ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
6152/03.0TVLSB.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/10/2011
SECÇÃO 1ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO NEGADA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR GREGÓRIO SILVA JESUS

DESCRITORES SOCIEDADE ANÓNIMA
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
ACÇÕES
VALOR REAL
DEPÓSITO DE ACÇÕES
CONTRATO DE DEPÓSITO
NEGÓCIO FIDUCIÁRIO
DEPÓSITO IN ESCROW
RESPONSABILIDADE
PATRIMÓNIO DO DEVEDOR
CLAUSULA LIMITATIVA DA RESPONSABILIDADE
LIMITAÇÃO DA INDEMNIZAÇÃO
GRAVAÇÃO DA PROVA
NULIDADE PROCESSUAL
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
INADMISSIBILIDADE
ÁREA TEMÁTICA DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
DIREITO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS - CONTRATO DE SOCIEDADE - SOCIEDADES ANÓNIMAS
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - NULIDADES - SENTENÇA - RECURSOS
LEGISLAÇÃO NACIONAL CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 236.º, 237.º, 238.º, 334.º, 342.º, 350.º, N.º2, 406.º, 601.º, 602.º, 604.º, N.º1, 610.º, 612.º, N.º2, 762.º, 798.º, 799.º, 801.º, 804.º, 817.º.
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 9.º, N.º 1, AL. F), 42.º, N.º 1, AL. B, 197.º, N.º3, 271.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 28.º, N.º 2, 201.º, N.º1, 266.º, 266.º-A, 273.º, N.º 2, 456.º, 668.º, N.º 1, AL. B), 690.º-A, 710.º, N.º 2, 712.º, 713.º, N.º 5, 722.º, N.º2, 726.º, 729.º, 732.º-A E 732.º-B, 754.º, N.º2.
DL N.º 39/95: - ARTIGOS 7.º, N.º 2, 9.º.
LEI N.º 3/99, DE 13-01: - ARTIGO 26.º.
JURISPRUDÊNCIA NACIONAL ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 15/05/2008, PROC. N.º 08B153;
-DE 13/01/2009, PROC. N.º 08A3741;
-DE 19/03/2009, PROC. N.º 09A0370;
-DE 16/04/2009, PROC. N.º 08B2346;
-DE 28/04/2009, PROC. N.º 09A0526;
-DE 03/11/2009, PROC. N.º 3931/03.2TVPRT.S1;
-DE 20/05/2010, PROC. N.º 93/04.1TBGDL.S1;
-DE 28/09/2010, PROC. N.º 171/2002.S1;
-DE 04/11/2010, PROC. N.º 2916/05.9TBVCD.P1.S1;
-DE 15/09/2010, PROC. N.º 241/05.4TTSNT.L1.S1;
-DE 03/02/2011, PROC. N.º 470/08.9TBVFR.P1.S1;
-DE 03/02/2011, PROC. N.º 6041/05.4TVLSB.L1.S1;
-DE 14/06/2011, PROC. N.º 3222/05.4TBVCT;
-DE 30/06/2011, PROC. N.º 6450/05.9TBSXL.L1.S1;
-DE 06/07/2011, PROC. N.º 450/04.3TCLRS.L1.S1;
-DE 12/07/2011, PROC. N.º 1838/06.0TBMFR.L1.S1.


SUMÁRIO
I - As deficiências de gravação da prova, constituindo uma nulidade secundária, devem ser apreciadas pelo Tribunal da Relação, a quem cabe dirimir se as aludidas anomalias são ou não susceptíveis de influir na decisão de facto, estando vedado ao STJ sindicar essa apreciação em concreto, por se inserir no âmbito dos poderes de reapreciação da matéria de facto.

II - Não se registando oposição de julgados, nem invocando o recorrente, no requerimento de interposição do recurso de revista, qualquer acórdão que se encontre em oposição com o recorrido, a matéria do agravo, se respeitar a questão puramente processual, não pode ser apreciada no âmbito do recurso de revista.

III - É legalmente admissível que as partes, no âmbito de um contrato de compra e venda de acções, estipulem uma cláusula de limitação convencional da garantia ao património constituído pelas próprias acções transaccionadas.

IV - Se as partes acordaram, simultaneamente com a celebração do contrato de compra e venda de acções, em depositar essas acções num Banco, para garantia do cumprimento da obrigação de pagamento do respectivo preço, vinculando-se o Banco a guardá-las e a dar a tais acções o destino acordado entre as partes daquele contrato (principal), está-se perante um contrato de depósito fiduciário ou depósito in escrow.

V - Se a cláusula de limitação convencional da garantia patrimonial às acções depositadas foi estabelecida em benefício da compradora das acções, é destituído de fundamento que o risco de depreciação do valor das acções recaia sobre ela.

VI - As acções, enquanto títulos de participação social, exprimem a medida da posição do sócio na sociedade anónima, traduzindo-se num complexo de direitos e deveres, mas não se confundem com a empresa explorada pela sociedade a que as acções dizem respeito.

VII - Se as partes estipularam que a compradora das acções, accionista maioritária, se obrigava a diligenciar no sentido dos negócios da sociedade anónima salvaguardarem o interesse da vendedora em receber o seu preço daquelas participações sociais, e, ainda, em não participar em negócios que fossem incompatíveis com aquele contrato de compra e venda das acções ou tivessem o efeito adverso de incumprir as obrigações dele decorrente, tais obrigações configuram meras obrigações de meios e não de resultado.

VIII - Se a sociedade anónima, a que respeitavam as acções objecto do contrato de compra e venda, se encontra(va) numa situação de elevado endividamento bancário, de que a vendedora era conhecedora, tendo esta efectuado a venda por não pretender efectuar qualquer esforço adicional de investimento, nem ter tido qualquer outra oferta de compra, conhecendo as circunstâncias do mercado internacional explorado por essa sociedade, com sucessivos abaixamentos de preços de venda, o que levou à acumulação de prejuízos junto dos fabricantes, e conhecendo, ainda, a vendedora que seria difícil atingir uma exploração económica que permitisse gerar valores conducentes aos estipulados no contrato de compra e venda das acções, não se pode imputar à compradora das acções qualquer responsabilidade contratual na depreciação do seu valor.

IX - Se os contratos efectuados pela compradora das acções – v.g., financiamentos bancários, oneração de imóvel, dação em cumprimento e transferência de estabelecimento – foram adequados a evitar o iminente estrangulamento financeiro da sociedade anónima a que se referiram essas participações sociais, situação de que a vendedora era conhecedora, não pode ser imputada à compradora das acções qualquer responsabilidade pré-contratual, contratual ou extracontratual pela depreciação do valor das acções (a que as partes limitaram a garantia patrimonial pelo não pagamento do preço).

X - Inexistindo qualquer responsabilidade da compradora, pela depreciação do valor das acções, não se colocam, sequer, as questões da violação do princípio par conditio creditorum, nem da impugnação pauliana, não podendo ser assacada qualquer responsabilidade aos Bancos que intervieram naqueles contratos.

XI - O facto da A./recorrente ter decaído na acção e nos recursos apenas a conduz a ter de suportar o encargo das custas processuais, como consequência do seu decaimento; coisa diversa é a parte, antecipadamente, saber que não tem razão e, procedendo de má-fé e com culpa, litigar dessa forma.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL

                    Revista nº 6152/03.0TVLSB.S1[1]

    Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

        I— RELATÓRIO        

A...H..., Limited, com sede em ..., Grã Bretanha, intentou acção declarativa, com processo ordinário, contra A.A. S... - Imóveis, Comércio e Indústria, S.A., com sede na Estrada ..., Oeiras, P... - Sociedade Imobiliária de Paço De Arcos, Lda., com sede em Tagus Park, Edifício Um, Piso 0, Ala A, Oeiras, Banco Comercial Português, S.A., com sede na Praça D. João I, nº 28, Porto, Banco BPI, S.A., com sede na Rua Tenente Valadim, nº 284, Porto, Banco Espírito Santo, S.A., com sede na Avenida da Liberdade, nº 195, Lisboa, Banco Santander Portugal, S.A., com sede na Praça Marquês de Pombal, nº 2, Lisboa, Banco Totta e Açores, S.A., com sede na Rua do Ouro, nº 88, Lisboa, Banco Finantia, S.A., com sede na Rua General Firmino Miguel, nº 5, 1º, Lisboa, e Caixa Central - Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, C.R.L., com sede na Rua Castilho, nº 233, Lisboa, pedindo:

A – A condenação da 1.ª R. e, solidariamente com ela, dos restantes RR. a pagarem à A:

a) – A quantia de 15.462.734,81€, a título de preço em dívida das acções que por esta última lhe foram vendidas, responsabilizando por tal todo o património da mesma R., sem qualquer limitação no que respeita aos respectivos bens;

b) – A quantia de 81.125,66€, a título de reembolso de 50% das quantias despendidas pela mesma A. no pagamento dos serviços prestados pelo Banco Finantia como depositário das acções vendidas;

c) – A quantia de 1.555,85€, a título de juros vencidos contados sobre a quantia indicada na alínea b), à taxa legal, desde 03/03/03, bem como os juros vincendos, até integral e efectivo pagamento;

d) – Uma quantia a liquidar em execução de sentença, estimada em 62.000.000,00€, correspondente aos ganhos frustrados que resultaram para a A. do incumprimento do contrato de compra e venda de acções e/ou da prática de um ilícito civil;

e) – Subsidiariamente ao pedido enunciado em d), a quantia de 296.603,07€, a título de juros vencidos contados sobre o preço da compra e venda de acções em dívida, à taxa legal, desde 03/03/03, bem como nos juros vincendos, até efectivo e integral pagamento;

B – Que seja dado provimento à acção de impugnação pauliana deduzida e declarada ineficaz, em relação à A., a dação em cumprimento formalizada pela escritura de 08/04/2003;

C – Que seja ordenado o cancelamento das hipotecas inscritas a favor das 8.ª e 9.ª RR. por se manifestarem extintos os créditos por elas garantidos (inscrições C1, Ap. 43 de 1998/04/27 e C2 Ap. 9 de 1999/01/26) que incidem sobre o prédio urbano sito em Terrugem, Paço de Arcos, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras, sob o n.° 2881, freguesia de Paço de Arcos.

Alega a autora, no essencial, que:

- Em 07/03/1997, vendeu à 1.ª R. 836.957 acções, de que era titular no capital da sociedade Acumuladores A..., S.A., pelo preço de 3.200.000.000$00, a pagar em duas prestações, uma de 100.000.000$00 e outra de 3.100.000.000$00, esta última a efectuar em 03/03/2003 (cf. fls. 65 e segs.);

- Com a compra dessas acções, a 1.ª R. passou a deter 55,56% daquele capital;

- A par disso, foi celebrado entre a A., a 1.ª R. e o Banco Finantia um contrato, denominado “Acordo de Depósito Fiduciário”, nos termos do qual o referido Banco constituiu-se depositário das acções vendidas, a ser remunerado pela A. (cf. fls. 81 e segs.);

- Por sua vez, a 1.ª R. comprometeu-se, nos termos do n.° 1 da cláusula 8.ª do sobredito contrato de compra e venda, a reembolsar a A. de metade dos encargos que por esta fossem suportados no âmbito do contrato de depósito das acções, cujo valor ascende a 81.125,66€;

- Nos termos dos n.°s 1 e 3 da cláusula 10.ª do contrato de compra e venda, as partes limitaram a garantia da 1.ª R. pelo pagamento do preço das acções ao património por elas próprias constituído, excluindo de tal limitação a obrigação do reembolso de 50% da remuneração devida ao depositário Banco Finantia;

- Desde 07/03/1997, aquele património social acabou por ficar reduzido a nada, tendo a sociedade Acumuladores A..., S.A. ficado em situação de insolvência, sem que a 1.ª R. tivesse procedido, como devia, em função da obrigação de resultado assumida, por forma a evitar o esvaziamento do valor das acções, violando assim o contrato celebrado com a A. e defraudando as legítimas expectativas desta;

- Em 30/09/2002, a sociedade Acumuladores A..., S.A., a 1.ª R. e os Bancos RR. celebraram um contrato denominado “Contrato Promessa de Dação em Cumprimento e Financiamento”, (cf. fls. 142 e segs.), nos termos do qual a 1.ª R. prometeu dar em cumprimento aos referidos Bancos, ou a sociedade a ser por eles constituída sob a firma P..., um prédio urbano de que era proprietária, sito na Estrada de Paço de Arcos, para extinção de dívidas suas e da A..., S.A.;

- Ainda em 30/09/2002, a 1.ª R. e a Acumuladores A..., S.A., celebraram um contrato denominado “Contrato de Transmissão de Estabelecimento Comercial com Opção de Recompra” (cf. fls. 112 e segs.), nos termos do qual, após reconhecerem reciprocamente que a Acumuladores A..., S.A., se encontrava numa situação de insolvência, transferiram todo o estabelecimento comercial desta sociedade para a 1.ª R., passando esta a exercer a integralidade da actividade económica daquela, cujo património ficou assim esvaziado de activos rentáveis e sobrecarregado de passivo;

- Por carta de 01/10/2002, a 1.ª R. declarou-se perante a A. impossibilitada de pagar a última prestação do preço de venda das acções, correspondente a 15.462.734,81€, o que equivale a recusa antecipada de cumprir;

- Por escritura pública de 08/04/2003, foi constituída a P..., ora 2.ª R., tendo como sócios fundadores os Bancos RR.;

- Na mesma data e cartório, foi outorgada escritura pública, entre a 1.ª R. e a 2.ª R., denominada “Dação em Cumprimento” (cf. fls. 128 e segs.), nos termos da qual a 1.ª transmitiu à 2.ª o imóvel sito na Estrada de Paço de Arcos, com o valor de mercado aproximadamente de 45.000.000,00€, para extinção dos créditos dos Bancos, relativos a dívidas contraídas junto desses Bancos pela A..., S.A., no montante de 28.104.317,89€, e pela 1.ª R., no montante de 1.834.650,20€, na cifra total de 29.938.975,09€, créditos estes cedidos por aqueles Bancos à R. P..., na mesma data (08-04-2003) (cf. fls. 134 e segs.);

- O referido imóvel encontrava-se já onerado com duas hipotecas a favor dos Bancos, a primeira constituída em 22/04/1998 e a segunda em 26/06/2001, para garantia de créditos contraídos pela 1.ª R. e pela A..., S.A.;

- Os créditos garantidos pela 1.ª hipoteca (de 22/04/1998) respeitavam a dívidas da A..., S.A., no valor de 5.705.040,27€, e a dívidas da 1.ª R., no valor de 1.834.657,20€, no total de 7.539.697,47€, contraídas no âmbito do Contrato de Financiamento, de 23/04/1998, constante do documento de fls. 185 e segs.;

- Por sua vez, os créditos garantidos pela 2.ª hipoteca (de 26/06/2001), reportados ao contrato de financiamento referido na respectiva escritura de constituição reproduzida a fls. 205 e segs., respeitavam a dívidas da A..., S.A., no valor de 1.981.209,66€;

- Os créditos garantidos pelas duas hipotecas, que totalizam a cifra 29.938.975,09€, correspondem exactamente ao montante dos créditos cedidos pelos Bancos à P... e que foram satisfeitos pela sobredita dação em cumprimento, extinguindo assim as mencionadas hipotecas, não obstante ainda não terem sido canceladas;

- Dos eventos descritos decorre que os Bancos RR., com a conivência da administração da 1.ª R., dominada por AA, têm vindo a realizar uma estratégia progressiva de reforço, ao longo dos anos, das garantias dos seus créditos sobre o universo empresarial da A..., S.A., e da 1.ª R., o que culminou com o completo esvaziamento da A..., S.A., através do sobredito contrato de trespasse, e da 1.ª R., com a dação em cumprimento do imóvel já referido, beneficiando tanto os administradores da 1.ª R., ao se libertarem das garantias pessoais que tinham prestado, como os Bancos que viram plenamente satisfeitos os seus créditos;

- Desse modo, através do contrato de financiamento, de 23/04/1998, compreendendo um mútuo hipotecário (doc. de fls. 176 e segs.), um contrato de abertura de crédito (doc. de fls. 185 e segs, art. 2.º, al. b)) e um contrato de empréstimo a médio prazo (doc. fls. 185, art. 2.º, al. c)), bem como um outro contrato de financiamento, de 26/06/2001, os Bancos, ali designados por SINDICATO, refinanciaram a A..., S.A., e a 1.ª R. para pagamento de créditos pré-existentes deles próprios, conforme se alcança da cláusula 1.ª do contrato de financiamento de fls. 185, no montante total de 29.938.975,09€;

- Por fim, através do Contrato de Moratória, celebrado em 15/01/2002 (cf. fls. 215 e segs.), os Bancos reforçaram, ainda mais uma vez, as suas garantias;

- Assim, os Bancos RR., simultaneamente ao reforço das garantias dos seus créditos, passaram a controlar de perto a actividade da A..., S.A., com crescente influência na respectiva gestão;

- Com tais comportamentos os RR. violaram o princípio do tratamento igual de todos os credores contido no art. 604.°, n.° 1, do CC, ao terem constituído preferências de pagamento arbitrárias, e esvaziaram, com má fé, os patrimónios da A..., S.A., e da 1.ª R., que serviam de garantia ao crédito da A., mormente através da dação em cumprimento;

- A responsabilidade da 1.ª R. emerge tanto da violação das obrigações contratuais para com a A. como também da violação da lei, em sede pré-contratual e por violação do tratamento igual dos credores, enquanto que a responsabilidade dos demais RR. é exclusivamente de natureza extracontratual.

A 1.ª R. contestou, por impugnação (fls. 269-326), sustentando que:

- Pela falta do pagamento da parte do preço de venda das acções aqui em causa responde exclusivamente o património constituído pelas referidas acções depositadas no Banco Finantia, conforme o estipulado no n.° 1 da cláusula 10.ª do respectivo contrato;

- A R. comunicou à A. e ao Banco depositário que as acções que constituíam a garantia estavam à disposição da A., uma vez que não estava em condições de efectuar a parte do preço em dívida, não ocorrendo assim o alegado incumprimento da sua parte;

- No âmbito do mencionado contrato, a 1.ª R. não assumira qualquer obrigação especial de salvaguarda do valor dessas acções, para além da obrigação geral de diligência e boa fé na execução do contrato, nem lhe pode sequer ser exigida qualquer obrigação de resultado na manutenção do valor de tais acções;

- Não obstante, a R. sempre actuou com a maior diligência e a melhor boa fé para tentar recuperar a A..., S.A., negociando o financiamento bancário e dando em garantia bens do seu património imobiliário;

- A dação em cumprimento à R. do estabelecimento da A..., S.A., em nada agravou a situação desta sociedade, que ficou com a sua dívida reduzida na medida do valor daquele estabelecimento, já que esta sociedade se encontrava impossibilitada de solver os seus compromissos;

- A constituição das hipotecas sobre o prédio da 1.ª R. não esvaziou o património da A..., S.A., antes se destinou a salvá-la e a valorizar as acções dadas em garantia à A.;

- Não tendo sido praticado pela 1.ª R. nenhum acto susceptível de lesar a garantia patrimonial da A., que esta mesma não especifica, torna-se inconsistente a impugnação pauliana deduzida;

- Nem tão pouco se verifica o incumprimento da 1.ª R. quanto ao crédito de 81 125,66€, relativo à retribuição do Banco depositário, uma vez que, segundo o n.° 1 da cláusula 8.ª do contrato de compra e venda em causa, aquela importância só deveria ser paga na data do pagamento do preço das acções ou da transmissão destas à A., pelo que, não tendo a A. levantado tais acções, não ocorreu o vencimento daquela obrigação;

- A A. litiga de má fé, ao alegar factos que sabe serem falsos, adulterando conscientemente a verdade dos mesmos, e deduzir pretensões cuja falta de fundamento não pode ignorar.

Concluiu pela improcedência da acção.

Os 2.º e 4.º a 9.° RR. apresentaram contestação conjunta (fls. 441-518), em que, no essencial:

- Invocam a incompetência relativa do tribunal recorrido para apreciar os pedidos de cancelamento das hipotecas e a impugnação pauliana;

- Suscitam a ilegalidade da coligação passiva, bem como a sua ilegitimidade processual e a ineptidão da petição inicial, com fundamento em contradição entre o pedido e a causa de pedir, quanto às pretensões indemnizatórias contra eles formulados;

- Argúem a anulabilidade do contrato de compra e venda das acções com base no art. 282.° do CC;

- Subsidiariamente, defendem que, verificado o termo do contrato de compra e venda das acções, sem que tenha ocorrido o pagamento do preço, se operou a caducidade do mesmo, ficando a A. apenas com o direito a fazer suas as acções em causa;

- Impugnam especificadamente muitos dos factos narrados e negam que tenham praticado ou omitido qualquer acto lesivo do direito da A.;

- Sustentam que não assiste à A. legitimidade para pedir o cancelamento do registo das hipotecas;

- Para o caso de procedência, quer das pretensões indemnizatórias, quer da impugnação pauliana, suscitam mediante reconvenção a anulação da cessão de créditos e da datio pro solutum a favor da R. P....

Concluíram pedindo:

- Em primeira linha, a absolvição dos RR. da instância fundada nas excepções dilatórias deduzidas;

- Em segunda linha, a absolvição dos RR. dos pedidos;

- Para o caso de procedência tanto das pretensões indemnizatórias como da impugnação pauliana, que sejam anulados os contratos de cessão de créditos e da dação em pagamento à R. P..., com a consequente repristinação dos direitos, deveres e garantias dos outorgantes e que a A./reconvinda seja condenada a pagar as despesas feitas pelos RR./reconvintes com os actos notariais e registais, bem como a indemnizá-los pelos incómodos e danos sofridos, em montante a liquidar em execução de sentença;

- A condenação da A. em multa e indemnização como litigante de má fé.

O 3.º R., BCP, apresentou contestação em separado (fls. 676-691), em que:

- Arguiu a ineptidão da petição inicial com fundamento na incompatibilidade de pedidos;

- Sustentou a inexistência de má fé e a não impugnabilidade da dação em cumprimento, na medida em que esta respeitou ao cumprimento de obrigações vencidas;

- Impugnou especificadamente a generalidade dos factos alegados pela A., bem como os fundamentos jurídicos invocados, concluindo pela inexistência de qualquer responsabilidade por parte do 3.º co-réu;

- Defendeu que a A. carece de legitimidade substantiva para requerer o cancelamento das hipotecas;

- Alegou que o preço de compra e venda das acções foi empolado, sendo assim o contrato usurário e simulado, pelo que tal preço deve ser reduzido em valor adequado mediante realização de prova pericial;

- Por fim, requereu a intervenção principal de BB, por considerá-lo também responsável pela situação financeira da A..., S.A., na então qualidade de administrador e de vogal do conselho fiscal desta sociedade, para se defender, juntamente com os RR., como devedor principal e poder exercer contra ele o seu direito de regresso.

Concluiu o BCP pedindo:

- A sua absolvição da instância com base na ineptidão da petição inicial;

- Subsidiariamente, a sua absolvição dos pedidos formulados pela A..

- A procedência da pretensão reconvencional com a consequente anulação ou declaração de nulidade do contrato de compra e venda das acções e redução do preço a um valor adequado à data de Março de 1997.

A A. apresentou réplica, respondendo às excepções deduzidas e às reconvenções formuladas, a sustentar a sua improcedência e a reiterar o petitório.

Admitida liminarmente a intervenção principal requerida pelo 3.º R., o chamado BB apresentou o articulado de fls. 832-835, em que conclui pedindo a denegação de provimento da intervenção deduzida contra ele.

Findos os articulados, foi proferido despacho saneador (fls. 846-853), no qual se decidiu:

a) – Desatender as excepções de incompetência relativa suscitadas;

b) – Absolver os RR. da instância, por ineptidão da petição inicial, fundada na contradição do pedido e causa de pedir, salvo quanto à 1.ª R. no tocante ao pedido de pagamento da quantia de 81.125,66€;

c) – Julgar, no entanto, este pedido improcedente absolvendo a 1.ª R. do mesmo.

A A. interpôs recurso de apelação daquele despacho, ao qual foi dado provimento pelo Tribunal da Relação revogando a decisão recorrida e mandando prosseguir os autos para a fase de instrução e julgamento, conforme acórdão de fls. 1160-1174.

Foi então proferido novo despacho saneador (fls. 1186-1193), no qual foram julgados inadmissíveis os pedidos reconvencionais deduzidos pelos 2.º e 4.º a 9.º RR., e admitido o pedido reconvencional deduzido pelo 3.º R. (BCP), procedendo-se de seguida à selecção da matéria de facto com organização da base instrutória, reformada, já em sede de audiência, conforme fls. 2361-2367.

Inconformados com a decisão de rejeição das reconvenções, os 2.º e 4.º a 9.º RR. interpuseram recurso de agravo, o qual foi admitido com subida diferida (fls. 1330), tendo apresentado alegações (fls. 1578-1585).

A A. requereu, a fls. 1873-1875, a realização de segunda perícia, o que foi indeferido pelo despacho proferido a fls. 1964-1965, do qual aquela interpôs recurso de agravo, admitido a fls. 2057 com subida diferida, cujas alegações fazem fls. 2289-2295.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com a gravação da prova, conforme consta das actas de fls. 2327-2331, 2357-2360, 2379-2381, 2410-2412, 2440-2441, 2453-2455, e 2481-2484, tendo sido julgada a matéria de facto controvertida pela forma constante do despacho de fls. 2609 a 2615.

No decurso daquela audiência, veio a A., a fls. 2456, arrolar mais duas testemunhas para serem inquiridas, por carta rogatória a expedir para a Suíça e E.U.A., aos arts. 39.°, 40.° e 41.° da base instrutória, o que foi indeferido, com fundamento em extemporaneidade, conforme despacho inserto na acta de fls. 2482, do qual a mesma interpôs recurso de agravo, admitido a fls. 2483 com subida diferida, tendo a agravante apresentado alegações a fls. 2535-2540.

Veio ainda a A., através do requerimento de fls. 2561-2563, alegar que:

- Do esclarecimento pericial junto aos autos resulta que o estabelecimento comercial transitado em 30/09/2002 da sociedade Acumuladores A..., S.A., para a 1.ª R. é o mesmo que foi cedido, em 1994, por esta R. para aquela sociedade;

- Por isso, o negócio de transmissão, feito em 30/09/2002, é nulo e de nenhum efeito, por impossibilidade objectiva e subjectiva dos falsos contratantes, dado que a mesma coisa foi duplamente transaccionada em sentidos opostos, verificando-se a confusão entre cedente e cessionária;

- De igual modo, a assunção da dívida da A. aos Bancos RR. pela 1.ª R. é nula e de nenhum efeito, bem como o negócio de dação em cumprimento celebrado entre a 1.ª R. e a R. P....

Nessa base, a A. requereu a ampliação do pedido inicialmente formulado, de forma subsidiária e alternativa, pedindo que fosse decretada a nulidade dos referidos negócios jurídicos e ordenadas as correspondentes alterações registais.

Deduzida oposição ao pedido de ampliação, por parte dos RR., o mesmo foi indeferido nos termos do despacho proferido a fls. 2598-2600, tendo a A. interposto recurso de agravo, o qual foi admitido a fls. 2602 com subida diferida, cujas alegações constam de fls. 2673-2677.

Produzidas alegações de direito, foi proferida sentença final a julgar totalmente improcedentes, tanto a acção, absolvendo-se os RR. de todos os pedidos, como a reconvenção sobre a declaração de simulação do preço de venda das acções, considerando-se prejudicada a apreciação da restante matéria reconvencional (fls. 2901 a 2925).

Inconformada, recorreu a A. daquela decisão, tendo a Relação proferido o acórdão de fls. 3651-3754, no qual decidiu:

A- Negar provimento aos agravos apreciados nos pontos III/B e III/C;

B - Julgar prejudicada a procedência do agravo apreciado em III/A, por não ter tido qualquer influência na decisão de facto, mormente no âmbito da resposta ao artigo 30° da base instrutória;

C - julgar a apelação apenas procedente quanto ao pedido de reembolso das despesas de depósito das acções, alterando-se a sentença recorrida, nos seguintes termos:

a) - julga-se a acção parcialmente procedente quanto ao pedido de reembolso na quantia de € 81.125,66, condenando-se a 1ª R A.A. S... a pagar à A. aquela quantia, logo que esta realize a retoma das acções;

b) - confirmando-se, em tudo o mais, a decisão recorrida.

D) - Julgar, consequentemente, prejudicado o recurso de agravo interposto pelos 2º e 4º a 9º R.R.

As custas da acção e da apelação ficam inteiramente a cargo da A., quer na parte em que decai, quer na parte restante, nos termos do artigo 662.°, n° 2, do CPC.

As custas dos agravos ficam a cargo dos respectivos agravantes”.

Novamente irresignada, vem a A. recorrer para este Supremo Tribunal, rematando as suas alegações de recurso de revista com as seguintes conclusões:

“1ª- A deficiência das gravações de prova prejudicou a apreciação da matéria de facto pelo Venerando Tribunal a quo.

2ª-Tal facto constitui uma nulidade insuperável, enquadrável na alínea d) do artº. 668º. do C.P.C., devendo ser ordenada a repetição do julgamento, cfr. artºs. 201º. nºs. 1 e 2; 202º.; 203º., 205º., 690º.- A nºs. 1, 2 e 5 e 712º. nºs. 4 e 5 todos do C.P.C..

3ª- Do agravo interposto sobre a rejeição da segunda perícia foi indevidamente valorada a resposta dada pelo Exmº. Senhor Perito da ora Recorrente aos quesitos 15º; 22º e 25º, julgando erradamente não existir divergência para com a decisão final.

4ª- Em relação à resposta do Exmº. Senhor Perito da Recorrente ao quesito 30º, foi considerado pelo douto Acórdão ora em revista que aquela justificava a realização de uma segunda perícia, a não ser que a mesma ficasse prejudicada pela decisão final do mérito da Apelação.

Ora,

5ª- Não houve qualquer conclusão sobre esta questão, sendo que, por ser matéria de influência directa na decisão final da causa estaria sempre o agravo em causa obrigado a ser apreciado, nos termos da primeira parte do nº. 2 do arts. 710º do C.P.C..

6ª- Do agravo interposto contra a rejeição da ampliação do pedido resultava do mesmo o decretamento subsidiário ou alternativo da nulidade da transmissão do estabelecimento comercial e da nulidade da assumpção de dívida.

7ª- Esta ampliação constituía um natural desenvolvimento do pedido inicial inerente a processos desta dimensão, como prevê o nº. 2 do artº. 273º. do C.P.C..

8ª- Ainda que dúvidas subsistissem em relação à primeira parte da ampliação do pedido, não deveriam ter restado quaisquer incertezas relativamente à segunda parte, o que forçosamente determinaria a admissibilidade parcial daquela ampliação.

Quanto à questão central,

9º- Foi livremente celebrado entre a Recorrente e a Recorrida "A.A. S..." um contrato de compra e venda de acções da firma "ACUMULADORES A...", em 07 de Março de 1997.

10º- Pela venda das aludidas acções, a Recorrida "A.A. S..." ficou detentora de todos os direitos sociais da "ACUMULADORES A..." e passou, conjuntamente com as demais empresas da Família Sena da Silva, a deter totalidade do capital social, gerindo e administrando a dita empresa como muito bem entendia.

11º- O preço das acções transaccionadas foi de cerca de € 16.000.000,00, a ser pago no prazo máximo de seis anos, podendo reduzir no caso de antecipação de pagamento e aumentar mediante a valorização extraordinária.

12º- Do pagamento do preço apenas foi liquidada a primeira prestação de cerca de € 500.000,00.

Assim,

13º- A "AA S..." ficou em dívida para com a Recorrente na quantia de cerca de € 15.500.000,00.

14º- O mencionado contrato contem uma cláusula (10ª/1) limitativa de responsabilidade que conferia à compradora a possibilidade de no caso não conseguir pagar a totalidade do preço, entregar as mesmas acções adquiridas, sendo estas a garantia do pagamento do preço.

Em virtude desta situação,

15º- Impendiam sobre a "AA S..." as obrigações contratuais de garantia e de resultados, indissociáveis da cláusula limitativa de responsabilidade.

16º- Apenas existia a possibilidade da substituição das ditas acções por uma garantia bancária on first demand do valor do preço em falta.

Ainda que,

17º- Sobre a Recorrida "AA S..." recaísse apenas uma obrigação de "meios" estaria sempre a mesma sujeita ao dever de boa fé e de lealdade negociais e obrigada a abster-se da prática de todos os actos ao fim pretendido contratualmente.

Assim,

18º- Na eventualidade, da vendedora não receber a totalidade do preço ser-lhe-iam entregues as acções com um valor nunca inferior àquele por que as vendeu.

19º- As partes contratantes solicitaram os serviços de depositário do Recorrido BANCO FINANTIA para guarda das acções transaccionadas e controle do cumprimento das obrigações recíprocas.

Acresce que,

20º- Em clara violação das suas obrigações contratuais, em 30 de Setembro de 2002, a "AA S..." transferiu para si própria a globalidade do estabelecimento comercial da firma "ACUMULADORES A...".

21º- Com esse procedimento, a empresa "ACUMULADORES A..." ficou sem património e totalmente desprovida de actividade, deixando de laborar efectivamente.

22º- No dia seguinte, a "AA S..." comunicou à Recorrente que não iria pagar o valor em dívida e que aquela poderia levantar as acções, fazendo-as suas novamente.

Mas,

23º- Os títulos que a Recorrida "AA S..." propôs devolver à Recorrente, após a transferência do estabelecimento da "ACUMULADORES A..." nada valiam.

24º- A entrega liberatória das acções pretendida pela "AA S..." não corresponde, minimamente à realização de qualquer prestação.

25º- Com aquele comportamento a "AA S..." violou as obrigações contratuais que livre e esclarecidamente assumira, de protecção do valor do bem apresentado em garantia.

26º- Por impossibilidade culposa e dolosa da "AA S..." a prestação tornou-se impossível e consumou-se o incumprimento definitivo com o consequente vencimento da dívida.

27º- Com a violação das obrigações contratuais, a "AA S..." retirou eficácia à cláusula limitativa da responsabilidade, passando a responder pelas suas dívidas todo o seu património.

Ora,

28º- Do património da "AA S..." constava um imóvel, avaliado em cerca de 45 milhões de euros.

Mas,

29º- A Recorrida "AA S..." e a "sua" empresa "ACUMULADORES A..." tinham uma dívida hipotecária conjunta à banca de cerca de €7.539.697,40.

Então,

30º- Em conluio com os Bancos ora Recorridos, a "AA S..." colocou a salvo da Recorrente o seu único património capaz de responder pela dívida que tinha perante esta.

31º- A banca cedeu a globalidade dos seus créditos sobre a "AA S..." e sobre a "ACUMULADORES A...", num total de cerca de 29 milhões de euros, à firma especialmente criada para o efeito, a Recorrida "P...".

32º- A Recorrida "AA S..." celebrou com a "P..." uma escritura de dação em cumprimento em 08 de Abril de 2003, onde transmitiu o prédio descrito na 1-. Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o n9. 2881, da freguesia de Paço de Arcos.

No entretanto,

33º- A "AA S..." passou a ser credora da "ACUMULADORES A..." de cerca de 29 milhões de euros.

Sendo certo que,

34º- Desde a celebração do contrato de compra e venda das acções que os Bancos tinham conhecimento do crédito da Recorrente.

35º- Sendo que o Recorrido BANCO FINANTIA foi, inclusive, o depositário das acções e o garante do cumprimento do contrato.

36º- Em virtude do contrato de financiamento bancário celebrado entre os Recorridos Bancos, o FINANTIA comprometeu-se a manter devidamente informados os seus parceiros contratuais de todos actos ou negócios que afectasse o fim comum.

37º- Atendendo a esta circunstância não existe qualquer dúvida sobre o conhecimento prévio da relação entre a Recorrente e a "AA S..." e o consequente abuso de direito e má fé que prejudicaram intencionalmente a credora.

38º- Face ao comportamento descrito, abuso de direito; má fé, violação de deveres de lealdade e de fidelidade, incorreram os Recorridos Bancos em responsabilidade extracontratual, sendo solidariamente responsáveis com a "AA S..." pelo pagamento à ora Recorrente.

39º- O crédito da Recorrente é anterior ao acto a impugnar e os seus autores agiram com má fé, permitindo-se o recurso à impugnação pauliana.

40º- Os credores devem ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, respeitando o princípio par conditio creditorum.

41º- No caso ora em recurso, credores privilegiados eram apenas os Bancos em € 7.539.697,47, montante exorbitantemente inferior aos € 45.000.000,00 do terreno cedido.

42º- São ainda os Recorridos responsáveis solidariamente pelo pagamento à Recorrente dos lucros cessantes sofridos com o incumprimento verificado.

44º - Com relevância para a decisão a formular, foram violados o teor dos arts. 236.º; 334.º; 342.º, n.º 1; 405.º; 483.º; 490.º; 497.º; 610.º; 612.º; 762.º, n.º 2; 798.º, n.º 2; 801.º e 805.º, n.º 2, alínea b); 817.º todos do C.C.; art. 64.º do C.S.C. e 668.º, n.º .1, alíneas b) e c) do C.P.C..

Foram oferecidas contra-alegações:

- Pela 1.ª Ré, a fls. 4116-4124, pugnando pela improcedência do recurso e sustentando a condenação da A., “como litigante de má fé, em multa e indemnização àquela Ré, nos honorários do advogado, que se calculam em € 50.000,00 e no ressarcimento dos prejuízos que se avaliam em, pelo menos, € 200.000,00”.

- Pelos 2.º e 4.º a 9.º RR., a fls. 3958-4006, defendendo, outrossim, a improcedência do recurso e que a recorrente litiga de manifesta má fé.

- Pelo 3.º R. (BCP), a fls. 4068-4100, sustentando, à semelhança dos co-RR., a total improcedência do recurso.           

A Relação pronunciou-se sobre as nulidades alegadas pela A./recorrente contra o acórdão, tal como vertido a fls. 4138 e verso, mantendo a decisão produzida nos seus precisos termos.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

O objecto do recurso está delimitado pelas conclusões vertidas nas alegações de recurso da A./recorrente, não podendo o STJ conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, tal como estatuído nos arts. 684.°, n.° 3, e 690.°, n.°s 1 e 3, do Código de Processo Civil – de ora em diante CPC[2].

As questões suscitadas que importará apreciar e decidir são as seguintes:

1.ª- Deficiências de gravação da prova;

2.ª - Omissão de pronúncia sobre o agravo referente à realização de uma segunda perícia;

3ª - Erro de julgamento do agravo sobre a ampliação do pedido;

4.ª - Natureza e alcance da cláusula 19.ª, alíneas a) e b), conjugada com a cláusula 10.ª do contrato de compra e venda de acções da sociedade “Acumuladores A..., S.A.”, celebrado em 07-03-1997, sobre as pretensas obrigações da 1.ª R. na salvaguarda do valor real daquelas acções.

5.ª - Se houve violação do contrato por banda da 1.ª R., por prática de actos de má gestão conducentes à desvalorização das acções;

6.ª – Se houve violação do princípio do tratamento igual de todos os credores;

7.ª - Se os financiamentos proporcionados pelos RR. Bancos à “Acumuladores A...” e se a oneração e posterior dação em cumprimento do imóvel de Paço de Arcos constituem actos ilícitos, e actuaram aqueles com abuso de direito;

8.ª - Impugnação pauliana e pedidos de cancelamento dos registos das hipotecas sobre o imóvel de Paço de Arcos.

Importa analisar, por fim, a questão da litigância de má-fé da A./recorrente, que vem suscitada nas alegações recursivas da 1.ª R, e, outrossim, dos 2.º e 4.º a 9.º RR.

                                             II-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Vêm dados como provados, pelas instâncias, os seguintes factos, com as alterações neles introduzidas pela Relação de Lisboa:

I. Em 07-03-1997, a A. declarou vender à R. A.A. S..., que declarou comprar 836 957 acções de que era titular, representativas do capital social da “Acumuladores A..., S.A.” (doc. de fls. 65 a 86) [acordo das partes a fls. 2327, quanto ao art. 1º da base instrutória (b.i)].

II. A A. e a R. A.A. S... declararam que preço seria pago em duas prestações, uma de 100 000 000$00 (“cem mil contos”) e outra de 3 100 000 000$00 (“3 milhões e cem mil contos”) [acordo das partes a fls. 2327, quanto ao art. 3.º da b.i.].

III. A A. e a R. A.A. S... declararam que o pagamento da quantia de 3 100 000 000$00 (3 milhões e cem mil contos) deveria ocorrer no dia 3 de Março de 2003 [acordo das partes a fls. 2327, quanto ao art. 4.º da b.i.].

IV. A A. e a R. A.A. S... declararam que se o preço das acções fosse pago em 31-08-1997 seria de 1 408 510 000$00 e que se fosse pago em 03-03-2003 seria de 3 200 000 000$00 [acordo das partes a fls. 2327, quanto ao art. 2º da b.i.].

V. O preço estipulado de 3 200 000 000$00 para acções correspondentes a 47,83% do capital social da Acumuladores A... era superior ao valor contabilístico das acções na data do contrato, correspondendo € 47,83% do capital próprio a 1 054 220 073$00 [resp. ao art. 25.° da b.i.].

VI. A A. e a R. A.A. S... declararam acordar que em caso de incumprimento por parte da R. A.A. S..., compradora, a sua responsabilidade para com a A., vendedora, ficaria limitada ao património constituído pelas acções que se encontrassem depositadas em garantia (cl. 10.ª/l) [acordo das partes a fls. 2327, quanto ao art. 10.° da b.i.].

VII. Nos termos da cl. 10.ª/2, a A. e a R. A.A. S... declararam que a limitação de responsabilidade estipulada no ponto anterior não teria aplicação caso se verificasse a situação prevista na al. d) do n.° 1 da cláusula 6.ª, a saber, venda das acções a um terceiro [acordo das partes a fls. 2327, quanto ao art. 11.° da b.i.].

VIII. A A. e a R. A.A. S... declararam excluir do âmbito de aplicação da cláusula 10.ª n.° 1, a obrigação de reembolso de metade das quantias despendidas pela A. com a remuneração do Banco Finantia pelo depósito das acções [resp. ao art. 12.° da b.i.].

IX. Nos termos da cl. 19.°/a/b do contrato de compra e venda de acções, a A. e a R. A.A. S... declararam que:

a) a compradora/A.A. S... deverá fazer todos os esforços para conduzir da melhor forma os negócios e assuntos da sociedade bem como das sociedades participadas, com a salvaguarda do interesse da vendedora em receber a quantia suplementar, de acordo com os termos deste contrato;

b) a compradora não deverá entrar em quaisquer contratos ou acordos, com quaisquer pessoas, em termos que sejam incompatíveis ou violem de alguma forma as disposições deste contrato ou que tenham um efeito adverso substancial na possibilidade de cumprirem com as suas obrigações assumidas.

X. Concomitantemente à compra e venda de acções a A., a R. A.A. S... e o Banco Finantia, S.A. acordaram, nos termos do doc. de fls. 81 a 85, denominado acordo de depósito fiduciário, em que o Banco Finantia se constitui depositário das acções vendidas pela A à A.A. S... [acordo das partes a fls. 2327, quanto ao art. 6.º da b.i.].

XI. O Banco Finantia teve conhecimento desde o princípio do denominado contrato de compra e venda de acções [acordo das partes a fls. 2327, quanto ao art. 18.° da b.i.].

XII. A R. A.A. S... comprometeu-se a reembolsar a A. de metade dos encargos em que esta incorresse, na data em que se verificasse ou o pagamento do preço ou a transmissão das acções (cláusula 8.ª/1 do contrato de compra e venda de acções - cfr. fls. 70) [acordo das partes a fls. 2327, quanto ao art. 7.º da b.i.].

XIII. A A...H... vendeu a sua participação à R. A.A. S... por não pretender fazer qualquer esforço adicional de investimento, nem aumentar a sua exposição na Acumuladores A..., não tendo tido outras ofertas para a venda da sua participação [resp. ao art. 24.° da b.i].

XIV. BB foi nomeado para integrar o conselho de administração no início do segundo semestre de 1994 e deixou de exercer funções contemporaneamente à celebração do acordo de compra e venda de acções – 07-03-1997 [acordo das partes a fls. 2358 quanto ao art. 38.° da b.i.].

XV. A A. passou a designar um membro do conselho fiscal da "Acumuladores A..., S.A.", indigitando primeiro CC e depois BB, nunca tendo advertido contra ou impugnado quaisquer medidas e que a A. tinha acesso a toda a vida financeira da empresa [resp. ao art. 20.° da b.i.].

XVI. A situação da "Acumuladores A..., S.A." foi-se deteriorando e em 2002 o endividamento bancário era de € 28 104 317,87 [resp. ao art. 22.° da b.i.].

XVII. Esse deteriorar deveu-se a um processo internacional de concentração no sector das baterias, com abaixamentos sucessivos de preços de venda, o que levou à acumulação de prejuízos junto dos fabricantes [resp. ao art. 23.° da b.i.].

XVIII. As contas da "Acumuladores A..., S.A." mereceram a aprovação do conselho fiscal sem votos de vencido e foram certificadas pelo Revisor Oficial de Contas (ROC) e auditadas [acordo das partes quanto ao art. 21.° da b.i. (fls. 2358)].

XIX. Por carta de 01-10-2002, a R. A.A. S... declarou à A. encontrar-se impossibilitada de pagar o remanescente do preço em dívida [acordo das partes a fls. 2327, quanto ao art. 5.º da b.i.].

XX. A A. já pagou de remuneração ao Banco Finantia € 162.509,31 [acordo das partes a fls. 2327, quanto ao art. 9.º da b.i.].

XXI. O remanescente do valor das acções não se mostra pago e as acções mantêm-se depositadas no Banco Finantia [resp. ao art. 16.° da b.i.].

XXII. A R. A.A. S... dirigiu à A. o escrito de que se mostra junta cópia a fls. 430, datado de 22-10-2002, em que assinaladamente se lê que (...) confirmamos ser igualmente nosso entendimento que nos cabe o pagamento de 50% dos encargos suportados com o depósito e guarda das acções (...) Mais informamos que o valor apurado de EUR 90.511,03 confere com o nosso próprio cálculo. Nestes termos (...) ficamos a aguardar que nos comuniquem formalmente a decisão da A...H... Limited [acordo das partes a fls. 2327 quanto ao art. 8.º da b.i.].

XXIII. A R. A.A. S... era até 08-04-2003 proprietária de um prédio descrito na 1.ª C.R.Predial de Oeiras sob o n.° 2881, da freguesia de Paço de Arcos, com uma área de implantação de 76 898 m2 (soma da área coberta de 15 188 m2 com a área descoberta de 61 710 m2) [cfr. doc. de fls. 120 a 126 - al. B) dos FA].

XXIV. Foi perante uma situação de risco iminente de incumprimento que a R. A.A. S... e a Acumuladores A... negociaram com os bancos credores em Abril de 1998 o contrato de financiamento, tendo estes exigido em garantia hipoteca sobre o prédio de Paço de Arcos [resp. ao art. 26.° da b.i.].

XXV. Era intento da R. A.A. S... ao dar as garantias permitir a viabilização da Acumuladores A... [resp. ao art. 27.° da b.i.].

XXVI. Através do contrato de financiamento de fls. 184 a 203, datado de 23-04-1998, a Acumuladores A... passou a beneficiar de um período de carência de dois anos, da conversão da dívida vencida e de financiamentos a médio e a longo prazo [resp. ao art. 17° da b.i.].

XXVII. Nos termos dos artigos 17.° e 18.° do denominado contrato de financiamento e dação em cumprimento, junto de fls. 185 a 203, foi nomeada uma comissão de acompanhamento de operação de refinanciamento, constituída por cinco elementos, um nomeado pela A... e os restantes quatro a designar pelos bancos aí identificados, sendo a comissão presidida pelo elemento nomeado pelo B.P.A., com a competência assinalada [acordo das partes consignado a fls. 2327].

XXVIII. A R. A.A. S... não logrou a viabilização da Acumuladores A... por força da concorrência em curso e do referido em XVII [resp. ao art. 28.° da b. i].

XXIX. Os créditos correspondentes, no montante total de € 29 938 975,09 (sendo que € 28 104 317,89 corresponderiam a dívidas contraídas junto dos bancos pela A... e € 1 834 657,20 a dívidas contraídas junto dos bancos pela R. A.A. S...) foram transmitidos pelos RR. Banco Comercial Português, Banco BPI, Banco Espírito Santo, Banco Santander Portugal, Banco Totta e Açores, Banco Finantia e Caixa Central – Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, C.R.L. à P... para extinção de dívidas (dação em cumprimento) da R. AA S... e da A... [docs. de fls. 127 a 141 - al. H) dos FA].

XXX. Os créditos dos RR. Bancos sobre a A... e a RR. A.A. S... resultam de comércio bancário anterior, contemporâneo e posterior à permanência da A. na A..., cfr. doc. de fls. 620 a 624 [resp. ao art. 35.° da b. i.].

XXXI. A R. A.A. S... e a "Acumuladores A..., S.A." acordaram, nos termos do doc. de fls. 112 a 119, datado de 30-09-2002, designadamente depois de considerarem que a Acumuladores A... se encontra numa situação de insolvência e numa situação líquida fortemente negativa, transferir todo o estabelecimento comercial da Acumuladores A... para a R. A.A. S... como dação em cumprimento para extinção da dívida da Acumuladores A... para com os Bancos RR., que a R A.A. S... assumiu [alínea A) dos Factos Assentes (FA)].

XXXII. Em 30-09-2002, a Acumuladores A..., a R. A.A. S... e os RR. Banco Comercial Português, Banco BPI, Banco Espírito Santo, Banco Santander Portugal, Banco Totta e Açores, Banco Finantia e Caixa Central - Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, C.R.L. acordaram nos termos do doc. de fls. 142 a 159, denominado contrato promessa de dação em cumprimento e financiamento [al. C) dos FA].

XXXIII. Nos termos da cláusula 3.ª, a R. A.A. S... prometeu dar em cumprimento aos bancos ou a sociedade a ser por eles constituída o património imobiliário constituído pelo prédio de Paço de Arcos para extinção de dívidas suas e da A... [al. D) dos FA].

XXXIV. Os sócios fundadores da R. P... são os RR. Banco Comercial Português, Banco BPI, Banco Espírito Santo, Banco Santander Portugal, Banco Totta e Açores, Banco Finantia e Caixa Central - Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, C.R.L., com a proporção de quotas conforme o doc. de fls. 162 e ss. [al. E) dos FA].

XXXV. Por escritura de 08-04-2003, a R. A.A. S... transmitiu à R. P... o prédio descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o n.° 2881 [al. F) dos FA].

XXXVI. De acordo com a escritura, aquele património foi transmitido à P... para extinção de dívidas da R. A.A. S... e da A..., sendo que, conforme consta da mesma escritura, os correspondentes créditos foram em momento anterior transmitidos pelos 3.º a 9.º RR. (bancos) à P... [al. G) dos FA].

XXXVII. Encontram-se registadas duas hipotecas pelas inscrições Cl e C2 a favor dos Bancos RR. sobre o prédio de Paço de Arcos, hipotecas essas que foram constituídas para garantir todas as responsabilidades da R. A.A. S... e da "Acumuladores A...", cf. docs. de fls. 175 e segs. [al. I) dos FA].

XXXVIII. As acções adquiridas pela R. A.A. S... à A. não têm actualmente qualquer valor [resp. ao art. 15.°da b.i.].

XXXIX. Caso não tivesse sido celebrado o contrato de dação em cumprimento, a Acumuladores A... já tinha deliberado apresentar-se ao tribunal para abertura de um processo de recuperação/falência [resp. ao art 29.° da b.i.].

XL. Encontrando-se a A... impossibilitada de solver os seus compromissos, a dação em cumprimento à R. do estabelecimento da A..., não agravou a situação desta, que viu reduzida a sua dívida na medida do valor do estabelecimento [resp. ao art. 30.° da b.i.].

XLI. A A. tinha conhecimento de que seria difícil à Acumuladores A... atingir uma exploração económica que permitisse gerar valores conducentes aos preços estipulados no contrato de compra e venda de acções [resp. ao art. 32.° da b.i.].

XLII. A A. tinha conhecimento dos créditos que os bancos detinham sobre a Acumuladores A... e a R. A.A. S... e das circunstâncias do mercado internacional [resp. ao art. 33.° da b.i.].

XLIII. O valor do imóvel de Paço de Arcos era inferior ao valor dos créditos dos RR. Bancos [resp. ao art. 34.° da b.i.].

XLIV. Do contrato de transferência do estabelecimento da Acumuladores A..., S.A., para a A.A. S..., ora 1.ª R., datado de 30-09-2002, reproduzido a fls. 112/119, referido no ponto XXXI, consta a cláusula 9.ª com o seguinte teor:

1. Se, em resultado de uma reestruturação financeira, com ou sem modificação da respectiva estrutura accionista, que entretanto venha a ocorrer na A..., esta vier a dispor dos recursos necessários para tal, a A... fica com o direito de readquirir o estabelecimento agora transmitido para a A.A. S..., desde que efectue a esta os pagamentos cumulativos a seguir indicados:

a. Pagamento da totalidade da dívida da A... à A.A. S..., que nesta data é de €22.913.243,53 (vinte e dois milhões, novecentos e treze mil duzentos e quarenta e três euros e cinquenta e três cêntimos), acrescida de juros à taxa Euribor mais 3% (três por cento) contados a partir da data de assinatura do contrato;

b. Pagamento do valor dos passivos assumidos por A.A. S... e discriminados no Anexo III no valor de €8.926.963,83 (oito milhões, novecentos e vinte seis mil, novecentos e sessenta e três euros e oitenta e três cêntimos) [aditado por extensão do facto dado como assente na alínea A), correspondente ao ponto XXXI, com referência ao documento ali mencionado].

XLV. Com a aquisição das acções à A., a R. A.A. S... passou a deter, na Acumuladores A..., S.A., 55,56% do capital social, uma vez que já detinha 135 313 acções equivalentes a 7,73% desse capital [facto aditado pela Relação – fls. 3702].

DE DIREITO

1.ª - Deficiências de gravação da prova.

Começa a recorrente por suscitar a questão da deficiência da gravação da prova e que a mesma prejudicou a apreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo que essa realidade constitui uma nulidade insanável, enquadrável na al. d) do art. 668.º do CPC, devendo ser ordenada a repetição do julgamento (arts. 201.º, n.ºs 1 e 2, 202.º, 203.º, 205.º, 690.º-A, n.ºs 1, 2 e 5, e 712.º, n.ºs 4 e 5, todos do CPC).

Vejamos!

Foi intenção do legislador, expressamente indicada no relatório do DL n.º 39/95, de 15/02 sobre o registo das audiências finais e da prova, criar um duplo grau de jurisdição, em sede de matéria de facto, embora mitigado pelo ónus do recorrente delimitar em concreto o objecto do recurso, a fim de evitar a impugnação generalizada da decisão de facto (no mesmo sentido, também o preâmbulo do DL n.º 329-A/95, de 12-12)[3].

A lei processual civil impõe – no seu art. 690.º-A –, ao recorrente que pretenda impugnar a matéria de facto o ónus de especificar, sob pena de rejeição, (a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e (b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

Curialmente, promana do art. 712.º, n.º 2, do CPC, que, caso se tenha registado a gravação dos depoimentos, a Relação tem o dever de reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão da 1.ª instância, atendendo ao conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de, oficiosamente, atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.

Impõe-se, assim, ao Tribunal da Relação, por via dos arts. 690.º-A e 712.º do CPC, que, na sua tarefa própria de julgar, analise criticamente as provas indicadas como fundamento da impugnação recursiva, conjugando todas as provas entre si (v.g., testemunhal, documental e pericial), contextualizando-as e congregando-as, de forma a alcançar a sua própria e autónoma convicção[4], que deve ser fundamentada, não se cingindo à análise da fundamentação efectuada pelo tribunal de 1.ª instância[5].

Não há pois qualquer dúvida de que a lei estipula que a Relação ouça os depoimentos gravados sempre que a impugnação da decisão de facto tenha sido feita com observância do disposto no art. 690.º-A do CPC.

Isso mesmo é enfatizado pelo art. 9.º do DL n.º 39/95, segundo o qual “se, em qualquer momento, se verificar que foi omitida qualquer parte da prova ou que esta se encontra imperceptível, proceder-se-á à sua repetição sempre que for essencial ao apuramento da verdade”, e pelo n.º 3 do art. 712.º do CPC, ao estatuir que “a Relação pode determinar a renovação dos meios de prova produzidos em 1.ª instância que se mostrem absolutamente indispensáveis ao apuramento da verdade, quanto à matéria de facto impugnada…”.

Aqui chegados, é indubitável que a deficiência da gravação (ou de documentação dos actos da audiência), a existir, constitui uma nulidade secundária, das previstas no art. 201.º, n.º 1, do CPC, uma vez que essa deficiência integra uma omissão de um acto prescrito na lei – cf. art. 7.º, n.º 2, do DL n.º 39/95 – que pode, evidentemente, influir na decisão da causa, por obstar, quer à fundada impugnação da matéria de facto pelas partes com base na gravação, quer à reapreciação da matéria de facto pela Relação[6].

Porém, como pode o STJ imiscuir-se nesta questão?

É apodíctico que ao STJ, enquanto tribunal de revista apenas incumbe fiscalizar a aplicação do direito aos factos – cf. arts. 729.º, n.º 1, do CPC, e 26.º da Lei n.º 3/99, de 13-01 – e não controlar a matéria de facto fixada pelas instâncias, comportando esta regra as excepções enunciadas no art. 722.º, n.º 2, do CPC: “O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

Harmonicamente, o art. 729.º, n.º 2, do CPC, estabelece que: “A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no n.º 2 do artigo 722.º”.

Por isso determina o art. 712.º, n.º 6, do CPC, que a Relação decide definitivamente as questões relativas à fixação da matéria de facto.

Tal como escrevemos no Acórdão de 12/07/2011, Proc. n.º 1838/06.0TBMFR.L1.S1, igualmente subscrito pelos ora Adjuntos, debruçando-nos precisamente sobre a problemática das deficiências de gravação da prova: “Ora, saber se a aludida anomalia existe e, sobretudo, se é ou não relevante para a decisão de facto, passaria necessariamente pela sindicância da prova testemunhal visada, o que, como se disse, está vedado ao STJ, pois que essa opção se insere no âmbito dos poderes de reapreciação da matéria de facto que cabem à Relação. 

De modo que, assim como o STJ não pode sindicar o eventual erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, também não pode pôr em causa a valoração que a Relação fez de cada um dos meios de prova de que se serviu para proceder à reapreciação que lhe foi solicitada e a lei lhe consente, a menos que se tratasse de prova vinculada que o tribunal recorrido tivesse desrespeitado”.

Retomando o caso em apreço, o que se verifica é que o Tribunal da Relação, no acórdão sub judicio dedicou parte substancial da decisão recorrida a debruçar-se sobre os problemas de gravação da prova testemunhal, tendo feito uma análise aturada, profunda e excepcionalmente bem fundamentada sobre esse problema, detalhando de forma escrupulosa e minuciosa a sua própria convicção sobre os pontos da matéria de facto impugnados, sem se furtar, em qualquer momento, à audição da prova gravada (cf., em especial, as págs. 50 a 81 do acórdão recorrido, que constituem as fls. 3700 a 3731 do processo).

Depois de remeter, por razões metodológicas, o seu pronunciamento sobre as apontadas deficiências para a sede da apreciação de cada um dos pontos de facto impugnados, não encontramos qualquer passagem do acórdão recorrido em que o mesmo se coloque em termos dubitativos, relativamente à apreciação da prova gravada, fazendo essa avaliação sem qualquer tipo de constrangimento determinado pela suposta inaudibilidade ou imperceptibilidade (parcial) na gravação dos depoimentos.

Concluindo, o acórdão recorrido não enferma de omissão de pronúncia quanto à irregularidade das gravações, ponderando que apreciou essa irregularidade, de forma conscienciosa, no sentido de que as deficiências de registo não comprometeram a adequada e cabal audição e valoração de qualquer dos meios de prova relevantes.

Improcede, assim, esta 1.ª questão.

2.ª - Omissão de pronúncia sobre o agravo referente à realização de uma segunda perícia

Diz a recorrente, quanto ao agravo interposto sobre a rejeição da 2.ª perícia, que, por um lado, foi indevidamente valorada a resposta dada pelo perito por si indicado em relação aos quesitos 15.º, 22.º e 25.º e julgada erradamente não existir divergência com a decisão final; por outro lado, em relação à resposta desse perito ao quesito 30.º, foi considerado pelo acórdão recorrido que aquela justificava a realização de uma 2.ª perícia, a não ser que a mesma ficasse prejudicada pela decisão final do mérito da apelação, não tendo havido qualquer conclusão sobre esta questão, não se tendo o acórdão pronunciado sobre tal aspecto.

Quanto à valoração das respostas dadas pelo senhor perito indicado pela recorrente e sua influência na decisão final, mormente quanto aos artigos 15.º, 22.º e 25.º da base instrutória, era à Relação que cabia a última palavra, pois estamos situados no campo de prova de livre apreciação, sendo o STJ alheio a essa valoração.

Sendo a perícia um meio de prova livremente apreciado pelo juiz, está vedado ao STJ interferir na questionada decisão da matéria de facto, matéria que é da exclusiva competência das instâncias – cf. art. 729.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPC.

Por seu turno, tendo a Relação, no acórdão recorrido, reapreciado as provas em que assentou a parte impugnada da decisão proferida, em 1.ª instância, não cabe do mesmo recurso para o STJ, nos termos do preceituado pelo art. 712.º, n.ºs 1, alínea a), 2 e 6, do CPC.

Já no que tange à alegada omissão de pronúncia do acórdão, versando a necessidade de uma 2.ª perícia para clarificação do artigo 30.º da base instrutória, também a recorrente está equivocada.

Com efeito, o que se escreveu no acórdão foi, apenas e tão só, que ocorreria fundamento para essa 2.ª perícia, a não ser que a mesma ficasse prejudicada pela solução que viesse a ser dada ao mérito da apelação (cfr. fls 3675).

Posteriormente, no âmbito desse mérito, como se alcança da leitura do acórdão, resulta da apreciação ali feita sobre a impugnação da matéria de facto, em especial da resposta ao art. 30.º da base instrutória, que não se mostrava necessária qualquer nova perícia, por se ter considerado que a resposta em apreço não se encontrava viciada na base dos argumentos invocados pela apelante, não se impondo, portanto, a reapreciação dos meios concretos de prova em que o tribunal a quo fundou tal resposta (cf. fls. 3721 e segs.).

Em face disso mesmo nada mais havia a dizer que não fosse concluir pela prejudicialidade da procedência do agravo (cfr. al. B) da decisão final), como o fez o acórdão recorrido.

É, pois, patente que o acórdão não omitiu qualquer pronúncia quanto à necessidade de efectuar a 2.ª perícia pela qual a recorrente se batia, tendo tomado posição expressa sobre essa matéria, esvaziando de sentido a eventual realização desse meio probatório – cf. arts. 668.º, n.º 1, al. b), e 710.º, n.º 2, do CPC.

3ª - Erro de julgamento do agravo sobre a ampliação do pedido

Preliminarmente, convém deixar bemart. 687.º, n.º 1, parte final, do CPC clara a irrecorribilidade, no âmbito desta revista, quanto à matéria do agravo que se debruçou sobre a ampliação do pedido.

Na verdade, sendo o recurso de revista o próprio, pode o recorrente alegar, além da violação da lei substantiva, a violação da lei do processo, quando desta for admissível recurso, nos termos do n.º 2 do art. 754.º do CPC, de modo a interpor um único recurso, tal como decorre do art. 722.º, n.º 1, do CPC, o que pressupõe que o acórdão recorrido esteja em oposição com outro, proferido no domínio da mesma legislação pelo STJ ou por qualquer Relação, e não houver sido fixada pelo STJ jurisprudência com ele conforme (cf. arts. 732.º-A e 732.º-B, do CPC).

Não se verificando aquela situação excepcional (oposição de julgados), nem sequer o recorrente invocando no seu requerimento de interposição da revista, como tem de fazer à luz do , qualquer acórdão que se encontre em oposição com o recorrido, a matéria do agravo não pode ser objecto de recurso.

Destarte, quanto ao objecto constante daquele agravo nada mais haveria a dizer nesta sede, por se ter consolidado caso julgado formal sobre o mesmo. Porém, ainda assim, reafirma-se a falta de razão da recorrente.

Sustenta a recorrente que a ampliação do pedido por si requerida, constituía um natural desenvolvimento do pedido inicial, como prevê o art. 273.º, n.º 2, do CPC, insurgindo-se quanto ao facto do acórdão recorrido assim não ter concluído, o que constituirá erro de julgamento.

E, dizemos nós, concluiu e bem, pelo que, neste ponto específico, nos limitamos a remeter para o que já está escrito, de forma coerente e exaustiva, a fls. 3680 a 3684 (págs. 30 a 34 do acórdão da Relação), de harmonia com o previsto no art. 713.º, n.º 5, aqui aplicável ex vi do art. 726.º, ambos do CPC.

Detalhando melhor e reproduzindo pelo seu inteiro acerto as considerações tecidas no aresto recorrido, no segmento aqui relevante:

“(…) verifica-se que estas novas pretensões (no sentido de ser decretada, subsidiariamente ou em alternativa, a nulidade do negócio jurídico de transmissão de estabelecimento comercial, realizado em 30-09-2002, da sociedade Acumuladores A..., S.A., para a 1.ª R., bem como da assunção de dívida da A. aos Bancos R.R. pela 1.ª R. (cf. fls. 3680 e fls. 2561/2563)), quanto aos seus fundamentos e efeitos prático-jurídicos pretendidos se reconduzem a pedidos distintos dos inicialmente formulados, não podendo assim ser considerados como mero desenvolvimento daqueles (pedidos iniciais) para os efeitos do n.º 2 do artigo 273.º do CPC.

Com efeito, na petição inicial não foi deduzido nenhum pedido sobre o negócio de transmissão do estabelecimento comercial, realizado em 30/9/2002, da sociedade A..., S.A., para a 1.ª R.. A alegação desse negócio só teve em vista imputar à 1.ª R. a responsabilidade civil pelo agravamento da situação económico-financeira da A..., S.A., e da consequente desvalorização das acções que a 1.ª R. detinha naquela sociedade, e que foram objecto do contrato de compra e venda das acções em causa. E o mesmo se diga quanto aos negócios de assunção de dívida aos Bancos pela 1.ª R., cuja alegação visou imputar tanto a esta como aos referidos Bancos comportamentos pretensamente lesivos dos direitos e interesses da A., o que, segundo ela, fazem incorrer aqueles RR. em responsabilidade civil.

Por fim, o negócio de dação em cumprimento do imóvel identificado nos autos da 1.ª R. para a 2.ª R. foi inicialmente objecto de impugnação pauliana, à qual não obsta a nulidade do negócio impugnado, como prescreve o artigo 615.°, n° 1, do CC. De resto, a nulidade de um negócio jurídico funda-se em vício que afecta a validade daquele, enquanto que a impugnação pauliana visa apenas a ineficácia relativa do negócio impugnado em relação a terceiro, alheando-se dos seus vícios intrínsecos, como decorre do disposto no artigo 616.°, n° 1, do CC. Por conseguinte, a impugnação de um negócio numa base jurídica ou noutra - nulidade ou ineficácia relativa - reconduz-se a pretensões qualitativamente distintas.

Em suma, não estamos perante pretensões que representem o mero desenvolvimento das originariamente deduzidas, sendo a própria A./agravante a reconhecê-lo quando as formula a título subsidiário ou alternativo” (cf. págs. 32/33 do acórdão recorrido; fls. 3682/3683 do processo).

Apenas acrescentaremos, em jeito de nótula final, que a requerida ampliação não se mostrou acompanhada, como deveria, do pedido de intervenção da “Acumuladores A..., S.A.”, que em momento algum foi chamada a intervir nestes autos, o que sempre conduziria à impossibilidade do tribunal poder apreciar a validade dos negócios em que aquela intervinha, em face do disposto no art. 28.º, n.º 2, do CPC, tal como certeiramente alegam os Bancos recorridos nas suas contra-alegações recursivas.

Não se verifica, assim, contrariamente ao pugnado pela recorrente, qualquer erro de julgamento quanto ao agravo que decidiu, correctamente, que a ampliação do pedido de modo algum se enquadrava nos requisitos legais plasmados no n.º 2 do art. 273.º do CPC, o que implicava, como implicou, o seu indeferimento.

Destarte, sem necessidade de maiores tergiversações, conclui-se, outrossim, pela improcedência desta 3.ª questão suscitada no recurso, relativa ao julgamento do agravo efectuado pela Relação.

É, pois, tempo de passar ao âmago do recurso e às questões concernentes ao seu mérito.

4.ª - Natureza e alcance da cláusula 19.ª, alíneas a) e b), conjugada com a cláusula 10.ª do contrato de compra e venda de acções da sociedade “Acumuladores A..., S.A.”, celebrado em 07-03-1997, sobre as pretensas obrigações da 1.ª R. na salvaguarda do valor real daquelas acções.

Como a recorrente salienta nas suas conclusões – que, convenhamos, não pecam pela clareza, tal como as alegações, estando eivadas de juízos meramente conclusivos, sem correspondência nos factos apurados –, a questão central que se põe à consideração neste recurso gira, maioritariamente, em torno da interpretação do contrato de compra e venda de acções da Acumuladores A..., S.A., datado de 07-03-1997, o qual foi acompanhado da outorga, com o Banco Finantia, de um contrato de depósito fiduciário das acções transaccionadas.

Torna-se, por isso, necessário recapitular a parte dos factos provados no processo, com pertinência a dilucidar esta particular questão:

- Em 07-03-1997, a A. declarou vender à R. A.A. S..., que declarou comprar 836 957 acções de que era titular, representativas do capital social da “Acumuladores A..., S.A.” (I).

- A A. e a R. A.A. S... declararam que preço seria pago em duas prestações, uma de 100 00 000$00 (cem mil contos) e outra de 3 100 000 000$00 (3 milhões e cem mil contos) (II).

- A A. e a R. A.A. S... declararam que o pagamento da quantia de 3 100 000 000$00 (3 milhões e cem mil contos) deveria ocorrer no dia 3 de Março de 2003 (III).

- A A. e a R. A.A. S... declararam que se o preço das acções fosse pago em 31-08-1997 seria de 1 408 510 000$00 e que se fosse pago em 03-03-2003 seria de 3 200 000 000$00 (IV).

- O preço estipulado de 3 200 000 000$00 para acções correspondentes a 47,83% do capital social da Acumuladores A... era superior ao valor contabilístico das acções na data do contrato, correspondendo 47,83% do capital próprio a 1 054 220 073$00 (V)

- Com a aquisição das acções à A., a R. A.A. S... passou a deter, na Acumuladores A..., S.A., 55,56% do capital social, uma vez que já detinha 135 313 acções equivalentes a 7,73% desse capital (XLV).

- A A. e a R. A.A. S... declararam acordar que em caso de incumprimento por parte da R. A.A. S..., compradora, a sua responsabilidade para com a A., vendedora, ficaria limitada ao património constituído pelas acções que se encontrassem depositadas em garantia (cl. 10.ª/l) (VI).

- Nos termos da cl. 10.ª/2, a A. e a R. A.A. S... declararam que a limitação de responsabilidade estipulada no ponto anterior não teria aplicação caso se verificasse a situação prevista na al. d) do n.° 1 da cláusula 6.ª, a saber, venda das acções a um terceiro (VII).

- A A. e a R. A.A. S... declararam excluir do âmbito de aplicação da cláusula 10.ª n.° 1, a obrigação de reembolso de metade das quantias despendidas pela A. com a remuneração do Banco Finantia pelo depósito das acções (VIII).

- Nos termos da cl. 19.°/a/b do contrato de compra e venda de acções, a A. e a R. A.A. S... declararam que:

a) a compradora/A.A. S... deverá fazer todos os esforços para conduzir da melhor forma os negócios e assuntos da sociedade bem como das sociedades participadas, com a salvaguarda do interesse da vendedora em receber a quantia suplementar, de acordo com os termos deste contrato;

b) a compradora não deverá entrar em quaisquer contratos ou acordos, com quaisquer pessoas, em termos que sejam incompatíveis ou violem de alguma forma as disposições deste contrato ou que tenham um efeito adverso substancial na possibilidade de cumprirem com as suas obrigações assumidas (IX).

- Concomitantemente à compra e venda de acções a A., a R. A.A. S... e o Banco Finantia, S.A. acordaram, nos termos do doc. de fls. 81 a 85, denominado acordo de depósito fiduciário, em que o Banco Finantia se constitui depositário das acções vendidas pela A. à AA. S... (X).

- A A...H... vendeu a sua participação à R. A.A. S... por não pretender fazer qualquer esforço adicional de investimento, nem aumentar a sua exposição na Acumuladores A..., não tendo tido outras ofertas para a venda da sua participação (XIII).

- BB foi nomeado para integrar o conselho de administração no início do segundo semestre de 1994 e deixou de exercer funções contemporaneamente à celebração do acordo de compra e venda de acções - 07/03/1997 (XIV).

- A A. passou a designar um membro do conselho fiscal da "Acumuladores A..., S.A.", indigitando primeiro CC e depois BB, nunca tendo advertido contra ou impugnado quaisquer medidas e que a A. tinha acesso a toda a vida financeira da empresa (XV).

- A situação da "Acumuladores A..., S.A." foi-se deteriorando e em 2002 o endividamento bancário era de € 28 104 317,87 (XVI).

- Esse deteriorar deveu-se a um processo internacional de concentração no sector das baterias, com abaixamentos sucessivos de preços de venda, o que levou à acumulação de prejuízos junto dos fabricantes (XVII).

- As contas da "Acumuladores A..., S.A" mereceram a aprovação do conselho fiscal sem votos de vencido e foram certificadas pelo Revisor Oficial de Contas (ROC) e auditadas (XVIII).

- A A. tinha conhecimento de que seria difícil à Acumuladores A... atingir uma exploração económica que permitisse gerar valores conducentes aos preços estipulados no contrato de compra e venda de acções (XLI).

- A A. tinha conhecimento dos créditos que os bancos detinham sobre a Acumuladores A... e a R. AA S... e das circunstâncias do mercado internacional (XLII).

- As acções adquiridas pela R. A.A. S... à A. não têm actualmente qualquer valor (XXXVIII).

As instâncias decidiram, no que, de resto, a recorrente não dissente, que estamos perante um contrato de compra e venda de acções, representativas de 47,83% do capital social da sociedade “Acumuladores A..., S.A.”, celebrado em 07-03-1997, entre a autora “A...H... Limited”, na qualidade de vendedora, e a 1.ª R., A.A. S..., S.A., na qualidade de compradora.

Relativamente ao pagamento do preço das acções transmitidas, as partes estipularam que: o preço da venda, totalizando “três milhões e duzentos mil contos” (3 200 000 000$00), seria pago em duas prestações, uma de cem mil contos (100 000 000$00) e outra de três milhões e cem mil contos (3 100 000 000$00), que deveria ocorrer no dia 03-03-2003; porém, se o preço das acções fosse pago em 31-08-1997 seria de 1 408 510 000$00.

Por via desse negócio jurídico, aquela R. ficou detentora de 55,56% do capital social da “Acumuladores A..., S.A.” (uma vez que já detinha 135 313 acções equivalentes a 7,73% desse capital)[7].

É inequívoco que a transmissão das acções operou entre as partes, por meio do contrato oneroso de compra e venda, concluído naquela data, de harmonia com a regra consagrada no art. 408.º, n.º 1, do Código Civil (por diante CC) [8]/[9].

Tratou-se, por outro lado, de um negócio de aquisição de acções e não de um negócio de subscrição[10].

Não se questiona que a R. A.A. S... deixou de pagar à A. o remanescente do valor das acções em dívida, tendo-lhe declarado, por carta de 01-10-2002, que se encontrava impossibilitada de pagar esse preço.

O problema está relacionado, isso sim, com o âmbito da responsabilidade contratual da R. A.A. S..., designadamente em termos patrimoniais.

Na cláusula 8.ª, n.º 1, titulada “Garantia de Pagamento”, as partes estatuíram: “Como garantia do bom pagamento das importâncias em dívida indicadas na cláusula 3.ª (relativa ao “Preço”), as «Acções» ficam depositadas no Banco Finantia, S.A., o «Depositário», ao abrigo do contrato celebrado nos termos constantes do Anexo D, o «Depósito», suportando inicialmente a «Vendedora» os respectivos encargos, dos quais irá ser reembolsada pela «Compradora» em 50% na data em que se verificar quer o pagamento do preço, quer a transmissão das «Acções» nos termos da Cláusula 11.ª ”.

Por esse motivo, a A. e a R. A.A. S..., concomitantemente com a outorga do contrato de compra e venda das acções em crise, acordaram entre si e com o Banco Finantia em constituir essa instituição bancária depositária das acções vendidas, mediante contrato denominado de “Acordo de Depósito Fiduciário” (cf. doc. de fls. 81 a 85).

Nesse acordo as partes declararam designar o Banco Finantia como fiduciário, para garantia do cumprimento das obrigações de pagamento assumidas na cláusula 3.ª do contrato de compra e venda das acções, tendo a A. depositado numa conta de depósito, junto do Banco fiduciário, as acções transaccionadas, declarando a R. A.A. S..., enquanto compradora dessas participações sociais, de forma irrevogável, que o depósito se destinava ao cumprimento da obrigação de pagamento das mesmas. Por seu turno, apenas mediante a apresentação de documento comprovativo do cumprimento das obrigações assumidas naquela cláusula do contrato de compra e venda – e/ou da consignação em depósito junto de uma instituição de crédito da importância em dívida e/ou da prestação de garantia bancária – as acções poderiam ser livremente movimentadas, transferidas ou oneradas.

Este contrato, associado à compra e venda das acções, consubstancia a constituição de um depósito in escrow.

Nesta modalidade de depósito, intitulado fiduciário, as partes optam por confiar a um terceiro, da confiança de ambas, determinados bens, dando-lhe instruções sobre o destino a dar a esses bens, e que poderá passar pela sua restituição ao depositante, ou, na eventualidade de se concretizar a “condição” aposta no contrato acoplado ao depósito, pela sua entrega ao beneficiário do mesmo[11].

Trata-se de um contrato trilateral, real quoad constitutionem, subscrito entre duas partes, contratantes num negócio jurídico coligado ao depósito (o negócio jurídico principal) e uma terceira entidade fiduciária, a quem aquelas confiam o acompanhamento e execução desse negócio subjacente – temos assim, o depositante, o beneficiário eventual dos bens depositados em garantia e o depositário escrow[12].

O depositante é proprietário dos bens que são entregues in escrow ao depositário; por sua vez, o depositário escrow ou escrow holder recebe em depósito os bens confiados em garantia, obrigando-se perante as partes a guardar, eventualmente administrar, e a dar a tais bens o destino que as partes vierem a acordar. A participação do beneficiário do depósito no contrato justifica-se pela existência de uma relação jurídica, conexa ao depósito, de que é titular como credor (eventual) e que tem como devedor (eventual) o depositante.

Numa definição mais completa, pode definir-se o contrato de depósito escrow como “a convenção pela qual as partes de um contrato bilateral ou sinalagmático acordam em confiar a um terceiro, designadamente um Banco, a guarda de bens móveis (tais como dinheiro, valores mobiliários, títulos de crédito e/ou documentos) ficando este irrevogavelmente instruído sobre o destino a dar aos referidos bens, que – em função do modo como vier a evoluir a relação jurídica emergente daquele contrato – poderá passar pela sua restituição ao depositante ou, eventualmente, pela sua entrega ao beneficiário do depósito”[13].

Por sua vez, regista-se que, no contrato de compra e venda das acções, as partes definiram, na cláusula 10.ª, epigrafada “Limitação da Responsabilidade”, sob o n.º 1, que: “Em caso de incumprimento do contrato por parte da «Compradora», a sua responsabilidade para com a «Vendedora» ficará limitada ao património constituído pelas «Acções» que se encontrem depositadas em garantia nos termos das precedentes cláusulas 8.ª e 9.ª [14] .

Assim se compreende, em toda a sua amplitude, a cláusula 11.ª, n.º 1, do mesmo contrato (conexa com a 10.ª), na qual se consignou:

Se nos 60 dias seguintes à data do vencimento da prestação indicada na alínea b) do n.º 1 da cláusula 3.ª (pagamento de 3 100 000 000$00, em 03-03-2003) a «Compradora» não tiver efectuado o pagamento da importância em dívida ou efectuado a sua consignação em depósito, e se a dívida não estiver assegurada por garantia bancária nos termos da cláusula 8.ª n.º 2, a «Vendedora», por simples comunicação ao «Depositário», poderá adquirir as «Acções» ou fazê-las adquirir por terceiro, considerando-se integralmente satisfeito o preço devido pelas «Acções», por compensação com a transmissão das «Acções», nos termos atrás indicados, sem que haja lugar a qualquer indemnização ou compensação de parte a parte”.

Ou seja, como resulta das cláusulas contratuais acertadas entre a A. e a R. A.A. S..., no âmbito do contrato principal de compra e venda de acções, as partes cingiram a responsabilidade contratual, da segunda, ao património constituído pelas próprias participações que se encontrassem depositadas, nos termos do contrato de depósito escrow celebrado com o Banco Finantia.

O princípio geral que rege o direito das obrigações postula que não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, pode o credor obter a sua realização coerciva ou o ressarcimento dos danos resultantes do incumprimento, através da execução do património do devedor – cf. art. 817.º do CC.

O cumprimento da obrigação é assegurado, em regra, pela totalidade dos bens penhoráveis existentes no património do devedor, mesmo os que tenham sido adquiridos depois da constituição da obrigação – cf. art. 601.º do CC[15].

Todavia, dispõe o art. 602.º do CC: “Salvo quando se trate de matéria subtraída à disponibilidade das partes, é possível, por convenção entre elas, limitar a responsabilidade do devedor a alguns dos seus bens, caso a obrigação não seja voluntariamente cumprida[16].

Clarificando, do que se trata é da limitação convencional da garantia patrimonial e não da limitação da responsabilidade civil do devedor, não obstante se ter que salientar que “embora estas convenções se não coloquem no mesmo plano das cláusulas limitativas de responsabilidade, o certo é que da restrição da responsabilidade a determinados bens do devedor pode resultar, sempre que esses bens sejam insuficientes, uma limitação da indemnização do credor”[17].

Por isso mesmo, considera-se fraudulenta uma indicação de bens em quantidade manifestamente insuficiente à necessária para garantir o crédito[18].

Relevante será que na convenção sejam especificados os bens sobre que recai a garantia e que essa limitação corresponda a uma necessidade real ou conveniência do devedor, compatível com a coercibilidade do vínculo obrigacional[19].

Como se salienta na decisão sob recurso, a cláusula de limitação da garantia patrimonial (não da responsabilidade) às próprias acções foi estabelecida em benefício da devedora, tendo em vista evitar que o restante património fosse atingido por via da eventual cobrança coerciva do preço das acções em débito. E, consequentemente, é destituído de fundamento a pretensão da recorrente de que o risco de depreciação do valor das acções recaísse sobre a R. A.A. S....

É neste ponto que urge trazer à liça a cláusula 19.ª (denominada “Compromissos da «Compradora»”), mormente as suas alíneas a) e b), em que se convencionou que a compradora:

a) deverá fazer todos os esforços para conduzir da melhor forma os negócios e assuntos da Sociedade, bem como das sociedades participadas, com salvaguarda do interesse da «Vendedora» em receber a Quantia Suplementar, de acordo com termos deste contrato.

b) não deverá entrar em quaisquer contratos ou acordos, com quaisquer outras pessoas, em termos que sejam incompatíveis ou violem de alguma forma as disposições deste contrato ou que tenham um efeito adverso substancial na possibilidade de cumprirem com as suas obrigações aqui assumidas “.

Reitera a recorrente, nesta sede, que a limitação da responsabilidade, prevista na sobredita cláusula 10.ª, tem de ser previamente cotejada com as obrigações contratuais “de garantia e de resultados”, indissociáveis daquela cláusula; que apenas existia a possibilidade da substituição das acções por uma garantia bancária on first demand do valor do preço em falta; e que, ainda que sobre a R. A.A. S... apenas recaísse uma obrigação de meios, estaria sempre a mesma sujeita ao dever de boa fé e de lealdade negociais e obrigada a abster-se da prática de todos os actos contrários ao fim pretendido contratualmente.

As sociedades anónimas constituem, à imagem das sociedades por quotas, sociedades de responsabilidade limitada, nas quais, por regra, apenas o património social responde perante os credores sociais – cf. arts. 197.º, n.º 3, e 271.º do Código das Sociedades Comerciais (doravante, CSC).

Note-se que património e capital social são duas figuras distintas: o património de uma sociedade trata-se de um fundo real de bens e direitos, efectivo, concreto e continuamente variável na sua composição e montante – “é a expressão de uma realidade tangível e inconstante”, ao passo que o capital social é um elemento do contrato de sociedade que se traduz numa cifra (tendencialmente) estável, representativa da soma dos valores nominais das participações sociais – “valor ideal e constante que não significa nem corresponde a uma realidade tangível ou a uma massa de bens”[20]/[21].

O capital social é a cifra representativa da soma das entradas dos sócios e constitui um elemento essencial do contrato de sociedade, dividindo-se por acções, no caso das sociedades anónimas – arts. 9.º, n.º 1, al. f), 42.º, n.º 1, al. b, e 271.º, todos do CSC [22]/[23].

A acção deve ser entendida como a participação social, isto é, como a medida da posição do sócio na sociedade anónima, traduzindo-se num complexo de direitos e deveres que exprimem a condição do accionista, não se confundido com a empresa explorada pela sociedade a que as acções dizem respeito.

Na verdade, “as acções são títulos de participação, que conferem a quem as adquira direitos vários, quer de carácter administrativo (direito de participar e votar nas assembleias gerais, direito de impugnar judicialmente as deliberações inválidas, direito à informação, etc.), quer de carácter patrimonial (direito aos lucros periódicos e à quota de liquidação, direito de preferência na subscrição de novas acções, etc.).

Mas as acções não atribuem aos seus titulares direitos sobre os bens da sociedade – designadamente sobre a empresa. A sociedade, como ente personalizado, é um sujeito jurídico autónomo, com uma esfera patrimonial própria. Os sócios têm direitos perante a sociedade, que foi por eles constituída para realizarem um fim comum (um fim lucrativo) – mas não têm direitos que incidam directamente sobre o património social.

(…) Por conseguinte, quando alguém compra um lote de acções representativas da maioria do capital de determinada sociedade não compra a empresa que à mesma sociedade pertence. Proprietária da empresa continua a ser a sociedade, e o adquirente das acções apenas fica legitimado a exercer perante esta pessoa jurídica os direitos de carácter administrativo e de carácter patrimonial que elas conferem[24] /[25] .

Clarificados estes aspectos, acusa a recorrente a 1ª Ré A.A. S... de haver violado as obrigações contratuais que livre e esclarecidamente assumira, de protecção do valor das acções cujo valor ficou reduzido a nada, em virtude da situação de insolvência da “Acumuladores A..., S.A.” que imputa a má gestão daquela.

Não se pondo em causa que a sobredita cláusula 19.ª do contrato de compra e venda, comportava dois tipos de obrigações – na alínea a), uma obrigação de facto positivo de diligenciar nos negócios da “Acumuladores A..., S.A.” e suas participadas, no sentido de salvaguardar o interesse da vendedora em receber o preço suplementar das acções; na alínea b), uma obrigação de facto negativo, de não participar em negócios com quaisquer pessoas, que fossem incompatíveis ou violassem, de algum modo, o contrato de compra e venda das acções ou que tivessem um efeito adverso substancial na possibilidade de cumprir as suas obrigações –, não se antolha que a R. A.A. S... tenha incumprido qualquer uma dessas obrigações, muito menos qualquer obrigação de resultado, no sentido de garantir o valor efectivo das acções.

Do art. 406.º do CC emerge que os contratos devem ser pontualmente cumpridos, só podendo modificar-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos legalmente admitidos. Em consonância, emana do n.º 1 do art. 762.º do mesmo diploma, que o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado. E diz-nos o n.º 2 deste preceito legal que no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé.

Esclarecem Pires de Lima e Antunes Varela que “ o dever de boa fé não se circunscreve ao simples acto de prestação, abrangendo ainda, na preparação e execução desta, todos os actos destinados a salvaguardar o interesse do credor na prestação (o fim da prestação) ou a prevenir prejuízos deste, perfeitamente evitáveis com o cuidado ou a diligência exigível ao obrigado”[26].

Como corolário deste dever, particularmente quando se convencione uma cláusula de limitação da garantia patrimonial ao abrigo do artigo 602.º do CC, como foi o caso, recai sobre o devedor a obrigação de não praticar, por comissão ou omissão, actos que sejam susceptíveis de afectar negativamente o valor do bens a que ficou confinada aquela limitação, em termos de esvaziar a coercibilidade do vínculo obrigacional para com o credor.

Já se nos afigura não contida no mesmo dever qualquer exigência imposta ao devedor no propósito de evitar a depreciação do bem contra actos que escapem à esfera do seu dever de diligência, sobretudo quando se trate de bens de valor de mercado, por natureza aleatório e flutuante, como sucede no caso de títulos de participações sociais.

Ora, no âmbito da responsabilidade de natureza contratual o princípio básico é o de que o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação se torna responsável pelos prejuízos ocasionados ao credor, quer se trate de não cumprimento definitivo, quer de simples mora ou de cumprimento defeituoso (cfr. arts. 798º, 799º, 801º e 804º do CC).

Por seu turno, em termos substantivos e processuais, a repartição do ónus da prova condiciona a actividade probatória da parte, pois que, em coadunação com o ónus de alegação, incumbe à parte o ónus de provar os factos cuja subsunção a uma norma jurídica lhe propicia uma situação favorável – cf. art. 342.º do CC [27].

Estabelece, todavia, a lei no nº 1 do supracitado art. 799º uma presunção legal de culpa do devedor, a qual pode ser ilidida mediante prova em contrário (cfr. nº 2 do art. 350º do CC). Portanto, sobre ele recai o ónus da prova.

Importa, então, destrinçar, no âmbito das obrigações contratuais, entre as obrigações de meios e as obrigações de resultado, decorrentes de, no primeiro caso, o devedor se obrigar apenas a desenvolver prudente e diligentemente certa actividade para a obtenção de um determinado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza (ex. a obrigação contratual do médico de empregar a sua ciência na cura do doente), contrariamente à segunda situação em que o devedor está vinculado a conseguir um certo efeito útil (ex. obrigação de entrega de uma coisa)[28].

Segundo Vaz Serra, “cabe ao credor provar que diligência devia ter usado o devedor em face da obrigação que assumiu (ou seja, a prova do conteúdo da obrigação) e ao devedor provar que usou dessa diligência (e, portanto, se foi impedido de a usar por algum facto a si não imputável, demonstrá-lo), isto é, que cumpriu a obrigação”[29].

Conforme se escreveu no Acórdão deste Supremo Tribunal, e desta Secção, de 28/09/2010, Proc. n.º 171/2002.S1, relatado pelo Conselheiro Moreira Alves, disponível no ITIJ, que acompanhamos: “(…) como ensina A. Varela (Direito das Obrigações em Geral – II – 4.ª ed. 1997)[30]:

«Nas obrigações chamadas de meios não bastará…a prova da não obtenção do resultado previsto com a prestação, para considerar provado o não cumprimento.

 Não basta alegar a morte do doente ou a perda da acção para se considerar em falta o médico que tratou o paciente ou o advogado que patrocinou a causa.

 É necessário provar que o médico ou advogado não realizaram os actos em que normalmente se traduziria uma assistência ou um patrocínio diligente, de acordo com as normas deontológicas aplicáveis ao exercício da profissão».

Também a este respeito escreve Carneiro da Frada (Direito Civil – Responsabilidade Civil – O Método do caso – 81) «nas obrigações de meios, dada a ausência de um resultado devido, não é suficiente que o credor demonstre a falta de verificação desse resultado. Ele tem sempre de individualizar uma concreta falta de cumprimento (ilícita). Dada a índole da obrigação, carece de demonstrar que os meios não foram empregues pelo devedor ou que a diligência prometida com vista a um resultado não foi observada».

Ora, tal doutrina aceite pela generalidade dos autores, não significa que a presunção de culpa do art. 799.º, n.º 1, do C.C. não tenha qualquer aplicação no âmbito das obrigações de meios, como apressada e superficialmente pretendem os recorrentes.

Significa apenas, como diz Carneiro da Frada (in obra citada), que em tal tipo de obrigações terá o credor de identificar e fazer provar a exigibilidade dos meios ou da diligência (objectivamente) devida. «A presunção de culpa tende, portanto, a confinar-se à mera censurabilidade pessoal do devedor» isto é, a presunção reduzir-se-á à culpa em sentido estrito.

Portanto, provado pelo credor que o meio exigível ex contractu ou ex negotii não foi empregue pelo devedor ou que a diligência exigível de acordo com as regras da arte, foi omitida, competirá ao devedor provar que não foi por sua culpa que não utilizou o meio devido, ou omitiu a diligência exigível.

Neste sentido, mais restrito, é aplicável às obrigações de meios a presunção de culpa do art. 799.º, n.º 1, do CC ”.

No caso em apreço, a A./recorrente e a R. A.A. S... divergem sobre o alcance das obrigações estipuladas nas alíneas a) e b) da mencionada cláusula 19ª do contrato celebrado.

Enquanto que a primeira sustenta que a obrigação ali assumida pela compradora se traduz numa obrigação de resultado, estabelecida em benefício da vendedora em receber exactamente o preço acordado pela venda das acções, a a R. A.A. S... defende tratar-se de uma obrigação de meios e que a cláusula de limitação de responsabilidade foi estabelecida a seu favor, a prevalecer fosse qual fosse o valor que as acções viessem a ter.

Haverá, pois, que recorrer à interpretação do respectivo clausulado e, em última análise, à vontade negocial real ou presumida das partes, à luz dos critérios previstos nos artigos 236.º a 238.º do CC.

Tais critérios interpretativos legais podem-se condensar da seguinte forma:

Em concordância com a doutrina da impressão do destinatário, consagrada no art. 236.º, a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele (n.º 1), acrescentando o respectivo n.º 2 que “sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida”.

Para tal, o declaratário, devendo proceder de boa fé, é obrigado a investigar, tendo em consideração todas as circunstâncias por ele conhecidas ou cognoscíveis, o que o declarante quis; este, por seu lado, é também obrigado pela boa fé a deixar valer a declaração no sentido que o declaratário, mediante cuidadosa verificação, tinha de atribuir-lhe[31].

A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante[32].

Pode assim dizer-se que são elementos essenciais da interpretação: a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas; a finalidade prática visada pelas partes; o próprio tipo negocial; a lei e os usos e os costumes por ela recebidos. Para além destes elementos, também releva a posição assumida pelas partes na execução do negócio. Esta não pode, na verdade, deixar de, razoavelmente, corresponder ao que as partes entendem ser os direitos e as vinculações que para cada uma delas emergem do negócio[33].

Nos negócios onerosos, em caso de dúvida, deve prevalecer o sentido que conduza ao maior equilíbrio das prestações – cf. art. 237.º do CC - e nos negócios formais, apenas se exige que o sentido da declaração tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso – cf. art. 238.º.

Feitos estes considerandos, não se podendo contar com a vontade real das partes, do texto da aludida cláusula 19ª não se infere que a compradora se tenha obrigado, a todo o custo, a assegurar à vendedora os resultados previstos nem a conservar o valor das acções então atribuído.

Repete-se, como anteriormente se frisou, sobre a R. A.A. S... apenas recaía a obrigação positiva de envidar os seus esforços no sentido de conduzir da melhor maneira os negócios da sociedade “A... Acumuladores, S.A.”, por forma a salvaguardar o interesse da vendedora em receber a quantia suplementar prevista, o que, aliás, mais não é do que a decorrência do dever geral de boa fé, no cumprimento das obrigações, cristalizado no indicado art. 762.º, n.º 2, do CC.

Como muito bem se salienta na decisão da 1.ª instância, (fls. 2915-2916), “já sobre a mesma R. não impendia qualquer obrigação de resultado, ou seja, de garantir efectivamente o valor das acções. Como se infere dos próprios termos do contrato e sobretudo da própria natureza das coisas, é apodíctico que garantir tal coisa seria manifestamente impossível ”.

Aliás, os factos provados demonstram à saciedade que é bem diversa a causa da depreciação do valor contabilístico das acções que permanecem depositadas no Banco Finantia, e que os problemas são, há que salientá-lo, coevos da data da celebração do contrato de compra e venda das acções.

Desde logo, a A. vendeu a sua participação, correspondente a 47,83% do capital social da “Acumuladores A..., S.A.”, à R. A.A. S..., por não pretender fazer qualquer esforço adicional de investimento, nem aumentar a sua exposição naquela sociedade, não tendo tido quaisquer outras ofertas para a venda daquela participação.

Sem prejuízo dessa alienação, a A. passou a designar, após a venda das suas acções, um membro do conselho fiscal da “Acumuladores A..., S.A.” – indigitando, primeiro, CC, e depois, BB (o qual tinha sido nomeado no início do segundo semestre de 1994, para integrar o conselho de administração, deixando esse cargo na data da celebração do contrato de compra e venda de acções – 07-03-1997).

Não obstante, e apesar de ter acesso a toda a vida financeira da empresa, a A. nunca advertiu contra ou impugnou quaisquer medidas tomadas no seio da “Acumuladores A..., S.A.”.

Mais, as contas da “Acumuladores A..., S.A.” mereceram a aprovação sem qualquer voto de vencido de nenhum membro do conselho fiscal e foram certificadas pelo Revisor Oficial de Contas e auditadas.

Provou-se, ainda, que, fruto de um processo internacional de concentração no sector das baterias, com abaixamentos sucessivos de preços de venda, tal contexto levou à acumulação de prejuízos junto dos fabricantes o que, no caso da “Acumuladores A..., S.A.”, levou à deterioração da sua situação conduzindo a que, em 2002, o seu endividamento bancário se cifrasse em 28 104 317,87€.

Acresce que a A. tinha conhecimento dos créditos que os Bancos detinham sobre aquela sociedade e a R. A.A. S... e das circunstâncias do mercado internacional e, igualmente, tinha conhecimento de que seria difícil à “Acumuladores A..., S.A.” atingir uma exploração económica que permitisse gerar valores conducentes aos preços estipulados no contrato de compra e venda de acções.

Pergunta-se então: onde vislumbra a A. o mínimo resquício de uma suposta falta de boa fé da R. A.A. S... no cumprimento das suas obrigações? Em que medida violou a R. A.A. S... qualquer obrigação, seja de meios, seja de resultado?[34]

Tudo visto, é ostensivo que, como se concluiu no acórdão recorrido, fazendo a devida e correcta interpretação e integração das declarações negociais das partes, à luz dos arts. 236.º e segs. do CC[35] : “(…) face ao critério do sentido do declaratário normal e ponderando o cânone interpretativo do equilíbrio contratual para que aponta o artigo 237.º do CC e o princípio integrativo por via da sua vontade conjectural e dos ditames da boa fé, não se pode deixar de concluir que as alíneas a) e b) da cláusula 19.ª estipulam uma mera obrigação de meios por parte da compradora, mormente quanto à conservação do valor das acções aqui em causa” (sic – pág. 94, fls. 3744).

De igual modo se nos afigura que através da cláusulas 10ª do contrato, limitativa da garantia patrimonial da compradora, em conjugação com as cláusulas 4ª e 5ª nº 2, em que se prevê um preço suplementar para a eventualidade de uma futura valorização das acções, as partes estabeleceram um equilíbrio contratual, segundo o qual a vendedora beneficiaria da eventual valorização das acções, enquanto que a responsabilidade da compradora ficaria sempre limitada às acções depositadas em garantia, fosse qual fosse o seu valor.

De resto, e para terminar este ponto, quanto ao argumento da recorrente de que apenas existia a possibilidade da substituição das acções por uma garantia bancária on first demand do valor do preço em falta, não se compreende qual a consequência que a recorrente daí quererá retirar, designadamente da cláusula 8.ª, n.º 2, pelo que nada mais há que acrescentar quanto ao tratamento, já longo, desta 4.ª questão.

5.ª – Se houve violação do contrato por banda da 1.ª R., por prática de actos de má gestão conducentes à desvalorização das acções

Em concretização daquilo que entende serem actos de depreciação do valor das acções alienadas, a A. veio materializar que tal depreciação foi gerada, fundamentalmente, pelos seguintes actos, que agravaram a situação económico-financeira da Acumuladores A..., S.A.: a oneração hipotecária do imóvel sito em Paço de Arcos, onde se encontrava instalado o estabelecimento da Acumuladores A..., S.A., feita pela R. A.A. S... aos Bancos RR., os contratos de financiamento celebrados com estes Bancos e a subsequente dação em cumprimento do referido imóvel, que lhes foi feita pela R. A.A. S..., por via da R. P..., em 2003, bem como a transferência do estabelecimento da Acumuladores A..., S.A., para a R. A.A. S....

Por seu lado, a R. A.A. S... sustentou que tais operações – de oneração, financiamento e subsequente dação em cumprimento, bem como a transferência do estabelecimento – se revelaram necessárias como única forma de evitar a situação de insolvência iminente da empresa.

Respigando a factualidade provada, com pertinência para a compreensão e enquadramento desta questão, temos que:

 - A R. A.A. S... era até 08-04-2003 proprietária de um prédio descrito na 1.ª C. R. Predial de Oeiras sob o n.° 2881, da freguesia de Paço de Arcos, com uma área de implantação de 76 898 m2 (XXIII).

- Foi perante uma situação de risco iminente de incumprimento que a R. A.A. S... e a Acumuladores A... negociaram com os bancos credores em Abril de 1998 o contrato de financiamento, tendo estes exigido em garantia hipoteca sobre o prédio de Paço de Arcos (XXIV).

- Era intento da R. A.A. S... ao dar as garantias permitir a viabilização da Acumuladores A... (XXV).

- Encontram-se registadas duas hipotecas pelas inscrições Cl e C2, a favor dos Bancos RR., sobre o prédio de Paço de Arcos, hipotecas essas que foram constituídas para garantir todas as responsabilidades da R. A.A. S... e da Acumuladores A... (XXXVII).

- Através do contrato de financiamento, datado de 23-04-1998, a Acumuladores A... passou a beneficiar de um período de carência de dois anos, da conversão da dívida vencida e de financiamentos a médio e a longo prazo (XXVI).

- A situação da Acumuladores A..., S.A. foi-se deteriorando e em 2002 o endividamento bancário era de € 28 104 317,87 (XVI).

- Esse deteriorar deveu-se a um processo internacional de concentração no sector das baterias, com abaixamentos sucessivos de preços de venda, o que levou à acumulação de prejuízos junto dos fabricantes (XVII).

- A R. A.A. S... não logrou a viabilização da Acumuladores A... por força da concorrência em curso e do processo internacional de concentração no sector das baterias, com abaixamentos sucessivos de preços de venda (XVIII).

- Os créditos dos RR. Bancos sobre a A... e a RR. A.A. S... resultam de comércio bancário anterior, contemporâneo e posterior à permanência da A. na A... (XXX).

- A A. tinha conhecimento de que seria difícil à Acumuladores A... atingir uma exploração económica que permitisse gerar valores conducentes aos preços estipulados no contrato de compra e venda de acções (XLI).

- A A. tinha conhecimento dos créditos que os bancos detinham sobre a Acumuladores A... e a R. A.A. S... e das circunstâncias do mercado internacional (XLII).

- A R. A.A. S... e a Acumuladores A..., S.A. acordaram, nos termos do doc. de fls. 112 a 119, datado de 30-09-2002, designadamente depois de considerarem que a Acumuladores A... se encontrava numa situação de insolvência e numa situação líquida fortemente negativa, transferir todo o estabelecimento comercial da Acumuladores A... para a R. A.A. S... como dação em cumprimento para extinção da dívida da Acumuladores A... para com os Bancos RR., que a R A.A. S... assumiu (XXXI).

- Do contrato de transferência do estabelecimento da Acumuladores A..., S.A., para a A.A. S..., ora 1.ª R., datado de 30-09-2002, consta a cláusula 9.ª com o seguinte teor:

1. Se, em resultado de uma reestruturação financeira, com ou sem modificação da respectiva estrutura accionista, que entretanto venha a ocorrer na A..., esta vier a dispor dos recursos necessários para tal, a A... fica com o direito de readquirir o estabelecimento agora transmitido para a A.A. S..., desde que efectue a esta os pagamentos cumulativos a seguir indicados:

a. Pagamento da totalidade da dívida da A... à A.A. S..., que nesta data é de €22.913.243,53 (vinte e dois milhões, novecentos e treze mil duzentos e quarenta e três euros e cinquenta e três cêntimos), acrescida de juros à taxa Euribor mais 3% (três por cento) contados a partir da data de assinatura do contrato;

b. Pagamento do valor dos passivos assumidos por A.A. S... e discriminados no Anexo III no valor de €8.926.963,83 (oito milhões, novecentos e vinte seis mil, novecentos e sessenta e três euros e oitenta e três cêntimos) (XLIV).

- Em 30-09-2002, a Acumuladores A..., a R. A.A. S... e os RR. Banco Comercial Português, Banco BPI, Banco Espírito Santo, Banco Santander Portugal, Banco Totta e Açores, Banco Finantia e Caixa Central - Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, C.R.L. acordaram nos termos do doc. de fls. 142 a 159, denominado contrato-promessa de dação em cumprimento e financiamento (XXXII).

- Nos termos da cláusula 3.ª, a R. A.A. S... prometeu dar em cumprimento aos Bancos ou a sociedade a ser por eles constituída o património imobiliário constituído pelo prédio de Paço de Arcos para extinção de dívidas suas e da A... (XXXIII).

- Os sócios fundadores da R. P... são os RR. Banco Comercial Português, Banco BPI, Banco Espírito Santo, Banco Santander Portugal, Banco Totta e Açores, Banco Finantia e Caixa Central - Caixa Central de Crédito Agrícola Mútuo, C.R.L., com a proporção de quotas conforme o doc. de fls. 162 e ss. (XXXIV).

- Por escritura de 08-04-2003, a R. A.A. S... transmitiu à R. P... o prédio descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o n.° 2881 (XXXV).

- De acordo com a escritura, aquele património foi transmitido à P... para extinção de dívidas da R. A.A. S... e da A..., sendo que, conforme consta da mesma escritura, os correspondentes créditos foram em momento anterior transmitidos pelos 3.º a 9.º RR. (bancos) à P... (XXXVI).

- Caso não tivesse sido celebrado o contrato de dação em cumprimento, a Acumuladores A... já tinha deliberado apresentar-se ao tribunal para abertura de um processo de recuperação/falência (XXXIX).

- Encontrando-se a A... impossibilitada de solver os seus compromissos, a dação em cumprimento à R. do estabelecimento da A..., não agravou a situação desta, que viu reduzida a sua dívida na medida do valor do estabelecimento (XL).

- O valor do imóvel de Paço de Arcos era inferior ao valor dos créditos dos RR. Bancos (XLIII).

A recorrente continua a considerar, mesmo após a demonstração probatória dos factos antes alinhados, que a 1.ª R., A.A. S..., em conluio com os Bancos RR., levou a cabo um processo de progressivo endividamento da Acumuladores A..., através dos financiamentos obtidos em 1998, que culminou na dação em pagamento do imóvel de Paço de Arcos e na transferência do estabelecimento daquela empresa para a R. A.A. S..., e que desse modo foi colocado a salvo da A./recorrente o único património capaz de responder pela dívida que reclama, decorrente da venda das acções que detinha na Acumuladores A...[36].

Sem qualquer razão, como facilmente se alcança da factualidade que se recordou.

É incontornável, como se tem vindo a dar nota, que sobre a R. A.A. S... impendia, na qualidade de compradora das acções, o dever de não praticar actos, que lhe fossem imputáveis a título de culpa, susceptíveis de comprometer a coercibilidade da obrigação de pagar o preço através das acções sobre que incidia a limitação da sua garantia, seja ao abrigo da alínea b) da cláusula 19ª, seja por decorrência do dever de boa fé no cumprimento da obrigação, consignado no nº 2 do artigo 762.º do CC.

Mas é igualmente incontestável que, foi perante uma situação de risco iminente de incumprimento que a R. A.A. S... actuou, em primeira linha, no âmbito dos financiamentos bancários, em Abril de 1998, com vista a viabilizar a Acumuladores A..., e que efectuou a oneração do seu próprio património, o prédio de Paço de Arcos, conseguindo, por via desse financiamento, que os Bancos credores concedessem à Acumuladores A... o benefício de um período de carência de dois anos, da conversão da dívida vencida e de financiamentos a médio e a longo prazo.

Contudo, a R. A.A. S... não logrou a viabilização da Acumuladores A..., cuja condição económica e financeira continuou a degradar-se ao ponto de atingir, em 2002, um endividamento bancário de 28.104.317,87€, em virtude da concorrência em curso e do processo internacional de concentração no sector das baterias, com abaixamentos sucessivos de preços de venda, o que levou à acumulação de prejuízos junto dos fabricantes.

Dificuldades do mercado internacional de que a A. tinha conhecimento, assim como dos créditos que os Bancos detinham sobre a Acumuladores A... e a R. A.A. S... desde data anterior ao contrato de compra e venda das acções, e ainda de que seria difícil à Acumuladores A... atingir uma exploração económica que permitisse gerar valores conducentes aos preços estipulados nesse contrato de compra e venda.

Por seu turno, o contrato de dação em cumprimento do prédio de Paço de Arcos, celebrado em 30-09-2002 e consumado em 08-04-2003 – com a transmissão à P... –, afigurou-se como a única forma de evitar que a Acumuladores A... entrasse em insolvência, face aos 28 104 317,89€ da sua dívida, e, desse modo, a R. A.A S... conseguiu, através da dação do seu imóvel aos Bancos credores, liberar créditos em dívida, perante a banca[37], ficando naturalmente sub-rogada como credora da Acumuladores A....

Aliás, caso não tivesse celebrado o contrato de dação em cumprimento, a Acumuladores A... já tinha deliberado apresentar-se a tribunal para abertura de um processo de insolvência/falência, para além de que a dação em cumprimento à R. A.A. S... do estabelecimento da A..., não agravou a situação desta, que viu reduzida a sua dívida na medida do valor do estabelecimento.

Destarte, perante o circunstancialismo factual descrito, não é possível imputar à R. A.A. S... a prática de quaisquer actos de gestão danosa que visassem ou tivessem conduzido à degradação da situação económico-financeira da Acumuladores A... e que fossem violadores do seu dever de conservar o valor das acções, tendo actuado, antes pelo contrário, “de forma adequada a evitar o iminente estrangulamento financeiro da Acumuladores A..., numa situação de risco que a própria A. não ignorava” como se afirma no acórdão impugnado e que se subscreve. (cf. pág. 98 do acórdão, fls. 3748 dos autos).

Outrossim, nem se antevê de que outra forma se poderia sanar a situação altamente deficitária da Acumuladores A..., alternativa que a recorrente nunca aponta. 

Por fim, no que concerne à transferência do estabelecimento comercial da Acumuladores A... para a R. A.A. S..., em 30-09-2002 (cf. doc. de fls. 112 a 119), intitulado “Contrato de Transmissão de Estabelecimento Comercial com Opção de Recompra”, regista-se que as partes acordaram em transferir todo o estabelecimento comercial da Acumuladores A... para a R. A.A. S..., como dação em cumprimento para extinção da dívida da 1.ª para com os Bancos credores (aqui RR.), que a A.A. S... assumiu, depois de considerarem que a Acumuladores A... se encontrava numa situação de insolvência e numa situação líquida fortemente negativa.

Adita-se que o referido contrato de transferência previa, na sua cláusula 9.ª, uma “opção de recompra”, por parte da Acumuladores A..., se em resultado de uma reestruturação financeira, viesse a dispor dos recursos necessários para tal e desde que efectuasse à A.A. S... o pagamento da totalidade da dívida.

Como pertinentemente se escreveu no acórdão recorrido, que aqui se dá por reproduzido nessa parte (cf. pág. 99, fls. 3749): “Pode-se assim dizer que esta opção pela retoma do estabelecimento, deixando ainda a porta aberta à possibilidade de sobrevivência económica da Acumuladores A..., S.A., se apresenta como o único meio de suster aquela sociedade e, consequentemente, de permitir que as acções possam vir a valorizar-se mediante a reestruturação financeira daquela.

 Nesta medida, não se pode considerar também aqui que a celebração daquele negócio, por parte da 1.ª R., se traduza num acto de má gestão a que seja imputável a depreciação das acções em causa”.

Concluindo, a análise do elenco factual provado, particularmente o constante do ponto XL, em nada permite concluir que os financiamentos em apreço, a oneração hipotecária, a dação em cumprimento do prédio de Paço de Arcos, bem como a transferência do estabelecimento da Acumuladores A... para a 1ª R., se tenham traduzido em actos de má gestão e tivessem sido causais da depreciação das acções.

A depreciação do valor das acções apenas tem subjacente, perante os factos provados, o estrangulamento económico-financeiro da Acumuladores A..., com resultados, mormente a nível de endividamento bancário (na ordem dos 28 104 317,89€ de passivo), que a colocaram muito próximo da situação de insolvência, cuja génese, como já se acentuou, radica na concentração do mercado internacional de baterias, com abaixamentos sucessivos de preços de venda, conducentes à acumulação de prejuízos junto dos fabricantes, o que impediu que se lograsse alcançar a viabilização da Acumuladores A....

Nessa medida, por um lado, a volatilidade do valor das acções transaccionadas inscreve-se na área de risco assumido pelas partes aquando da celebração do respectivo contrato de compra e venda, designadamente consentindo a A. na limitação da responsabilidade patrimonial da 1.ª R. ao património constituído por essas mesmas acções, bem conhecendo a situação real da empresa e do mercado e as dificuldades de recuperação da dita empresa, e o facto de, por outro lado, não se ter provado a prática, por banda da 1.ª R., A.A. S..., de qualquer acto de má gestão ou gestão danosa, afastam por completo a sua responsabilidade civil, seja a título pré-contratual, contratual ou extracontratual[38].

6.ª – Se houve violação do princípio do tratamento igual de todos os credores.

A este propósito indica a recorrente, nas suas conclusões, que os credores devem ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, respeitando o princípio par conditio creditorum e que, no caso em recurso, credores privilegiados eram apenas os Bancos, em 7 539 697,47€, montante bastante inferior aos 45 000 000,00€ do terreno cedido.

Sem fundamento, novamente.

O princípio par conditio creditorum está contido no art. 604º, nº 1 do CC, segundo o qual “não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos[39].

Especificamente, no que tange à situação vertente, é irrelevante o que a recorrente diz a respeito da dação em cumprimento do imóvel de Paço de Arcos, que pertencia à 1.ª R., e que foi efectuada para liberar os créditos que os Bancos RR. detinham sobre a Acumuladores A..., tendo aquela R. ficado sub-rogada nesses créditos.

Com efeito, a garantia de pagamento das acções não incidia sobre aquele elemento patrimonial, por efeito da cláusula 10.ª do contrato de compra e venda que contemplava a limitação da responsabilidade patrimonial às próprias acções, em consonância com a permissão legal consagrada no art. 602.º do CC.

Por isso, reiterando o entendimento constante do acórdão recorrido, que temos por correcto, a questão só se colocaria se porventura fosse imputável à R. A.A. S... a responsabilidade subjectiva pela depreciação do valor dessas acções, situação que já vimos não ocorrer.

O mesmo se diga relativamente à pretensão deduzida pela A. em relação aos Bancos, ao imputar-lhes actos violadores do invocado princípio do tratamento igual de todos os credores, quer porque, como se disse, o bem hipotecado e posteriormente objecto da dação em cumprimento não respondia pela cobrança do valor das acções, quer, por outro lado, pelo facto dos financiamentos, a oneração do imóvel sito em Paço de Arcos e a dação em pagamento do mesmo, não terem sido a causa da depreciação do valor das acções – como se viu –, pelo que não representam diminuição da garantia patrimonial estipulada entre a A. e a 1.ª R.

Improcede, consequentemente, esta questão.

7.ª - Se os financiamentos proporcionados pelos RR. Bancos à “Acumuladores A...” e se a oneração e posterior dação em cumprimento do imóvel de Paço de Arcos constituem actos ilícitos, e actuaram aqueles com abuso de direito

A recorrente mantém que, desde a celebração do contrato de compra e venda das acções, que os Bancos tinham conhecimento do seu crédito, sendo que o recorrido Banco Finantia foi, inclusive, o depositário das acções e o garante do cumprimento do contrato.

Assim, diz a recorrente, em virtude do contrato de financiamento bancário celebrado entre os recorridos Bancos, o Banco Finantia comprometeu-se a manter devidamente informado os seus parceiros contratuais de todos os actos e negócios que afectassem o fim comum, pelo que, atendendo a essa circunstância não existe qualquer dúvida sobre o conhecimento prévio da relação entre a recorrente e a 1.ª R., A.A. S..., e o consequente abuso de direito e má fé que prejudicaram intencionalmente a credora.

Face ao comportamento descrito, abuso de direito, má fé, violação dos deveres de lealdade e de fidelidade, incorreram os recorridos Banco em responsabilidade extracontratual, sendo solidariamente responsáveis com a A.A. S... pelo pagamento peticionado nos autos.

Que dizer quanto a esta questão, em face de tudo quanto já se escreveu?

A resposta e decisão desta questão mostram-se prejudicadas pela decisão que demos às anteriores que com ela se concatenam de forma indelével, pelo que nada mais resta acrescentar.

Em todo o caso, sempre se dirá que as considerações tecidas na sentença da 1.ª instância a este propósito, designadamente a respeito da eficácia externa das obrigações e do abuso de direito estão totalmente correctas, pelo que para elas se remete – cf. págs. 17 a 20, daquela decisão (cf. fls. 2917 a 2920).

O efeito externo das obrigações traduz-se, na óptica dos seus defensores, no dever imposto às restantes pessoas de respeitar o direito do credor, ou seja, de não impedir ou dificultar o cumprimento da obrigação – refere-se, a propósito, a teoria do terceiro cúmplice.

Porém, como é sabido, uma parte substancial da nossa doutrina e a quase unanimidade da nossa jurisprudência sustenta a ausência de efeitos externos das obrigações, com o apoio incontroverso do disposto no art. 406.º, n.º 2, do CC[40].

Com efeito, é prevalente o entendimento que nega a eficácia externa das obrigações, assente na concepção clássica da relatividade dos direitos de crédito que, no contexto contratual, apenas podem ser violados pelas partes, em contraposição com os direitos reais que são oponíveis erga omnes.

E não vemos razão para alterar tal posição, sendo certo que, in casu, para lá do Banco Finantia (depositário das acções no contrato de depósito in escrow), não se apurou que qualquer outro dos Bancos tivesse sequer conhecimento dos contornos exactos do negócio principal de compra e venda das acções celebrado entre a A. e a 1.ª R[41] .

Todavia, uma vez mais, transcreve-se, pelo seu inteiro acerto, o que ficou consignado na decisão da 1.ª instância: “Mas mesmo que conhecessem (os detalhes daquele contrato), não estavam, de todo em todo, impedidos de salvaguardar o melhor que podiam os seus créditos, note-se, com um terreno que, nos termos do acordo firmado entre a A.A. S... e a A... Limited, não respondia pelo crédito. Os Bancos RR. não podiam, pois, mesmo que tivessem conhecido os exactos termos do acordo, sequer configurar como verosímil que pudessem estar a prejudicar o direito de terceiro de forma abusiva” (fls. 2920).

Efectivamente, não se vislumbra que a oneração e posterior dação em cumprimento do imóvel de Paço de Arcos, em favor dos Bancos, permita afirmar que eles não deixaram de actuar com diligência e nos estritos limites da boa fé, nada havendo a censurar a esses actos, contrariamente ao que defende a recorrente.

Por outro lado, o abuso do direito está legalmente previsto em termos de ser ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (art. 334º do CC).

O excesso terá de ser manifesto, ou seja flagrante, claro e notório, embora não se exija uma actuação dolosa, com “animus nocendi”. Vale um conceito ético e objectivo de boa fé, bastando que, objectivamente, os limites do artigo 334º tenham sido excedidos[42]

Rege o instituto para as situações concretas em que é clamorosa, sensível, evidente a divergência entre o resultado da aplicação do direito subjectivo, de carga essencialmente formal, e alguns dos valores impostos pela ordem jurídica para a generalidade dos direitos ou, pelo menos, dos direitos de certo tipo[43].

A conclusão jurídica sobre a verificação do abuso do direito em qualquer das suas modalidades deve resultar, naturalmente, da existência de factos provados que o revelem.

Emana de tudo o que vem dito que não se verifique qualquer excesso manifesto de limites ao exercício do direito por parte dos bancos recorridos, particularmente pelo Banco Finantia, S.A., sendo certo que as operações de financiamento visaram solver os seus créditos, pelo que se dá como não comprovado o abuso de direito.

Improcede, assim, esta questão.

8.ª- Impugnação pauliana e pedidos de cancelamento dos registos das hipotecas sobre o imóvel de Paço de Arcos

Por fim, vem a recorrente, uma vez mais, ressuscitar a questão da impugnação pauliana, concretizando no corpo das suas alegações recursivas, especificamente no último parágrafo da pág. 44 (cf. fls. 3885), que “o crédito da Recorrente era anterior ao acto de dação e, mesmo atendendo ao factor do seu vencimento posterior, o que resulta da análise crítica da matéria de facto é que o fim do negócio conduzido pelos Recorridos visava impedir a satisfação do direito da credora, cfr. art. 610.º, alínea a), do CC”.

Esta questão está já mais do que pacificada e arrumada.

É incontestável que, no caso de actos onerosos, a impugnação pauliana só pode proceder se o acto que provoca a diminuição da garantia patrimonial tiver sido praticado com a consciência do prejuízo que causa ao credor – cf. arts. 610.º e 612.º, n.º 2, do CC. É igualmente fora de dúvida que se não exige dolo, directo ou indirecto, de causar esse prejuízo, aceitando-se que o conhecimento da situação patrimonial do devedor, por parte dos adquirentes, não implica que se tenha de concluir terem consciência do prejuízo causado ao credor com o acto impugnado.

Por seu turno, a má fé que o art. 612.º do CC exige, como requisito de procedência da impugnação, tem de ocorrer, quer no devedor, quer no terceiro[44].

Como antes se frisou, no caso apreciado, não se provou que a dação em cumprimento do prédio sito em Paço de Arcos, tenha sido causal relativamente à depreciação do valor das acções vendidas pela A. à 1.ª R., não se traduzindo, tão pouco, em diminuição da garantia patrimonial acordada pelas partes por via da cláusula 10.ª do contrato de compra e venda das acções da Acumuladores A..., S.A..

Ademais, reiterando-se que não é imputável à 1.ª R. qualquer tipo de responsabilidade pré-contratual, contratual ou extracontratual, mormente pela prática de qualquer acto de má gestão ou gestão danosa do património da A... Acumuladores, conducente à desvalorização das acções, não assiste à A. o direito de exigir o pagamento do preço em falta, para lá do que foi clausulado de modo expresso naquela estipulação contratual.

Por fim, não se alcança qualquer actuação dos Bancos que permita configurar, mesmo abstractamente, qualquer consciência do prejuízo causado à A., sendo certo que as operações de financiamento documentadas no processo visaram, como se viu, solver os créditos dos referidos Bancos e, por banda da 1.ª R., evitar que a Acumuladores A... entrasse em situação de falência/insolvência.

Por maioria de razão, perante o exposto, irreleva qualquer interesse ou direito da A. no que tange ao cancelamento das hipotecas que subsistem sobre aquele bem imóvel.

Concluindo, não se apurou, por qualquer forma, que os Bancos RR., ora recorridos, tenham actuado com má fé, no intuito de subtrair o património da A.A. S... ao pagamento da dívida reclamada pela A., o que, por si só, é suficiente para alijar a possibilidade de recurso à impugnação pauliana.

Por conseguinte, soçobra, igualmente, esta pretensão da A./recorrente.

Deste modo, e analisadas todas as questões que importava dissecar em sede de recurso, alcança-se que não se mostra que tenha sido violada, no acórdão apreciado, qualquer uma das normas jurídicas aludidas pela A./recorrente (v.g., arts. 236.º; 334.º; 342.º, n.º 1; 405.º; 483.º; 490.º; 497.º; 610.º; 612.º; 762.º, n.º 2; 798.º, n.º 2; 801.º, e 805.º, n.º 2, alínea b); 817.º todos do CC; art. 64.º do CSC e 668.º, n.º 1, alíneas b) e c), do CPC), pelo que nada mais há a acrescentar ao acima expendido, com maior concretização, quanto a cada uma das conclusões relevantes insertas nas alegações de recurso.

Resta analisar, para finalizar, os pedidos de litigância de má-fé deduzidos, nas alegações de recurso, pelas 1.ª R. e pelos 2.º e 4.º a 9.º RR.

Dispõe, a este respeito, o art. 456.º do CPC:

1 - Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.

2 - Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:

a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;

b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;

d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

3 - Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé ”.

As partes, recorrendo a Juízo para defesa dos seus interesses, estão sujeitas ao dever de cooperação com o Tribunal, visando a obtenção de decisões conformes à verdade e ao Direito, sob pena da protecção jurídica que reclamam não corresponder à realidade, no que muito saem desacreditadas a Justiça e os Tribunais.

Daí que o legislador, no art. 266.º, n.º 1, do CPC, imponha aos magistrados, partes e mandatários o dever de cooperarem com vista à justa composição do litígio. Aliás, o art. 266.º-A reafirma tal princípio ao aludir ao dever de actuação de boa-fé inerente ao dever de cooperação.

A conduta processual do litigante de boa-fé postula uma actuação verdadeira, uma informação correcta no tempo e modo processuais ajustados, não se compadecendo com subterfúgios e “meias verdades”, que mais não visam senão uma egoísta defesa de posições próprias, que prejudicando o opositor, acabam por não conduzir o Tribunal à correcta percepção da realidade e, logo, a correr o risco, induzido, de decidir mal.

Uma das condutas em que se exprime a litigância de má-fé consiste na alegação, voluntária e consciente, de factos relevantes para a decisão da causa, mas que a parte sabe que, ao alegar como alega, desvirtua a realidade por si conhecida, visando, por isso, um objectivo censurável.

“A má fé processual tinha, entre nós, como requisito essencial o dolo, não bastando a culpa, por mais grave que fosse. A reforma processual de 95/96 mudou esse estado de coisas, considerando reveladora da má fé no litígio tanto o dolo, como a culpa grave, que designa por negligência grave.

A parte tem o dever de não deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; de não alterar a verdade dos factos ou de não omitir factos relevantes para a decisão da causa; de não fazer do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão; de não praticar omissão grave do dever de cooperação, tal como ele resulta do disposto nos artigos 266.° e 266.º-A.

Se intencionalmente, ou por falta da diligência exigível a qualquer litigante, a parte violar qualquer desses deveres, a sua conduta fá-lo incorrer em multa, ficando ainda sujeito a uma pretensão indemnizatória destinada a ressarcir a parte contrária dos danos resultantes da má fé.

A doutrina tem classificado a má fé de que trata o preceito em duas variantes: a má fé material e a má fé instrumental, abrangendo a primeira os casos das alíneas a) e b) do n.º 2, e a segunda, os das alíneas c) e d) do mesmo número”[45]

Assim, pese embora não se ter provado a versão carreada ao processo pela A./recorrente, isso não permite, sem mais, concluir pela litigância de má-fé. Ela pleiteou, é certo, de forma aguerrida, assertiva e, por vezes, contundente, mas sempre na procura de explorar as teses e argumentos jurídicos que reputava serem susceptíveis de suportar a sua posição jurídica transmitida no processo. Acresce que, uma coisa é a parte não ter sucesso na sua pretensão, caso em que suportará, naturalmente, o encargo das custas processuais como risco da sua actuação; coisa diversa é a parte, antecipadamente, saber que não tem razão e, procedendo de má-fé e com culpa, litigar dessa forma, situação em que será condenada em multa e indemnização a favor da outra parte, caso esta formule tal pedido.

Consequentemente, não se verificando que ocorram indícios suficientemente claros de que a A./recorrente tenha agido de má-fé, julgam-se improcedentes os pedidos deduzidos, a fls. 4121/4124, pela 1.ª R., e a fls. 4005, pelos 2.º e 4.º a 9.º RR..

Tudo visto e sumariado:

I- As deficiências de gravação da prova, constituindo uma nulidade secundária, devem ser apreciadas pelo Tribunal da Relação, a quem cabe dirimir se as aludidas anomalias são ou não susceptíveis de influir na decisão de facto, estando vedado ao STJ sindicar essa apreciação em concreto, por se inserir no âmbito dos poderes de reapreciação da matéria de facto.

II- Não se registando oposição de julgados, nem invocando o recorrente, no requerimento de interposição do recurso de revista, qualquer acórdão que se encontre em oposição com o recorrido, a matéria do agravo, se respeitar a questão puramente processual, não pode ser apreciada no âmbito do recurso de revista.

III- É legalmente admissível que as partes, no âmbito de um contrato de compra e venda de acções, estipulem uma cláusula de limitação convencional da garantia ao património constituído pelas próprias acções transaccionadas.

IV- Se as partes acordaram, simultaneamente com a celebração do contrato de compra e venda de acções, em depositar essas acções num Banco, para garantia do cumprimento da obrigação de pagamento do respectivo preço, vinculando-se o Banco a guardá-las e a dar a tais acções o destino acordado entre as partes daquele contrato (principal), está-se perante um contrato de depósito fiduciário ou depósito in escrow.

V- Se a cláusula de limitação convencional da garantia patrimonial às acções depositadas foi estabelecida em benefício da compradora das acções, é destituído de fundamento que o risco de depreciação do valor das acções recaia sobre ela.

VI- As acções, enquanto títulos de participação social, exprimem a medida da posição do sócio na sociedade anónima, traduzindo-se num complexo de direitos e deveres, mas não se confundem com a empresa explorada pela sociedade a que as acções dizem respeito.

VII- Se as partes estipularam que a compradora das acções, accionista maioritária, se obrigava a diligenciar no sentido dos negócios da sociedade anónima salvaguardarem o interesse da vendedora em receber o seu preço daquelas participações sociais, e, ainda, em não participar em negócios que fossem incompatíveis com aquele contrato de compra e venda das acções ou tivessem o efeito adverso de incumprir as obrigações dele decorrente, tais obrigações configuram meras obrigações de meios e não de resultado.

VIII- Se a sociedade anónima, a que respeitavam as acções objecto do contrato de compra e venda, se encontra(va) numa situação de elevado endividamento bancário, de que a vendedora era conhecedora, tendo esta efectuado a venda por não pretender efectuar qualquer esforço adicional de investimento, nem ter tido qualquer outra oferta de compra, conhecendo as circunstâncias do mercado internacional explorado por essa sociedade, com sucessivos abaixamentos de preços de venda, o que levou à acumulação de prejuízos junto dos fabricantes, e conhecendo, ainda, a vendedora que seria difícil atingir uma exploração económica que permitisse gerar valores conducentes aos estipulados no contrato de compra e venda das acções, não se pode imputar à compradora das acções qualquer responsabilidade contratual na depreciação do seu valor.

IX- Se os contratos efectuados pela compradora das acções – v.g., financiamentos bancários, oneração de imóvel, dação em cumprimento e transferência de estabelecimento – foram adequados a evitar o iminente estrangulamento financeiro da sociedade anónima a que se referiram essas participações sociais, situação de que a vendedora era conhecedora, não pode ser imputada à compradora das acções qualquer responsabilidade pré-contratual, contratual ou extracontratual pela depreciação do valor das acções (a que as partes limitaram a garantia patrimonial pelo não pagamento do preço).

X- Inexistindo qualquer responsabilidade da compradora, pela depreciação do valor das acções, não se colocam, sequer, as questões da violação do princípio par conditio creditorum, nem da impugnação pauliana, não podendo ser assacada qualquer responsabilidade aos Bancos que intervieram naqueles contratos.

XI- O facto da A./recorrente ter decaído na acção e nos recursos apenas a conduz a ter de suportar o encargo das custas processuais, como consequência do seu decaimento; coisa diversa é a parte, antecipadamente, saber que não tem razão e, procedendo de má-fé e com culpa, litigar dessa forma.

III – DECISÃO

Pelos motivos expostos, acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça em:

- Negar a revista, confirmando o douto acórdão recorrido;

-Julgar improcedentes os pedidos de litigância de má-fé suscitados pelos RR./recorridos.

- As custas processuais ficam a cargo da A./recorrente.

Lisboa, 10 de Novembro de 2011

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[1] Relator: Gregório Silva Jesus - Adjuntos: Conselheiros Martins de Sousa e Gabriel Catarino.
[2] No regime anterior ao introduzido pelo Dec. Lei nº 303/07, de 24/08, atenta a data de instauração da acção em 10/07/2003 (cfr. arts. 11º e 12º do referido diploma).
[3] A concretização do duplo grau de jurisdição (sobre a matéria de facto) foi reforçada com a publicação, posterior ao DL n.º 39/95, dos DL n.ºs 329-A /95, de 12-12, 180/96, de 25-09, e 183/2000, de 10-08, tendo o legislador aditado ao CPC um conjunto de normas relativas ao registo dos depoimentos, designadamente o disposto nos arts. 512.º, n.º 1, 522.º- A, 552.º-B, 522.º-C, e 690.º-A.
[4] Como se escreveu no Acórdão do STJ, de 06/07/2011, Proc. n.º 450/04.3TCLRS.L1.S1, de que foi relator o aqui 2.º adjunto: “É, pois, função, no regime de recurso da matéria de facto, que o tribunal de recurso aja ou se comporte como um tribunal de instância – que é – e exerça o seu múnus de proceder a um reexame cingido e impressivo das provas que foram produzidas no tribunal de 1.ª instância.”.
Esta decisão está publicada, na íntegra, no sítio do ITIJ – aliás, foram retirados deste sítio da internet todos os arestos que se referirem neste acórdão, caso não haja indicação em contrário.
[5] Neste sentido, vejam-se, ainda, entre muitos outros, os Acórdão do STJ, de 03/11/2009, Proc. n.º 3931/03.2TVPRT.S1, de 15/09/2010, Proc. n.º 241/05.4TTSNT.L1.S1, e de 30/06/2011, Proc. n.º 6450/05.9TBSXL.L1.S1.
[6] A este respeito, o nosso recente Acórdão de 12/07/2011, Proc. n.º 1838/06.0TBMFR.L1.S1 (inédito), bem como os Acórdãos deste STJ, de 13/01/2009, Proc. n.º 08A3741, e de 20/05/2010, Proc. n.º 93/04.1TBGDL.S1.
[7] O valor de aquisição das acções (3 200 000 000$00), conforme ficou provado, era superior ao valor contabilístico das acções (1 054 220 073$00) [resp. ao art. 25.º da b.i.]. Todavia, não se olvide que a R. A.A. Silva ficou detentora da maioria do capital social (concretamente, 55,56%).
[8] Menezes Cordeiro, Manual de Direito das Sociedades, II Volume, 2.ª edição, 2007, pág. 683, considera que, sem prejuízo das regras próprias, prescritas pelo Direito das Sociedades por razões de segurança para a validade da transmissão de acções e das formalidades subsequentes necessárias para que a mesma se torne eficaz, “concluído o acordo transmissivo, desencadeiam-se os seus efeitos inter partes”.
No mesmo sentido, cf. Acórdão do STJ, de 15-05-2008, Proc. n.º 08B153, em cujo sumário no ITIJ se pode ler: “(…) 3. A compra e venda de acções não é um contrato real quoad effectum – é um contrato com efeitos imediatos meramente obrigacionais, como os contratos do mesmo tipo tendo por objecto títulos de crédito em papel, para cuja transmissão se exige a tradição, o endosso ou acto equivalente. 4. Os actos exigidos por lei, e que integram o modo, não se referem ao contrato, mas sim à transmissão da propriedade das acções: são actos essenciais para a transmissão destas, mas não contendem com a validade formal do contrato. 5. Assim, um contrato de compra e venda de acções ao portador não deixa de ser válido pelo facto de o transmitente não ter feito entrega, ao adquirente, dos títulos representativos das acções; e este pode requerer judicialmente o cumprimento do contrato, a entrega das acções”.
Aliás, no próprio contrato de compra e venda das acções que aqui se debate, as partes disseram, na cláusula 16.ª, n.º 1: “A «Vendedora» transfere, nesta data, para a «Compradora» os títulos representativos das «Acções», os quais ficarão depositados nos termos da Cláusula 8.ª”.
[9] Para além do regime decorrente do DL n.º 408/82, de 29-09, que vigorava à data dos factos aqui analisados (cf. pág. 51 do acórdão recorrido – fls. 3701), importa salientar que, desde a entrada em vigor do Código das Sociedade Comerciais (01-11-1986: cf. o art. 2.º do DL n.º 262/86, de 02-09) até à publicação e entrada em vigor do DL n.º 486/99, de 13-11 (que aprovou o actual Código dos Valores Mobiliários), as formas de transmissão das acções vinham reguladas nos arts. 326.º e 327.º do CSC.
Segundo dispunha o art. 326.º, n.º 1, do CSC, as acções nominativas transmitiam-se entre vivos por declaração do transmitente escrita no título e pelo pertence lavrado no mesmo e averbado no livro de acções da sociedade por esta efectuados. Quanto às acções ao portador, o art. 327.º, n.º 1, do CSC, estatuía que a sua transmissão efectua-se pela entrega dos títulos, dependendo da posse dos mesmos o exercício dos direitos sociais. Como assim, tínhamos (na vigência dos citados preceitos do CSC) um esquema tradicional: 1) transmissão por endosso, no caso de acções nominativas; 2) transmissão por tradição, no das acções ao portador.
Este esquema veio a ser ultrapassado pela evolução legislativa posterior. Desde logo, ele ocupava-se, apenas, de acções tituladas. O aparecimento das acções escriturais, introduzidas pelo DL n.º 229-D/88, de 04-07, obrigou a prever novos esquemas de transmissão. Segundo dispunha o art. 5.º, n.º 1, desse diploma: “A transmissão de acções escriturais opera-se pela inscrição da alienação, na conta do alienante, e da aquisição, na conta do adquirente, a qual, no caso de este ainda não ser accionista, será para o efeito aberta ”.
Posteriormente, o Código do Mercado de Valores Mobiliários (CódMVM), aprovado pelo DL n.º 142-A/91, de 10-04, veio regular os valores escriturais, revogando o DL n.º 229-D/88, de 04-07. As matérias relativas à transmissão de tais valores transitaram, com desenvolvimento, para o novo Código: arts. 67.º, 68.º e 69.º do CódMVM. Chegou-se, assim, a um sistema complexo, com regras dispersas por legislação especial, pelo CSC e CódMVM.
O Código dos Valores Mobiliários [aprovado pelo DL n.º 486/99, de 13-11] intentou clarificar a matéria, chamando-a a si e revogando os arts. 326.º e 327.º do CSC, bem como o DL n.º 408/82 de 29/09 – cf. Menezes Cordeiro, op. cit., págs.683/684.
[10] Enquanto a subscrição corresponde a uma aquisição originária da titularidade da participação social: “é a manifestação de vontade, pela qual um accionista (ou investidor) exprime o seu interesse em vir a realizar uma participação correspondente ao montante do capital que se compromete a realizar – na constituição da sociedade ou em aumento do respectivo capital –; a aquisição traduz uma aquisição derivada da titularidade de uma participação social: “é o acto pelo qual uma pessoa faz ingressar na sua esfera jurídica participações sociais (ou valores mobiliários) já existentes” – cf. Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 3.ª edição, 2007, pág. 324.
[11] Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, 2.ª edição, 2009, pág. 209, anota que: “O depósito in escrow de fundos ou de títulos em Bancos, que são instruídos irrevogavelmente do destino que lhes darão consoante as circunstâncias, tem uma muito maior maleabilidade do que o penhor e é mais eficaz como garantia. O risco de infidelidade do Banco é negligenciável e as partes ficam seguras de que o Banco restituirá ao depositante, ou entregará ao beneficiário, no tempo, nas condições e no montante previsto, os fundos ou os títulos depositados”.
[12] Acompanha-se, de muito perto, a lição de João Tiago Morais Antunes, Do Contrato de Depósito Escrow, 2007, págs. 164/165 e 173.
[13] João Tiago Morais Antunes, ob. cit., págs. 166, 170 e 173.
[14] Tendo acrescentado no n.º 2 dessa cláusula, que aquela limitação de responsabilidade não teria aplicação caso se verificasse a situação prevista na cláusula 6.ª, n.º 1, al. d) – a saber, venda de acções a um terceiro (situação que não ocorreu).
[15] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I vol., 4ª ed., pág. 617; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10.ª edição, 2006, pág. 844. Este princípio é reafirmado no art. 821.º, n.º 1, do CPC.
[16] Como escreve Ana Prata, Cláusulas de Exclusão e Limitação da Responsabilidade Contratual, 2005, Almedina: “Sendo o princípio geral o de que a responsabilidade patrimonial do devedor se estende a todos os seus bens, presentes e futuros, podem as partes acordar numa restrição desse acervo patrimonial responsável. E podem fazê-lo, teoricamente, seguindo formas diversas: ou restringindo a garantia patrimonial a determinados bens (simplesmente ou com simultânea constituição de um ou vários direitos reais de garantia sobre eles) ou isentando da responsabilidade alguns bens identificados ou categorias de bens ou ainda excluindo completamente a garantia patrimonial”.
[17] Pinto Monteiro, Cláusulas Limitativas e de Exclusão de Responsabilidade Civil, 2003, pág. 114.
[18] Almeida Costa, ob. cit., pág. 846; Antunes Varela e Pires de Lima, ob. cit., págs. 618/619.
[19] Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II , 7ª Edição, Almedina, 1997, pág. 427. 
[20] Paulo de Tarso Domingues, Garantias da Consistência do Património Social, “Problemas do Direito das Sociedades”, 2.ª reimpressão, IDET, 2008, pág. 498.
[21] Por seu turno, o capital próprio representa o conjunto de meios financeiros colocados directa ou indirectamente pelos sócios à disposição da sociedade, cuja expressão monetária consta do lado passivo do respectivo balanço, o qual é constituído, desde logo, pelo capital social, mas também pelas reservas (parte dos resultados positivos obrigatoriamente retida na sociedade, seja por força da lei, dos estatutos, ou por deliberação dos próprios accionistas – reservas legais, estatutárias e livres), pelos lucros sociais transitados (lucros gerados em exercícios anteriores que foram transferidos no balanço para o exercício actual), pelo lucro de exercício (resultados positivos gerados pela actividade da empresa social durante o ano económico) e pelas prestações suplementares – cf. José Engrácia Antunes, Capital próprio, reservas legais especiais e perdas sociais, “Scientia Iuridica”, Tomo LVII, n.º 313, Jan./Mar. de 2008, págs. 96/97.
[22] Nogueira Serens, Notas Sobre A Sociedade Anónima, Coimbra, 1995, pág. 101. O capital social corresponde, pois, à soma das participações sociais, devendo ter um valor nominal, isto é um valor expresso numa cifra monetária – cf. Menezes Cordeiro, op. cit., pág. 563.
[23] Tal como explana Paulo Olavo Cunha, O novo regime da redução do capital social e o artigo 35.º do Código das Sociedades Comerciais, in “Inocêncio Galvão Telles: 90 anos. Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa”, 2007 (págs. 1023-1078): “O capital social garante a todos os que contratam com a sociedade que se ela está a distribuir lucros pelos seus sócios é porque a sua situação líquida o permite, correspondendo, nesse caso, o património líquido a um montante superior ao do capital acrescido das reservas legais. O capital social é, assim, um importante ponto de referência da capacidade económica da sociedade, mas é, de facto, o património que garante os credores. Por isso, a lei se preocupa tanto em procurar assegurar uma correspondência mínima entre essas duas realidades, estabelecendo medidas de correcção, como a que consta do artigo 35.º” (pág. 1029).
[24] Henrique Mesquita, Oferta Pública de Venda de Acções e Violação do Dever de Informar, 1996, págs. 101/102.
[25] Ainda sobre o assunto, Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Compra e Venda de empresa – A venda de participações sociais como venda de empresa («share deal»), Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 137, págs. 76 a 102, na pág. 78, tecem os seguintes considerandos: “Como se salienta (quer na doutrina alemã, quer entre nós), a aquisição da empresa é susceptível de ocorrer por mais do que uma forma, ou seja: através da aquisição directa da empresa (asset deal); ou através da aquisição do capital social da sociedade que é titular da empresa (share deal). No primeiro caso, o titular da empresa muda com a aquisição desta (compra e venda pela transmissão do estabelecimento de um titular para outro). No segundo caso, diversamente, há uma aquisição das participações sociais da sociedade que explora o estabelecimento: esta sociedade mantém a exploração, mas com a transmissão das participações no seu capital social transmite-se igualmente a empresa. Dogmaticamente, a diferença entre a aquisição da empresa e a aquisição de participações sociais é clara: a compra e venda do «estabelecimento comercial» (trespasse) é alienação de uma coisa, embora de uma coisa composta; a compra da participação social, por sua vez, é compra de direitos. Neste último caso, com a transmissão das participações, pode, porém, transmitir-se igualmente a empresa”.
[26] Ob. cit., II vol., 4ª ed., pág. 3.
[27] Em matéria de ónus de alegação, também chamado da afirmação ou da dedução, vigora o princípio do dispositivo segundo o qual é às partes que incumbe alegar e provar os factos essenciais e os complementares susceptíveis de formar no juiz um determinado grau de convicção necessário para proferir a decisão, não podendo o juiz, por regra, tomar em consideração os factos que não tenham sido alegados e produzidos pelas partes – cf. art. 264.º do CPC.
[28] Almeida Costa, ob. cit., págs. 1039/1040.
[29] Culpa do Devedor ou do Agente, BMJ 68º, págs. 82 e 83.
[30] Completamos que a páginas 101.
[31] Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, 104.º, pág. 63
[32] Antunes Varela e Pires de Lima, ob. cit., I vol., pág.223.
[33] Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, 1996, II, págs. 344 e seguintes.
[34] Sintomático das afirmações puramente conclusivas da recorrente, quanto a este ponto, é a que ela produz, por ex., no 2.º parágrafo, da pág. 30 das suas alegações (cf. fls. 3871): “Numa actuação totalmente norteada pela má fé negocial, a recorrida «AA Silva» incorreu em responsabilidade contratual perante a Apelante ao desrespeitar o vínculo obrigacional assumido ao faltar à defesa leal do valor do bem de garantia, actuando sempre a coberto do segredo e da não prestação de informação junto da Recorrente sobre os vários negócios que ia realizando no sentido de esvaziar de conteúdo a «Acumuladores A...”, de se proteger de possíveis ataques e de se tornar credora desta em cerca de € 29 000 000,00”.
[35] Recorda-se, como tem sido unanimemente entendido, neste Supremo Tribunal, que o controlo da interpretação de declarações negociais, no que tange à determinação do sentido da vontade real dos intervenientes, por se tratar de questão ainda situada no domínio dos factos, escapa à sindicância do STJ, apenas lhe sendo permitido avaliar a aplicação dos critérios legais de interpretação – cf., v.g., Acórdãos de 16-04-2009, Proc. n.º 08B2346; de 04-11-2010, Proc. n.º 2916/05.9TBVCD.P1.S1; de 03-02-2011, Proc. n.º 6041/05.4TVLSB.L1.S1, e de 14-06-2011, Proc. n.º 3222/05.4TBVCT.
[36] As alegações da recorrente, nas págs. 29/30 do seu recurso (cf. fls. 3870/3871), são completamente desfasadas da factualidade apurada.
[37] Tenha-se em conta o que ficou provado no ponto XXIX.
[38] Para além de não estar minimamente estribada em factos, é totalmente incompreensível a alegação da recorrente a este título constante da pág. 34 das suas alegações (fls. 3875).
[39] Encontra também consagração no art. 194.º, n.º 1, do CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), titulado “Princípio da igualdade”, quando refere que “o plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas”.
[40] Cf., entre outros, os Acórdãos do STJ, de 19-03-2009, Proc. n.º 09A0370, e de 28-04-2009, Proc. n.º 09A0526, no ITIJ.
[41] Ficou por provar, designadamente, que os Bancos RR. conhecessem o contrato de compra e venda das acções, desde pelo menos 23-04-1998, que foi precisamente a data da celebração do contrato de financiamento – resposta negativa ao art. 19.º da base instrutória.
[42] Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., vol. I, 4ª ed., pág. 298.
[43] Antunes Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 128º, pág. 241.
[44] Neste sentido, cf., entre outros, o Acórdão do STJ, de 03-02-2011, Proc. n.º 470/08.9TBVFR.P1.S1, e a jurisprudência aí citada, consultável no ITIJ.
[45] Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, 3.ª edição, 2000, págs. 221/222.