigências de prevenção, geral e especial, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra aquele, e designadamente:
        Foi elevado o grau de ilicitude com que o arguido actuou pela manifesta superioridade de meios com que agiu em relação às vítimas, com uma das quais vinha mantendo desde há vários anos um relacionamento de índole afectiva e sexual, e em circunstâncias em que não deixou pelo menos a uma delas qualquer hipótese de defesa, e à qual suprimiu, de forma brutal, a vida - o mais precioso dos direitos do ser humano.
        Foram gravíssimas as lesões sofridas pela vítima FF e mais desastrosas não podiam ter sido as consequências que delas lhe advieram, pois que lhe provocaram a morte, sendo ela uma mulher de 32 anos de idade, mãe de uma filha de 9 anos de idade à data dos factos, que viu, assim, a sua vida abruptamente interrompida e coarctada a possibilidade de a gozar pelo tempo que esta lhe reservasse, deixando órfã a sua filha menor.
       Já quanto às lesões sofridas pela vítima EE, a circunstância das mesmas terem apenas demandado 20 dias para cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional e sem quaisquer consequências permanentes, apontam inequivocamente para a pouca gravidade das mesmas, pese embora tal circunstância apenas se tenha ficado a dever à pronta e rápida reacção daquele EE que, dessa forma, evitou consequências mais gravosas e até letais, tendo em conta a zona do corpo do mesmo visada pelo arguido com o golpe de machado que contra ele desferiu.
       Foi intensa a energia criminosa com que o arguido actuou manifestada, quer pelo número de pancadas – duas – que desferiu na cabeça da mencionada FF, quer pela violência que imprimiu a tais pancadas a qual se afere pelas características das lesões que lhe provocou e que lhe causaram a morte, quer, por fim, pela zona do corpo – cabeça – das vítimas que visou, agindo, por isso, com dolo directo.
       O modo de execução dos factos é demonstrativo da vontade arreigada por parte do arguido de por fim à vida de ambas as vítimas, quer pelas características do instrumento utilizado, quer pelas zonas do corpo das vítimas por ele visada, quer pelo momento escolhido para levar avante esse seu propósito – de noite e enquanto as vítimas dormiam.  
       O posicionamento do arguido na audiência de julgamento relativamente ao modo como os factos ocorreram, escudando-se numa atitude provocatória por parte das vítimas, é reveladora da sua insensibilidade relativamente às gravosas consequências dos factos por ele praticados, mormente no que tange à vítima FF, porque é, não só demonstrativa do completo desprezo pela vida humana, como também porque não inculca interiorização por parte do arguido da desconformidade da sua conduta à lei, e, menos ainda, qualquer assomo de arrependimento.

      A favor do arguido propendem, as suas condições de vida, nos aspectos relacionados com o seu comportamento em sociedade, a sua reputação perante os que o conhecem e que com ele convivem e o apoio que no estabelecimento prisional tem dos seus familiares, apesar do afastamento destes à data dos factos, para além, ainda, da ausência de antecedentes criminais.
      A idade do arguido ainda que já avançada (73 anos de idade), não revela pendor atenuativo, tendo em conta que a mesma não interferiu, por qualquer forma, no cometimento dos crimes em análise, antes até deixa antever que, apesar das fragilidades inerentes a esta, o arguido não esmoreceu na sua vontade de tirar a vida a duas pessoas muito mais jovens do que ele e de uma só vez.
      Não obstante, a idade do arguido aliada ao facto de estar a ser medicado com anti-diabéticos não deixa de apontar para uma debilidade física digna de comiseração, quanto mais não seja porque o tempo hoje assume outra dimensão, muito mais veloz, de aceleração dos acontecimentos, pelo que a pena a aplicar ao arguido não poderá comprometer, de forma irremediável, a reinserção social do mesmo.

      O relacionamento entre o arguido e a mencionada FF, pautado desde há já alguns anos pelos favores sexuais prestados por esta aquele, mediante contrapartida económica dada pelo arguido aquela, cada vez de maior monta, a qual desde há oito meses se alterara apenas e só por iniciativa da vítima, a pretexto de ser portadora de uma doença genital que disso a impedia, apesar do arguido saber que a mesma se relacionava sexualmente com outros homens, entre eles o mencionado EE, não deixando de inculcar uma situação de subjugação do arguido à vítima FF mercê dessa troca de favores sexuais num contexto norteado por preconceitos familiares e sociais emergentes quer da diferença de idades entre ambos quer do tipo de vida promíscuo da vítima, não justifica de modo nenhum e nem sequer pode explicar, pela desproporção que evidencia, a forma extremada que o arguido escolheu para pôr fim à situação que o atormentava, ou seja, pondo fim à vida dessa sua parceira sexual e também de um dos homens com quem esta se relacionava sexualmente à data, só não o conseguindo em relação a este por razões alheias à sua vontade.

       Conforme refere João Curado Neves in A Problemática da Culpa nos Crimes Passionais, pag. 693, ao direito penal interessam as emoções na medida em que se traduzam em actos externos. Daí que não seja ao direito penal que cabe censurar as emoções (e sentimentos) vividos, antes seja tarefa sua censurar a falta do controlo possível dessas emoções, quando desembocam no acto ilícito. E é pressuposto da culpa a existência de tal controlo, ainda que indirecto e parcial, por parte do agente que não tenha sido declarado inimputável. Todas as pessoas se encontram sujeitas de alguma forma a impulsos para praticar algum facto que pode ser ilícito. Todavia, de todos também se espera que controlem os seus impulsos vitais. Todas as pessoas sentem dificuldade em controlarem os seus impulsos, em maior ou menor grau, sendo um dado básico de toda a vida social que se espera dos indivíduos que dominem os seus impulsos anti-sociais, sendo, possível, concerteza, afirmar que a força dos impulsos e das circunstâncias em que o facto teve lugar levam a diminuir ou mesmo afastar a censura ao autor por o ter praticado, o que se trata de um problema valorativo que deve ser resolvido judicialmente e não pela psiquiatria ( pag. 175 e 178 ).

       No caso em vertente o arguido AA não superou a força dos sentimentos que viveu ao ver o seu amor próprio posto em causa pela mulher com a qual se vinha relacionando sexualmente há já alguns anos, que lhe custara o afastamento da família e tinha contribuído para o sua ruína económica, como era de esperar, como se espera de todas as outras pessoas, que tivesse vencido essas dificuldades, pois que, a vítima FF era livre de se relacionar sexualmente com quem desejasse, de escolher e de rejeitar os parceiros para esse o efeito.

      A repercussão dos crimes cometidos merece particular acuidade, pois, foram praticados numa cidade de província, envolveram pessoas com acentuada diferença de idades, aos quais foi dado grande ênfase pelos media nacionais e locais, além de que se inserem num contexto de relacionamento afectivo e por motivos de rejeição de um dos parceiros em relação ao outro (…)».

                                                                      *

     Vejamos se no caso em reapreciação é de manter, ou reduzir, como pretende o recorrente, as penas aplicadas pelo crime de homicídio qualificado e pela tentativa de homicídio.

     Há que assinalar desde já que a qualificação do homicídio consumado assenta na verificação de apenas um, e não já dois exemplos-padrão, como acontecia com a decisão recorrida, com relevo para a qualificação da atitude do recorrente como especialmente censurável ou perversa.   

     Mesmo em casos como o presente, em que se esteja perante uma única qualificativa, há que ter em conta o princípio da proibição da dupla valoração da culpa, impedindo que esta actue como factor de ponderação da medida de pena, uma vez que já foi considerada na própria qualificação do crime.

        De acordo com o n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, na determinação concreta da pena, não devem ser tomadas em consideração as circunstâncias que façam já parte do tipo de crime.

        De acordo com Figueiredo Dias, As Consequência Jurídicas do Crime, § 314, pág. 234, “não devem ser utilizadas pelo juiz para determinação da medida da pena circunstâncias que o legislador já tomou em consideração ao estabelecer a moldura penal do facto; e portanto não apenas os elementos do tipo de ilícito em sentido estrito, mas todos os elementos que tenham sido relevantes para a determinação legal da pena”; por outras palavras, as circunstâncias que façam já parte do tipo de crime não devem ser tomadas em consideração na medida da pena; ou seja, os factos que consubstanciam um crime de homicídio qualificado não podem ser novamente valorados na quantificação da culpa para efeitos da medida da pena.

     Teresa Serra, Homicídio Qualificado, a págs. 103/4, especifica a propósito da proibição do duplo aproveitamento ou da dupla valoração de elementos do tipo de crime na determinação da medida concreta da pena, prevista no n.º 2 do artigo 71.º, dizendo: “Nestes termos, é proibido aproveitar mais uma vez circunstâncias que levaram à formação da moldura penal, e que são pressupostos da sua aplicação, na fixação da medida da pena no caso individual”. E explica: “ A fundamentação desta proibição é evidente: os elementos do tipo de crime foram já ponderados no âmbito da determinação da moldura penal e, desse modo, constituem já pressupostos da medida concreta da pena, que há-de ser escolhida dentro dos limites daquela moldura, sem que os referidos elementos a possam voltar a influenciar”.

     A proibição tem uma natureza “logicamente inimpugnável”, dizendo que “a proibição do duplo aproveitamento constitui uma verdade jurídico-penal banal e um princípio cuja violação é considerado um erro crasso”.

        Como refere o acórdão de 25-02-2010, processo n.º 108/08.4PEPDL.L1.S1-5.ª, as circunstâncias que serviram para a qualificação do crime (de homicídio) não podem ser novamente consideradas na graduação da pena.  

     Sendo uma das finalidades das penas a tutela dos bens jurídicos – artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal - definindo a necessidade desta protecção os limites daquelas, há que ter em atenção o bem jurídico tutelado nos tipos legais em causa.

       

        Analisando a conduta do recorrente.

        No caso presente é elevadíssimo o grau de ilicitude do facto, atenta a gravidade das consequências da conduta do arguido, no que respeita à vítima FF.

        O grau de culpa é muito acentuado, com elevada intensidade do dolo, na modalidade de directo, pela manifestação da vontade firme dirigida ao facto.

        A actuação do arguido foi extremamente censurável, não se coibindo de atingir a vítima FF, quando esta se encontrava deitada na sua na cama, a dormir, e a seu lado dormia a filha desta, então com nove anos de idade, sendo este crime cometido contra pessoa com quem se relacionara sexualmente ao longo de sete anos, no interior de casa onde pernoitava, encontrando-se a vítima à sua completa mercê.

        Ao tirar a vida a FF, para além da perda da vida desta, e exactamente em resultado dessa definitiva privação, o comportamento desviante do arguido conduziu à produção de efeitos colaterais, com intenso grau de lesividade de direitos de personalidade de outrém, da filha menor daquela, que ficou privada de sua Mãe, deixando-a na orfandade, quando contava apenas nove anos de idade.

        Foram muito graves e de efeitos certamente perniciosos, obviamente, não quantificáveis para já, as consequências do crime para a filha ainda menor da vítima.

        Com a sua conduta o arguido fez extinguir o direito daquela menor a ter uma mãe – a sua Mãe.

        São intensas as necessidades de prevenção geral.

        Na realização dos fins das penas as exigências de prevenção geral constituem nos casos de homicídio uma finalidade de primordial importância.

        O bem jurídico tutelado nas normas incriminadoras de homicídio é a vida humana inviolável, reflectindo a incriminação a tutela constitucional da vida, que proíbe a pena de morte e consagra a inviolabilidade da vida humana - Parte I, Título II, Direitos, liberdades e garantias, Capítulo I, Direitos, liberdades e garantias pessoais - artigo 24.º da Constituição da República – estando-se  face à mais forte tutela penal, sendo  a vida e a sua inviolabilidade que conferem sentido ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito à liberdade que estruturam e densificam o Estado de direito.

       Como se extrai da Constituição da República Portuguesa Anotada, de Gomes Canotilho e Vital Moreira, 2007, volume I, págs. 446/7, “O direito à vida é um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos fundamentais, sendo material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto”.

        O direito à vida é a conditio sine qua non para gozo de todos os outros direitos.

     Nos termos do artigo 2.º, n.º 1, 1.ª parte, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, o direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei, tratando-se essencialmente de um direito a não ser privado da vida, um direito a não ser morto – neste sentido, Vera Lúcia Raposo, O direito à vida na jurisprudência de Estrasburgo, in Jurisprudência Constitucional, n.º 14, pág. 59 e ss.

        A função de prevenção geral que deve acentuar perante a comunidade o respeito e a confiança na validade das normas que protegem o bem mais essencial tem de ser eminentemente assegurada, sobrelevando, decisivamente, as restantes finalidades da punição.

        Como expende Figueiredo Dias, em O sistema sancionatório do Direito Penal Português, inserto em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, pág. 815, “A prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; numa palavra, como estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma infringida”.

        Como se expressou o acórdão do STJ de 04-07-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 225, com o recurso à prevenção geral procurou dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos. 

        Versando a forte necessidade de prevenção geral nestes casos, no acórdão do STJ, de 17-03-1994, BMJ n.º 435, pág. 518, dizia-se: pode afirmar-se sem exagero que o homicídio voluntário se banalizou, constituindo, com o tráfico de droga, o tipo de ilícito que este Supremo Tribunal mais vem julgando ultimamente.

        E como referido no acórdão deste Supremo Tribunal de 11-07-2007, processo 1583/07-3.ª, a criminalidade violenta, em que se integra o crime de homicídio, assume alguma preocupação comunitária em crescendo, pelo que, para confiança da colectividade na lei, em nome de uma desejável tranquilidade e segurança de respeito pela vida humana, as necessidades de prevenir a prática de tal crime são muito presentes. 

        Trata-se de crime gerador de grande alarme social e repúdio das pessoas em geral, face à enorme intranquilidade que gera no tecido social, que vem assumindo uma prática frequente, sendo elevadas as exigências de reafirmação da norma violada.

        Noutra perspectiva, o homicídio qualificado integra o conceito de “criminalidade especialmente violenta”, na “definição” do artigo 1.º, alínea l), do Código de Processo Penal, tendo no caso presente sido cometido mediante o recurso a um machado, sem qualquer hipótese de defesa para a vítima FF, pelo que se impõe uma pena com efeito dissuasor, em nome de fortes e sentidas necessidades de prevenção geral. 

        No que toca a prevenção especial avulta a personalidade do arguido na forma como actuou, com absoluta indiferença e insensibilidade pelo valor da vida e dignidade da pessoa humana, não se esgotando na mera prevenção da reincidência, sendo indiscutível que carece de socialização.

        A ter em consideração a idade do arguido, que à data da prática dos factos tinha 72 anos, contando actualmente 73 anos. Como se refere no acórdão de 4-07-1996, processo n.º 48774, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 222, é indesmentível o peso atenuativo em caso de arguido com 62 anos à data dos factos e 65 à data da decisão.

        No acórdão de 08-09-2010, processo n.º 28/09.5MAPTM.S1-3.ª, em caso de tráfico de estupefacientes, considera-se que a idade e a ausência de antecedentes criminais diminuem as exigências de prevenção especial.

        No que toca a antecedentes criminais do recorrente, nada se regista.

        Como refere Américo Taipa de Carvalho, a propósito de prevenção da reincidência, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 325, trata-se de dissuasão necessária para reforçar no delinquente o sentimento da necessidade de se auto-ressocializar, ou seja, de não reincidir.

        E no caso de infractores ocasionais, a ter de ser aplicada uma pena, é esta mensagem punitiva dissuasora o único sentido da prevenção especial.

        Teremos a considerar ainda as atenuantes já assinaladas, com relevo para a idade, vivência e as condições pessoais do arguido expressas nos factos provados.

        Por último, ter-se-ão em consideração os critérios jurisprudenciais vigentes e aplicáveis a situações semelhantes, fazendo-se a comparação do caso concreto com situações análogas equacionadas noutras decisões judiciais, não se perdendo de vista a especificidade do caso sujeito.

        E na sequência, haverá que equacionar a necessidade ou desnecessidade de intervenção correctiva deste Supremo Tribunal. 

        A este propósito, dir-se-á que a necessidade de adequação da pena às concretas circunstâncias do caso não dispensa a necessidade de observância das exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uniformização de critérios e a necessidade de atender, por razões de justiça relativa aos padrões geralmente adoptados na jurisprudência. 

        Nestas condições e tendo em conta todo o exposto, tendo sido respeitados os parâmetros legais, cremos que se justificará no caso intervenção correctiva deste Supremo Tribunal, no que toca à pena parcelar fixada pelo homicídio qualificado, que será de reduzir, fixando-a em 18 anos de prisão e em 3 anos de prisão quanto ao crime de homicídio tentado, que atentas as molduras penais abstractas a ter em conta, não afrontam os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas – artigo 18.º, n.º 2, da CRP –, nem as regras da experiência comum, antes são adequadas e proporcionais à defesa do ordenamento jurídico e não ultrapassam a medida da culpa do recorrente.

  

Da medida da pena conjunta

       Neste segmento o Colectivo de Santa Comba Dão, ponderando o binómio factos – personalidade do arguido, a fls. 609/610, disse:
       «Sobre os factos, há que ter em conta, para além da pluralidade dos mesmos, a idêntica natureza jurídica dos bens tutelados pelas respectivas incriminações, a idêntica motivação subjacente a todos os factos, a circunstância de ambos os crimes terem ocorrido no mesmo cenário e ao mesmo tempo.
       Já quanto à personalidade, há que considerar que em face da ausência de antecedentes criminais do arguido, actualmente com 73 anos de idade, é deveras elucidativa de que o arguido não apresenta propensão para o crime e de que se trata de uma pessoa bem inserida socialmente».
      E assim fixou a pena conjunta em 21 anos de prisão.

                                                              ********       

       Estabelece, quanto a regras de punição do concurso de crimes, o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, inalterado pela Lei n.º 59/07, de 4 de Setembro, que “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

       E nos termos do n.º 2, a penalidade, a moldura abstracta do concurso, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
       O que significa que no caso presente, face à ora decidida redução da pena aplicada pelo homicídio qualificado e à nova pena fixada para o homicídio tentado, a moldura penal do concurso é de 2 anos e 6 meses a 20 anos e 6 meses de prisão.

       A medida da pena unitária a atribuir em sede de cúmulo jurídico reveste-se de uma especificidade própria.

       Por um lado, está-se perante uma nova moldura penal, mais ampla, abrangente, com maior latitude da atribuída a cada um dos crimes.

       Por outro, tem lugar, porque se trata de uma nova pena, final, de síntese, correspondente a um novo ilícito e a uma nova culpa (agora culpa pelos factos em relação), uma específica fundamentação, que acresce à decorrente do artigo 71.º do Código Penal.
        
       Maia Gonçalves, in Código Penal Anotado e Comentado, 15.ª edição, pág. 277, salientava que “na fixação da pena correspondente ao concurso entra como factor a personalidade do agente, a qual deve ser objecto de especial fundamentação na sentença. Ela é mesmo o aglutinador da pena aplicável aos vários crimes e tem, por força das coisas, carácter unitário”.
        
       Como se lê em Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 420, págs. 290/1, a pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 72.º-1 (actual 71.º-1), um critério especial: o do artigo 77.º, n.º 1, 2.ª parte, segundo o qual serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, o que obriga a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação da medida da pena do concurso.

     E no § 421, págs. 291/2, acentua o mesmo Autor que na busca da pena do concurso, “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”. Acrescenta ainda: “ De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.
       Como se extrai do acórdão deste Supremo Tribunal de 6 de Maio de 2004, in CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 191, a propósito dos critérios a atender na fundamentação da pena única, nesta operação o que releva e interessa considerar é, sobretudo, a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz uma personalidade propensa ao crime, a dar indícios de projecto de uma carreira, ou é antes, a expressão de uma pluriocasionalidade que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido, mas antes numa conjunção de factores ocasionais, sem repercussão no futuro – cfr. na esteira da posição do citado Autor, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 08-07-1998, CJSTJ 1998, tomo 2, pág. 246; de 24-02-1999, processo n.º 23/99-3.ª; de 12-05-1999, processo n.º 406/99-3.ª; de 20-01-2005, processo n.º 4322/04-5.ª, in CJSTJ 2005, tomo I, pág. 178; de 17-03-2005, no processo n.º 754/05-5.ª; de 16-11-2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 210; de 12-01-2006, no processo n.º 3202/05-5.ª; de 08-02-2006, no processo n.º 3794/05-3.ª; de 15-02-2006, no processo n.º 116/06-3.ª; de 22-02-2006, no processo n.º 112/06-3.ª; de 22-03-2006, no processo n.º 364/06-3.ª; de 04-10-2006, no processo n.º 2157/06-3.ª; de 21-11-2006, in CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 228; de 24-01-2007, no processo n.º 3508/06-3.ª; de 25-01-2007, nos processos n.ºs 4338/06-5.ª e 4807/06-5.ª; de 28-02-2007, no processo n.º 3382/06-3.ª; de 01-03-2007, no processo n.º 11/07-5.ª; de 07-03-2007, no processo n.º 1928/07-3.ª; de 14-03-2007, no processo n.º 343/07-3.ª; de 28-03-2007, no processo n.º 333/07-3.ª; de 09-05-2007, nos processos n.ºs 1121/07-3.ª e 899/07-3.ª; de 24-05-2007, no processo n.º 1897/07-5.ª; de 29-05-2007, no processo n.º 1582/07-3.ª; de 12-09-2007, no processo n.º 2583/07-3.ª; de 03-10-2007, no processo nº 2576/07-3.ª; de 24-10-2007, no processo nº 3238/07-3.ª; de 31-10-2007, no processo n.º 3280/07-3.ª; de 09-04-2008, no processo n.º 686/08-3.ª (o acórdão ao efectuar o cúmulo jurídico das penas parcelares não elucida, porque não descreve, o raciocínio dos julgadores que orientou e decidiu a determinação da medida da pena do cúmulo); de 25-06-2008, no processo n.º 1774/08-3.ª; de 02-04-2009, processo n.º 581/09-3.ª, relatado pelo ora relator, in CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 187; de 21-05-2009, processo n.º 2218/05.0GBABF.S1-3.ª; de 29-10-2009, no processo n.º 18/06.0PELRA.C1.S1-5.ª, in CJSTJ 2009, tomo 3, pág. 224 (227); de 04-03-2010, no processo n.º 1757/08.6JDLSB.S1-5.ª; de 10-11-2010, no processo n.º 23/08.1GAPTM-3.ª.
       Na expressão dos acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça, de 20-02-2008, proferido no processo n.º 4733/07 e de 8-10-2008, no processo n.º 2858/08, desta 3.ª Secção, na formulação do cúmulo jurídico, o conjunto dos factos fornece a imagem global do facto, o grau de contrariedade à lei, a grandeza da sua ilicitude; já a personalidade revela-nos se o facto global exprime uma tendência, ou mesmo uma “carreira”, criminosa ou uma simples pluriocasionalidade.


       Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso - cfr., i. a., acórdãos do STJ, de 17-03-2004,  03P4431; de 20-01-2005, CJSTJ 2005, tomo 1, pág. 178; de 08-06-2006, processo n.º 1613/06 – 5.ª; de 07-12-2006, processo n.º 3191/06 – 5.ª; de 20-12-2006, processo n.º 3379/06-3.ª; de 18-04-2007, processo n.º 1032/07 – 3.ª; de 03-10-2007, processo n.º 2576/07-3.ª, in CJSTJ 2007, tomo 3, pág. 198; de 09-01-2008, in CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 181; de 06-02-2008, processos n.º s 129/08-3.ª e 3991/07-3.ª, in CJSTJ 2008, tomo I, pág. 221; de 06-03-2008, processo n.º 2428/07 – 5.ª; de 13-03-2008, processo n.º 1016/07 – 5.ª; de 02-04-2008, processos n.º s 302/08-3.ª e 427/08-3.ª; de 09-04-2008, processo n.º 1011/08 – 5.ª; de 07-05-2008, processo n.º 294/08 – 3.ª; de 21-05-2008, processo n.º 414/08 – 5.ª; de 04-06-2008, processo n.º 1305/08 – 3.ª; de 25-09-2008, processo n.º 2891/08-3.ª; de 29-10-2008, processo n.º 1309/07-3.ª; de 27-01-2009, processo n.º 4032/08-3.ª; de 29-04-2009, processo n.º 391/09 - 3.ª; de 14-05-2009, processo n.º 170/04.9PBVCT.S1-3.ª; de 27-05-2009, processo n.º 50/06.3GAVFR.C1.S1-3.ª; de 18-06-2009, processo n.º 577/06.7PCMTS.S1-3.ª; de 18-06-2009, processo n.º 8523/06.1TDLSB-3.ª; de 25-06-2009, processo n.º 274/07-3.ª, CJSTJ 2009, tomo 2, pág. 251 (a decisão que efectiva o cúmulo jurídico das penas parcelares necessariamente que terá de demonstrar fundamentando que foram avaliados o conjunto dos factos e a interacção destes com a personalidade); de 21-10-2009, processo n.º 360/08.5GEPTM.S1-3.ª; de 04-11-2009, processo n.º 296/08.0SYLSB.S1-3.ª; de 18-11-2009, processo n.º 702/08.3GDGDM.P1.S1-3.ª; de 25-11-2009, processo n.º 490/07.0TAVVD-3.ª; de 10-12-2009, processo n.º 496/08.2GTABF.E1.S1-3.ª (citado no acórdão de 23-06-2010, processo n.º 862/04.2PBMAI.S1-5.ª), ali se referindo: “Na determinação da pena única do concurso, o conjunto dos factos indica a gravidade do ilícito global, sendo decisiva a avaliação e conexão e o tipo de conexão que se verifique entre os factos concorrentes. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente importa, sobretudo, verificar se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira» criminosa), ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”; de 04-03-2010, no processo n.º 1757/08.6JDLSB.L1.S1-5.ª; de 10-03-2010, processo n.º 492/07.7PBBJA.E1.S1-3.ª; de 18-03-2010, no processo n.º 160/06. 7GBBCL.G2.S1-5.ª; de 15-04-2010, no processo n.º 134/05.5PBVLG.S1-3.ª; de 28-04-2010, no processo n.º 260/07.6GEGMR.S1-3.ª; de 05-05-2010, no processo n.º 386/06.3SLSB.S1-3.ª; de 12-05-2010, no processo n.º 4/05.7TDACDV.S1-5.ª; de 27-05-2010, no processo n.º 708/05.4PCOER.L1.S1-5.ª; de 09-06-2010, processo n.º 493/07.5PRLSB-3.ª; de 23-06-2010, no processo n.º 666/06.8TABGC-K.S1-3.ª; de 20-10-2010, processo n.º 400/08.8SZLB.L1-3.ª ; de 03-11-2010, no processo n.º 60/09.9JAAVR.C1.S1-3.ª; de 16-12-2010, processo n.º 893/05.5GASXL.L1.S1-3.ª; de 19-01-2011, processo n.º 6034/08.0TDPRT.P1.S1-3.ª; de 02-02-2011, processo n.º 217/08.0JELSB.S1-3.ª.
        Por outro lado, na confecção da pena conjunta, há que ter presentes os princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso.                                      

       Cremos que nesta abordagem, há que ter em conta os critérios gerais da medida da pena contidos no artigo 71.º do Código Penal – exigências gerais de culpa e prevenção – em conjugação, a partir de 1-10-1995, com a proclamação de princípios ínsita no artigo 40.º, atenta a necessidade de tutela dos bens jurídicos ofendidos e das finalidades das penas, incluída a conjunta, aqui acrescendo o critério especial fornecido pelo artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal - o que significa que o específico dever de fundamentação de aplicação de uma pena conjunta, não pode estar dissociado da questão da adequação da pena à culpa concreta global, tendo em consideração por outra via, pontos de vista preventivos, passando pelo efectivo respeito pelo princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, tornando-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade do facto global e a gravidade da pena conjunta.
       A preocupação de proporcionalidade a que importa atender resulta do limite intransponível absoluto dos 25 anos de prisão estabelecido no n.º 2 do artigo 77.º do Código Penal. É aqui que deve continuar a aflorar uma abordagem diferente da pequena e média criminalidade, face à grande criminalidade, para efeitos de determinação da pena conjunta, e que se traduzirá, na prática, no acrescentamento à parcelar mais grave de uma fracção menor das outras.
       Como se extrai dos acórdãos de 12-05-2010, processo n.º 4/05.7TACDV.S1-5.ª e de 16-12-2010, no processo n.º 893/05.5GASXL.L1.S1-3.ª, a pena única deve reflectir a razão de proporcionalidade entre as penas parcelares e a dimensão global do ilícito, na ponderação e valoração comparativas com outras situações objecto de apreciação, em que a dimensão global do ilícito se apresenta mais intensa.

                                                                   
       No nosso caso é evidente a conexão e estreita ligação entre os dois crimes cometidos pelo recorrente, um cometido a seguir ao outro, no mesmo espaço, sendo atingido o mesmo bem jurídico.
       A facticidade provada não permite formular um juízo específico sobre a personalidade do arguido que ultrapasse a avaliação que se manifesta pela própria natureza dos factos praticados, não se mostrando provada personalidade por tendência, ou seja, que o ilícito global seja produto de tendência criminosa do agente, antes correspondendo a um episódio isolado de vida, restando a expressão de uma ocasionalidade procurada pelo arguido.
       Num outro plano, há que ter em conta de novo, nesta fase, o princípio da proibição de dupla valoração, supra mencionado a propósito da determinação da pena concreta pelo crime de homicídio qualificado, impedindo que funcione na determinação da pena conjunta circunstância já presente na determinação da pena parcelar.
      
       Em suma: A pena unitária tem de responder à valoração, no seu conjunto e inter conexão, dos factos e personalidade do arguido, afigurando-se-nos algo excessiva a pena aplicada (que englobou então um homicídio tentado qualificado), pelo que há que alterá-la, mostrando-se, pois, necessária intervenção correctiva deste Supremo Tribunal de Justiça no sentido de fazer incidir um maior factor de compressão.

       Como tem sido entendido – i. a., acórdão de 06-03-2008, processo n.º 2428/07-5.ª - para garantir a proporcionalidade das penas há que fazer intervir um factor de compressão que deverá ser tanto maior quanto a pena mais se aproxime do limite máximo de 25 anos.

       De acordo com o acórdão de 27-03-2008, processo n.º 815/08-5.ª, versando caso de homicídio qualificado, atentos os vários cenários possíveis, a nível de singularidade ou pluralidade de circunstâncias especialmente censuráveis, e mesmo da intensidade de cada uma das circunstâncias qualificativas poder ser maior ou menor, defende-se que o julgador deve ser muito exigente quando opta por uma pena máxima ou próxima da máxima, pois o princípio da igualdade está intimamente ligado ao da justiça relativa e, portanto, há que reservar tais penas para os casos excepcionais de rara violência.

       E assim sendo, tudo ponderado, será de fixar a pena conjunta em 19 anos de prisão.

Decisão

Pelo exposto, acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido AA, e, em consequência:

1. – Considerar a prática pelo arguido de um crime de homicídio qualificado apenas pela alínea i) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal, desconsiderando a qualificativa da alínea j), e afastando a da alínea b);

2. – Convolar o crime de homicídio tentado qualificado para um crime de homicídio simples, na forma tentada, p. p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131.º, 22.º, 23.º, n.º 2 e 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal;

3. – Fixar as seguintes penas:

3. 1 – Pelo crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 2, alínea i), do Código Penal, a pena de 18 anos de prisão;

3. 2 – Pelo crime de homicídio simples tentado, p. p. pelos artigos 131.º, 22.º, 23.º, n.º 2 e 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal, a pena de 3 anos de prisão.

4. – Em cúmulo jurídico, fixar a pena conjunta em 19 anos de prisão.

Sem custas.

Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Lisboa, 30 de Novembro de 2011

Raul Borges (Relator)

Henriques Gaspar