ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
150/08.5JBLSB.L1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/16/2011
SECÇÃO 3ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL RECURSO PENAL
DECISÃO NEGADO PROVIMENTO
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR SANTOS CABRAL

DESCRITORES CÚMULO JURÍDICO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE
CASO JULGADO
PENA SUSPENSA
PENA ÚNICA
IMAGEM GLOBAL DO FACTO

SUMÁRIO

I - No art. 78.º, n.º 1, do CP, prevê-se o caso de conhecimento superveniente do concurso, ou seja, quando posteriormente à condenação se detectar que o agente praticou anteriormente àquela condenação outro, ou outros crimes, são aplicáveis as regras do disposto no art. 77.º do CP, segundo o n.º 1, daquele preceito, não dispensando o legislador a interacção entre as duas normas.
II - Assim, no concurso superveniente de infracções tudo se passa como se, por pura ficção, o tribunal apreciasse, contemporaneamente, com a sentença, todos os crimes praticados pelo arguido, formando um juízo censórico único, projectando-o retroactivamente.
III - Constitui jurisprudência minoritária no STJ o entendimento de que a revogação da suspensão da execução da pena não pode ter lugar em cúmulo, com o fundamento na diversa natureza entre a pena de prisão suspensa, por substitutiva, logo insusceptível de englobar-se em concurso, nos termos do art. 77.º, n.º 3, do CP (cf. Ac. do STJ, de 18-05-2011).
IV - Esta posição assenta na ideia de que, a partir do momento em que se forma o caso julgado sobre a condenação, o arguido deve em regra poder contar, e normalmente conta, que a decisão judicial sobre a culpabilidade em relação ao crime cometido e sobre a consequência jurídica aplicada pela sua prática se torne definitiva e irreversível.
V - Esta solução de pura lógica formal, que é de arredar, falece de razoabilidade prática, que é desde logo evidente na circunstância de o juiz que decreta a suspensão da pena parcelar ignorar a existência de concurso e elaborar um juízo de prognose sobre a evolução da personalidade do arguido com base numa delinquência ocasional que não se verifica.
VI - Como se refere no Ac. do STJ, de 21-12-2006, a suspensão não forma caso julgado perfeito, estável, dotado de fixidez, em que a revogação é mutável por força do circunstancialismo previsto no art. 56.º do CP, do condicionalismo do art. 55.º do CP, ou por força da necessidade de cúmulo jurídico, isto porque quando se procedeu ao julgamento parcelar, incompleto, portanto, não se conheciam todos os elementos posteriores alcançados, de tal modo que o julgamento parcelar, hoc sensu, é um julgamento «condicional», sujeito à «condição rebus sic stantibus», suplantando o «regime normal de intangibilidade».
VII - Para a determinação da pena conjunta é decisivo que se obtenha uma visão conjunta dos factos, acentuando a relação destes entre si e no seu contexto; a maior ou menor autonomia e frequência da comissão dos delitos; a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão, bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento, mas também a receptividade do agente à pena, o seu processo de socialização e inserção social e ainda a avaliação das suas circunstâncias pessoais tendentes a analisar uma possível tendência criminosa.
VIII - No caso dos autos, estamos perante acções desvaliosas de comportamento que se orientam para a prática de ilícitos (roubos), com recurso a armas de fogo, que contendem com uma pluralidade de bens jurídicos dos quais o mais valioso será a própria integridade física. A decisão de cometer um crime de roubo com instrumentos pertencente a um patamar superior de letalidade, e em lugares de acessibilidade intensa e regular por parte do cidadão comum, revela já um refinamento da vontade de praticar o crime quando não uma audácia, ou destemor, tanto mais impressivos quanto lhe corresponde um alheamento da potencialidade de perigo para a integridade física do cidadão comum.
IX - No percurso criminoso dos arguidos não se avista qualquer quadro atenuativo de relevo sendo certo que a situação da anomia não é uma desculpa relevante para as opções de vida dos arguidos. Os mesmos sucumbiram ao apelo para o crime como forma de conseguir dinheiro, mas muitos outros, com a mesma origem débil em termos de anomia social e económica, não sucumbiram e lutam diariamente, prosseguindo com a sua vida de forma lícita porque honesta.





DECISÃO TEXTO INTEGRAL

                                    Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

            AA e BB vieram interpor recurso da decisão que efectuou o cúmulo jurídico das penas aplicadas no processo nº 677/08.9GCMFR, do Juízo de Grande Instância Criminal da Comarca da Grande Lisboa Noroeste, e no presente processo (nº150/08.5JBLSB), e os condenou nas seguinte penas:

- AA, na pena única de 5 (cinco) anos e 7 (sete) meses de prisão;

- BB, na pena única de 6 (seis) anos de prisão.

            As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusos da respectiva motivação de recurso onde se refere que:

1.         Porque não se conformam com o Acórdão proferido nos autos, com o qual foram os recorrentes AA e BB, condenados, em cúmulo jurídico, nas penas únicas de cinco anos e sete meses e seis anos de prisão, respectivamente, vêm interpor o presente recurso, limitando-o a questões de direito.

2.         Os arguidos foram condenados nos processos a 677/08.9GCMFR do Tribunal de Mafra, tendo o recorrente AA sido condenado na pena de três anos e seis meses de prisão e o recorrente BB na pena de quatro anos e seis meses e ainda por acórdão condenatório proferido no âmbito dos presentes autos, nas penas de quatro anos e seis meses, o arguido AA e quatro anos o arguido BB.

3.         Em ambos os casos beneficiaram da aplicação do regime especial para jovens, o que levou a decisão de suspensão da execução das penas.

4.         Nos presentes autos, num Tribunal Colectivo composto por dois dos juízes que haviam julgado o processo 677/08, em Mafra, decidiram, aplicar o regime especial para jovens e condenar os arguidos, suspendendo a sua execução, sujeitando-os ao regime de prova, decisão que permitiu que não lhes tirassem a oportunidade que lhes havia siso dada.

5.         A lei apenas consagra a possibilidade de revogação da suspensão da execução da pena nos casos tipificados no artigo 56° número 1 alínea a) e b) do Código Penal.

6.         Aceitando a revogação de uma pena suspensa por via do cúmulo jurídico, tem de se partir do pressuposto de que, aquando da suspensão da execução da pena o arguido não tem outras condenações e que a suspensão será afastada logo que se constate a existência de condenações em relação de cúmulo, nos termos dos artigos 77 n.° 1 e 78-° n.° 1 do Código Penal.

7.         A decisão que condena os arguidos AA e BB nas penas de quatro anos e seis meses e quatro anos, respectivamente, conhecia a existência do processo anterior, ao qual faz referência no acórdão, sendo que o Tribunal Colectivo em comum, ao processo anterior, dois dos seus Meritíssimos Juízes,

8-         O tribunal a quo, composto por Meritíssimos Juízes que não faziam parte do Colectivo que analisou a prova, deu como provados os factos pelos quais os recorrentes foram julgados e condenados,

9.         Deu ainda como provado que, à data dos factos que deram origem ao processo 677/09 os arguidos eram primários, omitindo os que deram origem aos presentes, que também eram primários, o que denota claramente um desconhecimento dos contornos das duas condenações.

10.       Na fundamentação, há uma contradição evidente nos termos do douto aresto. O tribunal a quo fundou a sua convicção, entre outras, nas decisões proferidas nos processos 677/08 e 150/08.

11.       Daquelas decisões constam os motivos que levaram à aplicação do regime especial para jovens

12.       Do acórdão condenatório proferido nos presentes autos em Fevereiro de 2010, consta que os arguidos, "demonstraram interiorização do desvalor das suas condutas ...„ surgindo aliás os factos praticados, tanto no âmbito deste processo como daquele que fundamentou a anterior condenação, como episódios ... isolados no contexto   de vidas destes jovens adultos, não se vê como negar-lhes o aludido benefício, como forma de promover e facilitar a sua reinserção social,"

13.       Em contradição com o juízo dos tribunais que analisaram a prova, o acórdão recorrido para fundamentar a medida da pena estribou-se no que se transcreve: "Ora, quanto à personalidade dos arguidos há a considerar a adopção, pelos mesmos, dos sucessivos comportamentos ilícitos que determinaram as condenações que já sofreram...." "Há que ter em conta, ainda, que ambos os arguidos, através das condutas que empreenderam, revelam incompreensão das normas jurídicas vigentes bem como dos valores que regem a vida lícita em sociedade"

14.       Em suma, o acórdão proferido nos presentes autos em Fevereiro de 2010, na sequência da análise da prova, considera que os recorrentes agiram pontualmente c demonstraram interiorização do desvalor das suas condutas. Em contradição, o acórdão recorrido define-os como autores de crimes sucessivos e que os recorrentes ao cometerem os crimes revelaram incompreensão das normas jurídicas vigentes bem como dos valores que regem a vida lícita em sociedade.

15.       O tribunal a quo dispunha de elementos que permitiam a aproximação ao limite mínimo da pena e a decisão pela suspensão da sua execução.

16.       Dos relatórios sociais dos arguidos AA e BB   constam factos relativos às actuais condições pessoais dos arguidos, que permitem extrair factualidade de relevante valor atenuativo.

17.       O arguido AA tem uma relação afectiva que dura há 4 anos com CC, sendo ambos pais de uma bebé de 9 meses; para sustentar a família dedica-se à recolha de ferro velho; está inscrito e participa no Projecto Esperança gerido pela Associação Unida e Cultural, sendo o seu comportamento descrito de forma normativa; Apresenta auto censura e capacidade de reflexão crítica, assumindo com responsabilidade e arrependimento a sua postura incorrecta.

18.       Em suma, no que ao arguido AA respeita, é mais favorável o actual quadro do que era aquando das duas condenações em que beneficiou da aplicação da lei dos jovens delinquentes.

19.       Do relatório social do arguido BB, consta o cumprimento do plano estabelecido no âmbito dos processos em que foi condenado e no qual tem tido resultado satisfatório

20.       Alerta-se para a necessidade de se investir na sua valorização pessoal, no sentido de vir a desenvolver competências que possam reforçar factores de protecção,

21.       O acórdão recorrido, ao ter optado pela aplicação ao arguido de pena que não considerou um conjunto de condições pessoais disponíveis, e valoráveis nos termos do art° 71° do C. Penal, impôs-lhes uma pena mais pesada do que a devida.

22.       Assim, adopta interpretação inconstitucional da norma contida nos n°s 1, 2 c 3 do artigo 71° do C.Penal, violando o disposto nos artigos 32° nº 1 da Constituição da República Portuguesa - por violação das garantias de defesa do arguido -, quando se limita a cumprir aquela norma com o sentido de que para a determinação da medida da pena não contam todas as circunstâncias que possam depor a favor do arguido e disponíveis nos autos, nomeadamente no relatório social.

23.       Na medida da pena, o tribunal a quo, fez tábua rasa do anteriormente decidido nos mesmos autos, contrariando o juízo de prognose favorável feito por quem analisou e julgou a prova.

24.       Reduzindo a pena para o limite mínimo, quatro anos e seis meses, deverá o douto tribunal optar por suspender a execução das penas de prisão aplicadas aos arguidos.

25.       Como bem assinala a doutrina e a jurisprudência, trata-se ainda assim de uma verdadeira pena.

26.       A pena de substituição deverá ser aplicada quando, atendendo à personalidade do agente, as suas condições de vida e outras circunstâncias indicadas, conclua por um juízo de prognose favorável, no sentido de afastamento do arguido da criminalidade. Os acórdãos cujas penas foram cumuladas, entenderam existir um juízo de prognose favorável.

27.       Ora, no caso em apreço, e no momento da decisão (sendo este o momento relevante para apreciação), existia este juízo de prognose favorável, em termos de justificar a aplicação da pena de suspensão da execução da prisão.

28.       O arguido AA encontra-se já plenamente integrado a nível familiar, vivendo com a sua companheira e uma filha, colaborando no sustento da família.

29.       Está em cumprimento do regime de prova que lhe foi imposto, tendo, desde o dia em que foi proferido o acórdão nos presentes autos, em Fevereiro de 2010, deixado de viver na Quinta do Mocho., onde tinha uma casa, para viver na residência de familiares da companheira, Apesar de ter prejudicado a sua privacidade, cumpriu o regime que lhe foi imposto e que era condição da suspensão da execução da pena. Tem vindo a poupar dinheiro para pagar as indemnizações a que foi condenado nos dois processos.

30.       Actualmente (momento relevante para a questão em causa), o recorrente AA tem uma relação reforçada com os familiares da companheira e com os seus próprios, cultivando todo um novo e completamente diferente grupo de amigos, gozando de uma maior proximidade c acompanhamento dos familiares, e de um apoio estruturante dos seus novos amigos» no sentido de uma vivência enquadrada com a lei e o direito.

31.       O arguido BB, também sob o regime que lhe foi imposto nas condenações anteriores, está a cumprir quinhentas horas de trabalho comunitário, na Escola Primária Quinta da Princesa, no âmbito do Projecto Escolha, supervisionando actividades das crianças que ali estão nos tempos livres. Está ainda a frequentar uma formação - um curso de informática - na referida escola. A prestação do trabalho a favor da comunidade e a frequência da formação na área da informática» ocupam todo o dia, cinco dias por semana.

32.       Por factos anteriores aos que deram origem às penas cumuladas no acórdão que aqui se coloca em crise, o arguido cumpre apresentações diárias, duas vezes por dia, cumprindo com rigor tal obrigação.

33.       Em face deste circunstancialismo, existe apenas um sentido: condenar os recorrentes numa pena não superior a cinco anos, e manter a suspensão das penas, ainda que sujeitas ao regime de prova, como decidido anteriormente,

34.       Não é de mais enfatizar os efeitos perniciosos da sujeição dos arguidos, neste momento, a uma pena de prisão, e de sublinhar as inegáveis vantagens de uma suspensão de pena, aliada ao acompanhamento estruturado de um regime de prova.

35.       Acresce a instabilidade causada na vida dos arguidos recorrentes, pelas vicissitudes destes dois processos:

a) Aguardaram o primeiro julgamento em prisão preventiva, tendo sido libertados no dia da leitura do acórdão;

b)Voltaram ao regime de prisão preventiva por estarem indiciados na prática do crime que deu origem aos presentes autos, não obstante tratar de factos anteriores aos que levara à condenação no processo 677/08, tendo sido libertados no dia da leitura do acórdão proferido. Neste processo a Merítíssima Juiz Presidente alertou os arguidos da razão de voltarem a aplicar o regime especial para jovens,

c)A experiência que os arguidos tiveram com os dois julgamentos a que foram submetidos, levaram-nos a optar por um caminho longe do que haviam seguido, muito pela confiança que neles foi depositada pelo Tribunal.

d)Cumpridores do regime que lhes foi imposto, os arguidos não entendem porque estão a ser punidos, porque lhes é dada urna oportunidade por uns Juízes e retirada por outros.

36.       É a condição actual dos arguidos que releva, e não a de outro momento qualquer, pelo que, ressalvado o devido respeito por opinião diferente, deverá a pena dos arguidos ser suspensa na sua execução, sujeita a regime de prova (art° 50° n° 1 c 53° do C. Penal). n°s 1„ 2 e 3 do artigo 71° do C.Penal,  artigo 32° n° 1 da Constituição da República Portuguesa.

Termina pedindo que

              Se decida pela condenação dos arguidos numa pena não superior a cinco anos, a qual deverá ser suspensa na sua execuç3o, ainda que sujeita ao regime de prova.

 

Respondeu o Ministério Publico referindo, em síntese, que

A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de actuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida. A suspensão da execução da pena é, sem dúvidas, um poder vinculado do julgador, que terá de a decretar sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos.

No caso, em primeiro lugar foram aplicadas penas de prisão superiores a 5 anos, o que desde logo afasta essa possibilidade.

Em segundo lugar, a comunidade social seguramente não compreenderia que em face de dois crimes com tão elevados graus de ilicitude e de censurabilidade ético-jurídica, as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico (prevenção geral) fossem ainda compatíveis com a ressocialização dos arguidos em liberdade.

Mais justificadamente, ainda, recusaria uma tal decisão quando os pressupostos ao nível da prevenção especial vão exactamente no sentido da contra-indicação, visto, nomeadamente, quer a ausência de uma qualquer interiorização do mal cometido quer a ausência de um quadro mínimo de condições, tudo, enfim, a pôr em causa um qualquer juízo de prognose favorável àquela pretensão de ressocialização em liberdade.

Manifestamente, no caso concreto, a censura do facto e a ameaça da prisão só por si, de modo nenhum, se revelariam suficientes para se assegurarem as finalidades da punição.

Termina pedindo que seja negado provimento ao recurso apresentado pelos arguidos,

    O ExºMº Sr. Procurador Geral  Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça apresentou parecer constante de fls advogando a improcedência do recurso.

                                   Os autos tiveram os vistos legais

                                                        *

                                           Cumpre decidir.

Em sede de decisão recorrida encontra-se provada a seguinte factualidade:

O arguido AA foi julgado e condenado:

1. Por acórdão proferido a 27.03.2009, transitado em julgado a 06.05.2009, no âmbito do processo nº 677/08.9GCMFR, do Juízo de Grande Instância Criminal da Comarca da Grande Lisboa Noroeste, por factos reportados a 30.07.2008, pela prática de um crime de roubo agravado, foi condenado na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova;

2. Por acórdão proferido nestes autos a 08.02.2010, transitado em julgado a 10.03.2010, por factos reportados a 21.08.2008, pela prática de um crime de roubo agravado, foi condenado na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova.

                                                            *

O arguido BB Pinto foi julgado e condenado:

1. Por acórdão proferido a 27.03.2009, transitado em julgado a 06.05.2009, no âmbito do processo nº 677/08.9GCMFR, do Juízo de Grande Instância Criminal da Comarca da Grande Lisboa Noroeste, por factos reportados a 30.07.2008, pela prática de um crime de roubo agravado, foi condenado na pena de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova;

2. Por acórdão proferido nestes autos a 08.02.2010, transitado em julgado a 10.03.2010, por factos reportados a 21.08.2008, pela prática de um crime de roubo agravado, foi condenado na pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova;

3. Por sentença proferida a 18.06.2010, transitada em julgado a 19.07.2010, no âmbito do processo nº 761/10.9PBAMD, do Juízo de Pequena Instância Criminal da Amadora, por factos reportados a 19.05.2010, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, foi condenado na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 5.

                                                           *

Com interesse para a decisão, encontram-se provados os seguintes factos:

Os arguidos praticaram os factos, pelos quais foram condenados, no âmbito destes autos e do processo nº 677/08.9GCMFR, do Juízo de Grande Instância Criminal da Comarca da Grande Lisboa Noroeste, fazendo uso de armas de fogo;

No âmbito do processo nº 677/08.9GCMFR, do Juízo de Grande Instância Criminal da Comarca da Grande Lisboa Noroeste, os arguidos intimidaram, através do uso de uma arma de fogo, duas vítimas, tendo feito suas quantias monetárias e objectos no valor total de € 4.370,60;

No âmbito dos presentes autos, e no propósito de levarem a cabo o assalto – que concretizaram – a uma agência bancária sita em Pêro Negro, os arguidos intimidaram, empunhando duas armas de fogo, o funcionário bancário que aí se encontrava;

No momento em que os arguidos actuaram, encontrava-se na mencionada agência bancária uma cliente, acompanhada da sua filha recém-nascida;

Os arguidos fizeram sua, no âmbito de tal assalto, a quantia de € 22.760,00, tendo causado estragos no sistema de videovigilância da agência bancária no valor de € 2.976,37;

À data dos factos pelos quais foram condenados no processo nº nº 677/08.9GCMFR, do Juízo de Grande Instância Criminal da Comarca da Grande Lisboa Noroeste nenhum dos arguidos apresentava antecedentes criminais;

O arguido AA é originário da Guiné-Bissau, onde viveu até aos 10 anos de idade, com a sua progenitora;

Veio para Portugal, onde se encontrava o seu progenitor, com a referida idade;

O arguido integrou, então, o agregado familiar do pai, composto por este, a sua madrasta e dois irmãos;

O seu processo de crescimento pautou-se por desestruturação familiar, devido ao alcoolismo da madrasta e à precariedade económica do seu agregado;

O seu progenitor partiu para a Argélia há cerca de 4 anos, ficando o arguido entregue a si próprio;

Frequentou a escola até ao 7º ano de escolaridade, abandonando o ensino e centrando os seus interesses no futebol;

Há cerca de 4 anos iniciou uma relação afectiva, da qual nasceu um filho, de 9 meses de idade;

No sentido de angariar meios de subsistência, o arguido dedica-se à recolha de “ferro velho”;

Esteve preso preventivamente, à ordem dos presentes autos, entre 10.08.2009 e 08.02.2010;

O arguido possui algum sentido de responsabilidade, descentração e reflexão crítica, apresentando consciencialização do desvalor das condutas que adoptou e que determinaram as suas condenações criminais;

O arguido BB Pinto nasceu de um relacionamento mantido entre a sua mãe, natural de São Tomé e Príncipe, e de um angolano, o qual terminou antes do seu nascimento;

O arguido passou a residir, desde há cerca de 16 anos, na Quinta do Mocho, na sequência de um processo de realojamento;

Nessa altura faziam parte do seu agregado a mãe, um companheiro desta e três irmãs;

O ambiente familiar era tenso e conflituoso, devido à postura intolerante e punitiva do companheiro da sua progenitora;

O arguido nunca conheceu o seu progenitor;

Concluiu o 5º ano de escolaridade e, posteriormente, frequentou um curso de formação profissional, na área da pintura de construção civil, que terminou com 17 anos de idade;

Iniciou, então, o seu percurso laboral na construção civil, tendo passado a residir na Quinta da Princesa, Margem Sul, com a sua progenitora;

Apesar da mudança de residência, continuou a frequentar o Bairro onde vivia anteriormente, tendo aí iniciado consumos de haxixe e integrado um grupo de pares com o qual iniciou a prática de delitos criminais;

No âmbito do processo nº 677/08.9GCMFR, do Juízo de Grande Instância Criminal da Comarca da Grande Lisboa Noroeste, o arguido esteve preso preventivamente desde 22.08.2008 a 27.03.2009, tendo cumprido nova prisão preventiva, à ordem dos presentes autos, entre 09.09.2009 e 08.02.2010;

O arguido possui processos criminais pendentes, encontrando-se sujeito à medida de coacção de apresentações diárias perante o o.p.c. da sua área de residência, estando indiciando da prática de um crime de roubo e de seis crimes de sequestro (processo nº 137/08.8IBLSB);

Actualmente, não tem qualquer ocupação laboral;

Revela falta de capacidade crítica e incompreensão da gravidade dos ilícitos que praticou;

Não interiorizou o desvalor das suas condutas e apresenta uma personalidade imatura, sendo permeável à influência do seu grupo de pares, que igualmente adopta comportamentos desviantes.

   Reportando-se á elaboração da pena conjunta refere a decisão recorrida que:

Na medida da pena única são considerados, em conjunto, como se disse, os factos e a personalidade do agente.

Ora, quanto à personalidade dos arguidos há a considerar a adopção, pelos mesmos, dos sucessivos comportamentos ilícitos que determinaram as condenações que já sofreram. Por outro lado, os factos praticados nos processos supra referidos são graves, atenta a intimidação que exerceram nas suas vítimas, mediante o emprego de armas de fogo, bem como o valor dos bens e quantias monetárias que subtraíram.

Impõe-se, pois, repor a confiança nas normas violadas, dada a frequência de ilícitos desta natureza praticados um pouco por todo o país, bem como a insegurança e instabilidade social que provocam.

Há que ter em conta, ainda, que ambos os arguidos, através das condutas que empreenderam, revelam incompreensão das normas jurídicas vigentes, bem como dos valores que regem a vida lícita em sociedade. Por outro lado, há que ponderar que o arguido BB Pinto apresenta processos pendentes, encontrando-se indiciado da prática de crime da mesma natureza dos já praticados no âmbito dos processos cujas penas agora se cumulam.

Assim, tendo em consideração a personalidade dos arguidos, revelada pela prática dos ilícitos referidos, os quais se revestem de elevada gravidade, e atendendo a todos os factores já considerados na aplicação das medidas concretas das penas parcelares supra mencionadas, o Tribunal entende adequado e proporcional fixar, em cúmulo jurídico, de acordo com o disposto nos nºs 1 e 3 do art. 77º do Código Penal, e nos nºs 1 e 2 do art. 78º do mesmo diploma, as seguintes penas únicas:

- Ao arguido AA, 5 (cinco) anos e 7 (sete) meses de prisão;

- Ao arguido BB , 6 (seis) anos de prisão.

                                                           *

I

No artigo 78.º n.º 1, do CP prevê-se o caso de conhecimento superveniente do concurso, ou seja, quando posteriormente à condenação se detectar que o agente praticou anteriormente àquela condenação outro, ou outros, crimes, são aplicáveis as regras do disposto no art.º 77.º, do CP, segundo o n.º 1, do art.º 78.º, do CP, não dispensando o legislador a interacção entre as duas normas.

Como refere Ieschek (Tratado de Derecho Penal pag 669) a decisão proferida em cúmulo jurídico superveniente deve ser tratada nos mesmos termos e pressupostos que existiriam se o conhecimento do concurso tivesse sido contemporâneo da decisão que teria necessariamente tomado em conta para formação da pena única os crimes antes praticados; a decisão projecta-se no passado como se fosse tomada a esse tempo, relativamente ao crime que podia ter sido trazido à colação no primeiro processo para determinação da pena única. Aliás, refere ainda o mesmo Autor, que na formação da pena em concurso a prévia suspensão condicional da pena fica sem objecto ao incluir-se esta na nova sentença e o novo juiz deverá pronunciar-se, também, na formação da pena global sobre a sua revisão.

            Assim, no concurso superveniente de infracções tudo se passa como se, por pura ficção, o tribunal apreciasse, contemporaneamente, com a sentença, todos os crimes praticados pelo arguido, formando um juízo censório único, projectando-o retroactivamente [1]Como se refere em Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 18/05/2011[2] é minoritária neste Supremo Tribunal de Justiça a posição jurisprudencial de que a revogação da suspensão da pena não pode ter lugar em cúmulo, com o fundamento na diversa natureza entre a pena de prisão suspensa, pena substitutiva, logo insusceptível de englobar-se em concurso, nos termos do art.º 77.º n.º 3 , do CP ,[3].

Como se constata da análise da jurisprudência proferida em sentido contrário, bem como da esparsa doutrina que aborda o tema, o núcleo essencial da argumentação que afasta a pena suspensa da formação da pena conjunta no concurso conhecido posteriormente reside na força do caso julgado entretanto formado. Na verdade, refere Nuno Brandão, paladino de tal interpretação[4], que é manifesto que a interpretação do regime legal do conhecimento superveniente do concurso que admite que as penas de substituição aplicadas por condenações transitadas em julgado possam ser revogadas e substituídas por uma pena única conjunta de prisão efectiva está ferida de inconstitucionalidade, por violação do caso julgado, consa­grado no art. 29. nº 5 da Constituição. Tal conclusão assenta no facto de, nessa interpretação, resultar uma restrição de um direito, liberdade e garantia fundamental que não só não se encontra expressamente prevista na Constituição (art. 18.°-2 da CRP), como ainda, e decisivamente, que afecta o conteúdo essencial do princípio non bis in idem (art. 18.°-3 da CRP). Essencial no argumentário dos defensores de tal principio é a ideia de que, a partir do momento em que se forma o caso julgado sobre a condenação, o arguido deve em regra poder contar, e normal­mente conta, com que a decisão judicial sobre a culpabilidade em relação ao crime cometido e sobre a consequência jurídica aplicada pela sua prá­tica se tome definitiva e irreversível.

Por detrás da lógica formal a argumentação ora expendida falece de razoabilidade prática o que desde logo é evidente pela circunstância de o juiz que decreta a suspensão da pena parcelar, ignorando a existência de concurso, elaborar um juízo de prognose sobre a evolução da personalidade do arguido com base numa delinquência ocasional que não se verifica. O pressuposto da suspensão não existe pois que existem outros crimes praticados, mas não conhecidos em concreto, e o julgador é induzido em erro pela convicção contrária.

Ignora-se, assim, o núcleo fundamental da determinação da pena em sede de cumulo que é a avaliação conjunta dos factos e da personalidade pois que, na tese que se repudia, ao abrigo do princípio do caso julgado pretende-se furtar ao domínio do concurso superveniente as infracções em que tenha existido pena suspensa. Aliás, esgrimindo-se com o mesmo argumento da força do caso julgado nos termos expostos, e ignorando a perda de autonomia das penas parcelares que é pressuposto do concurso, não se vislumbra porque é não se leva o raciocínio ao limite, defendendo que todas as penas parcelares que tenham transitado, e pelo simples facto de terem, são afastadas do cúmulo. Então o paradigma será outro e do domínio do concurso de penas passamos para a acumulação material de penas.

O que decididamente não é defensável é criar um regime não cabimentado na letra da lei e que consubstancia o que de mais favorável se encontra se encontra para o arguido em sede de regime de pena de concurso e de acumulação material ou seja cumulo jurídico sim, perdendo as penas parcelares a sua autonomia, mas somente se o arguido não tiver beneficiado de uma pena de substituição mais favorável.

É manifesta a desigualdade de tratamento que, na perspectiva defendida por aquela tese minoritária, existirá entre a situação de concurso normal em que a pena de substituição apenas se equaciona em relação á pena conjunta e a situação de concurso superveniente em que a mesma pena tenha sido suspensa pois, que nesta hipótese e de acordo com tal tese, o caso julgado conduziria ao afastamento da pena parcelar. Na verdade, sob pena de uma gritante ofensa do principio da igualdade, o tratamento do concurso deve ser exactamente o mesmo, independentemente da forma dos seu conhecimento, superveniente ou não, e assim, como refere Figueiredo Dias,[5] sabendo-se que a pena que vai ser efectivamente aplicada não é a pena parcelar, mas a pena conjunta, toma-se claro que só relativamente a esta tem sentido pôr a questão da sua substituição

Partindo de tal pressuposto afirma, ainda, o mesmo Mestre, reportando-se ao concurso superveniente que  Nas hipóteses que ora consideramos, bem pode acontecer que uma das penas seja uma pena de substituição de uma pena de prisão. Não há na lei qualquer critério de conversão desta para efeito de determinação da pena conjunta. Também aqui, pois, como atrás, valerá para o efeito a pena de prisão que foi substituída, e também aqui, uma vez determinada a pena do concurso, o tribunal decidirá se é legalmente possível e político­-criminalmente conveniente a substituição da pena conjunta de prisão por uma pena não detentiva.

Como se refere em Acórdão deste Supremo Tribunal de 21/12/2006 a suspensão não forma um caso julgado perfeito, estável, dotado de fixidez, em que a revogação é mutável por força do circunstancialismo previsto no art.º 56.º, do CP, do condicionalismo do art.º 55.º, do CP, ou por força da necessidade de cúmulo jurídico, isto porque quando se procedeu ao julgamento parcelar, incompleto, portanto, não se conheciam todos os elementos posteriormente alcançados, de tal modo que o julgamento parcelar, “ hoc sensu “ , é um julgamento, “ condicional “ , sujeito à “ condição rebus sic stantibus “, suplantando o “ regime normal de intangibilidade “ , “ conduzindo a inclusão a resultados mais justos e equitativos, evitando o cumprimento de penas sucessivas, contrariando a teleologia do concurso, solução mais favorável.

Mas se é assim, ou seja, se a lógica da apreciação global do percurso criminoso do arguido implica a valoração de toda, e cada uma, das suas actuações atomisticamente consideradas; se a atribuição de um efeito excludente á pena suspensa gera uma situação de injustificada desigualdade; se a suspensão prévia da pena no concurso superveniente traz consigo um errado conhecimento por parte do julgador em relação á existência do concurso não se vislumbra porque é que deve interpretar o artigo 78 do Código Penal numa fórmula que suporta tais patologias.  

II

Conforme já referido neste Supremo Tribunal de Justiça em decisões anteriores sobre a matéria, é uniforme o entendimento de que, após o estabelecimento da respectiva moldura legal a aplicar, em função da penas parcelares, a pena conjunta deverá ser encontrada em consonância com as exigências gerais de culpa e prevenção. Porém, como afirma Figueiredo Dias nem por isso dirá que estamos em face de uma hipótese normal de determinação da medida da pena uma vez que a lei fornece ao tribunal para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no artigo 72 do Código Penal um critério especial que se consubstancia na consideração conjunta dos factos e da personalidade

            Conforme se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 13/9/2006 o sistema de punição do concurso de crimes consagrado no artº 77º do C.Penal, aplicável ao caso, como o vertente, de “conhecimento superveniente do concurso”, adoptando o sistema da pena conjunta, «rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente». Por isso que, determinadas definitivamente as penas parcelares correspondentes a cada um dos singulares factos, cabe ao tribunal, depois de estabelecida a moldura do concurso, encontrar e justificar a pena conjunta cujos critérios legais de determinação são diferentes dos propostos para a primeira etapa. Nesta segunda fase, «quem julga há-de descer da ficção, da visão compartimentada que [esteve] na base da construção da moldura e atentar na unicidade do sujeito em julgamento. A perspectiva nova, conjunta, não apaga a pluralidade de ilícitos, antes a converte numa nova conexão de sentido.

Aqui, o todo não equivale à mera soma das partes e, além disso, os mesmos tipos legais de crime são passíveis de relações existenciais diversíssimas, a reclamar uma valoração que não se repete, de caso para caso. A este novo ilícito corresponderá uma nova culpa (que continuará a ser culpa pelo facto) mas, agora, culpa pelos factos em relação”. Afinal, a avaliação conjunta dos factos e da personalidade, de que fala o CP. 

Ainda de acordo com o Professor Figueiredo Dias tal concepção da pena conjunta obriga a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação, em função de um tal critério, da medida da pena do concurso… só assim se evitando que a medida da pena do concurso surja como fruto de um acto intuitivo – da «arte» do juiz… – ou puramente mecânico e portanto arbitrário», embora se aceite que o dever de fundamentação não assume aqui nem o rigor, nem a extensão pressupostos pelo artº 71º. O substrato da culpa não reside apenas nas qualidades do carácter do agente, ético-juridicamente relevantes, que se exprimem no facto, na sua totalidade todavia cindível (...). Reside sim na totalidade da personalidade do agente, ético-juridicamente relevante, que fundamenta o facto, e portanto também na liberdade pessoal e no uso que dela se fez, exteriorizadas naquilo a que chamamos a "atitude" da pessoa perante as exigências do dever ser. Daí que o juiz, ao emitir o juízo de culpa ou ao medir a pena, não possa furtar-se a uma compreensão da personalidade do delinquente, a fim de determinar o seu desvalor ético-jurídico e a sua desconformação em face da personalidade suposta pela ordem jurídico-penal. A medida desta desconformação constituirá a medida da censura pessoal que ao delinquente deve ser feita, e, assim, o critério essencial da medida da pena.

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            Fundamental na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação «desse bocado de vida criminosa com a personalidade. A pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares.     

Para a determinação da dimensão da pena conjunta o decisivo é que, antes do mais, se obtenha uma visão conjunta dos factos, acentuando-se a relação dos mesmos factos entre si e no seu contexto; a maior ou menor autonomia a frequência da comissão dos delitos; a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento mas também o receptividade á pena pelo agente deve ser objecto de nova discussão perante o concurso ou seja a sua culpa com referência ao acontecer conjunto da mesma forma que circunstâncias pessoais, como por exemplo uma eventual possível tendência criminosa.

Também Jeschek se situa no mesmo registo referindo que a pena global se determina como acto autónomo de determinação penal com referência a princípios valorativos próprios. Deverão equacionar-se em conjunto a pessoa do autor e os delitos individuais o que requer uma especial fundamentação da pena global. Por esta forma pretende significar-se que a formação da pena global não é uma elevação esquemática ou arbitrária da pena disponível mas deve reflectir a personalidade do autor e os factos individuais num plano de conexão e frequência. Por isso na valoração da personalidade do autor deve atender-se antes de tudo a saber se os factos são expressão de uma inclinação criminosa ou só constituem delito ocasionais sem relação entre si. A autoria em série deve considerar-se como agravatória da pena. Igualmente subsiste a necessidade de examinar o efeito da pena na vida futura do autor na perspectiva de existência de uma pluralidade de acções puníveis. A apreciação dos factos individuais terá que apreciar especialmente o alcance total do conteúdo do injusto e a questão da conexão interior dos factos individuais.

Dada a proibição de dupla valoração na formação da pena global não podem operar de novo as considerações sobre a individualização da pena feitas para a determinação das penas individuais   

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            Figueiredo Dias traça a síntese do “modus operandi” da formação conjunta da pena no concurso de crimes. Refere o mesmo Mestre que a existência de um critério especial fundado nos factos e personalidade do agente obriga desde logo a que do teor da sentença conste uma especial fundamentação, em função de um tal critério, da medida da pena do concurso: a tanto vincula a indispensável conexão entre o disposto nos arts. 78. °-1 e 72.°-3, só assim se evitando que a medida da pena do concurso surja como fruto de um acto intuitivo - da «arte» do juiz uma vez mais - ou puramente mecânico e portanto arbitrária. Sem prejuízo de poder conceder-se que o dever de fundamentação não assume aqui nem o rigor, nem a extensão pressupostos pelo art. 72. ° nem por isso um tal dever deixa de surgir como legal e materialmente indeclinável.

            Será, assim, o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade - unitária - do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)

                                                                 *

            Afastada a possibilidade de aplicação de um critério abstracto, que se reconduz a um mero enunciar matemático de premissas, impende sobre o juiz um especial ónus de determinar e justificar quais os factores relevantes de cada operação de formação de pena conjunta quer no que respeita á culpa em relação ao conjunto dos factos, quer no que respeita á prevenção, bem como, em sede de personalidade e factos considerados no seu significado conjunto. Só por essa forma a determinação da medida da pena conjunta se reconduz á sua natureza de acto de julgamento, obnubilando as criticas que derivam da aplicação de um critério matemático quer a imposição constitucional que resulta da proibição de penas de duração indefinida -artigo 30 da Constituição.

            Um dos critérios fundamentais em sede deste sentido de culpa em sentido global dos factos é o da determinação da intensidade da ofensa, e dimensão do bem jurídico ofendido, sendo certo que, em nosso entender, assume significado profundamente diferente a violação repetida de bens jurídicos ligados á dimensão pessoal em relação a bens patrimoniais. Por outro lado importa determinar os motivos e objectivos do agente no denominador comum dos actos ilícitos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência.

            Igualmente deve ser expressa a determinação da tendência para a actividade criminosa expresso pelo número de infracções; pela sua perduração no tempo; pela dependência de vida em relação àquela actividade.

Na avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização e de inserção, ou de repúdio, pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade que deve ser ponderado.

Recorrendo á prevenção importa verificar em termos de prevenção geral o significado do conjunto de actos praticados em termos de perturbação da paz e segurança dos cidadãos e, num outro plano, o significado da pena conjunta em termos de ressocialização do delinquente para o que será eixo essencial a consideração dos seus antecedentes criminais e da sua personalidade expressa no conjunto dos factos.

            Serão esses factores de medida da pena conjunta que necessariamente deverão ser tomados em atenção na sua determinação sendo, então, sim o pressuposto de uma adição ao limite mínimo do "quantum" necessário para se atingir as finalidades da mesma pena.[6]

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Importa ainda precisar que merece inteira sintonia o entendimento de que a substituição daquela operação valorativa por um processo de índole essencialmente aritmética de fracções e somas torna-se incompatível com a natureza própria da segunda fase do processo. Com efeito, fazer contas indica voltar às penas já medidas, ao passo que o sistema parece exigir um regresso aos próprios factos. As operações aritméticas podem fazer-se com números, não com valorações autónomas.

Porém, assumindo como aquisição fundamental a necessidade de uma visão global que procure detectar aquela culpa e a personalidade indiciada pelos factos o certo é que tal perspectiva tem como pressuposto um conjunto de penas parcelares que carece de ser integrado numa única pena conjunta, perdendo a sua individualidade. Para além da diversidade genética dos factos que estão na origem das penas está também em causa o facto de as regras da punição traçarem, no artigo 77 uma única regra de aferição que corresponde ao máximo que é a soma material das penas, com o limite 25 anos e o limite mínimo que é a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos crimes.

Na prática, em situações de uma maior pluralidade de crimes de menor gravidade, ou de um diminuto número de crimes de maior gravidade, os limites da pena conjunta a aplicar têm uma vasta amplitude que pode, em casos limite, partir do mínimo da pena de prisão até aos vinte e cinco anos de prisão. A questão que então se coloca é a de saber se o critério legal por si não é demasiado exíguo e vago, conduzindo a uma situação de ampla incerteza ou seja, o saber se a invocação dos factos, e personalidade, não é insuficiente para esbater a sensação de margem discricionária que se estende sobre um leque que vai de um ano a vinte e cinco anos de prisão.

Na verdade, a vida num Estado de Direito Democrático terá de estar ancorada, necessariamente, nos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança. O princípio da segurança jurídica, enquanto implicado no princípio do Estado de Direito Democrático, comporta a ideia da previsibilidade que, no essencial se «reconduz à exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos dos actos normativos».

Daí que a realização e efectivação do princípio do Estado de Direito, no quadro constitucional, imponha que seja assegurado um certo grau de calculabilidade e previsibilidade dos cidadãos sobre as suas situações jurídicas, ou seja, que se mostre garantida a confiança na actuação dos entes públicos. É, assim, que o princípio da protecção da confiança e segurança jurídica pressupõe um mínimo de previsibilidade em relação aos actos do poder, de molde a que a cada pessoa seja garantida e assegurada a continuidade das relações em que intervém e dos efeitos jurídicos dos actos que pratica.

A propósito da “segurança jurídica” e da “protecção da confiança” refere o J.J. Gomes Canotilho que “… a segurança jurídica está conexionada com elementos objectivos da ordem jurídica - garantia da estabilidade jurídica, segurança de orientação e de realização do direito - enquanto a protecção da confiança se prende mais com as componentes subjectivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos. A segurança e a protecção da confiança exigem, no fundo: fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos do poder; de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos. Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante qualquer acto de qualquer poder - legislativo, executivo e judicial. O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a ideia de protecção da confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo tem do direito poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas por esses actos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico …” (in: “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, 7.ª edição, pág. 257)

Na verdade, os cidadãos têm direito a um mínimo de certeza e de segurança quanto aos direitos e expectativas que, legitimamente, forem criando no desenvolvimento das relações jurídicas. Por isso que « não é consentida uma normação tal que afecte, de forma inadmissível, intolerável, arbitrária ou desproporcionadamente onerosa, aqueles mínimos de segurança que as pessoas, a comunidade e o direito devem respeitar.» (Cf. Ac. TC nº 365/91, DR II Série, de 27.09.91).

            É assim que, em nosso entender, a certeza e segurança jurídica estão em causa quando existe uma grande margem de amplitude na pena a aplicar, conduzindo a uma indeterminação. Para evitar tal aporia admite-se como critério complementar, e meramente indiciário, na formulação da pena conjunta, na ponderação da imagem global dos crimes imputados e da personalidade se considere que, tratando-se de uma personalidade mais gravemente desconforme com o Direito, o tribunal determine a pena única somando à pena concreta mais grave entre metade (ou, em casos grande intensidade da culpa, ou gravidade, dos factos dois terços) e um terço de cada uma das penas concretas aplicadas aos outros crimes em concurso; tratando-se de uma personalidade menos gravemente desconforme ao Direito, o tribunal determina a pena única somando à pena concreta mais grave entre um terço e, nos casos excepcionais de menor culpa ou gravidade, um quarto, de cada uma das penas concretas aplicadas aos outros crimes em concurso. (Confrontar em sentido semelhante Paulo Pinto de Albuquerque Comentários ao Código Penal anotação ao artigo 77)

III

            Os factores de medida da pena conjunta estão devidamente elencados na decisão recorrida que traça uma descrição cuidada do percurso criminal dos arguidos.

Saliente-se que estamos perante opções desvaliosas de comportamento que se orientam para a prática de ilícitos que contendem com uma pluralidade bens jurídicos dos quais o mais valioso será a própria integridade física. Opções criminosas que apresentam um superior potencial de ofensa de bens fundamentais pois que são utilizadas armas de fogo que não se reconduzem a um papel meramente decorativo.

   A decisão de cometer um crime de roubo com instrumentos pertencentes a um patamar superior de letalidade, e em lugares de acessibilidade intensa e regular por parte do cidadão comum, revela já um refinamento da vontade de praticar o crime quando não uma audácia, ou destemor, tanto mais impressivos quanto lhe corresponde um alheamento da potencialidade de perigo para a integridade física do cidadão comum.

Neste percurso criminoso dos arguidos não se avista qualquer quadro atenuativo de relevo sendo certo que a situação de anomia não é uma desculpa relevante para as opções de vida dos arguidos. Os mesmos sucumbiram ao apelo para o crime como forma de conseguir dinheiro, mas muitos outros, com a mesma origem débil em termos de anomia social e económica, não sucumbiram e lutam diariamente, prosseguindo com sua vida de uma forma licita porque honesta.

            As penas parcelares e as penas conjuntas encontradas a merecerem alguma critica não será pela sua severidade mas pela sua excessiva brandura. Revela uma visão desfocada dos fins das penas, e das próprias necessidades de politica criminal, advogar em concreto a possibilidade de suspensão da execução de pena em relação a roubos a bancos praticados com recurso a armas de fogo.

Termos em que se julgam improcedentes os recursos interpostos por AA e BB.

Custas a cargo dos recorrentes.

Taxa de Justiça de 7 UC

Santos Cabral (relator)
Oliveira Mendes
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[1] Confr. Ac. deste STJ , de 2.6.2004 , CJ , STJ , II , 221.
[2] Relator Juiz Conselheiro Armindo Monteiro
[3]Conf  Acs. de 20.4.2005 , P.º n.º 4743 /04 , 2.6.2004 , P.º n.º 04P1391 , de 4.6.2002, CJ , STJ , Ano XII , II , 217 , além de que se formou caso julgado sobre ela , insusceptível de modificabilidade –cfr. Ac. deste STJ , de 25.9.2008 , P.º 08P2818
[4] RPCC ano XV
[5] Consequência jurídica… pag 295 e seg
[6] O Supremo Tribunal de Justiça, sublinhando o exposto, tem vindo a considerar impor-se um especial dever de fundamentação na elaboração da pena conjunta, o qual não se pode reconduzir á vacuidade de formas tabelares e desprovidas das razões do facto concreto. A ponderação abrangente da situação global das circunstâncias especificas é imposta, além do mais, pela consideração da dignidade do cidadão que é sujeito a um dos actos potencialmente mais gravosos para a sua liberdade, elencados no processo penal, o que exige uma análise global e profunda do Tribunal sobre a respectiva pena conjunta.
A explanação dos fundamentos, que á luz da culpa e prevenção conduzem o tribunal á formação da pena conjunta, deve ser exaustiva, sem qualquer ruptura, por forma a permitir uma visão global do percurso de vida subjacente ao itinerário criminoso do arguido. É uma questão de cidadania, e dignidade, que o arguido seja visto como portador do direito a uma ponderação da pena á luz de princípio fundamentais que norteiam a determinação da pena conjunta e não como mera operação técnica, quase de natureza matemática.
Neste sentido têm-se pronunciado, de forma uniforme, este Supremo Tribunal de Justiça em diversas decisões emitidas sobre o mesmo tema: 
Como é evidente na indicação dos factos relevantes para a determinação da pena conjunta não relevam os que concretamente fundamentaram as penas parcelares, mas sim os que resultam de uma visão panóptica sobre aquele “pedaço” de vida do arguido, sinalizando as circunstâncias que consubstanciam os denominadores comuns da sua actividade criminosa o que, ao fim e ao cabo, não é mais do que traçar um quadro de interconexão entre os diversos ilícitos e esboçar a sua compreensão á face da respectiva personalidade.
Estes factos devem constar da decisão de aplicação da pena conjunta a qual deve conter a fundamentação necessária e suficiente para se justificar a si própria em carecer de qualquer recurso a uma elemento externo só alcançável através de remissões.