ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
61/07.4PJSNT.L1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/09/2011
SECÇÃO 3ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL RECURSO PENAL
DECISÃO PROVIDO EM PARTE
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR SANTOS CABRAL

DESCRITORES TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
FALSIFICAÇÃO
USO DE DOCUMENTO DE IDENTIFICAÇÃO OU DE VIAGEM ALHEIO
CONCURSO APARENTE
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ACESSÓRIA
EXPULSÃO
ESTRANGEIRO
RESIDÊNCIA PERMANENTE

SUMÁRIO I - O tráfico de estupefacientes representa, em abstracto, uma colisão para valores nucleares da vida em sociedade. Contudo, a densidade da ilicitude e da culpa em concreto encontram-se numa relação directa com a forma como esse tráfico se efectiva e tal pressuposto é igualmente válido para qualquer uma das formas policromáticas como o mesmo se apresenta.

II - Assim, não obstante não ser o arguido um delinquente primário, pois que já tinha sido condenado em pena suspensa, também é certo que a quantidade de droga apreendida – de 4,116 g de heroína e 1,608 g de cocaína – não se mostra particularmente impressiva, nomeadamente na justificação de uma pena que apenas por 6 meses de prisão se diferencia do limite máximo da moldura penal. Bem mais ajustada se considera uma pena que, embora situada acima do parâmetro médio da moldura penal, reflicta por alguma forma que, dentro do tráfico de menor gravidade, o caso vertente não se caracteriza como um caso limite em termos de qualidade e, sobretudo, de quantidade de droga. Nesta conformidade, acha-se adequada a pena de 3 anos de prisão (em substituição da pena de 4 anos e 6 meses de prisão aplicada).

III - Entende-se existir entre os crimes de falsificação e de uso de documento de identificação alheia um concurso aparente de crimes, sendo o primeiro o crime dominado e o segundo o crime dominante. Com efeito, existe uma unidade de desígnio criminoso e objectivamente os dois tipos legais encontram-se ligados por uma relação de instrumentalidade.

IV - Assim, altera-se a decisão recorrida, condenado o arguido, nesta parte, numa pena de 1 ano e 6 meses de prisão, em vez das penas de 1 ano e 6 meses de prisão pela prática de um crime de falsificação e da pena de 1 ano de prisão pela prática do crime de uso de documento alheio fixadas na 1.ª instância.

V - Mais se entende adequada a pena conjunta de 4 anos de prisão, não se vislumbrando dos factos considerados provados fundamento para um juízo de prognose apto a fundamentar uma medida de substituição consubstanciada na suspensão da execução da pena assim aplicada.

VI - O art. 151.º da Lei 23/2007, de 04-07, em relação à aplicação da pena acessória de expulsão, discrimina entre o cidadão estrangeiro residente e o não residente, sendo certo que os pressupostos exigidos naquela primeira situação destacam-se pela sua exigência. Para os residentes o decretar da expulsão deverá ter subjacente não só uma ponderação das consequências que dimanam para o arguido, como também para aqueles que constituem o seu agregado familiar. Igualmente presente deverá estar o avaliar da gravidade dos factos praticados e os seus reflexos em termos de permanência em território nacional.

VII - Distinta é a situação daquele em relação ao qual não existe uma relação jurídica que fundamente a legalidade da situação de permanência no país e que se encontra numa situação irregular que, só por si, já é justificante do desencadear de procedimento administrativo com vista à sua saída do solo nacional. O conceito de residente no país não é a mera constatação de uma situação factual imposta pelas circunstâncias, mas sim uma noção jurídica que tem subjacente o incontornável pressuposto de detenção de um título de residência que o recorrente efectivamente não tem – cf. art. 74.º e ss. da Lei 23/2007, de 04-07.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL

                                   Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA veio interpor recurso da decisão que: o condenou nas seguintes penas:

- na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25°, alínea a) do Decreto-Lei 15/93; - na pena de 1 (um) ano de prisão, pela prática do crime de uso de documento alheio, p. e p. pelo artigo 261°, nº 1 do Código Penal;

- na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, pela prática do crime de falsificação, p. e p. pelo artigo 256°, nº 1, alínea d) do Código Penal

- na pena de 9 (nove) meses de prisão, pela prática do crime de violação da medida de interdição de entrada, p. e p. pelo artigo 18, nº 1 da Lei 23/2007;

 Em cúmulo jurídico foi o mesmo condenado na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

       Mais foi aplicada a pena acessória de expulsão pelo período de 8 (oito) anos.

 As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões de recurso onde se refere que:

A - O Tribunal Colectivo não valorou, como devia, a matéria de facto provada relativa às condições pessoais e familiares do arguido;

B - Conforme referido no Cap. V da presente motivação, pode concluir-se:

1~ O arguido não tem praticamente familiares directos em Cabo Verde, porquanto todos emigraram para Portugal;

2- Inclusivé os respectivos progenitores, tendo o seu pai BB falecido em Portugal e aqui se encontrando sepultado;

3- Em Território Nacional já se encontram os seus mortos (pai, irmãos e sobrinhos) e oito irmãos vivos, com uma numerosa prole;

4- Antes, como agora, é extremamente dolorosa e quiçá desumana a expulsão do arguido do Território Nacional, da primeira vez pelo PEA nºl017j07DRLVTA e da segunda vez pela decisão judicial proferida no acórdão recorrido.

c - O Tribunal Colectivo também não valorou, como devia, a confissão integral dos factos pelo arguido em audiência de julgamento, nem o arrependimento por este manifestado, não obstante ter fundamentado a decisão nas suas declarações prestadas em audiência de julgamento;

D - Nestas circunstâncias, o arguido não pode conformar-se com a pena aplicada de 4 anos e 6 meses de prisão, por tráfico de menor gravidade, punível pelo art. 25º, alínea a), do Dec.-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, em pena de 1 a 5 anos de prisão, ou seja, aplicando quase a pena máxima da respectiva moldura penal;

E - Além de que, pelos motivos supra enumerados, o Tribunal Colectivo deveria ter suspendido a execução da pena e não ter decretado a sua expulsão do Território Nacional;

F - o Tribunal Colectivo violou, assim, as normas contidas nos artigos 40°, 50º e 71º do Código Penal, bem como o disposto nos art, 134 e 151 da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho.

           Foi produzida resposta advogando a manutenção da decisão recorrida.

O ExºMº Sr.Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso sem embargo da admissibilidade de uma redução da pena.

                                       Os autos tiveram os vistos legais.

                                                           *

                                       A instância mantém-se regular

     Da audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos:

- No dia 7 de Julho de 2010, pelas 20H10, na Praceta Serpa Pinto, em Agualva, Cacém.. o arguido, acompanhado de indivíduo não identificado, encontrava-se a vender produto estupefaciente a terceiros que a ele se dirigiram para o efeito, quando foi interceptado por agentes da PSP

- Na mesma ocasião o arguido tinha na sua posse, dentro de um saco que transportava a tiracolo, uma embalagem que continha 33 (trinta e três) pacotes, vulgarmente designados por "quarta", sendo:

a) 16 (dezasseis) de heroína, com o peso líquido de 4,116 gramas, com grau de pureza de 31,3% (correspondente a 13 doses diárias individuais);

b) 17 (dezassete) de cocaína, com o peso líquido de 1,608 gramas, com o grau de pureza de 61,9% (correspondente a 5 doses diárias individuais);

- Nos bolsos o arguido tinha ainda um canivete que usava para fraccionar produto estupefaciente e dois telemóveis, marca Nokia, com os IMEI 11. Os … e …i

- O arguido utilizava os telemóveis para, através de chamadas ou mensagens, combinar transacções e entregas de produtos estupefacientes, bem Como para combinar o respectivo pagamento

- O arguido trabalhava como servente de pedreiro/pintor, auferindo cerca de €475,00 por mês.

- O mesmo foi detido a 7 de Julho de 2010 e declarou então chamar-se CC, tendo apresentado para o efeito o passaporte nº … emitido em nome daquele, recibos de vencimento, documentos emitidos pela segurança social, pelas finanças e pelo centro de saúde do Cacém, em nome de CC

- Igualmente assinou as guias de entrega dos produtos que lhe foram apreendidos ali assinando com o nome de CC, fazendo-se passar por este.

                                                             *

- No processo de expulsão nº 1017/07DRLVTA e por decisão de 21 de Novembro de 2008 foi aplicada ao arguido medida cautelar de interdição de entrada em território nacional pelo período de 5 anos;

- O mesmo consta como "Estrangeiro não admissível no território de Schengen" (medida Schengen NSIS nº …);

- O arguido é natural de Cabo Verde e não é portador de qualquer documento de n identificação válido

                                                           *

- O arguido conhecia as características, quantidade e qualidade dos produtos estupefacientes que lhe foram apreendidos e sabia que a sua detenção, cedência e venda a terceiros era proibida e punida por lei;

- Detinha tais substâncias com vista à sua revenda a terceiros, com o propósito de obter lucro;

- Quis utilizar o passaporte de CC de modo a ludibriar as autoridades nacionais, tendo entrado em Portugal com essa identidade a 131 de Novembro de 2009, após ter abandonado o Pais a 19 de Junho de 2009;

- Ao assinar os documentos referidos supra com o nome de CC, sabia que fazia constar dos mesmos identidade que não correspondia à sua, querendo fazer-se passar por terceiro e, ao preencher as guias referidas quis também eximir-se à acção da justiça;

- Sabia que toda a sua conduta era proibida e punida por lei e quis agir da forma descrita;

- Por acórdão de 13 de Março de 2009, transitado em julgado a 2 de Abril de 2009 e proferido no processo nº 129/07.4PAAMD, da 2a Vara Criminal de Lisboa foi condenado na pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, pela prática, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 25° do Decreto-Lei n.o 15/93;

- É solteiro e tem uma companheira;

- Tem a mãe e oito irmãos em Portugal.

                                                                *

4. Factos não provados

Não se provou que no período que antecedeu a detenção e prisão preventiva do arguido este não exercesse qualquer actividade, nem que vivesse exclusivamente dos rendimentos que obtinha com a transacção de produtos estupefacientes.

                                                                *

  Estando em causa a medida da pena aplicada ao arguido importa sindicar o que a propósito consta da decisão recorrida:

Quanto ao crime de tráfico de menor gravidade, partindo da moldura abstracta de 1 a 5 anos de prisão, prevista na mencionada alínea a) do artigo 25° do DL nº 15/93, importa proceder à determinação da medida da pena a aplicar, em função da sua culpa e das exigências de prevenção, como impõe o artigo 710 do Código Penal, atendendo, ainda, a todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra o arguido e que não façam parte do tipo de o crime.

No caso dos autos, importa ponderar, o já elevado grau de ilicitude dos factos, aferido pela qualidade, diversidade e quantidade do produto em causa; a circunstância de ter já sido condenado pela prática do mesmo crime e ter cometido o dos presentes autos no período de suspensão da execução da pena; as relevantes exigências de prevenção especial e geral; a média intensidade do dolo, na sua forma directa; a sua condição económica e social e a sua admissão dos factos. Tudo ponderado, entende-se de lhe aplicar uma pena de 4 anos e 6 meses de prisão.

 Quanto ao crime de uso de documento de identificação alheio, é o mesmo abstractamente punível com pena de prisão até 2 anos, já que, em face da reiteração da O conduta e da pluralidade de ilícitos cometidos se entende de não optar pela aplicação duma pena de multa também prevista no n.o 1 do artigo 1610 do Código Penal.

Atento o elevado grau de ilicitude dos factos, aferido pelo tipo de documento utilizado e pela reiteração da conduta, circunstância também reve1adora de um dolo intenso e directo; a pluralidade de ilícitos cometidos; as fortes exigências de prevenção que se fazem sentir; a admissão dos factos pelo arguido, reveladora de algum arrependimento; as suas condições económicas e sociais modestas e os seus antecedentes criminais tudo ponderado entende o Tribunal de aplicar ao arguido uma pena de 1 (um) ano de prisão.

O crime de falsificação é punido em abstracto, com "pena de prisão de até três anos ou multa", nos termos do nº 1 do artigo 2560 do Código Penal, entendendo-se, também aqui, de optar pela aplicação de uma pena de prisão, por se considerar que apenas esta acautela suficientemente as necessidades de prevenção e de punição do crime. Ponderando o já acentuado grau de ilicitude dos factos, aferido desde logo, pela diversidade de documentos nos quais o arguido fez constar identidade falsa; a forte intensidade do dolo, na sua forma directa. Tudo ponderado, e atendendo também aos antecedentes criminais do arguido e às suas condições económicas e sociais, entende-se de lhe aplicar, uma pena de 1 (um) ano e 6  (seis) meses de prisão pela prática do crime de falsificação.

Quanto ao crime de violação da medida de interdição de entrada, é o mesmo punido em abstracto com pena de prisão até 2 anos ou multa, sendo também aqui, pelas razões já expostas, de optar pela aplicação de pena de prisão.

Assim, ponderando o elevado grau de ilicitude dos factos; a circunstância de ter cometido outro crime para perpetrar este último; a intensidade do dolo, na sua forma directa; as fortes exigências de prevenção que se fazem sentir e atendendo também a tudo o já referido quanto à admissão dos factos pelo arguido e quanto à sua condição social e antecedentes criminais, entende o Tribunal de aplicar a pena de 9 (nove) meses de prisão.

 Procedendo ao cúmulo jurídico das penas parcelares em causa e ponderando em conjunto a gravidade dos factos e a personalidade do arguido, como o impõe o artigo 70 do Código Penal, entende o Tribunal Colectivo aplicar a pena única de 5 (cinco) anos e 6 ( seis) meses de prisão.

                                                                *

. Uma primeira conclusão que se impõe, face á argumentação do recorrente, é de que foram valorados os factores de medida da pena que justificam a pena aplicada.

           Todavia, dando por adquirido a colisão para valores nucleares da vida em sociedade que o tráfico de estupefacientes representa em abstracto, igualmente é certo que a densidade da ilicitude e da culpa em concreto se encontram numa relação directa com a forma como esse tráfico se efectiva e tal pressuposto é igualmente válido para qualquer uma das formas policromáticas como o mesmo se apresenta.

Significa o exposto que não obstante não ser o arguido um delinquente primário, pois que já tinha sido igualmente condenado em pena suspensa nos termos descritos nos autos, também é certo que a quantidade de droga apreendida- de 4,116 gramas de heroína e 1,608 gramas de cocaína-não se mostra particularmente impressiva, nomeadamente na justificação de uma pena que apenas por seis meses de prisão se diferencia do limite máximo da moldura penal. Bem mais ajustada se considera uma pena que, embora situada acima do parâmetro médio da moldura legal, reflicta por alguma forma que, dentro do tráfico de menor gravidade, o caso vertente não se caracteriza como um caso limite em termos de qualidade e, sobretudo, de quantidade da droga.

       Nesta conformidade pela prática do crime previsto e punido nos termos do artigo 25 do DL 15/93 condena-se o arguido na pena de três anos de prisão

Em relação aos imputados crimes de falsificação de documento e uso de documento de identificação alheia importa referir que a decisão recorrida nas suas doutas considerações entendeu por bem autonomizar as duas infracções considerando a existência de dois tipos de ilícitos. Se bem compreendemos o relato constante da mesma decisão o arguido na mesma altura-detenção- identificou-se falsamente e, em seguida, assinou um documento como se fosse a pessoa em nome de quem se tinha identificado.

Tal materialidade, não obstante a linearidade com que foi abordada na decisão recorrida coloca uma questão vincante que se consubstancia na existência de uma relação de complementaridade, quando não de instrumentalidade, entre a falsificação de documento em relação ao uso de documento de identificação alheia. Na verdade, naquele preciso momento relatado nos autos, e identificando-se com uma determinada identidade o arguido teve de assumir por forma correspondente a tal identidade no acto contemporâneo.

Seguindo o ensinamento de Figueiredo Dias [1] segundo o qual decisiva é a análise do significado do comportamento global que lhe empresta um sentido material (social) de ilicitude, terá então de reconhecer-se, de um ponto de vista teleológico e de valoração normativa "a partir da consequência", a existência de dois grupos de casos: (a) o caso ("normal") em que os crimes em concurso são na verdade recondutíveis a uma pluralidade de sentidos sociais autónomos dos ilícitos-típicos cometidos e, deste ponto de vista, a uma pluralidade de factos puníveis - hipóteses de concurso efectivo (art. 30.°-1), próprio ou puro; (b) e o caso em que, apesar do concurso de tipos legais efectivamente preenchidos pelo comportamento global, se deva ainda afirmar que aquele comportamento é dominado por um único sentido autónomo de i1icitude, que a ele corresponde uma predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos-típicos praticados - hipóteses de concurso aparente, impróprio ou impuro. Com a consequência de que só para o primeiro grupo de hipóteses deverá ter lugar uma punição nos termos do art. 77.°, enquanto para o segundo deverá intervir uma punição encontrada na moldura penal cabida ao tipo legal que incorpora o sentido dominante do ilícito e na qual se considerará o ilícito excedente em termos de medida (concreta) da pena.

É certo que a pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis ao comportamento global constitui sintoma legítimo ou presunção prima facie de uma pluralidade de sentidos de ilícitos autónomos daquele comportamento global e, por conseguinte, de um concurso de crimes efectivo, puro ou próprio. Porém, casos existem em que uma tal presunção pode ser elidida porque os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global se conexionam, se intercessionam ou parcialmente se cobrem de forma tal que, em definitivo, se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social; por um sentido de tal modo predominante, quando lido à luz dos significados socialmente relevantes - dos que valem no mundo da vida e não apenas no mundo das normas -, que seria inadequado e injusto incluir tais casos na forma de punição prevista pelo legislador quando editou o art. 77.° Nomeadamente porque um tal procedimento significaria na generalidade das hipóteses violação da proibição (jurídico-constitucional: ne bis in idem) de dupla valoração - de uma parte - da matéria proibida e do conteúdo do ilícito respectivo. Como refere o mesmo Mestre pode então dizer-se que nestes casos se verifica uma pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis, mas não uma pluralidade de crimes "efectivamente cometidos".

A ideia central que preside à categoria do concurso aparente deve ser a de que situações da vida existem em que, preenchendo o comportamento global mais que um tipo legal concretamente aplicável, se verifica entre os sentidos de ilícito coexistentes uma conexão objectiva e/ou subjectiva tal que deixa aparecer um daqueles sentidos de ilícito como absolutamente dominante, preponderante, ou principal, e “hoc sensu” autónomo, enquanto o restante, ou os restantes, surgem, também a uma consideração jurídico-social segundo o sentido, como dominados, subsidiários ou dependentes; a um ponto tal que a submissão do caso à incidência das regras de punição do concurso de crimes constantes do art. 77.° seria desproporcionada, político-criminalmente desajustada e, ao menos em grande parte das hipóteses, inconstitucional. A dominância de um dos sentidos dos ilícitos singulares pode ocorrer em função de diversos pontos de vista: seja, em primeiro lugar e decisivamente, em função da unidade de sentido social do acontecimento ilícito global; seja em função da unidade de desígnio criminoso; seja em função da estreita conexão situacional, nomeadamente, espácio-temporal, intercedente entre diversas realizações típicas singulares homogéneas; seja porque certos ilícitos singulares se apresentam como meros estádios de evolução ou de intensidade da realização típica global.

O critério de primacial relevo para a conclusão pela tendencial unidade substancial do facto - apesar da pluralidade de tipos legais violados pelo comportamento global - é o da unidade, segundo o sentido social assumido por aquele comportamento, do sucesso ou acontecimento (hoc sensu, do "evento" ou "resultado") ilícito global-final. Este critério assumirá assim relevo, em princípio exclusivo, relativamente a factos dolosos. O que se passa é que, nestes casos, o agente se propôs uma realização típica de certa espécie e, para lograr (e consolidar) o desiderato, se serviu, com dolo necessário ou eventual, de métodos, de processos ou de meios já em si mesmos também puníveis. Nestes comportamentos globais verifica-se a existência de um sentido de ilícito absolutamente dominante e "autónomo", a par de outro ou outros sentidos dominados e "dependentes". É o que sucederá frequentemente com os grupos dos factos tipicamente acompanhantes" e, sobretudo, dos factos posteriores co-punidos.

       Tal critério possui virtualidades bastante para abranger todos aqueles casos de relacionamento entre um ilícito puramente instrumental (crime-meio) e o crime-fim correspondente. Por outras palavras, aqueles casos em que um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu sentido e os seus efeitos. Uma autonomização (relativa) do critério face ao anterior - que uma valoração autónoma e integral do crime-meio representaria uma violação da proibição jurídico-constitucional da dupla valoração; enquanto, do outro lado, a sua consideração como conformadora de um concurso impuro não viola o mandamento (também ele jurídico-constitucional) de esgotante apreciação porquanto ele deverá influenciar a medida da pena do concurso. Impõe-se, por isso, a conclusão de princípio favorável a um concurso aparente.

Assim sendo pode-se afirmar que em diversos contextos situacionais, a unidade de desígnio criminoso pode conferir a uma pluralidade de realizações típicas um sentido fundamentalmente unitário do ilícito; e isto quer se trate de concurso homogéneo, quer heterogéneo e quer se verifique ou não contemporaneidade das realizações típicas. Sem embargo um critério adicional atendível na determinação de um concurso aparente é o da conexão espácio-temporal das realizações típicas. Pois que uma certa unidade ou proximidade de espaço e/ou de tempo das realizações típicas pode constituir forte estímulo para concluir pela intersecção dos sentidos dos ilícitos singulares e, por essa via, por uma leitura unitária do sentido de ilícito do comportamento total, consequentemente, por um concurso aparente. Enquanto, inversamente, um "claro desfasamento contextual" indiciará uma pluralidade autónoma de sentidos do ilícito total e, por aí, um concurso efectivos,

No caso vertente o desígnio criminoso do arguido era a ocultação da sua verdadeira identidade apresentando uma falsa identificação corporizada num passaporte de terceiro. A falsificação do documento onde consta a apreensão, assinando com o nome do referido terceiro é um complemento ou, melhor dizendo, uma consequência instrumental e inexoravelmente ligada á prévia identificação falsa.

Assim, é manifesto que não só existe uma unidade de desígnio criminoso como também que objectivamente os dois tipos legais se encontram ligados por uma relação de instrumentalidade, ou seja, uma hipótese e concurso aparente de crimes.

Em termos de punição, e adquirido que a moldura legal do crime dominado-falsificação- tem limite máximo superior ao crime dominante-uso de documento identificação alheia- parecem apropriadas as palavras que Figueiredo Dias traça a propósito referindo que  -pensamos corresponder, de resto, à solução generalizadamente defendida pela doutrina clássica da consumpção impura, embora utilizemos diferente terminologia - trazer para este contexto a cisão teorética entre norma de comportamento e norma de sanção. Dir-se-á então que, no plano da construção da unidade ou pluralidade do facto, onde situamos a argumentação, o ilícito socialmente dominante continua a oferecer o sentido do facto global.

Considerando por tal forma, e entendendo existir um concurso aparente de crimes ente o crime de falsificação a que alude o artigo 256 –falsificação- e o crime de uso de documento falso-artigo 261 do Código Penal, condena-se o arguido, nos sobreditos termos, na pena de um ano e seis meses de prisão.

       Sopesando o peso dos factores supra referidos, e considerando as finalidades da pena nos termos enunciados, entende-se com adequada a pena conjunta de quatro anos de prisão na qual se condena o arguido AA.

        Não se vislumbra dos factos considerados provados fundamento para um juízo de prognose apto a fundamentar uma medida de substituição consubstanciada na suspensão da execução da pena aplicada.

O último segmento a analisar no presente recurso relaciona-se com a decisão de expulsão de território nacional. Dispõe o artigo 151 da Lei 23/2007 que:

1—A pena acessória de expulsão pode ser aplicada ao cidadão estrangeiro não residente no País, condenado por crime doloso em pena superior a 6 meses de prisão efectiva ou em pena de multa em alternativa à pena de prisão superior a 6 meses.

2—A mesma pena pode ser imposta a um cidadão estrangeiro residente no País, condenado por crime doloso em pena superior a 1 ano de prisão, devendo, porém, ter-se em conta, na sua aplicação, a gravidade dos factos praticados pelo arguido, a sua personalidade, a eventual reincidência, o grau de inserção na vida social, a prevenção especial e o tempo de residência em Portugal.

3—Sem prejuízo do disposto no número anterior, a pena acessória de expulsão só pode ser aplicada ao cidadão estrangeiro com residência permanente quando a sua conduta constitua uma ameaça suficientemente grave para a ordem pública ou segurança nacional.

Decorre do exposto que em relação á aplicação da pena acessória de expulsão a lei descrimina entre o cidadão estrangeiro residente, e o não residente, sendo certo que os pressupostos exigidos naquela primeira situação destacam-se pela sua exigência. Na verdade, para os residentes o decretar da expulsão deverá ter subjacente não só uma ponderação das consequências que dimanam para o arguido, como também para aqueles que constituem o seu agregado familiar.

Igualmente presente deverá estar o avaliar da gravidade dos factos praticados e os seus reflexos em termos de permanência em território nacional.

Distinta é a situação daquele em relação ao qual não existe uma relação jurídica que fundamente a legalidade da situação de permanência no País e que se encontra num situação irregular que, só por si, já é justificante do desencadear de procedimento administrativo com vista á sua saída do solo nacional. Na verdade, o conceito de residente no País não é a mera constatação de uma situação factual imposta pelas circunstâncias, mas sim uma noção jurídica que tem subjacente o incontornável pressuposto de detenção de um título de residência que a recorrente efectivamente não tem-confrontar artigo 74 e seguintes do diploma citado.

Não sendo uma mera aplicação automática da pena principal o certo é que o decretar da expulsão nesta especifica envolvente se justifica em função de uma condenação em pena de prisão e tem o pressuposto da ilegalidade da sua permanência no País como aponta o nº1 do artigo 151 da Lei 23/2007

A razão da diversidade de tratamento encontra-se ligada á circunstância de a fixação de residência ter subjacente a criação de um vínculo social e económico e de todo um processo de socialização e identificação comunitária. Tais necessidades estão arredadas em relação ao cidadão que não mora no Pais e em relação ao qual o exercício pelo julgador do poder-dever de verificar, e decidir, de acordo com os pressupostos legais apenas exige a existência de uma condenação em prisão superior a seis meses pela prática de crime doloso.

No caso vertente, como aponta a decisão recorrida, o recorrente invoca uma situação de residente que não detem pois que previamente foi objecto de expulsão decretada por via administrativa e a sua permanência apenas é devida ao facto de se ter introduzido espaço Schengen por via ilegal e admitindo-se a residência no País dos seus familiares bem como a ligação social o certo é que o mesmo é um não residente em termos jurídicos

       Assim, não estão infirmados os pressupostos da expulsão decretada

Termos em que acordam os Juízes Conselheiros que integram a 3ª Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça em julgar parcialmente procedente o recurso interposto por AA e, consequentemente condenar o mesmo na pena conjunta de quatro anos de prisão na sequência das penas parcelares supracitadas.

Sem custas

Supremo Tribunal de Justiça, 9 de Novembro de 2011

Santos Cabral (Relator)

Oliveira Mendes

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[1] Direito penal Parte geral tomo I 2ª edição Questões fundamentais-A doutrina Geral do Crime pag 1011 e seg