ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
248/05.1TBALD.C1.S1-A
DATA DO ACÓRDÃO 11/02/2011
SECÇÃO 3.ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL RECURSO PENAL
DECISÃO CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR ARMINDO MONTEIRO

DESCRITORES HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA SIMPLES
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE DIREITO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DUPLA CONFORME
CASO JULGADO
REFORMATIO IN PEJUS
DIREITOS DE DEFESA
ANULAÇÃO DE SENTENÇA
REENVIO DO PROCESSO
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
DECURSO DO TEMPO

SUMÁRIO I -O poder cognitivo do STJ, em sede de recurso, cinge-se, em essência, ao conhecimento da matéria de direito, nos termos do art. 434.º do CPP, o que não invalida, se posta em crise, a apreciação da forma como a Relação interpretou e aplicou os critérios a observar pelo recorrente da impugnação da matéria de facto, previstos no art. 412.º, n.ºs 3 e 5, do CPP, bem como o modo de sanação se deficientemente o recorrente deu cumprimento ao ónus de impugnação – art. 417.º, n.º 3, do CPP –, com o limite enunciado no n.º 4, quanto ao aperfeiçoamento, a ter lugar, por ser matéria de direito.

II - A dupla conforme, enquanto barreira à reponderação em recurso pelo decidido por tribunal inferior, assenta, fundamentalmente, em razões de ordem lógica e pragmática, pois não faz sentido interpor recurso, repetindo a argumentação, quando um tribunal superior já se debruçou sobre o decidido, beneficiando de presunção de acerto, imodificabilidade, que mais se impõem em questões de média e pequena criminalidade, restringindo o recurso de segundo grau perante o STJ aos casos de maior merecimento penal.

III - No caso, o arguido foi condenado na pena de 7 anos de prisão em 1.ª instância, pela prática de um crime de homicídio qualificado tentado, mantida pela Relação, como as penas de prisão impostas pela prática de crime de detenção ilegal de arma e de ofensas à integridade física simples, de 18 e 9 meses de prisão, respectivamente, pelo que dispondo o art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, que não há recurso de acórdãos condenatórios confirmando a decisão de 1.ª instância e, cumulativamente, apliquem pena de prisão não superior a 8 anos, realiza-se a confirmação in totum e a irrecorribilidade da decisão quanto a essas penas, a coberto do caso julgado.

IV - Só haverá recurso da Relação desde que as penas parcelares sejam superiores a 5 anos de prisão, e não haja dupla conforme, isto porque se quis, com a reforma do CP de 2007, implementar um regime de recursos que não interferisse na celeridade processual da fase de inquérito à de julgamento, potenciando-se a economia processual numa óptica de celeridade, restringindo-se o recurso à pena efectivamente aplicada e não já à aplicável, desde que superior a 5 anos de prisão, nos termos do art. 432.º, n.º 1, al. c), do CPP.

V - Enquanto circunscrito ao direito ao recurso interposto pelo arguido no seu exclusivo interesse ou pelo MP no mesmo sentido, o princípio da proibição da reformatio in pejus nesta modalidade de directa é fortemente limitativa do poder decisório do tribunal; porém concebido, embora com controvérsia, como um princípio geral de direito processual penal, enquanto direito de defesa, consagrado no art. 32.º, n.º 1, da CRP, o princípio, em nome do direito a um processo justo, actua com maior latitude, e, assim, no caso de anulação ou reenvio do processo para novo julgamento em 1.ª instância, o princípio não se esvai – é a apelidada reformatio indirecta –, limitando, igualmente, o poder decisório do tribunal inferior, que não pode em tal caso agravar a situação do arguido.

VI - Defender a susceptibilidade de uma atenuação especial da pena com base no facto de ter decorrido muito tempo sobre a data do crime, à luz do art. 71.º, n.º 2, al. d), é argumento de arredar no caso em apreço, pois se é verdade que os factos tiveram lugar no dia 03-11-2011 e na noite de 24 para 25-12-2001, logo na manhã do dia 25 o arguido fugiu do local do crime, para local incerto, só vindo a ser detido mais de 7 anos depois. A fuga à acção da justiça por mais de 7 anos, mantendo-se o arguido ao longo deste prazo numa completa indiferença pela prestação de contas pelos seus actos, actos que envolvem, além do mais, um homicídio e uma sua tentativa, não é seguramente manter uma boa conduta pressuposto de um injustificado e contraditório prémio, não podendo o arguido beneficiar desse prolongamento excessivo de prazo.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL Acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça :

Em processo comum , com intervenção do tribunal colectivo , sob o n.º 248/05 .1TBALD.C1 ,do Tribunal Judicial de Almeida , foi submetido a julgamento AA , vindo , a final , a ser condenado como autor material de um crime de homicídio , p . e p . pelo art.º 131.º , do CP , em 12 anos de prisão , de um crime de homicídio , tentado , p. e p. pelos art.ºs 22.º , 23.º , 72.º e 131.º , do CP , em 7 anos de prisão ,de um crime de ofensas à integridade física , p . e p . pelo art.º 143.º n.º 1 , do CP , em 9 meses de prisão e pela prática de um crime de detenção ilegal de arma , p . e p pelo art.º 86.ºn.º 1 c) , da Lei n.º 5/2006 , de 23/2 , em 18 meses de prisão , e , em cúmulo jurídico , na pena de 18 anos de prisão .

Mais foi condenado ao pagamento à lesada BB , das quantias de de 25.000 € , 20 .000 € a todos demais demandantes e , a todos eles , em conjunto , da soma de 176 .780€ , acrescidas de juros desde a data da decisão e até integral reembolso , a título de indemnização pelos danos sofridos .

Foi , ainda , condenado ao pagamento à ARS do Centro da quantia de 1784$00 ( 3 vezes ), ou seja 3 vezes 19, 87 € , acrescendo juros desde a notificação dos pedidos e até integral reembolso e ao Hospital Sousa Martins , de 99, 45 € , acrescendo juros , á taxa legal e até total reembolso .

I . O arguido , inconformado com o teor da decisão , interpôs recurso para a Relação , que lhe negou provimento , de novo interpondo recurso para este STJ , apresentando na motivação as seguintes conclusões :

A Relação devia ter procedido à apreciação da matéria de facto , uma vez que indicou os pontos da matéria de facto a impugnar , a fls 6 e 7 do recurso .

Ainda que de forma deficiente procedeu à sua indicação , devendo ter sido convidado ao aperfeiçoamento e tal não se fazendo obstou-se à sindicância da matéria de facto .

Se o contrário se não entender , o facto de não ter antecedentes criminais , que manteve posteriormente , a sua positiva inserção social , profissional , familiar , profissional e prisional, justificando-se uma redução das penas parcelares .

Atento o lapso decorrido sobre a prática do crime as penas poderiam ser especialmente atenuadas , nos termos do art.º 72.º n.º 2 d) , do CP .

De todo o modo não poderia a Relação aplicar pena superior ao “ quantum “ aplicado no primeiro julgamento , por força da proibição do princípio da “ reformatio in pejus “ .

Mostram-se violados os art.ºs 32 .º , da CRP , 127.º , 412.º n.º 2 , do CPP , 40.º e 72.º , do CP e 32 .º da CRP .

III . O EXm.º Procurador Geral Adjunto na Relação entende que , tendo sido anulado um anterior julgamento do arguido ,pelo tribunal de 1.ª instância, por virtude de a gravação da matéria de facto se revelar imperceptível , não poderia , agora , ser aplicada prisão excedente a 16 anos , tal como aplicada em 1.ª instância no primeiro julgamento , ocorrido em 8 de Março de 2010 , anulado por ocorrência daquela anomalia , no mais entende dever improceder o recurso .

III A matéria de facto provada , assente pelas instâncias, é a seguinte :

1.º Acompanhado dos seus irmãos CC e DD –inicialmente também arguidos no processo 41 /01 .OGCALD , de onde se iniciou o presente por certidão – o arguido dirigiu-se ao café A... , em Valverde , a 3 de Novembro de 2001 .

Aí cerca das 20h45 m , ao balcão do café , um dos 3 irmãos , disse ao EE , que lhes pagasse um copo , e como este recusou começou a dar-lhe murros .

2.º Nesta sequência , por motivos não concretamente apurados , o arguido , com um objecto que não foi possível apurar , desferiu uma pancada na zona do nariz do EE , ficando este de imediato a escorrer sangue do nariz e com um golpe .

3.º Entretanto vendo o que se estava a passar com o EE e com o intuito de lhe colocar um fim , GG deslocou-se até ao balcão e disse para os irmãos acabarem aquela agressão , sendo de imediato agredido a murro na cara pelos irmãos do arguido .

4.º O arguido , então , puxou de uma pistola de calibre 7,65 mm, semiautomática , que trazia consigo , cujas demais características não foi possível apurar , e apontou-o ao GG .

Com a arma apontada ao abdómen do GG e a cerca de dois metros de distância deste , o arguido vários vezes premiu o gatilho da arma que , entretanto , não disparou .

De imediato puxou a culatra da arma à retaguarda , altura em que uma munição não deflagrada saltou pela janela de injecção .Então o arguido direccionou a pistola contra a parede e premiu o gatilho , efectuando um disparo . E de novo , repentinamente , voltou a apontar à pistola , agora à cabeça do GG , efectuando um disparo na direcção deste .

5 .º O projéctil não acertou no visado , mas , na sua trajectória , acabou por ricochetear e embater com violência no ombro direito do HH , fazendo-lhe um golpe .

6.º Após esses factos , o arguido e os irmãos dirigiram-se para o exterior do café , altura em que pessoa que não foi possível identificar efectuou um disparo , que atingiu o FF no abdómen . O arguido e os irmãos puseram-se em fuga em duas carrinhas que ali tinham estacionadas .

7.º Mercê das agressões sofridas , FF ficou com uma cicatriz de ferida contusa na região do nariz com traumatismo, bem como ferida incisa de tipo perfurante no abdómen , flanco esquerdo , podendo ter sido feita por arma de fogo , lesões essas que demandaram , para cura , oito dias de doença com incapacidade para o trabalho .

8.º Por sua vez HH sofreu ferida incisa com cerca de meio centímetro de comprimento na face anterior do ombro junto à axila , produzida por instrumento inciso-perfurante junto à axila , produzida por instrumento inciso-perfurante , que demandou para cura , um período de oito dias de doença ,todos com incapacidade para o trabalho.

9 .º GG sofreu escoriação na hemiface esquerda de direcção vertical com cerca de 10 centímetros de comprimento , lesões essas que demandaram , para cura , um período de cinco dias , sem incapacidade para o trabalho .

10.º O arguido livre e conscientemente , com o propósito de tirar a vida ao GG pelo facto de este ter pretendido por fim às agressões , tendo para o efeito accionado o gatilho da arma que apontava ao GG . A arma só não disparou porque na altura se encravou , sabendo o arguido à distância a que se encontrava , o resultado seria a morte daquele , o que efectivamente quis e que só não ocorreu por razões alheias à sua vontade.

11.º Agiu o arguido livre e conscientemente com o propósito de molestar fisicamente o FF e de lhe produzir os ferimentos provocados .

12.º Ao usar a pistola de calibre 7, 65 mm , semiautomática num espaço reduzido onde se encontravam várias pessoas , sabia o arguido que poderia atingir alguém que ali se encontrasse , mormente o HH e embora prevendo esse resultado como possível , com ele se não conformou . Não agiu o arguido com o dever de cuidado a que , naquelas circunstâncias , estava obrigado e de que era capaz , tendo em conta o espaço reduzido e o número de pessoas existente no local .

13.º Sabia o arguido que aqueles seus comportamentos eram punidos por lei .

14 .º Dias mais tarde , cerca da meia noite , de 24 para 25 de Dezembro de 2001 , o arguido e seu irmão II, encontravam-se junto a uma fogueira que ardia no largo da igreja , na localidade de Aldeia Nova , onde também se encontrava JJ .

Estando II e o JJ a conversar aquele ofereceu a este uma cerveja o que ele recusou , tendo o II dado um soco no JJ, caindo este ao chão , após o que JJ saiu daquele local .

15º . Regressado o JJ à fogueira , o arguido , empunhando uma pistola de calibre 7, 65 mm , cujos restantes elementos identificativos não foi possível apurar , chegou e direccionando a pistola à zona do estômago , com o cano apontado para cima, efectuou um disparo, deixando no local , o cartucho deflagrado , após o que se põs em fuga juntamente com o seu irmão .

No local ficou, ainda , um cartucho por deflagrar .

Este disparo a curta distância produziu danificação de vários órgãos ( estômago , fígado e pulmão ) e acentuada hemorragia à direita , o que provocou a morte do JJ .

16.º O arguido não possui licença de uso e porte de arma de defesa .

17.º Agiu o arguido livre e conscientemente como o propósito , concretizado , de tirar a vida ao JJ .

18.º O arguido sabia que não podia deter e manusear a arma em causa e , não obstante , quis fazê-lo , agindo de modo livre e consciente. Sabia o arguido que esses comportamentos eram punidos por lei .

19.º BB , a viúva , tinha 38 anos de idade e o falecido era o pai dos seus três filhos , com oito , seis e um anos de idade. O falecido tinha , aquando da sua morte , quarenta e dois anos de idade e era ele que provinha ao sustento do seu agregado familiar .

A viúva e os filhos sobrevivem com a pensão de segurança social que recebe , no montante de 118 , 27 € mensais , e 26, 28 €, por cada um dos filhos , dependendo das ajudas de familiares e amigos .

Com o trabalho a que se dedicava auferia o falecido rendimentos que , em concreto , não foi possível apurar , mas superiores , em média , 500 € mensais .

20.º . A 3 de Novembro de 2001 , FF foi assistido no Centro de Saúde de Almeida, na sequência das lesões que lhe foram provocadas pelo arguido e demandado , assistência esta que lhe originou despesas no montante de três mil setecentos e oitenta e quatro escudos na moeda então corrente .

21 .º A 3 de Novembro de 2001 HH foi assistido no Centro de Saúde de Almeida , na sequência das lesões que lhe foram provocadas pelo arguido e demandado , assistência esta que originou despesas no montante de setecentos e oitenta e quatro escudos na moeda então corrente .

22.º . A 3 de Novembro de 2001 , LL foi assistido no Centro de Saúde de Almeida , assistência que originou despesas no montante de três mil setecentos e oitenta e quatro escudos , correspondente a dezanove euros e oitenta e sete cêntimos .

23.º A 3 de Novembro GG foi assistido no Centro de Saúde de Almeida na sequência das lesões que lhe foram provocadas pelo arguido e demandado , assistência esta que originou despesas no montante de três mil setecentos e oitenta e quatro escudos na moeda então corrente , correspondente a dezanove euros e oitenta e sete cêntimos .

24.º A 3 de Novembro de 2001 GG foi assistido no Hospital Sousa Martins , na sequência das lesões que lhe foram provocadas pelo arguido e demandado , assistência esta que originou despesas no montante de dezanove euros e quarenta e cinco cêntimos .

25.º Na manhã do dia 25 de Dezembro de 2001 , o arguido ausentou-se do país para destino desconhecido até ser detido à ordem destes autos .

Nasceu e desenvolveu-se numa família minimamente estruturada, de etnia cigana , tinha uma vida organizada em termos familiares e ocupacionais ; seu agregado familiar integra MM , com quem vive em economia comum . Tem quatro filhos sendo que dois frequentam a escolaridade regular , com aproveitamento .

O arguido reside em casa arrendada no Porto ; MM auferiu pela Caixa de Abonos de Família de Cergypt-Pontoise , em França , entre Maio a Julho de 2009 , um total de 1105 , 16 € , actualmente depende do rendimento social de inserção e do abono de família dos filhos , na ordem dos 600 € /mês ; na prisão trabalha na lavandaria auferindo € 2, 10 /dia , estando a ser medicado com antidepressivos pela grande dificuldade em dormir ; cumpre as normas e é respeitador dos outros , sendo bem conceituado pelos superiores hierárquicos que tem confiança no mesmo .

IV .É primário .

V. Colhidos os legais vistos , cumpre decidir :

O poder cognitivo deste STJ , em sede de recurso , cinge-se , em essência , ao conhecimento da matéria de direito , nos termos do art.º 434.º , do CPP , o que não invalida , se posta em crise , a apreciação da forma como a Relação interpretou e a aplicou os critérios a observar pelo recorrente da impugnação da matéria de facto previstos no art.º 412.º n.ºs 3 e 5 , do CPP , bem como o modo de sanação se deficientemente o recorrente deu cumprimento ao ónus de impugnação –art.º 417.º n.º 3 , do CPP -, com o limite enunciado no n.º 4 , quanto ao aperfeiçoamento, a ter lugar, por ser matéria de direito .

O recorrente , pese embora ter enunciado a sua discordância do ponto de vista factual fixado pois que contesta que se tenha dado como provado que o arguido haja desferido uma pancada na zona do nariz de FF , devendo , por isso , funcionar o princípio “ in dubio pro reo “ ; que tenha disparado contra a pessoa de GG com o intuito de o matar e , por fim , que o tenha sido o autor do disparo que atingiu mortalmente a vítima , mas abstendo-se de indicar as concretas provas impondo decisão diversa da recorrida e as concretas passagens da gravação, esta a efectuar pelo tribunal recorrido , com referência à acta , a fim de possibilitar a sua visualização e de outras –art.º 412.º n.ºs 3 b) 4 e 6 , do CPP -, pelo tribunal superior .

A Relação perfilhou o entendimento de que o recorrente se limitou a impugnar em termos vagos e genéricos os factos , ao afirmar que não desferiu pancada no nariz de FF , não teve o propósito de matar GG e não matou mesmo o JJ , sequer usando do convite ao aperfeiçoamento das conclusões , nos termos do précitado art.º 417.º , do CPP , o que lhe mereceu censura .

Assevera o arguido que nenhuma testemunha confirmou a agressão , afirma quanto ao crime de ofensa à integridade física por que foi condenado , na pessoa de FF , por isso se justificaria o funcionamento do princípio in dubio pr o reo ; dada a curta distância a que a vítima GG se achava de si , se a quisesse matar tê-lo –ia feito, logo não agiu com esse “ animus “ ; face ao desentendimento havido entre a vítima mortal –evento de Aldeia Nova - , JJ e o irmão do recorrente , facto testemunhado por algumas testemunhas ouvidas , devia funcionar , atento o disposto no art.º 127.º , do CPP , o princípio “ in dubio pro reo . “

Mais do que uma impugnação da matéria de facto à luz do art.º 412.º , do CPP , se não teria cuidado de apresentar provas , as especificações das provas por referência ao local da acta e as passagens em que se funda a impugnação , o recorrente faz um julgamento próprio , a seu modo , no que respeita ao núcleo duro da condenação , intentando sobrepor a sua convicção probatória à convicção do tribunal , do qual diverge ; em seu entender , ao fim e ao cabo , pura e simplesmente , não se provou que tenha morto , tido o intuito de matar ou ferir, isto numa asserção desacompanhada de factos , reduzindo-se a uma negativa seca e vaga , acolhendo a versão pessoal e interessada que colhe dos factos .

Essa postura não se adequa ao mecanismo previsto no art.º 412.º , do CPP , perspectivando um re -julgamento pontual ,de remédio jurídico para uma concreta questão, mas nem por isso à revelia dos cânones impostos no art.º 374.º n.º 2 , do CPP , com exame das provas , sua crítica e decisão sobre o concreto ponto de facto em controvérsia .

E, sendo assim , não haveria sequer lugar ao convite ao aperfeiçoamento , imposição introduzida na lei n.º 48/07 , de 29 /8 , como resposta a uma indefinição ao nível jurisprudencial , por a alegação do arguido se mostrar dissociada do mínimo conteúdo com virtualidade para modificar a matéria de facto , como consentido no art.º 431 .º , do CPP .

A este STJ , porque respeita à matéria de facto e à forma como foi valorada a prova , com a qual não teve contacto , imediação e concentração , é vedado reapreciar a prova , afirmar o princípio “ in dubio pro reo “ , a menos que resulte do texto da decisão recorrida que o julgador teve dúvidas sobre a imputação do facto e decidiu em desfavor do arguido , e esse não é o caso pois da fundamentação decisória resulta que se lhe não suscitaram, antes , e pelo contrário ,o julgador teve cuidado de firmar a sua convicção segura , ou que o julgador só não declarou esse estado por ter incorrido em manifesto erro notório na apreciação das provas , vício que não se descortina pelo simples exame da decisão recorrida ou pelo recurso a outro qualquer elemento .

VI . Resta , agora , aflorar a questão da medida concreta da pena , desde logo se restringindo o âmbito do recurso , pela sua inadmissibilidade parcial , como a seguir se explanará .

O poder cognitivo que este STJ é chamado a exercer , considerando que a lei n.º 59/98 , de 25/8 , ao alterar o CPP , pela 15.ª vez , e particularmente o seu art.º 400.º n.º 1 , traz à ponderação o mecanismo de contenção de recursos , decalcado do direito canónico , apelidado de dupla conforme , que o fautor da lei n.º 48/2007 , de 29/8 , manteve no mesmo art.º 400 .º , ao alterá-lo .

A dupla conforme , enquanto barreira à reponderação em recurso pelo decidido por tribunal inferior , assenta , fundamentalmente , em razões de ordem lógica e pragmática , pois não faz sentido interpõr recurso , repetindo a argumentação , quando um tribunal superior já se debruçou sobre o decidido , beneficiando de presunção de acerto , imodificabilidade que mais se impõe em questões de média e pequena criminalidade , com o que se realiza a teleologia presente na regulamentação dos recursos para o STJ , inscrita na Proposta de Lei n.º 109/X, “ de restringir o recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento penal “ , “ numa óptica de celeridade e eficiência nos recursos “ , abolindo-se , por sistema, um sistema de duplo grau de recurso , não obstante este propósito se contradizer nos dizeres da lei , em alguns segmentos do art.º 400.º n.º 1 , do CPP , obrigando a um esforço interpretativo nem sempre isento de escolhos ou dúvidas .

O arguido foi condenado em 7 anos de prisão em 1.ª instância, pela prática de um crime de homicídio qualificado p . e p . pelos art.ºs 22.º , 23.º , 131.º e 132.º n.º s 1 e 2 a) do CP mantida pela Relação , como as penas de prisão impostas pela prática de crime de detenção ilegal de arma e de ofensas à integridade física simples , de 18 e 9 meses , respectivamente pelo que dispondo o art.º 400.º n.º 1 f) , do CPP , que não há recurso de acórdãos condenatórios confirmando a decisão de 1.ª instância e , cumulativamente , apliquem pena de prisão não superior a 8 anos , se realiza a confirmação “ in totum “ e a irrecorribilidade da decisão quanto a essas penas , a coberto do caso julgado .

Nem se diga que a solução ora preconizada, atenta contra o direito fundamental do acesso ao direito e à justiça consagrado no art.º 20.º , da CRP , porque o direito de defesa do arguido não exige , sempre e em todas as condições , mais do que um grau de recurso .

O nosso sistema de recursos não abdica de um duplo grau de jurisdição em matéria penal , aliás de acordo com o art.º 14.º n.º 5 , do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos , aprovado para ratificação pela Lei n.º 29/78 , de 12/6 , que não impõe um triplo grau de jurisdição .

Em consonância o art.º 5.º n.º 4 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem limita-se , e só , a assegurar o direito ao recurso de qualquer pessoa condenada em pena de prisão ou a detenção.

O direito ao recurso inscreve-se no leque dos direitos fundamentais do arguido , no art.º 32.º , da CRP , e foi consagrado pela revisão constitucional de 1997 , enquanto afirmação de um “ due process of law” , já que o Estado não deve limitar-se a afirmar a sua superioridade sobre o condenado , detendo o poder punitivo , sem assegurar àquele o direito ao reexame da questão por um outro tribunal , situado num plano superior , oferecendo garantias de defesa e imparcialidade .

A nova redacção , em feição restritiva em matéria de recursos , do art.º 400.º , do CPP , introduzida pela Lei n.º 48/07 , de 29/8 , teve em mente, na linha de pensamento dominante na Proposta de Lei n.º 109/X, “ restringir o recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento penal , substituindo-se a regra da admissibilidade do recurso em função da moldura da pena aplicável , concentrada no art.º 400.º n.º 1 als. e) e f) , do CPP na versão antecedente pela da pena concretamente aplicada.

Do antecedente –art.º 400.º n.º s 1 e) f) , do CPP -não era admissível recurso para o STJ das decisões da Relação que aplicassem pena de multa ou pena de prisão não superior a 5 anos ou que confirmassem decisão de primeira instância por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a 8 anos; a referência à pena por crime punível abstractamente com pena de prisão não superior a 5 anos ou a 8 anos , nas alíneas e) e f) , do mesmo art.º e versão , deu lugar ao pressuposto da pena concretamente aplicada.

E a recorribilidade para o STJ , directamente das decisões do colectivo, em seu reexame de direito , ficou assegurada pela condenação superior a 5 anos de prisão , nos termos do art.º 432.º n.º 1 c) , do CPP .

Só haverá recurso da Relação desde que as penas parcelares sejam superiores a 5 anos de prisão ( P.º n.º 152/06.6GAPNC.C2 .S1), e não haja dupla conforme , isto porque se quis , com a reforma do CP de 2007 , implementar um regime de recursos que não interferisse na celeridade processual da fase de inquérito à de julgamento , potenciando-se a economia processual numa óptica de celeridade, restringindo-se o recurso à pena efectivamente aplicada e não já à aplicável, desde que superior a 5 anos , nos termos do art.º 432.º n.º 1 c) , do CPP.

É o que resulta, ainda , da interpretação da lei , recorrendo ao seu o elemento histórico , a “ ocasio legis “, expressa de algum modo naquela Proposta , conjugadamente com o elemento racional , dele destoante sendo uma interpretação que abstraia do bom senso e da lógica, assente na visão sistémica da lei , com repúdio pela sua análise isolada , impondo-se que as penas privativas de liberdade inferiores a 5 anos , atingido o crivo da Relação , não ascendam ao juízo censório do STJ porque a sua medida não respeita aos casos de maior merecimento penal, já porque o art.º 432.º n.º 1 c) , do CP, se directamente o não evidencia pelo menos numa interpretação “ a contrario “ ele resulta .

Além de que ficaria por compreender que fosse garantido o acesso directo ao STJ apenas nos casos em que a pena aplicada fosse igual ou superior a 5 anos e , irrestritamente , o fosse , em mais um grau de recurso , se apreciada já pela Relação e aquele fosse relegada em mais um recurso , sobretudo em se tratando de uma pena atinente a criminalidade de menor gravidade .

Nessa medida também a condenação nas penas de 7 anos , 18 meses e 9 meses anos de prisão não admitem legalmente recurso .

VII . A questão da “ reformatio in pejus “ :

O arguido foi condenado em 8.3 .2010 , na prática dos mesmos crimes e penas , que agora lhe são imputados e aplicadas , em cúmulo jurídico em 16 anos de prisão , de que só o arguido interpôs recurso para a Relação , porém esse mesmo acórdão condenatório e o julgamento foram anulados por deliberação do Colectivo em 1.ª instância com o fundamento em imperceptibilidade da gravação da prova a que se procedeu , porém posteriormente , pelos mesmos delitos e penas foi condenado em 1.ª instância em 18 anos de prisão , condenação de que interpôs recurso para a Relação, que a manteve , interpondo , agora , o presente recurso para este STJ e é essa agravação da pena , para mais 2 anos de prisão ( de 16 anos para 18 anos ) , que o leva a invocar ante este STJ a violação do princípio da proibição da “ reformatio in pejus “ , com tradução no art.º 409.º n.º 1 , do CPP , com o apoio do M.º P.º no Tribunal da Relação e , seguindo-o , no STJ

O preceito prescreve que , interposto recurso de decisão final somente pelo arguido ( como é o caso, do primeiro e deste ) , pelo M.º P.º , no interesse exclusivo daquele , o tribunal superior não pode modificar , na sua espécie ou medida , as sanções constantes da decisão recorrida , em prejuízo de qualquer dos arguidos , ainda que não recorrentes .

O princípio da proibição remonta ao séc. XVIII , repousando na teoria dos direitos adquiridos no sentido de que o arguido adquire após a primeira sentença condenatória o direito a não ser sujeito a uma sentença mais grave do que a proferida em antecedente julgamento , relacionando , alguns autores , a proibição com origem num “ Avis “ do Conselho de Estado francês , reportado a 1806, funcionando a proibição como um verdadeiro limite ao conteúdo da decisão do tribunal de recurso e aos seus poderes de cognição

Entre nós o Assento deste STJ de 5.5.50 afirmou a possibilidade de agravação, mais conforme com a natureza pública do processo penal e condizente sendo com o alcance de uma pena justa , mas só a lei n.º 2139 , de 5.3.69 , dando nova redacção ao art.º 667 .º , do CPP de 29 , enquanto mais consentânea com o princípio do acusatório e a estrutura acusatória do processo (art.º 32.º n.º 5 , da CRP) assegurando mais eficazmente , favorecendo –o , o fim do processo na medida em que põe o condenado a salvo do receio de recorrer , “ permitindo a reapreciação do facto relativamente a um maior número de sentenças reputadas injustas pelos condenados “ , nas palavras do Prof. Figueiredo Dias , in Direito Processual Penal , I , 259 , impôs disciplina diversa .

A “ ratio “ do instituto radica nas mais díspares razões , mas uma mais antiga pondera uma ideia de equidade , não fazendo sentido reformar para pior uma sentença se só o arguido recorre , não o fazendo o M.º P.º , transitando em julgado quanto a ele o decidido; uma outra na ideia de “ favor reo “ , de benefício , de concessão de uma garantia última dos seus direitos de defesa , como contrapeso da sua debilidade posicional no processo , mas já em Pisani a razão é de índole reguladora do processo , de instrumento que regulariza o andamento justo do processo na medida em que , pelo menos , não desencoraja o arguido de recorrer com receio de sentença mais gravosa ( Cfr. Mara Lopes , in a O Princípio da Proibição da Reformatio in Pejus , como Limite aos Poderes Cognitivos e Decisórios do Tribunal , Estudos em Homenagem ao Professor Jorge de Figueiredo Dias , Vol.III , Coimbra Ed., 949 a 996 )

Para Damião Cunha , in Caso Julgado Parcial , pág . 227 , o princípio assume uma função garantística do exercício do direito ao recurso , questionando-se, no entanto , se a proibição se deve limitar ao estrito âmbito impugnatório ou , deve consagrar-se como afloramento de um princípio geral de processo penal , ligado ao exercício do direito de defesa .

Enquanto circunscrito ao direito ao recurso interposto pelo arguido no seu exclusivo interesse ou pelo M.º P.º no mesmo sentido , o princípio , ou seja a proibição de “ reformatio “ denominada nesta modalidade de directa , é fortemente limitativa do poder decisório do tribunal ; porém concebido , embora com controvérsia , como um princípio geral de direito de processo penal , enquanto direito de defesa , consagrado no art.º 32.º n.º 1 , da CRP , o princípio , em nome do direito a um processo justo , “ due process of law “ , actua com maior latitude , e , assim , no caso de anulação ou reenvio do processo para novo julgamento , em 1.ª instância , o princípio não se esvai – é a apelidada “ reformatio “ indirecta -, limitando , igualmente , o poder decisório do tribunal inferior , que não pode em tal caso agravar a situação do arguido .

O tribunal inferior , diz –se , não há-de ter poderes mais amplos do que o tribunal superior ; a proibição de “ reformatio “ se limita o tribunal superior por maioria de razão há-de limitar o inferior , atenta a cadeia hierárquica que se estabelece entre ambos e a íntima conexão entre o decidido nas instâncias , dada a decorrência lógica entre a solução a alcançar .

Aliás sempre que o titular da acção penal não manifesta discordância , não se concebe que o Estado , através dos seus órgãos de administração da justiça , sobrepondo-se ao arguido , lhe possa impor uma reacção penal mais severa do que a cominada do antecedente .

E quando se alude à controvérsia gerada na matéria defendem uns que o princípio tende a negar qualquer eficácia retroactiva para além da impugnação

Assim aquando da anulação já nada subsiste do anulado ; a decisão de 1.ª instância desaparece ; o arguido tem , forçosamente , de aceitar as consequências da anulação , devendo admitir como possível nova decisão sobre a prova e emissão de um juízo decisório novo, não estando este condicionado ou prédeterminado pela decisão do anterior julgamento , esta a argumentação desenvolvida maioritariamente no Ac . deste STJ , de 9.4.2003 / P.º n.º 4628/02 -3:ª Sec., com voto de vencido em defesa da tese contrária e de 17.3.2004 , P.º 4415/04 -3.ª Sec.

A argumentação em sentido oposto defende que o princípio da proibição da “ reformatio “ deve ser conformado como uma importante componente do direito ao processo justo e equitativo , marcado pela estrutura acusatória do processo e pelo direito ao recurso .

Sempre que a acusação pública se conforma com a decisão ou o M.º P.º recorre no interesse da defesa ocorre uma vinculação processual ; os parâmetros decisórios pelo tribunal de recurso ficam intraprocessualmente condicionados por este instrumento de defesa .

A extensão desse parâmetro decisório atinge , em nome da coerência , em novo julgamento , por anulação ou reenvio , o poder cognitivo deste último tribunal , ou seja todas as instância incluídas no “ iter” decisório nenhuma razão havendo para distinguir entre “ reformatio “ directa ou indirecta , como se escreveu naquele voto de vencido , e se sentenciou nos Acs . deste STJ , de 8.7.2003 , P.º n.º 2616/03-5.ª Sec. , de 17 .2.2005 , P.º 04P4324 , de 17.2.2005 , P.º n.º 565 /05 -5 .º Sec. , 2.3.2006 , P.º 550/06 -5.ª Sec., 29.4.2003 , P.º 768 /03-5.ª e 5.7.2007 , in CJ , STJ , Ano XV, II , 2007 , pág. 239 .

Na doutrina , cfr. , ainda , Jorge Dias Duarte , in Proibição de Reformatio in Pejus , Consequências Processuais , Revista Maiajuridica , Ano I , n.º 2 , Julho –Dezembro de 2003 , pág . 205 , em comentário favorável ao Ac .citado de 9.4.2003 .

Dos art.ºs 6 .º , da CEDH , 14.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a da jurisprudência do TEDH , também resulta que , em respeito por um processo equitativo estruturado em princípios como os da lealdade processual , contraditório e igualdade de armas , se adoptem posições de equilíbrio , e assim que quando o recurso só é usado pela defesa , em nome do princípio da proibição da “ reformatio “ , se imporá que o arguido não seja surpreendido em recurso e nas suas consequências com uma situação de gravame .

O TC no seu Ac. n.º 236 /2007 , de 30.3.2007 , P.º n.º 201/4 , veio a julgar inconstitucional a norma do art.º 409.º n.º 1 , do CPP , por violação do art.º 32.º n.º 1 , da CRP , quando interpretada no sentido de não proibir o agravamento da condenação em novo julgamento a que se procedeu por o primeiro ter sido anulado em consequência de recurso apenas interposto pelo arguido .

VIII . O caso concreto não se identifica inteiramente com a doutrina e jurisprudência que acima se apontaram , mas apresenta contornos que se tocam , em manifesta analogia entre si , bastando atentar que o acórdão condenatório proferido em primeiro lugar , de que M.º P.º não interpôs recurso , foi anulado pelo Colectivo por comprovação de uma anomalia , da responsabilidade essencialmente do tribunal sobre o qual impende a obrigação de dispôr de material de gravação sem defeito e , concomitante , de verificação , amiúde , sobre o estado dela , por forma a colmatar os inconvenientes , de toda a ordem , a que uma repetição de julgamento forçosamente conduz .

De consignar que se o julgamento fosse então apreciado em recurso por tribunal superior , a este estava vedado aplicar pena de prisão excedendo os 16 anos , por força da proibição do princípio da “ reformatio in pejus “ , sendo essa assim deve assinalar-se essa mesma consequência, por uma questão de justiça material , quando o Tribunal da Relação , posteriormente , se debruça sobre o caso , só o fazendo em primeira mão por causa que lhe não é de todo imputável se é que se lhe deve assinalar qualquer culpa , justamente por defeito do material para suporte de gravação , forçando a novo julgamento , cuja pena unitária não pode exceder 16 anos .

IX . Só a medida da pena imposta ao recorrente , por força da restrição apontada ao poder cognitivo deste STJ , quanto ao crime de homicídio simples , de 12 anos de prisão, consente reponderação , não sem que antes se defina a moldura de punição que cinge apenas à fixada para o tipo –matriz do art.º 131 .º , do CP , de 8 a 16 anos de prisão , não havendo lugar a o concurso da agravante prevista no art.º 86.º n.º 3 , da Lei das Armas ( Lei n.º 5/2005 , de 23/2 , com a redacção da Lei n.º 17/2009 , de 6/5 ) , alargando a moldura no seu mínimo e máximo de 1/3 , ou seja de 10 e 4 meses a 21 anos e 4 meses de prisão , porque quer a lei quer a sua alteração são posteriores ao facto, nos termos do art.º 2.º n.º 4 , do CP .

O nosso CP consagra uma concepção utilitarista da pena conferindo-lhe um alcance pragmático , à margem de um sentido retributivo , nessa medida divergindo o fautor da lei no art.º 40.º n.º 1 , do CP , de uma concepção mista retributivo –preventiva , a reinante na generalidade dos sistemas penais, assinalando à filosofia das penas restritamente uma finalidade preventivo –geral e especial , de garantia das expectativas comunitárias na validade e eficácia da norma penal ,neutralizando os impulsos criminosos de potenciais delinquentes , e por outro lado prevenir a reincidência do condenado , procurando incutir nele padrões de comportamento futuro, por forma a não hostilizar o tecido social, fidelizando-se ao direito, reinserindo-o

A culpa do agente funciona como antagonista , limite , do ideário de prevenção; quaisquer que sejam as necessidades de prevenção nunca estas podem sobrepor-se à medida da culpa-n.º 2 , do art.º 40.º , do CP .

A pena , dentro desta concepção pragmática , procura responder à medida da necessidade da protecção dos bens jurídicos e a importância destes é decalcada na maior ou menor gravidade da moldura típica, relevância manifestada , desde logo, pelo facto de o art.º 131.º , do CP , iniciar a sua Parte Especial , e , depois, pela dimensão da pena que cabe ao homicídio, sobre o qual se constroem as figuras que o agravam e o atenuam .

A pena , ao nível concreto , descendo dos princípios inspiradores do sistema ao particularismo do caso “decidendi “ , releva da culpa e da prevenção e das circunstâncias que fazendo parte do tipo atenuam ou agravam a responsabilidade penal do agente ( art.º 71.º n.º 1 , do CP ) , funcionando os preceitos citados em articulação imprescindível .

Ao nível da culpa denota a decisão recorrida , em 3 de Novembro de 2001 ,pelas 20h45 , por razões inapuradas, além de desferir uma pancada na zona do nariz do EE , que se achava no interior de um café de Valverde , comarca de Almeida , ficando este de imediato a escorrer sangue , por via de um golpe vibrado com uma pistola de calibre 7, 65 mm , semiautomática, indocumentada , que , depois , apontou ao abdómen do GG e a cerca de dois metros de distância deste , várias vezes premindo o gatilho daquela arma que , entretanto , não disparou , para depois puxar a culatra à retaguarda , altura em que uma munição não deflagrada saltou pela janela de ejecção ( não injecção ) , direccionando-a contra a parede, premindo o gatilho e efectuando um disparo .

De novo , repentinamente , voltou a apontar à pistola , agora à cabeça do GG , efectuando um disparo na direcção deste .

O projéctil não acertou no visado ,e só por razões alheias à sua vontade não lhe causou a morte , como era seu intuito , acabando aquele por ricochetear e embater com violência no ombro direito do HH , fazendo-lhe um golpe .

GG interveio , antes , para põr termo a uma agressão em curso a EE , em que se envolveu um dos três irmãos do arguido .

Cerca da meia noite , de 24 para 25 de Dezembro de 2001 , e a fechar o ciclo factual delitivo , quando ardia uma fogueira no adro da igreja de Aldeia Nova , o arguido , estando presente um irmão , empunhou uma pistola de calibre 7, 65 mm , sem licença de uso e porte, cujos restantes elementos identificativos não foi possível apurar , que direccionou à pessoa de JJ, mais concretamente à zona do estômago , com o cano apontado para cima, efectuando um disparo, deixando no local , o cartucho deflagrado , após o que se põs em fuga juntamente com o seu irmão .

Este disparo efectuado só porque recusara a oferta de uma bebida do imão do arguido levado a cabo a curta distância produziu danificação de vários órgãos ( estômago , fígado e pulmão ) e acentuada hemorragia à direita , o que provocou , intencionalmente , a morte do JJ , que , na altura , se achava junto à dita fogueira .

X. O arguido evidencia um dolo intenso , uma vontade criminosa, firme , irrevogável e repetida , de matar e lesar a integridade física alheias , um sentimento de profundo desrespeito pela vida e integridade física de terceiro, uma personalidade a quem é indiferente o resultado dos seus actos , disparando a esmo , irreflectidamente , a arma , sem nada o demover e razão compreensível , e , depois , pelo abandono do local , com os demais irmãos , presentes na ocasião dos crimes , só anos depois sendo capturado em França , onde se refugiou a fim de , claramente , se subtrair à acção da justiça .

As consequências dos seus actos não podiam deixar de ser as mais graves , pois que para além de agressões corporais , quis insistentemente ocasionar a morte de GG e matou mesmo JJ , lançando para a orfandade 3 crianças ainda de tenra idade , filhas daquele , agora a cargo da mãe , então de 38 anos –a vítima tinha 42 - , sobrevivendo a progenitora de magra pensão de segurança social , nos montante sde 118 , 27 € mensais , e 26, 28 €, por cada um dos filhos , dependendo das ajudas de familiares e amigos , auferindo o falecido , em média , mais de 500 € mensais.

Tudo para acentuar o elevado grau de desvalor das acções , tanto pelo modo da execução , onde impera reiteração da intenção , como das consequências , ou seja da sua ilicitude .

A prevenção que pela via da pena se impõe , tanto geral , como especial , assumem particular relevo, pois o valor da vida humana tende a banalizar-se , a inferir de práticas homicidas em crescendo ,criando um sentimento de insegurança e intranquilidade junto da comunidade , que espera , para pacificar esse clima e até demover intuitos de vingança , uma actuação firme dos órgão aplicadores da lei .

Ao nível da incidência da pena sobre a pessoa do arguido há-de ela fazer interiorizar a gravidade dos seus actos , carecendo de evidente emenda cívica em ordem a conformá-lo a respeito por valores fundamentais que lesou, em espiral de violência , comunitariamente intolerável .

O arguido era primário na data dos factos , mas essa circunstância não significa bom comportamento anterior aos factos ; mostrava-se integrado sócio , familiar e profissionalmente e na prisão cumpre os seus deveres de recluso , nada mais fazendo do que a sua obrigação , não se justificando , face aos critérios individualizadores da pena , previstos no art.º 71.º , do CP , que essa pena parcelar seja alterada .

XI . Defender a susceptibilidade de uma atenuação especial da pena com base no facto de ter decorrido muito tempo sobre a data da prática do crime , à luz do art.º 71.º n.º 2 d) , do CP , é argumento de logo arredar .

É verdade que os factos tiveram lugar já há longo tempo , no dia 3 de Novembro de 2001 e na noite de 24 para 25 de Dezembro do ano de 2001 , mas logo de manhã do dia 25 o arguido fugiu do local do crime para local incerto , só vindo a ser detido mais de 7 anos depois , ou seja em 17. 7.2009 –cfr. fls . 1008 , 1010 e 1491 .

As circunstâncias atenuantes especiais , anteriores , concomitantes ou posteriores ao crime , hão de diminuir por forma acentuada , a culpa , ilicitude ou a necessidade de pena –art.º72.º n.º 1) , do CP ; as circunstâncias anteriores relevam por via da culpa ; as demais por via da prevenção , anota Paulo Pinto de Albuquerque , in Comentário do Código Penal , a págs . 234 .

A atenuante especial invocada –n.º 2 d) , do art.º 72.º - que não pode segundo Figueiredo Dias , ligar-se à ilicitude ou culpa-cfr. Actas do Código Penal , 1993 , pág . 79- não podendo essa atenuante especial , segundo Figueiredo Dias , ligar-se à ilicitude ou culpa-cfr. Actas do Código Penal , 1993 , pág . 79 , há-de repousar no facto de ter passado muito tempo e o agente manter ao longo desse tempo boa conduta , havendo quem entenda que esse tipo de conduta se expressa de uma forma negativa pelo simples não cometimento de crimes , em contrário , de forma mais exigente e de praticabilidade difícil , se situando o Prof. Cavaleiro de Ferreira ,in lições de Direito Penal , 1989 , ed. VERBO , 136 , para quem ele há-de resultar da prática relevante de actos positivos por opostos à actividade criminosa .

Ora a fuga à acção da justiça por mais de 7 anos , que só cessou quando pela emissão de MDI , foi detido em França, em 17.7.2009 mantendo –se ao longo deste prazo numa completa indiferença pela prestação de contas pelos seus actos , actos , que envolvem , além do mais , um homicídio e uma sua tentativa , não é seguramente manter uma boa conduta pressuposto de um injustificado e contraditório prémio , não podendo o arguido beneficiar desse prolongamento excessivo de prazo, sendo que pode , na verdade , incluir –se na boa conduta posterior ao facto a apresentação voluntária às autoridades ( cfr. Paulo Pinto de Albuquerque , op. cit . , pág . 235).

Acrescente-se que os crimes cometidos pelo arguido, de homicídio consumado e tentado , são graves , ocupando , aquele , a primazia de tratamento na parte especial do CP ; o decurso do tempo , com relação à sua autoria e efeitos , não apaga ou dilui a sua gravidade em termos de culpa e nem a sua ilicitude , na consciência colectiva e , por isso , a necessidade de pena a fixar sê-lo-à dentro da elasticidade da suficiente da moldura penal normal , sem necessidade de criação de uma moldura especial , por incapacidade de aquela responder de forma justa a uma pressuposta situação denotando uma imagem global do facto altamente favorecente do arguido.

XII . A pena de conjunto , nos termos do art.º 77.º n.ºs 1 e 2 , do CP –que não é uma elevação esquemática ou arbitrária da pena disponível , segundo Iescheck, RPCC, Ano XVI ,155 -repousa numa valoração global dos factos , que são representativos , em termos de avaliação da personalidade , enquanto manifestação estrutural dela , ou de uma mera pluriocasionalidade , dissociada de uma “ carreira “ criminosa ou uma propensão que aquela pena exacerba –cfr. Acórdão do STJ de 06-10-2010, proferido no P.º n.º 107/08.6GTBRG.S1, disponível in www.dgsi.pt.- , inclinação ainda sem visível génese ou raízes nela, legitimaria , em nome de sentidas necessidades de correcção e interiorização , para prevenção da sucumbência a novos crimes-cfr . Prof . Figueiredo Dias , in Direito Penal Português-As Consequências Jurídicas do Crime , 292 - ser fixada em 18 anos de prisão , mas que há que reduzir , por força do art.º 409.º , do CPP , a 16 anos .

XIII . Nestes termos , revogando-se , em parte o decidido , concedendo-se provimento ao recurso , condena-se o arguido na pena única de 16 ( dezasseis ) anos de prisão , englobando as parcelares , de 12 anos , 7 anos , 18 meses e 9 meses de prisão .

Sem tributação .

Supremo Tribunal de Justiça, 2 de Novembro de 2011.

Armindo Monteiro (Relator)

Santos Cabral