ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
401/06. OG TSTR.E1. S1.
DATA DO ACÓRDÃO 11/30/2011
SECÇÃO 3ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL RECURSO PENAL
DECISÃO REJEITADO O RECURSO
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR ARMINDO MONTEIRO

DESCRITORES ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
ACORDÃO DA RELAÇÃO
DUPLA CONFORME

SUMÁRIO I  -  A norma do art. 400.º, n.º 3, do CPP, deixa em aberto, por carência enunciativa de conteúdo, a admissibilidade do recurso relativamente à indemnização cível fixada em processo penal pela via do enxerto cível sempre que, a tal respeito, se registe a confirmação em recurso, da decisão de 1.ª instância, à semelhança do que sucede, em certas condições, quanto à medida da pena, em se realizando a chamada dupla conforme.
II -  Estamos em presença de uma lacuna de regulamentação sustentada e sugerida, desde logo, porque não se vê qualquer razão para os intervenientes processuais penais pleitando no enxerto cível usufruam de uma perspectiva de favor.
III - Com a alteração ao CPP através do DL 48/07, de 29-08, teve-se o propósito de estabelecer a igualdade entre quem pretenda impugnar decisão cível proferida em processo penal ou cível no que respeita a matérias de indemnização.
IV - Essa equiparação de procedimento na acção cível e penal introduz desejável parificação de procedimentos e, consequentemente, é a mais justa, tanto mais que, no caso vertente, estando já em vigor o DL 48/07, de 29-08 – o pedido cível foi interposto em 29-04-2008 – a ser instaurada a acção cível autonomamente, a inequívoca redacção actualizada do art. 721.º, n.º 3, do CPC, ser-lhe-ia aplicável.
V -  Se em matéria penal, onde se colocam questões de onde pode derivar a privação de liberdade individual, por estar em causa a ofensa a valores fundamentais de subsistência comunitária, reclamando intervenção vigorosa do direito penal, impera a regra da dupla conforme, por maioria de razão, estando em causa a ressarcibilidade do prejuízo, mediante a atribuição de uma soma reparadora em dinheiro, a solução não deve ser divergente.
VI - Por isso, o STJ, nos seus Acs. de 29-09-2010, in Proc. 343/05.7TAVFN.P1.S1, e de 22-06-2011, in Proc. 444/06.4TASEI, das 3.ª e 5.ª Secções, respectivamente, adoptou a solução da inadmissibilidade legal do recurso, sempre que, sem voto de vencido, ou seja, com confirmação do julgado de 1.ª instância, a questão cível seja decidida em recurso, como in casu, solução que aqui se subscreve.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL

Acordam em conferência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça :

Em processo  comum com intervenção do tribunal singular  sob o n.º 4o1/06. O TJSTR.CS S1. do Tribunal Judicial de Santarém , foi submetido a julgamento AA, vindo ,  a final a decidir -se  :   

  Declarar extinto, por prescrição, o procedimento por contra – ordenações imputadas ao arguido;

 Condenar o arguido como autor material de:

· Um crime de ofensa à integridade física por negligência, p e p pelo artº 148º nº 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (oito euros), o que perfaz a pena de multa de € 800,00 (oitocentos euros);

· Julgar parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização cível deduzido por BB e, em consequência, condenar a demandada ... – Companhia de Seguros, SA, a pagar à demandante a quantia de € 91.968,09 (noventa e um mil, novecentos e sessenta e oito euros e nove cêntimos, da qual deve ser descontada a quantia de 1.000,00 (mil euros) já adiantada pela demandada), total a título de indemnização por facto ilícito, [sendo 51.968,09 € por danos patrimoniais e 40.000,00 € por danos morais], quantia total acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, contados à taxa legal de 4%, desde a data de notificação para contestar, até integral pagamento [os juros são devidos desde a citação até integral pagamento ,

a) Absolver a demandada ... – Companhia de Seguros, SA do restante pedido formulado pela demandante BB. 

b) Condenar a demandada ... – Companhia de Seguros, SA,  a pagar ao demandante Instituto de Segurança Social, IP – Centro Distrital de Santarém a quantia de 828,79 € a título de subsídio de doença pago à demandante no período entre 27 de Maio de 2008 a 18 de Outubro de 2008.

A seguradora , demandada , inconformada com o teor do decidido , interpôs recurso para a Relação , que confirmou  , inteiramente , o julgado .

 Inconformada , ainda , recorre a  seguradora  da parte cível , apresentando na motivação as seguintes conclusões:

1.         A indemnização por danos futuros, decorrentes da perda de capacidade de ganho do lesado, é fixada em juízo de equidade, como decorre, conjugadamente, do disposto nos art.°s 562°, 564° e 566°, n.°s 2 e 3 do Código Civil

2.         Como tem sido jurisprudência constante, na fixação da indemnização, deverão ser tidos em conta critérios de verosimilhança ou de probabilidade, encontrando-se um capital apto a proporcionar a parcela de rendimento perdido durante o período de vida activa do lesado, mas de modo a que se encontra esgotado no final desse período, tendo ainda em conta o benefício da antecipação.

3.         A demandante BB tinha 43 anos de idade à data do acidente, exercia as funções de empregada de aviário, auferindo a remuneração mensal de € 385,90 e ficou a sofreu de uma IPP de 14%, que, em termos de rebate profissional, é compatível com o exercício da sua profissão, mas implica esforços suplementares.

4.         Atendendo ao normativo legal e à orientação jurisprudencial já aludidas, o rendimento que a indemnização deverá substituir é de € 756,36 anuais, correspondente a € 385,90 X 14 X 14%, devendo a quantia arbitrada compensar essa perda, mostrando-se esgotada no final do período

5.         Tendo em conta estes elementos, o valor fixado na douta sentença, a título de danos futuros, € de 50.000,00, é manifestamente excessivo, pois, só por si, a uma taxa fixa de 3%, representa um rendimento anual de € 1.500,00, que é pouco menos do dobro do rendimento a substituir.

6.         E tendo em conta o um período de vida útil até aos 75 anos e considerando a idade da demandante à data do acidente, o rendimento perdido seria, no seu total, de € 24.919,88, correspondente a € 756,36 X 33 anos, menos de metade do que foi fixado pela douta sentença da Ia instância e confirmado pela Relação.

7.         Pelo que a quantia arbitrada é excessiva, por muito superior ao prejuízo que a demandante tem, em consequência da incapacidade e nem mesmo tem em conta o benefício da antecipação, tendo o douto acórdão violado o disposto nos art.°s 562°, 564° e 566°, n.°s 2 e 3 do Código Civil, devendo o valor arbitrados a título de danos decorrente da incapacidade parcial permanente ser reduzido para quantia não superior a € 20.000,00.

8.         Nos termos do art.° 496°, n°s 1 e 3 do Código Civil, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, devendo o tribunal ter em atenção as circunstâncias referidas no art.°494°.

9.         Os danos não patrimoniais são aqueles que, não sendo susceptíveis de avaliação pecuniária, pela sua gravidade merecem a tutela do direito, cabendo ao julgador, em cada caso, dizer se o dano é ou não merecedor dessa tutela e fixar a indemnização com base em critérios de equidade.

10.       A satisfação ou compensação dos danos não patrimoniais não é uma verdadeira indemnização, no sentido de um valor que reponha as coisas no seu estado anterior à lesão, antes visa proporcionar ao lesado situações ou momentos de prazer ou de alegria, bastantes para neutralizar, na medida do possível, a intensidade da dor pessoal sofrida.».

11.       Na fixação do " quantum " indemnizatório, o julgador terá de se arrimar ainda mais intensamente ao que vem sendo fixado pelos tribunais,  de modo a ultrapassar a contradição que resulta de fixar um montante relativo à perda do bem supremo que é a vida inferior ao que vem sendo fixado por outros danos não patrimoniais em que o lesado fica vivo.

12. Tendo em conta as circunstâncias do caso e a valorização corrente do direito à vida, em torno dos € 50.000,00, é exagerado o montante de € 40.000,00 arbitrado na douta sentença, correspondente a 80% daquela valor, mostrando-se violados os art.°s 494° e 496° do Código Civil, pelo tal quantia deverá ser reduzida para valor não superior a € 15.000,00.

13.0 Instituto da Segurança Social só tem direito a obter o reembolso das prestações que pagou, nos termos do n.° 1 do art.° 8.º  do DL 132/88 «em situações de incapacidade para o trabalho decorrentes de acidente de trabalho ou de acto de terceiro pelas quais sejam devidas indemnizações, as instituições de segurança social asseguram a concessão provisória das correspondentes prestações enquanto não se encontrar reconhecida a responsabilidade de quem deva pagar aquelas, indemnizações».

14. Estando assente que a demandante BB teve alta em 27/05/2001, data da consolidação das lesões, não está a demandada obrigado a reembolsar o demandante Instituto da Segurança Social, dado que a quantia de € 828,79 se refere a subsídios de doença pago à demandante BB no período compreendido entre 27/05/2008 e 18/10/2008, muito posterior à data da alta, devendo ser absolvida do pedido.

BB, demandante nos autos , apresentou  a sua resposta ,notificada  à recorrente, suscitando a questão prévia  da admissibilidade do recurso , alegando que ,  com a alteração ao artigo 400° do C.P.P., operada pela Lei 48/2007, o legislador visou conferir ao recurso, na indemnização civil em processo penal, as mesmas possibilidades que no processo civil, ou seja, que as possibilidades de recurso sejam as mesmas, num e noutro tipo de processo, estabelecendo assim a igualdade entre todos os recorrentes em matéria civil, dentro e fora do processo penal - Exposição de Motivos da Proposta de Lei n° 109/X.

Daí que seja aplicável ao processo penal o disposto no artigo 721°, n° 3, do C.P.C..

O acórdão recorrido confirmou, sem qualquer voto de vencido, a decisão proferida em Ia instância.

O pedido de indemnização foi formulado em 29 de Abril de 2008, pelo que, se deduzido em separado, ser-lhe-ia aplicável o regime do DL 303/2007 e, nomeadamente, o referido artigo 721° do C.P.C., pelo que a decisão seria irrecorrível, tal como o é em processo penal.

Colhidos os legais vistos , cumpre decidir :

A questão da inadmissibilidade do recurso relativamente  à indemnização cível fixada em processo penal pela via do enxerto cível sempre que , a tal respeito,   se registe a confirmação,  em recurso ,  da decisão de 1.ª instância , à semelhança do que sucede , em certas condições , quanto à medida da pena , em se realizando a chamada  dupla conforme –art.º 400.º n.º 1 f) , do CPP  -, figura emergente do direito canónico , já foi suscitada ante este STJ .

E deve dizer –se que , em nosso entendimento , concorre uma vasta gama de argumentos , que não cedem perante o preceituado no art.º 400.º n.º 3 , do CPP , na redacção trazida pela Lei n.º 48/07 , de 29/8 ,   ao estabelecer que mesmo não seja admissível recurso da questão penal , pode ser interposto recurso da decisão relativamente à indemnização cível .

Esta inovação tem de incoerente,  desde logo , contra toda uma tradição legislativa , o facto  de atribuir competência ao STJ para intervir , em recurso , no julgamento de decisões do tribunal singular , que , como regra, se quedam na esfera de competência da Relação , reservada , como está , aquele função , ao julgamento de veredictos colegiais .

 Mas , mesmo não havendo recurso da matéria penal , o legislador privilegiando o julgamento da questão cível , e não levando em conta a adesão da acção cível à acção penal, recebendo o processo penal o pedido cível , subordinando-se à sua ritologia adjectiva , só se destacando desta os pressupostos substantivos  da acção cível , veio revogar tacitamente o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência  , deste STJ ,  n.º 1 /2002  , in DR 1-A , de 21.5. 2002  , ao significar que “…não cabe recurso ordinário da decisão final do Tribunal da Relação , relativa à indemnização civil , se for irrecorrível a correspondente decisão penal .

Como se não ignora orientou o legislador do actual CPP , de 87 , o princípio de regulamentar de forma global e autónoma o processo penal , de fazer  dele um sistema fechado , completo , desnecessário sendo o recurso ao CPC , como lei subsidiária , cingindo esse recurso , em preenchimento de lacuna de regulamentação , bastando-se o CPP a si mesmo , por recurso ao seu feixe normativo .

E assim se entende que a regulamentação estabelecida no CPP deve prevalecer , ainda que , em esforço interpretativo , sobre a fixada no CPC , afastando-se lacunas , onde os cânones interpretativos , ainda  permitam arredá-las. 

De consignar que no CPC , a norma do  art.º 721.º n.º 3 , do CPC , veio , em data recente , após a entrada em vigor da alteração introduzida pelo Dec.º-Lei n.º  303/2007 , de 24/8 ,   estabelecer que não é admitida revista de acórdãos da Relação que confirme , sem voto de vencido , a decisão de 1.ª instância …”

A norma do art.º 400.º n.º  3 , do CPP , deixa em aberto , por carência enunciativa de conteúdo , a admissibilidade do recurso em caso de dupla conforme , limitando , apenas , a estabelecer que a admissibilidade do recurso tem de obedecer , desde logo ,  a dois pressupostos , a saber : ser o valor da acção superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada ser desfavorável para o recorrente em valor superior à metade dessa alçada, mas em confirmando-a , sem haver desconformidade , será admissível o recurso , pergunta-se .

É que havendo confirmação , ocorre presunção de duplo  acerto decisório , em termos de ,  também , em nome da celeridade processual , se não justificar o recurso , mais um grau de jurisdição de  recurso .

E sobre esta questão o predito  preceito não nos responde .

Estamos em presença de uma lacuna de regulamentação sustentada e sugerida desde logo porque  não se vê qualquer razão para os intervenientes processuais penais pleiteando no enxerto cível  usufruam de uma perspectiva de favor , aliás chocante , se  lhes adicionarmos  privilégios como , por ex.º ,  os de a falta de contestação não importar confissão , de o julgamento do enxerto não estar sujeito ao espartilho da base instrutória  , de  que  o autor não goza em processo cível , ali beneficiado por uma postura inquisitória  que se sobrepõe a um quase puro dispositivo de parte, sem falar já  no aspecto tributário, onde , só  a final , surge o custo da litigância .   

É uma postura de tratamento desigual , entre as partes ,  que merece , para não sobrelevar , que se considere que consta da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 109/X , o propósito de , com a alteração ao CPP através do citado Dec.º-Lei n.º 48/07 , de 29/8 ,  estabelecer a igualdade entre quem pretenda impugnar  decisão cível proferida no processo penal ou cível no que respeita a matérias de indemnização .

Isto quando se afirma que “ Para garantir o respeito pela igualdade admite-se a interposição de recurso da parte da sentença relativa à indemnização cível mesmo nas situações em que não caiba recurso da penal  “ , havendo que levar essa equiparação às ultimas consequências .

E também se visiona , com tal alteração ,   o intuito , inscrito na Proposta ,  de restringir  o segundo grau de jurisdição de recurso e o triplo grau de jurisdição ,  ou seja o acesso ao sTJ , a casos de maior merecimento penal numa perspectiva de celeridade processual .

Essa equiparação de procedimentos na acção cível e penal  introduz desejável parificação de procedimentos e  , consequentemente , é a mais justa, tanto mais que , estando já em vigor o Dec.º-Lei n.º 48/07 –o pedido cível foi interposto em 29/4 /2008 –a ser instaurada a acção cível autonomamente , a inequívoca redacção actualizada do art.º 721.º n.º 3 , do CPC   ser-lhe-ia , sem dúvida , aplicável .

Este STJ , nos seus Acs. de 29.9.2010 , in P.º n.º 343/05.7TAVFN.P1 .S1 e de 22.6.2011 , in P.º n.º 444/06.4TASEI , das suas 3.ª e 5.ª Secs., respectivamente, adoptaram a solução da inadmissibilidade  legal do recurso , sempre que , sem voto de vencido , ou seja com confirmação do julgado de 1.ª instância ,   a questão cível  seja decidida  em recurso , como in casu ,   solução que , aqui ,  se subscreve .

Se , em matéria penal , onde se colocam questões  de onde pode derivar a privação de liberdade individual , por estar em causa  a ofensa  a  valores fundamentais de subsistência comunitária  , reclamando intervenção vigorosa do direito   penal ,  impera a regra da dupla conforme ,  por maioria  de razão   , estando em causa a ressarcibilidade do  prejuízo , mediante a atribuição de uma soma reparadora  em dinheiro , a solução  não deve ser divergente . 

Termos em que  se rejeita liminarmente o recurso ,  por inadmissibilidade legal .

Custas pela recorrente .

Supremo Tribunal de Justiça, 30 de Novembro de 2011

Armindo Monteiro (Relator)

Oliveira Mendes