ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
140/02.1GAVLP.P1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 10/20/2011
SECÇÃO 3.ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL RECURSO PENAL
DECISÃO NEGADO PROVIMENTO
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR SANTOS CABRAL

DESCRITORES ACIDENTE DE AVIAÇÃO
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONTRATO DE SEGURO
SEGURO DE GARAGISTA

SUMÁRIO I -Matéria de facto e matéria de direito são questões de alguma dificuldade de destrinça, mas é consensual, na doutrina e na jurisprudência, que, para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei.
II - Determinados factos, atomisticamente considerados, podem, na sua concatenação, conduzir a uma conclusão que, tendo por premissa os mesmos factos, não pode deixar de se considerar incluída no objecto do processo. Tratam-se de conclusões relativas a factos da vida real cujo conhecimento pode ser atingido através de um juízo que, dispensando o recurso a qualquer critério de valoração jurídico-normativa, se baseie na aplicação de regras da experiência e conhecimentos concretos efectivamente ocorridos.
III - Reconduzindo-nos ao caso concreto, está demonstrado nos autos a existência do contrato de seguro, titulado por apólice determinada. Estamos perante um facto da vida real, apreensível por qualquer cidadão comum e cuja compreensão não transcende o domínio comunicacional ao alcance do cidadão médio.
IV - O contrato de seguro tem natureza formal, nos termos do art. 426.º do CCom. Tratando-se de um contrato formal, aplicam-se à respectiva interpretação as regras definidas pelos arts. 236.º e 238.º do CC e pelos arts. 10.º e 11.º do DL 446/85, de 25-10 (interpretação das cláusulas contratuais gerais). Sendo a questão de interpretação do contrato de seguro celebrado, a intervenção do STJ deve incidir sobre o controlo da interpretação de declarações negociais, ou seja, sobre a apreciação da observância dos critérios legalmente definidos com tal objectivo, já que a averiguação da vontade real dos declarantes se situa no domínio da matéria de facto.
V - Interpretando o contrato celebrado nos autos, de acordo com o estabelecido na respectiva apólice, há que fazer apelo à compreensão que o mesmo mereceria por parte de um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, em face de todas as circunstâncias do caso concreto. Considerando por tal forma, o seguro contratado entre o arguido e a seguradora deve ser classificado como seguro de garagista.
VI - O contrato de garagista foi previsto no art. 2.º, n.º 3, do DL 522/85, de 31-12, como obrigatório – ao lado da obrigação do proprietário do veículo –, quer para os garagistas, quer para quaisquer pessoas ou entidades que habitualmente exercem a actividade de fabrico, montagem ou transformação, de compra e venda, de reparação, de desempanagem ou de controle do bom funcionamento dos veículos, que ficam obrigados a segurar a responsabilidade civil em que incorrem quando utilizem, por virtude das suas funções, os referidos veículos no âmbito da sua actividade profissional. Dentro de tais funções estão aquelas que se conexionam com a condução pelo garagista, no âmbito do contrato de prestação de serviços de reparação do mesmo veículo, quer se trate de actividade de experimentação, quer de devolução do veículo ao seu proprietário, e desde que tal actividade cause danos a terceiros.
VII - Não é essa a hipótese perfilada na condução que o arguido efectuou no caso vertente em que, numa aparente conduta exibicionista e após actividade lúdica a que se remeteu durante a noite, decidiu conduzir o veículo ligeiro com uma olímpica indiferença perante a vida dos seus semelhantes, numa conduta em que a negligência e o dolo se confundem. Manifestamente não foi para essa finalidade que o contrato de seguro de garagista foi celebrado e muito menos o cálculo das probabilidades, presente na decisão de contratar da companhia de seguros, poderia abarcar uma actuação condicente com a do arguido.
VIII - Motivo pelo qual não assiste razão ao recorrente Fundo de Garantia Automóvel, quando pretende que seja esse seguro a garantir a responsabilidade civil emergente do acidente de viação causado pelo arguido, quando inexistia contrato de responsabilidade civil obrigatório do proprietário do veículo.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL                              Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

O Fundo de Garantia Automóvel veio interpor recurso da decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto que concedeu parcial provimento ao recurso interposto pelo Fundo de Garantia Automóvel e, em consequência, fixou em € 25 000,00 a quantia a pagar a cada um dos progenitores das vítimas AA e AA, a título de danos não patrimoniais derivados da morte dos filhos; pelo sofrimento vivido pelo AA, no período que decorreu entre o acidente e o seu falecimento, atribui-se aos seus progenitores a quantia de € 25 000,00; quanto ao mais manteve a decisão recorrida proferida em primeira instância.

Igualmente foram confirmadas as penas em que o arguido CC foi condenado ou seja a pena de 3 anos de prisão por cada um dos dois crimes de homicídio por negligência grosseira, do art. 137º, nºs 1 e 2 do Código Penal, um na pessoa de AA e o outro na pessoa da vítima BB. Efectuado o cúmulo jurídico das penas parcelares, foi-lhe aplicada a pena única de 4 anos de prisão.

       Em sede de primeira instância o recorrente foi condenado:

Quanto aos pedidos de indemnização civil deduzidos contra o Fundo de Garantia Automóvel e o arguido, foram estes julgados parcialmente procedentes e, em consequência, foram estes condenados,

a) a pagar aos demandantes DD e EE a quantia global de € 140.000,00, sendo € 60.000,00 pela morte do AA e  € 40.000,00 pelo sofrimento de cada um dos demandantes, pais da vítima;

b) a pagar aos demandantes FF e GG a quantia global de € 192.250,00, sendo € 60.000,00 pela morte do BB, € 40.000,00 pelo sofrimento de cada um dos demandantes, pais da vítima, € 50.000,00 pelo sofrimento do BB desde o momento do acidente até à sua morte e € 2.250,00 a título de danos patrimoniais;

c) a pagar ao demandante Hospital Distrital de Chaves as quantias de € 664,58 e € 107,25, respectivamente, num total de € 771,83,acrescendo, a todos os valores fixados, juros, à taxa legal, a contar da decisão.

    As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões da respectiva motivação de recurso onde se refere que:

l- Na sentença proferida em 1ª instância foi dado como provado que: "O seguro contratado foi o denominado seguro de garagista, o qual visa segurar a responsabilidade civil em que incorre o segurado quando utiliza, por virtude das suas funções de garagista os veículos no âmbito da sua actividade profissional.

2. No acórdão ora em causa manteve-se como provado tal facto.

3- 'Entende o recorrente FGA que nos termos do disposto no artigo 6460 n04 do C.P.C. tal facto deveria dar-se como não escrito pois contem matéria que é, sem dúvida, de direito.

4- Entende-se por isso que foi violado o preceituado no artigo 646º nº4 do C.P.C.

5-O seguro titulado pela apólice nº xxxxx-xx junto da LL pelo arguido CC, é um seguro de automobilista (ou de carta) e como tal em válido e eficaz à data e hora do acidente em causa nos autos.

6- Ao assim não entenderem, foi violado o disposto nos artigos 2º nº3, 2º nº4 c o artigo 21º do D.L. 522/85 de 31.12.

7- Mesmo que assim não se entendesse, mesmo considerando que o seguro em causa era um seguro de garagista, não podia o mesmo de se deixar de considerar válido para o acidente em causa.

8. O argumento em que se basearam as decisões já proferidas é que o acidente ocorreu de madrugada quando o veículo não podia estar a ser utilizado no âmbito da actividade de garagista e por isso, apesar de válido o seguro não era eficaz para o acidente em causa, pois o seguro de garagista apenas abrange os casos em que os veículos estejam a ser conduzidos no âmbito da. actividade profissional do tomador.

9- Analisadas as condições gerais do contrato do seguro juntas aos autos verifica-se que o seguro de garagista convencionado - vide clausula 9 das cláusulas especiais – não especificava que os riscos apenas seriam cobertos quando no exercício das funções de garagista.

10- Se entre as partes não foi convencionada a necessidade de que a condução fosse efectuada no âmbito da actividade de garagista, então não tinham os Tribunais recorridos de entender de forma diversa.

11- O seguro é por isso válido e eficaz à data e hora do acidente que é causa de pedir nos autos, sendo por isso o FGA parte ilegítima nos mesmos

12-. Mostra-se por isso violado o disposto no artigo 21 do D.L. 522/85 de 31.12.

 Foi produzida resposta defendendo o acerto da decisão proferida.

O ExºMº Sr.Procurador Geral Adjunto limitou-se a apor o seu visto.

                      Os autos tiveram os vistos legais.

                                               *

                                   Cumpre decidir

No acórdão recorrido foram dados como provados os seguintes factos:

«Na noite de 20 para 21 de Julho de 2002, o arguido, acompanhado por II, deslocou-se à cidade de Valpaços, onde ambos jantaram, estiveram num café, passearam de carro por diversas ruas da cidade e, posteriormente, se dirigiram à discoteca “G....”.

Durante esse período, o arguido ingeriu bebidas alcoólicas.

Cerca das 4 horas, já do dia 21 de Julho de 2002, o arguido, continuando acompanhado pelo dito II, abandonou a discoteca referida, tal como várias outras pessoas que aí se encontravam, por ser a hora do fecho da mesma.

Tendo o seu veículo automóvel, ligeiro de passageiros, matrícula XX-XX-CM, estacionado à frente da aludida discoteca, o arguido chamou a atenção de alguns dos presentes, acelerando o motor da viatura, ainda parada.

De seguida, o arguido, ao volante da dita viatura, arrancou da frente da discoteca, contornou o bloco de habitações do qual a mesma fazia parte, por forma a entrar no início da Rua H... da F..., na dita cidade de V..., no sentido de marcha nascente-poente.

Circulou, então, nessa rua, acelerando a viatura que tripulava, atingindo uma velocidade que não foi possível determinar em concreto, mas superior a 100 Km por hora, apesar de a mesma se encontrar muito movimentada àquela hora, por ser a hora do fecho da discoteca, estando, ainda, estacionados carros de ambos os lados da via.

A dado momento e circulando nas circunstâncias descritas, o arguido aproximou-se do cruzamento da rua em que seguia, com a Rua J... C..., sendo que na via em que circulava e imediatamente antes do referido cruzamento, o arguido deparou-se com um sinal B 2 (STOP - Paragem obrigatória em cruzamentos ou entroncamentos).

O arguido, porém, não respeitou o sinal de STOP, continuando a sua marcha sem abrandar a velocidade que imprimia ao veículo automóvel por si conduzido.

Em simultâneo, o veículo de matrícula XO-XX-XX, circulava a velocidade não apurada mas não superior a 50 km por hora, na Rua J.. C... e apresentava-se pela direita do veículo conduzido pelo arguido.

Desta forma e já em pleno cruzamento, o veículo automóvel conduzido pelo arguido, embateu de forma violenta, na parte lateral esquerda, a meio das duas portas do veículo de matrícula XO-XX-XX, conduzido por BB, e onde seguiam como ocupantes, na banco traseiro, o falecido AA, e no banco ao lado do condutor, o JJ.

Como consequência do embate, a viatura de matrícula XO-XX-XX, rodopiou sobre si própria e foi projectada contra o muro da residência de HH, sita na Rua H.. da F…, destruindo o muro e imobilizando-se já no seu interior ao embater numa árvore de grande porte.

Submetido a pesquisa de álcool no sangue, após o acidente, o arguido revelou ser portador de uma taxa de 0,63 g/l.

Do embate acima descrito, resultaram directa e necessariamente para o BB, as seguintes lesões, que vieram a determinar-lhe directa e necessariamente a morte:

a) escoriação com 2 por 1 cm, no terço interno da região supraciliar esquerda, escoriação irregular com 1 por 0,5 cm, na região supracigomâtica esquerda, escoriação linear longitudinal, localizada na região suprazigomâtica direita com 0,5 cm, escoriação linear inclinada de trás para a frente, localizada na região inframalar direita com 3 cm;

b) escoriação irregular com 7 por 3 cm, na região escapular direita no tórax;

c) escoriação irregular com 2 por 1 cm, na região do flanco esquerdo do abdómen;

d) escoriação irregular com 1 por 0,5 cm, na face lateral do ombro direito;

e) escoriação irregular com 3 por 1 cm, na face anterior do terço inferior da coxa esquerda, escoriação linear e longitudinal com 3 cm, na face anterior do joelho esquerdo;

f) infiltração sanguínea da face interna do couro cabeludo e periosteum com 3 por 1 cm, ao nível da região parietal esquerda. Infiltração sanguínea na face interna do couro cabeludo irregular com 3 por 2 cm, localizada na região parieto-occipital direita;

g) infiltração sanguínea na espessura do músculo temporal direito;

h) infiltração sanguínea dos planos musculares prevertebrais;

i) fractura da 4ª costela à esquerda pelo seu arco lateral. Infiltrado hemorrágico da pleura parietal que recobre a face lateral do hemitórax esquerdo com 20 por 12 cm, Laceração da cúpula diafragmática esquerda;

j) área de contusão com infiltrado hemorrágico subepicárdico, na região da ponta cardíaca com 2 por 1 cm, com laceração parcial do miocárdio;

l) laceração completa transversal da aorta ao nível da transição da crossa para a aorta torácica;

m) abundantes focos de contusão com hemorragia subpleural, dispersos na face anterior dos lobos médio e inferior, do pulmão direito, bem como congestão do parênquima;

n) congestão moderada do parênquima do pulmão esquerdo;

o) infiltração sanguínea da mucosa no terço inferior do esófago;

p) infiltração hemorrágica retroperitoneal à direita e da espessura do músculo psoas à direita das paredes do abdómen;

q) fígado com foco de contusão com infiltração sanguínea subcapsular irregular localizada na face anterosuperior do lobo esquerdo com 5 por 3 cm;

r) baço com laceração da cápsula e parênquima ao nível do hilo com 8 por 3 cm;

s) rim direito com infiltração sanguínea da gordura perirenal;

t) rim esquerdo com infiltração sanguínea da gordura perirenal com laceração completa do parênquima e formação de 2 fragmentos;

u) ráquis com infiltrado hemorrágico dos planos musculares paravertebrais a nível cervical e luxação do espaço interdiscal, vértebras 3ª e 4ª;

v) fractura do terço inferior de cúbito e rádio do antebraço direito, com infiltração sanguínea local e dos topos de fractura.

Do mesmo embate acima descrito, resultaram directa e necessariamente para o AA, as seguintes lesões, que vieram a determinar-lhe directa e necessariamente a morte:

a) cabeça com ferida contusa com 4 por 0,5 cm, na hemifrente direita, ferida contusa com 2 por 1 cm, na hemifrente esquerda, escoriação com 3 por 0,5 cm, na região ciliar direita, escoriação com 3 por 1 cm, na pirâmide nasal, ferida contusa com 3,5 por 1 cm, na pálpebra inferior do olho direito, escoriação com 3 por 2 cm, na região mentoniana à esquerda da linha média e otorragia bilateral;

b) escoriação linear com 3 cm no triângulo lateral esquerdo, no pescoço;

c) tórax com escoriação com 2 por 1 cm, na região infraclavicular esquerda, escoriação irregular com 4 por 1 cm, na região peitoral esquerda, escoriação irregular com 4 por 2 cm, na região escapular direita;

d) abdómen com escoriação linear com 3 cm no hipocôndrio direito;

e) escoriação irregular com 6 por 2 cm, na face lateral do ombro esquerdo;

f) escoriação irregular com 7 por 3 cm, na face posterior do cotovelo esquerdo;

g) escoriação irregular com 4 por 2 cm, na face anterior do terço médio da coxa esquerda;

h) infiltração sanguínea na face interna do couro cabeludo e periosteum com 5 por 4 cm, ao nível da região parietal esquerda. Infiltração sanguínea da face interna do couro cabeludo irregular com 4 por 3 cm, localizada na região interparietal;

i) hemorragia subarcmoideia na superfície do lobo direito;

j) infiltração sanguínea dos planos musculares prevertebrais dos músculos do pescoço;

l) tórax com fractura da clavícula esquerda ao nível do seu terço interno. Fractura da 1ª costela à esquerda pelo seu arco anterior. Infiltrado hemorrágico dos planos retromediasinicos de predomínio à esquerda. Contusão de ambas as cúpulas diafragmáticas com laceração irregular à esquerda com 7 por 4 cm;

m) o saco pericárdico apresenta duas lacerações, localizadas na sua face anterior com 3 por 3 cm à esquerda e com 4 por 1 cm à direita;

n) abundantes focos de contusão com hemorragia subpleural, dispersos na face lateral e anterior dos 3 lobos e congestão do parênquima;

o) abundantes focos de contusão com hemorragia subpleural, dispersos na face interna-mediastinica dos 2 lobos e congestão do parênquima;

p) infiltração hemorrágica retroperitoneal à esquerda das paredes;

q) laceração irregular da cápsula e parênquima na face anterosuperior do lobo esquerdo com 7 por 2 cm, do fígado. Moderada congestão parênquima;

r) esfacelo completo do baço;

s) infiltração sanguínea da gordura perirenal do rim direito;

t) infiltração sanguínea da gordura perirenal com laceração completa do perênquima e formação de 2 fragmentos do rim esquerdo;

u)ráquis com infiltrado hemorrágico dos planos musculares paravertebrais a nível do dorso lombar.

Ainda desse embate acima descrito, resultaram directa e necessariamente para o JJ, as seguintes lesões:

a) traumatismo craniano e abdominal, ferida parietal e múltiplas escoriações;

b) cicatriz curvilínea na face, localizada na porção média da região frontal, ligeiramente à direita da linha média, medindo 3 cm de comprimento.

A data de consolidação das lesões é fixada em 28 de Julho de 2002, e os ferimentos descritos determinaram-lhe um período de doença de 7 dias, com afectação da capacidade de trabalho geral de 3 dias, e afectação da capacidade de trabalho profissional de 7 dias.

Teve dores.

O acidente do qual resultaram as mortes de BB e de AA, e as lesões sofridas pelo JJ, ficou a dever-se à forma como o arguido conduzia e supra descrita, o qual não colocou na sua condução, como devia e podia, a atenção e o cuidado que sabia serem necessários para evitar o acidente que veio a ocorrer, tendo em conta a forma como conduzia e as características do local.

O arguido representou como possível a ocorrência de um acidente como o que veio a ocorrer, mas afastou essa possibilidade do seu pensamento.

O piso da estrada apresentava-se seco e em bom estado de conservação, sendo a largura da via de 7,40 metros.

O arguido agiu livre e conscientemente.

Os demandantes, EE e esposa DD são os pais da vítima mortal AA.

Este era solteiro e não tinha descendentes.

O AA tinha, à data do acidente, 21 anos de idade.

Vivia com os pais, constituindo uma família harmoniosa e feliz, juntamente com outra irmã, ligando-os laços de amizade e amor.

O AA era saudável e feliz.

Foi atleta do Grupo Desportivo de V… e integrou uma das suas equipas.

Era educado e bem aceite pela população, colegas e amigos.

Os pais do AA sofreram e sofrem com a morte do filho, não tendo a mesma alegria nem a mesma disposição para a vida, sentindo profundo sofrimento.

Os demandantes, GG e esposa FF são pais da vítima mortal BB, o qual era solteiro e não tinha descendentes.

À data da morte, o BB tinha 22 anos de idade.

Ia inscrever-se num curso de arte e comunicação.

Gostava da vida que desfrutava com alegria.

Amava os seus pais, a quem era dedicado e que lhe retribuíam amor e carinho.

O BB, após o acidente, ficou encarcerado na viatura.

Foi levado, ainda vivo, para o Hospital de Valpaços, tendo sobrevivido durante várias horas.

Teve consciência de que a sua vida iria terminar, o que o angustiou profundamente, implorando a quem estava com ele que não o deixasse morrer e que queria ver os pais.

Os demandantes sofreram intensamente ao saberem da morte do filho e das circunstâncias em que a mesma ocorreu.

Sofreram um choque profundo.

Ainda hoje não conseguem aceitar o facto da morte do filho.

Estão inconsoláveis.

Choram sempre que têm que recordar o facto.

Ficaram traumatizados, entrando em depressão.

A viatura conduzida pelo BB ficou completamente inutilizada e sem qualquer valor comercial.

Era um veículo da marca Seat, modelo Toledo.

Os demandantes pagaram, do seu bolso, as despesas relacionadas com o funeral do filho, no que despenderam a quantia de € 750,00.

II e JJ foram assistidos no Hospital Distrital de Chaves, na sequência do acidente em causa.

Os encargos decorrentes da assistência hospitalar prestada a II, abrangendo episódios de urgência, exames radiológicos e outros encargos, ascendem a € 107,25.

Os encargos decorrentes da assistência prestada a JJ, compreendendo episódios de urgência, internamento, radiologia e demais despesas, ascendem a € 664,58.

O arguido CC contratou com a demandada LL , Companhia de Seguros, S.A. um seguro automóvel titulado pela apólice nº XXXXX-XX.

O seguro contratado foi o denominado seguro de garagista, o qual visa segurar a responsabilidade civil em que incorre o segurado quando utiliza, por virtude das suas funções de garagista, os veículos no âmbito da sua actividade profissional.

A chamada “ E… S… e D… XXX, Lda.” foi proprietária da viatura de marca BMW, com a matrícula XX-XX-CM, mas procedeu à sua venda no ano de 1999.

O arguido é considerado pessoa calma, educada e respeitadora.

Teve um comércio de automóveis, mas actualmente dedica-se à agricultura e ao comércio de gado, actividade da qual retira quantias indeterminadas.

Integra o agregado familiar dos seus progenitores, juntamente com a sua esposa e uma filha de dois anos de idade.

O arguido tem antecedentes criminais, conforme CRC de fls. 1160 a 1162 (vol. IV)».

                                                              *

        Pronunciando-se sobre a matéria do recurso refere a decisão recorrida que:

I – Existência, no caso, de seguro válido cobrindo a responsabilidade civil automóvel resultante da circulação de qualquer ligeiro de passageiros misto/carga quando conduzido pelo titular da carta de condução nº P - XXXXX

            O Fundo alega, depois, que sobre o veículo XX-XX-CM, conduzido pelo arguido, incidia, à data do acidente, seguro válido e eficaz, pois que o seguro contratado com a seguradora LL foi o chamado seguro de carta, que cobre os danos provocados por qualquer veículo ligeiro conduzido pelo titular da carta de condução nº P - XXXXX, ou seja, conduzido pelo arguido.

            Aqui a discussão centra-se sobre o tipo de seguro celebrado entre o arguido e a seguradora, documentado nos autos: se de carta (de “automobilista” como diz a lei), se de garagista.

            A matéria do seguro de responsabilidade civil automóvel estava regulado, à data do acidente, pelo D.L. n.º 522/85, de 31/12. Estabelecia ele, no seu art. 1º, sobre a obrigação de segurar:

«1 - Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes de lesões corporais ou materiais causadas a terceiros por um veículo terrestre a motor, seus reboques ou semi-reboques, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se, nos termos do presente diploma, coberta por um seguro que garanta essa mesma responsabilidade».

            Quanto aos sujeitos da obrigação de segurar, estabelecia o art. 2º:

«1 - A obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, exceptuando-se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a referida obrigação recai, respectivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário.

         …

3 - Estão ainda obrigados os garagistas, bem como quaisquer pessoas ou entidades que habitualmente exercem a actividade de fabrico, montagem ou transformação, de compra e ou venda, de reparação, de desempanagem ou de controle do bom funcionamento de veículos, a segurar a responsabilidade civil em que incorrem quando utilizem, por virtude das suas funções, os referidos veículos no âmbito da sua actividade profissional.

4 - Podem ainda, nos termos que vierem a ser aprovados por norma regulamentar do Instituto de Seguros de Portugal, ser celebrados seguros de automobilista».

            Este diploma previa, pois, o seguro de automobilista, vulgarmente chamado de seguro de carta, previsão que se manteve, aliás, até ao termo da vigência do diploma.

            E se é certo que a lei fazia depender a celebração de tais seguros de diploma a emanar do Instituto de Seguros de Portugal, a verdade é que este diploma nunca viu a luz do dia e nem por isso aqueles seguros deixaram de ser realizados.

            Entretanto o D.L. n.º 522/85, de 31/12, foi substituído pelo D.L. n.º 291/2007, de 21/8. Sobre os sujeitos da obrigação de segurar determina este diploma, no seu art. 6º, o seguinte:

«1 - A obrigação de segurar impende sobre o proprietário do veículo, exceptuando -se os casos de usufruto, venda com reserva de propriedade e regime de locação financeira, em que a obrigação recai, respectivamente, sobre o usufrutuário, adquirente ou locatário.

3 - Estão ainda obrigados os garagistas, bem como quaisquer pessoas ou entidades que habitualmente exercem a actividade de fabrico, montagem ou transformação, de compra e ou venda, de reparação, de desempanagem ou de controlo do bom funcionamento de veículos, a segurar a responsabilidade civil em que incorrem quando utilizem, âmbito da sua actividade profissional.

4 - Podem ainda, nos termos que vierem ser aprovados por norma do Instituto de Seguros de Portugal, ser celebrados seguros de automobilista com os efeitos previstos no presente decreto-lei.

…».

            Como se pode ver, a lei manteve quer a possibilidade de celebração de seguros de garagista e de automobilista, quer os termos do texto que anteriormente os previa. 

            Assim, quando a decisão recorrida afirma que o seguro de carta não está legalmente previsto, isso não corresponde à realidade. Está previsto, nos exactos termos em que sempre esteve. Sobre a sua concreta realização por esta ou por aquela seguradora, o que sucede é o que sucede com qualquer outro seguro legalmente previsto: algumas seguradoras celebram-no, muitas resistem a celebrá-lo e outras não o fazem, pura e simplesmente.

            Concluindo pela possibilidade legal de realização do chamado “seguro de carta”, pela simples razão que a lei o prevê, vejamos então que seguro contratou, afinal, o arguido.

            O contrato de seguro tem natureza formal, isto é, a sua realização tem, obrigatoriamente, que obedecer a determinada forma para que ele tenha existência válida, tal como preceitua o art. 426º do Código Comercial quando diz que «o contrato de seguro deve ser reduzido a escrito num instrumento, que constituirá a apólice de seguro», apólice esta que deve enunciar o objecto do seguro, bem como todas as condições estipuladas pelas partes (pontos 3º e 8º do § único do artigo).

            É o que acontece no nosso caso (como em geral, aliás, uma vez que as condições gerais do seguro automóvel são regras gerais que todas as empresas seguradoras devem cumprir). Quando o “artigo preliminar” das condições gerais do seguro automóvel celebrado [1] diz «entre a LL Portugal … e o tomador do seguro, mencionado nas condições particulares, estabelece-se um contrato de seguro que se regula pelas condições gerais, especiais e particulares desta apólice …» repete, precisamente, os termos da lei.

            E, então, qual o conteúdo da apólice do seguro, qual o seguro contratado?

            Da apólice [2] consta, então, a natureza do contrato de seguro – ramo automóvel -, e a identificação e residência do tomador do seguro.

            Agora, e quanto ao objecto do seguro, que naturalmente também tem que constar (ponto 3º acima referido), na apólice podemos ler o seguinte:

«Qualquer ligeiro passag. misto/carga

Se conduzido pelo segurado titular da carta nº P-XXXXX …».

            Parece, então, que estamos perante um seguro de carta, que o Fundo defende existir, pois que o que se segura no caso é a responsabilidade civil decorrente de danos provocados pela circulação de um veículo conduzido pelo titular da carta referida.

            Só que o contrato – um qualquer contrato de seguro -, é integrado também pelas condições especiais, ou seja, por cláusulas específicas da apólice, que completam e esclarecem as condições gerais, servindo geralmente para registar garantias facultativas ou adicionais ou outras condições acordadas entre as partes.     No caso as cláusulas especiais contratadas foram as 03, 09, 12, 19, 21 e 22.

            Vejamos que cláusulas especiais são estas:

«03 – Agravamento de prémio por efeito de sinistralidade …

09 – Seguro de garagista …

A Apólice cobre os riscos e importâncias máximas fixadas nas condições particulares quanto a sinistros ocorridos com qualquer veículo do tipo e cilindrada nela indicados, desde que o responsável pela condução seja o portador da licença ou carta de condução referida também nas condições particulares.

12 – Exclusão de utilização de reboques …

19 – Acta adicional …

21 – Penalidade por falta de pagamento do prémio …

22 – Acertos de vencimento em contratos por ano e seguintes …».

            Sendo o contrato de seguro um contrato formal a sua interpretação rege-se, além do mais, pelo disposto no art. 238º do Código Civil, que trata dos negócios formais, e que diz, no seu nº 1, que «nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso».

            Tudo visto, interpretando o contrato celebrado de acordo com o estabelecido na respectiva apólice, temos que o seguro contratado entre o arguido e a seguradora foi o chamado seguro de garagista.

            E o facto de a apólice mencionar o número da carta de condução do segurado nada tem demais, uma vez que este é um dos elementos que integra um contrato de seguro automóvel.

            O seguro de garagista garante a responsabilidade civil do segurado quando ele utiliza o veículo, por virtude do exercício das suas funções, no âmbito da uma específica actividade profissional, que possibilita a realização deste seguro: respeita a determinadas profissões, cobrindo os danos provocados pelos automóveis que estejam à guarda desse profissional. Ao invés do profissional ter que contratar um seguro para cada veículo que esteja à sua guarda ou à sua disposição, o que provocaria enorme dispêndio de tempo e confusão uma vez que estes veículos podem mudar diariamente, segura a sua carta, isto é, o seguro incide sobre o automobilista titular de uma concreta carta de condução, quando conduz no exercício da sua profissão.

            Além do mais, este seguro pode não se restringir a um só automobilista: pode estender-se a outros, tendo todos estes que estar identificados na apólice, identificação que se faz através da identificação da respectiva carta. E então o seguro cobrirá os danos provocados por todos os veículos que estejam à guarda daquela oficina para reparação, por exemplo, quando conduzidos por um dos indivíduos cujas cartas constem da apólice do seguro e desde que estejam no exercício das respectivas funções.

A condenação do Fundo de Garantia Automóvel deveu-se, precisamente, ao facto de resultar que o arguido, aquando do acidente, não estava no exercício da sua actividade profissional, mas sim em período de lazer.

                                                                *

 Invoca o recorrente a existência de violação do disposto no artigo 646 do Código de Processo Civil, ou seja, pretende o mesmo que seja declarada a patologia resultante do facto de o Tribunal se ter pronunciado sobre matéria de direito, e não sobre matéria de facto, quando classificou o contrato de seguro celebrado com o arguido. Implicitamente está colocada a questão da nulidade da sentença resultante de uma pronuncia em termos indevidos-artigo 379 do Código de Processo Penal - pois que se estendeu a matéria situada fora do objecto do processo, delimitado nos termos da acusação e pedidos de indemnização cível formulados.

            Pensamos existir alguma confusão na argumentação produzida. Na verdade, importa salientar, em primeiro lugar, que a questão em apreço (questão de facto/questão de direito) se prende com matéria que é suscitada agora “ex novo”, e não foi arguida em relação á decisão de primeira instância, o que se traduz na circunstância de a decisão recorrida não ter sido chamada a pronunciar-se sobre a eventual nulidade dali resultante.

 Porém, independentemente de tal facto, o certo é que o recorrente omite a circunstância de a decisão cível produzida nos presentes auto emergir do facto de ter ficado provado, na sequência do alegado pelos intervenientes processuais, que o arguido CC contratou com a demandada LL , Companhia de Seguros, S.A. um seguro automóvel titulado pela apólice nº XXXXX-XX. Tal matéria de facto é inultrapassável, como também o é a sua inscrição como matéria de facto.

Na verdade, e recolocando os conceitos, é certo que matéria de facto e matéria de direito são questões de alguma dificuldade de destrinça e nem sempre é fácil distinguir entre uma e outra, mas é consensual, na doutrina e na jurisprudência, que, para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei.  

Assim, para o Prof. Paulo Cunha o critério geral para distinguir a matéria de facto da matéria de direito é o seguinte: há matéria de direito sempre que, para se chegar a uma solução há a necessidade de recorrer a uma disposição legal- ainda que se trate de uma simples palavra da lei; há matéria de facto quando o apuramento das realidades se faz todo à margem da aplicação directa da lei, por averiguação de factos cuja existência ou não existência não depende de nenhuma norma jurídica. Por outras palavras: deve afirmar-se que é de direito tudo aquilo- todos aqueles pontos- cuja averiguação dependa do entendimento a dar a normas legais seja qual for espécie destas. Sempre que se discuta ou possa discutir a observância ou violação duma disposição legal estaremos diante de matéria de direito; no caso contrário diante de matéria de facto. E em nota de pé de página conclui aquele Mestre que  “Note-se que é preciso não confundir isto com o facto de que toda e qualquer averiguação de factos, por mais ajurídica que seja, se realiza por meio de processos regulados e prescritos na lei. Tal circunstância não interessa. Quando dizemos que há matéria de direito sempre que para se chegar a uma solução temos de recorrer a uma disposição legal, referimo-nos apenas às disposições legais que determinam a solução, e não às disposições legais que regulam a actividade por meio da qual se chega a uma solução

            Para o Professor Alberto dos Reis “é questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior; é questão de direito tudo o que respeita á interpretação e aplicação da lei. Reduzido o problema á sua maior simplicidade a fórmula é esta:

        a)-É questão de facto determinar o que aconteceu.

        b)-É questão de direito determinar o que quer a lei, ou seja a lei substantiva, ou seja a lei do processo.[3]

No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis: os acontecimentos externos (realidades do mundo exterior) e os acontecimentos internos (realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo), sendo indiferente que o respectivo conhecimento se atinja directamente pelos sentidos ou se alcance através das regras da experiência (juízos empíricos) [4]

Porém, tais factos, atomisticamente considerados, podem, na sua concatenação, conduzir a uma conclusão que, tendo por premissa os mesmo factos, não pode deixar de se considerar incluída no objecto do processo. Tratam-se de conclusões relativas a factos da vida real cujo conhecimento pode ser atingido através de um juízo que, dispensando o recurso a qualquer critério de valoração jurídico-normativa, se baseie na aplicação de regras da experiência a acontecimentos concretos efectivamente ocorridos [5]

Como se refere no Acórdão deste Supremo de 23 de Setembro de 2009, “atendendo a que só os factos concretos — não os juízos de valor que sejam resultado de operações de raciocínio conducentes ao preenchimento de conceitos, que, de algum modo, possam representar, directamente, o sentido da decisão final do litígio — podem ser objecto de prova, tem-se considerado que o n.º 4 do artigo 646.º tem o seu campo de aplicação alargado às asserções de natureza conclusiva, «não porque tal preceito, expressamente, contemple a situação de sancionar como não escrito um facto conclusivo, mas, como tem sido sustentado pela jurisprudência, porque, analogicamente, aquela disposição é de aplicar a situações em que em causa esteja um facto conclusivo, as quais, em rectas contas, se reconduzem à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum»

            Reconduzindo-nos ao caso concreto está demonstrado nos autos a existência do contrato de seguro titulado pela apólice referida. Estamos perante um facto da vida real apreensível por qualquer cidadão comum e cuja compreensão não transcende o domínio comunicacional ao alcance do cidadão médio

 Face a tal ponto de partida importa relembrar que o contrato de seguro tem natureza formal; e que é à luz do artigo 426º do Código Comercial, que exige a redução a escrito do contrato de seguro num instrumento, que constitui a respectiva apólice, e que enuncia os pontos que dela têm de constar, que se determina a forma a que o contrato dos autos está sujeito. Tratando-se de um contrato formal, aplicam-se à respectiva interpretação as regras definidas pelos artigos 236º e 238º do Código Civil e pelos artigos 10º e 11º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro (interpretação das cláusulas contratuais gerais).

A questão é então de interpretação do contrato de seguro celebrado e a intervenção do Supremo Tribunal da Justiça deve incidir sobre o controlo da interpretação de declarações negociais, ou seja, sobre a apreciação da observância dos critérios legalmente definidos com tal objectivo já que a averiguação da vontade real dos declarantes se situa no domínio da matéria de facto.                  

Adquirida, como facto incontroverso que é, a existência do contrato de seguro titulado pela apólice em causa importa salientar que o DL nº 408/79, de 25 de Setembro, que instituiu o seguro obrigatório, não previu os seguros de garagista e de condutor, determinando que a obrigação de segurar recaía sobre o proprietário do veículo, salvo nos casos de usufruto, venda com reserva de propriedade ou locação financeira, embora fosse válido o seguro de veículo realizado por pessoa diversa daqueles, ao mesmo tempo que estipulava que, na hipótese de concorrência de seguros, a obrigação de indemnizar incidia sobre o seguro contratado por terceira pessoa, nos termos das disposições combinadas dos artigos 3º e 16º, do supracitado diploma legal.

O modelo do seguro obrigatório foi afinado com a publicação do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro, o qual criou um seguro obrigatório do garagista, deu formatação legal a um seguro pré-existente, isto é, o seguro de carta ou de condutor ou de automobilista, e estabeleceu um regime de responsabilizações sucessivas, do qual se excluiu o seguro celebrado pelo proprietário STJ, de 21-10-92, BMJ nº 420, 531, e CJ, Ano XVII, T4, 25..

Efectivamente dispõe o artigo 2º, nº 3, do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro, que são sujeitos da obrigação de segurar “…os garagistas, bem como quaisquer pessoas ou entidades que habitualmente exercem a actividade de fabrico, montagem ou transformação, de compra e ou venda, de reparação, de desempanagem ou de controle do bom funcionamento de veículo….quando utilizem, por virtude das suas funções, os referidos veículos no âmbito da sua actividade profissional”.

No caso concreto as cláusulas especiais contratadas foram as  03, 09, 12, 19, 21 e 22.

            Tais cláusulas têm o seguinte conteúdo:

«03 – Agravamento de prémio por efeito de sinistralidade …

09 – Seguro de garagista …

A Apólice cobre os riscos e importâncias máximas fixadas nas condições particulares quanto a sinistros ocorridos com qualquer veículo do tipo e cilindrada nela indicados, desde que o responsável pela condução seja o portador da licença ou carta de condução referida também nas condições particulares.

12 – Exclusão de utilização de reboques …

19 – Acta adicional …

21 – Penalidade por falta de pagamento do prémio …

22 – Acertos de vencimento em contratos por ano e seguintes …».

Igualmente se refere nas clausulas constantes do item 9 da apólice que o mesmo-  relativo ao seguro de garagista- cobre as pessoas ou entidade referidas no nº 3 do artigo 2 do Decreto lei 522/85 ou seja os garagistas, bem como quaisquer pessoas, ou entidades, que habitualmente exercem a actividade de fabrico, montagem ou transformação, de compra e ou venda, de reparação, de desempanagem ou de controle do bom funcionamento de veículos, a segurar a responsabilidade civil em que incorrem quando utilizem, por virtude das suas funções, os referidos veículos no âmbito da sua actividade profissional.

            Como se referiu a natureza formal do contrato de seguro inscreve-o no domínio de aplicação do disposto no art. 238º do Código Civil que proclama em relação aos negócios formais, e no seu nº 1, que «nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso».

            Interpretando o contrato celebrado de acordo com o estabelecido na respectiva apólice há que fazer apelo á compreensão que o mesmo mereceria por parte de um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, em face de todas as circunstâncias do caso concreto. Considerando por tal forma, e perante o teor do mesmo contrato e respectivas cláusulas especiais, conclui-se que a decisão recorrida não merece censura quando classifica o seguro contratado entre o arguido e a seguradora como seguro de garagista.

O contrato de garagista foi previsto no art. 2º, nº 3 do Dec-Lei nº 522/85 de 31/12 como obrigatório, ao lado da obrigação do proprietário (...) que o seu nº 1 estipulou, tendo aquele primeiro preceito a seguinte redacção:“Estão ainda obrigados os garagistas, bem como quaisquer pessoas ou entidades que habitualmente exercem a actividade de fabrico, montagem ou transformação, de compra e ou venda, de reparação, de desempanagem ou de controle do bem funcionamento de veículos, a segurar a responsabilidade civil em que incorrem quando utilizem, por virtude das suas funções, os referidos veículos no âmbito da sua actividade profissional”. Dentro de tais funções estão aquelas que se conexionam com a condução pelo garagista no âmbito do contrato de prestação de serviços de reparação do mesmo veículo, quer se trate de actividade de experimentação quer de devolução do veículo ao seu proprietário, e desde que tal actividade cause danos a terceiros.

Não é essa a hipótese perfilada na condução que o arguido efectuou no caso vertente em que, numa aparente conduta exibicionista e após a actividade lúdica a que se remeteu durante a noite, decidiu conduzir o veículo ligeiro com uma olímpica indiferença perante a vida dos seus semelhantes numa conduta em que a negligência e o dolo se confundem. Manifestamente que não foi para essa finalidade que o contrato de seguro de garagista foi celebrado e muito menos o cálculo das probabilidades, presente na decisão de contratar de companhia de seguros, poderia abarcar uma actuação condicente com a do arguido.

Face ao exposto entende-se não assistir qualquer razão á recorrente, julgando-se improcedente o recurso interposto e confirmando-se a decisão recorrida.

Lisboa, 20 de Outubro de 2011
Santos Cabral (relator)
Oliveira Mendes



[1] Fls. 715 do processo.
[2] Fls. 624 do processo.
[3] Código de Processo Civil Anotado Volume III pag 206 e 207
[4] Neste sentido, Manuel A. Domingues Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1963, pp. 180/181, e Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, Coimbra, 1982, p. 268; na jurisprudência, entre outros, o Acórdão deste Supremo de 24 de Setembro de 2008 (Documento n.º SJ20080924037934, em www.dgsi.pt).
[5] Confrontar Acordão do STJ DE 15 de Setembro de 2009