ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
3037/05.0TBVLG.P1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 12/15/2011
SECÇÃO 6.ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR SALAZAR CASANOVA

DESCRITORES CONTRATO DE COMODATO
DOAÇÃO
BEM IMÓVEL
USUFRUTO
POSSE PRECÁRIA
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
PRAZO INCERTO
DENÚNCIA

SUMÁRIO I - Se a doação de imóvel (terreno com garagem implantada) não foi efectuada com reserva de usufruto porque assim o quiseram doadores (pais) e donatária (filha), os poderes de facto que aqueles continuarem a exercer sobre o imóvel não correspondem ao exercício de um direito real limitado como é o direito de usufruto que apenas se pode considerar constituído nos termos constantes do art. 1440.º do CC.

II - Não agindo como beneficiários do direito de propriedade ou do direito de usufruto, não podem deixar os doadores de ser havidos como detentores ou possuidores precários (art. 1253.º, al. a), do CC).

III - Não deixa de configurar um contrato de comodato (art. 1129.º do CC) o contrato em que os doadores e donatária e respectivo cônjuge acordam que até à morte dos doadores aqueles continuem a utilizar gratuita e exclusivamente não apenas a garagem para guarda do seu veículo e de outras pessoas, como ainda, para cultivo, a parte não coberta do imóvel doado onde a donatária veio a edificar uma moradia integrando a garagem reconstruída.

IV - É que, face a um tal acordo, seria absurdo convencionar-se a obrigação de restituição, não devendo, por esta razão, considerar-se que a ocupação ao longo de anos da garagem e do tracto de terreno foi efectuada por mera tolerância dos donatários.

V - No aludido contrato de comodato não foi convencionado prazo certo para a restituição; quando as partes estipularam prazo incerto ou não estipularam prazo algum para a restituição, rege o disposto no art. 1137.º, n.º 2, do CC segundo o qual o comodatário é obrigado a restituir a coisa entregue logo que assim o seja exigido pelo comodante (denúncia ad nutum).

VI - No contrato de comodato, a cláusula pela qual o comodante declarou proporcionar a utilização da coisa até à morte do comodatário será válida desde que interpretada no sentido de que não obsta, por imposição da própria lei, a que o comodante possa sempre denunciar o contrato ad nutum.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. AA propôs no dia 17-5-2005 acção declarativa com processo ordinário contra BB e CC deduzindo contra estes os seguintes pedidos:

- Que seja restituída à A. a posse da garagem e do tracto de terreno identificados, abstendo-se de praticarem os aduzidos actos de turbação da posse que a A. exerce sobre os mesmos bens imóveis com as legais consequências.

- Que sejam condenados a pagar à A. uma indemnização pelos danos não patrimoniais e patrimoniais identificados no montante de 2.600€.

- Que sejam condenados a pagar à A. uma indemnização , a liquidar em execução de sentença, pelos danos patrimoniais causados ao veículo automóvel identificado e descrito nos artigos 52.º a 56.º.

- Que seja fixada uma sanção pecuniária compulsória não inferior a 25€ por cada dia em que se verifique a violação do direito do autor.

2. Alegou a A., respectivamente mãe e sogra dos réus, que era proprietária com o seu marido, entretanto falecido (no dia 2-2-2002), de um prédio urbano com área coberta de 126m2 e descoberta de 454m2; nessa parte descoberta estava implantada uma garagem destinada ao veículo do marido da A. e de dois inquilinos; a filha dos réus pretendia edificar um imóvel para sua habitação nessa parte descoberta e os pais acordaram ceder-lhe, para o efeito, uma parcela desse terreno com a área de 264,5m2 a desanexar; outorgaram contrato-promessa de doação e depois, em 11-10-1991, contrato de doação; a parcela foi doada por conta da quota disponível dos doadores.

3. Mais alegou a A. que ela e marido condicionaram a doação à reserva de usufruto do imóvel e da construção que nele fosse erigida pois nesse tracto de terreno, a desanexar, encontrava-se a mencionada garagem que seria encimada pelo prédio a construir; sucede, porém, que, carecendo filha e genro da autora, de financiamento bancário para a construção do imóvel, era inviável a manutenção do usufruto pretendido pelos doadores como condição para a doação e, por isso, decidiram A. e marido que a doação tivesse por objecto a propriedade plena do tracto de terreno.

4. No entanto, contrataram - paralelamente à doação - a manutenção do uso, sem qualquer contrapartida remuneratória e sem subordinação a qualquer prazo, da totalidade da garagem que integraria a construção a erigir pelos réus e a parte descoberta do mesmo tracto de terreno, ate à morte deles doadores, do que resultava o uso exclusivo por estes da dita garagem e dessa parte descoberta do prédio e para as finalidades descritas, o que foi aceite pelos réus.

5. Em execução do dito acordo foi celebrado o mencionado contrato-promessa de doação e depois a escritura de doação, o imóvel foi construído e a garagem continuou a ser utilizada pela autora e marido até à morte deste e pela autora até Agosto de 2004 quando os réus procederam à mudança da fechadura da porta da garagem, impossibilitando à autora o acesso, impedindo igualmente a autora de utilizar a parte descoberta do imóvel daí decorrendo os prejuízos agora reclamados.

6. Foi deferida providência de restituição provisória de posse requerida pela autora, resultando do alegado que a A. é legítima possuidora da garagem e da parte descoberta do prédio, sendo-lhe lícito o recurso aos meios legais para a defesa dela e a restituição da posse ofendida. De resto - prossegue a autora - entendendo-se embora que a situação descrita configuraria a situação de comodato, podia ela igualmente socorrer-se dos meio legais para a defesa da posse.

7. Os réus contestaram argumentando, para além do mais, que não houve usufruto algum constituído a favor da autora - não houve reserva de usufruto com a escritura de doação - sucedendo que o R/C da moradia edificada pelos réus está afectado a garagem, constatando-se ainda que a garagem pré-existente que os réus utilizavam foi destruída por não poder a moradia ser edificada encimando-a.

8. Esse R/C com a área de 121m2 foi efectivamente utilizado pelos doadores e inquilinos destes porque deixaram de possuir garagem e a mudança da fechadura foi efectuada apenas por razões de segurança, não tendo a autora sido impedida de continuar a cultivar na parcela dos réus.

9. A acção foi julgada improcedente nas instâncias.

10. A A. sustenta que o acórdão incorre em erro de interpretação da lei quando entende que a prova do direito de propriedade dos réus afasta a possibilidade de a autora ser titular de um direito de usufruto sobre a parcela doada, pois a recorrente nunca alegou que o seu animus possidendi fosse o de proprietária mas sim o de usufrutuária da parcela doada em crise.

11. Assim sendo, provada a posse da autora com ambos os elementos que a compõem, está esta legitimada a defender a sua posição com recurso aos meios possessórios, como fez na presente acção, enquanto não ficar definitivamente decidida a questão da titularidade do direito real a que corresponde o animus possidendi .

12. Por outro lado, mesmo que esta pretensão improcedesse, sempre haveria de ter solução contrária o pedido formulado quanto à declaração de existência de um contrato de comodato, sem prazo, salvo o que adviria da morte do último dos membros do casal constituído pela apelante e pelo seu falecido marido, pois, ao invés do que alude a sentença sob recurso, crê-se que da prova produzida nestes autos sempre teria de entender-se que se encontram preenchidos todos os requisitos que informam o instituto do comodato.

13. Sustenta a recorrente que parece resultar inequívoco dos autos que (a) os recorridos entregaram a coisa à recorrente e ao seu falecido marido; (b) a entender-se não ter havido desapossamento dos recorridos da materialidade dos bens em questão, sempre teria de entender-se que a recorrente - inicialmente em conjunto com seu falecido marido - manteve a posse sobre eles; (c) foi convencionada a obrigação de restituição dependente apenas do decesso dos comodatários; (d) momento - a verificação de tal condição - em que operaria o termo do contrato de comodato, surgindo então a obrigação de restituição.

14. Considera a recorrente que ficou provado que o comodato vigoraria até à morte do último dos comodatários e que não está provado nenhum facto violador das obrigações dos comodatários emergente do contrato em questão.

15. Factos provados:

1 – A autora AA e DD estão inscritos como proprietários do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Valongo sob o nº --.---, situado na Rua ... de O..., nº ..., e Rua da C... nº ..., em E..., Valongo - cf. certidão de fls. 30 e SS. (alínea A) da especificação).

2 – Através do documento escrito constante de fls. 34, cujo teor se dá aqui por reproduzido, DD e AA declararam que prometiam doar à Ré BB, por conta da sua quota disponível, livre de quaisquer ónus ou encargos, a parcela de terreno destinada a construção urbana, com a área de 264,5, a confrontar de Norte com EE, de Sul com FF e GG, de Nascente com Rua da C... e de Poente com DD, a destacar do prédio urbano inscrito na Matriz da freguesia de Ermesinde, concelho de Valongo, sob o artigo .... - cf. documento de fls. 34 (alínea b) da Especificação).

3 - Através de escritura pública lavrada no Cartório Notarial de Valongo no dia 11.11.1991, DD e a Autora declararam doar à Ré, por conta da sua quota disponível, a parcela de terreno, situada na Rua da C... nº ..., em E..., Valongo, destinada a construção urbana, com a área de 264,5, a confrontar de Norte com HH, de Sul com Rua da C..., de Nascente com II, a destacar do prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Valongo sob o nº ... – cf. cópia de certidão de fls. 35 e ss (alínea C) da especificação).

4 – Os réus estão inscritos na Conservatória do Registo Predial de Valongo como proprietários do prédio urbano descrito na mesma sob o nº 0---/----, mediante a cota G-1, que corresponde à parcela de terreno referida em 3 - cf. cópia de certidão de fls. 41 e ss (alínea D) da especificação).

5 – Os réus construíram uma habitação, com garagem, existindo uma porta que dá acesso daquela a esta, no prédio referido em 3.1.4 (alínea E) da especificação).

6 – A autora vive no prédio referido em 3. (alínea F) da especificação).

7 – Em 16.08.2004, cerca das 16 horas, os réus colocaram baldes para flores pertencentes à autora, que a mesma guardava na garagem referida em 3. fora da mesma, mantendo nesta um veículo da marca T..., modelo C..., mesas, caixas de fruta, dois sofás e prateleiras, que aí eram guardados pela autora, até 06-05-2005, data em que se procedeu ao cumprimento da decisão proferida na Providência Cautelar nº 3037.05.OTBVLG-A, apenso a estes autos (alínea G) da especificação).

8 – Na mesma data referida em 7 os réus mudaram a fechadura da porta da garagem referida em 5 (alínea H) da especificação).

9 – Não obstante a doação referida em 3, a autora AA e seu marido DD, este enquanto vivo, continuaram a utilizar a garagem já existente na parcela doada, mesmo depois da sua reconstrução feita pelos réus (resposta aos quesitos 1º e 14º a 17º).

10 – Sem qualquer remuneração (resposta ao quesito 2º).

11 – E sem qualquer prazo (resposta ao quesito 3º).

12 – Aí guardando o seu veículo automóvel e outros objectos, bem como os veículos dos Senhores JJ (resposta aos quesitos 4º e 5º e 14º a 17º).

13 – Não obstante a doação referida em 3, a autora AA e seu marido DD, este enquanto vivo, continuaram a cultivar a área descoberta da mesma parcela (resposta ao quesito 6º e 18º).

14 – Sem qualquer remuneração (resposta ao quesito 8º).

15 – E sem qualquer prazo (resposta ao quesito 9º).

16 – Os réus aceitaram o referido em 9 a 15 (resposta ao quesito 10º).

17 – No interior da garagem da casa dos RR existe uma torneira ligada por um tubo à rede de estabelecimento de água da casa da autora (resposta ao quesito 12º).

18 – Os actos descritos em 9, 12 e 13 ocorreram de modo exclusivo (resposta ao quesito 19º).

19 – Com exclusão dos réus (resposta ao quesito 20º).

20 – No dia 11.12.2004, o réu rebentou a torneira existente no interior da garagem (resposta ao quesito 25º).

21 – A autora praticou os factos constantes de 9, 12, 13, 18 e 19 sem oposição de ninguém (resposta ao quesito 28º).

22 – À vista de toda a gente, convencida de que exerce um direito próprio e de que não prejudica ninguém (resposta aos quesitos 29º a 31º).

23- – Devido à actuação dos RR, o veículo automóvel referido em 7 esteve parado desde 11/12/2004 até 06/05/2005 (resposta ao quesito 34º).

24 – Por isso, a bateria do veículo ficou estragada (resposta ao quesito 35º).

25 – Devido à actuação dos RR a autora não conseguiu entrar na garagem até 06/05/2005 (resposta ao quesito 36º).

26 – Devido à actuação dos RR, a autora, sentiu- -se desgostosa (resposta ao quesito 38º).

27 – A autora colocou uma bateria nova no veículo referido em 7 (resposta ao quesito 39º).

28 – Até à altura referida em 8, a autora entrava na garagem com o filho e outras pessoas (resposta ao quesito 45º).

29 – Os autores insurgiram-se com o facto referido em 28 (resposta ao quesito 48º).

30 – Por vezes, a autora permitiu ao seu filho que estacionasse o seu veículo na garagem (resposta ao quesito 49º).

31 – E que aí lavasse o mesmo (resposta ao quesito 50º).

Apreciando:

16. A primeira questão suscitada é a de saber se a pretensão da autora merece tutela por possuir como usufrutuária a garagem e parte não coberta do terreno dos réus.

17. Não se duvida de que, sendo o usufruto direito real menor (artigos 1439.º e segs.), pode constituir-se posse correspondente a esse direito (artigo 1251.º do Código Civil).

18. Por isso, nada obsta à face das regras atinentes à posse que a autora fosse considerada possuidora da garagem e do terreno não coberto dos réus por exercer sobre eles poderes correspondentes aos do direito de usufruto e, assim sendo, pudesse invocar essa sua posse contra os esbulhadores ainda que estes fossem os proprietários desses bens (artigo 1278.º do Código Civil).

19. Prescreve o n.º1 do artigo 1278.º do Código Civil que […] o possuidor perturbado ou esbulhado será mantido ou restituído enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito”, salientando Antunes Varela que se o autor de uma acção de manutenção ou de restituição invocar e provar a posse de um direito real limitado (v.g. de uma servidão aparente) o réu só evitará a procedência da acção se alegar e provar, por sua vez, que tem sobre a coisa um direito de propriedade plena. Não lhe basta fazer a prova pura e simples de que é ele o proprietário. E isto porque o direito de propriedade sobre uma coisa não é incompatível com a existência de direitos reais limitados que tenham a mesma coisa por objecto. Só a propriedade plena exclui a possibilidade de, sobre os bens que constituem o seu objecto, incidirem direitos reais limitados (Código Civil Anotado, 1984, Vol III, 2º edição, pág. 50).

20. Por isso, no caso vertente, não é suficiente para a improcedência da pretensão da autora a prova de que os réus são proprietários dos referidos bens que lhes advieram por doação da autora e marido, pois bem pode a posse da autora fundar-se no direito real limitado de usufruto que haja sido constituído por contrato, testamento, usucapião ou disposição da lei (artigo 1440.º do Código Civil).

21. A autora alegou, como já se viu, que era proprietária da totalidade do imóvel do qual foi desanexada uma parte que ela e o marido doaram à filha e que era sua ideia inicial reservarem , para si, o usufruto do imóvel doado até porque, nessa parcela de terreno, se encontrava uma garagem destinada à guarda de veículos automóveis que vinham utilizando.

22. No entanto, dadas as dificuldades de a filha obter financiamento bancário se fosse constituída reserva de usufruto sobre essa parcela de terreno - e, adiante-se agora, não importa aqui saber se tais razões relevavam efectivamente - a doação foi efectuada sem reserva de usufruto.

23. Ora se é a própria autora a afirmar que ela e o marido não quiseram constituir a seu favor reserva de usufruto, já se vê que os poderes que subsequentemente continuaram a exercer sobre os aludidos bens não correspondem aos poderes do usufrutuário pois nenhum usufruto foi constituído nos termos assinalados pela lei.

24. Não há tão pouco nenhum facto provado que permita considerar que esses poderes de facto que autora e marido continuaram a exercer sobre a garagem e o terreno configurassem uma posse fundada em contrato verbal constitutivo de usufruto posto que nulo por vício de forma - o usufruto sobre coisas imóveis constitui-se por escritura pública (artigo 80.º/1 do Código do Notariado) , portanto, uma posse não titulada, mas pacífica e de boa fé em que os doadores agissem como beneficiários desse direito.

25. Ainda assim, não dispondo os doadores do direito real de usufruto sobre os aludidos bens e não tendo invocado a sua aquisição por usucapião, a protecção que lhes é conferida soçobraria diante do proprietário visto que, como se salientou no acórdão recorrido, citando Antunes Varela, a protecção conferida ao possuidor traduz-se numa tutela provisória, destinada unicamente a manter determinada situação de facto, enquanto não se provar quem é o verdadeiro titular do direito real correspondente(loc. cit, pág. 49).

26. Essa cedência justifica-se porque

de nada valeria manter uma posse contra a qual o titular do direito podia, logo a seguir, reagir triunfantemente através de uma acção de reivindicação (Varela, loc. cit, pág. 50).

27. Com efeito, prescreve o artigo 1311.º/1 do Código Civil que o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.

28. A. e marido não podem, por conseguinte, deixar de ser considerados detentores ou possuidores precários (artigo 1253.º do Código Civil).

29. Alegou, no entanto, a autora que a situação verificada - e entramos agora na segunda questão - configura a constituição de contrato de comodato entre os doadores e a donatária.

30. A ser assim, a autora pode opor ao comodante os meios facultados ao possuidor nos artigos 1276.º e seguintes (artigo 1133.º/2 do Código Civil).

31. Contrato de comodato é o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa , móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir ( artigo 1129.º do Código Civil).

32. Ora, face à matéria de facto provada, verifica-se que houve acordo entre doadores e réus de que, não obstante a doação, a autora e seu marido continuariam a utilizar a garagem já existente na parcela doada, mesmo depois da reconstrução feita pelos réus (ver 9 supra) aí guardando o seu veículo automóvel e outros objectos, bem como os veículos de duas outras pessoas ( ver 12 supra) sem qualquer remuneração e sem qualquer prazo (ver 10 e 11 supra).

33. Se a autora e marido , no momento da transmissão da propriedade, eram já possuidores da garagem, os poderes de facto subsequentemente exercidos sobre a coisa encontram agora a sua justificação no contrato de comodato celebrado, não impondo a lei que a entrega da coisa careça de uma declaração sacramental ou formulária.

34. A recorrente tem por insustentável o entendimento de que, por não ter sido convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, seja o comodatário obrigado a restitui-la logo que lhe seja exigida (artigo 1137.º/2 do Código Civil) pois está provado que o comodato vigoraria até à morte do último dos comodatários e não se encontra provado nos autos “qualquer facto violador das obrigações dos comodatários emergentes do contrato em questão”.

35. No entanto, se atentarmos nos factos provados, verifica-se que não está provado que algum prazo certo haja sido convencionado. Aquilo que está provado é que o marido da autora enquanto vivo utilizou a garagem já existente, o que está em conformidade com a existência de um comodato constituído sem prazo certo e sem afectação da coisa para uso determinado ( ver 9, 10 e 11 supra), portanto, não subsumível ao disposto no artigo 1137.º/1 do Código Civil.

36. Diversamente, porém, se considerarmos que foi convencionado prazo para a restituição (artigo 1137.º/2 do Código Civil) é de ponderar se o comodante pode ainda assim exigir a restituição quando lhe aprouver. Prescreve o artigo 1137.º/2 do Código Civil que “ se não foi convencionado qualquer prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restitui-la logo que lhe seja exigida”.

37. Na jurisprudência já se tem sustentado que o subtipo do contrato de comodato - designado precário - contemplado nesse artigo 1137.º/2 do Código Civil não abrange os casos em que foi convencionado prazo incerto (certus an, incertus quando) para a restituição. Neste sentido, vejam-se os Acs. da Relação do Porto de 26-1-1984 (Resende Rego) C.J.,1, pág. 231/233 Ac. da Relação de Lisboa de 25-5-2000 (Salvador da Costa) C.J., 3, pág. 99,Ac. da Relação de Coimbra de 27-6-2006 (Isaías Pádua), C.J., 3, pág. 20/24.

38. Esta orientação compagina-se com o entendimento jurisprudencial dominante em Itália o que, para nós, tem interesse, na medida em que o artigo 1137.º do nosso Código Civil teve por fonte os artigos 1809.º e 1810.º do Código Civil italiano. Este último preceito do Código Civil italiano, sob a epígrafe, “ Comodato sem determinação de prazo” prescreve que se não foi convencionado prazo nem ele resulta do uso a que a coisa foi destinada, o comodatário é obrigado a restitui-la logo que o comodante o requeira” O texto em italiano cuja tradução é da nossa responsabilidade diz:

Art. 1810 Comodato senza determinazione di durata



Se non è stato convenuto un termine né questo risulta dall'uso a cui la cosa doveva essere destinata, il comodatario è tenuto a restituirla non appena il comodante la richiede.. Assim, recentemente o Ac. do Supremo Tribunal de Cassação no processo n.º 8548/2008 de 3 de Abril reafirmou o entendimento de que “ é admissível o comodato de uma casa destinado a alojar o comodatário durante toda a vida sem que, por isso, deva considerar-se constituído um contrato de habitação com a consequente necessidade de observância de forma escrita ad substantiam. A imposição de forma escrita nos contratos previstos no artigo 1350.º do Código Civil não respeita ao comodato imobiliário ainda que de duração superior a 9 anos o qual pode ser provado por testemunhas e por presunções. No caso de um comodato a prazo, que é o caso de um comodato para toda a vida do comodatário, dada a natureza obrigatória do contrato, os herdeiros do comodante são obrigados a respeitar o termo de duração do contrato na pendência do qual ocorreu a morte do comodante” O texto em italiano cuja tradução é da nossa responsabilidade: "È configurabile il comodato di una casa per consentire al comodatario di alloggiarvi per tutta la vita senza che perciò debba ravvisarsi un contratto costitutivo di un diritto di abitazione, con conseguente necessità di forma scritta ad substantiam" "L'onere della forma scritta nei contratti previsto dall'art. 1350 c.c. non riguarda il comodato immobiliare, anche se di durata ultranovennale, il quale può essere provato per testi e per presunzioni" "Nell'ipotesi di comodato a termine , quale è quello di un immobile per tutta la vita del comodatario, stante la natura obbligatoria del contratto, gli eredi del comodante sono tenuti a rispettare il termine di durata del contratto, in pendenza del quale si sia verificata la morte del comodante".




39. Antunes Varela, em anotação ao artigo 1137.º/2 do Código Civil refere que “ a duração máxima da locação, fixada em 30 anos no artigo 1025.º, não tem aplicação ao comodato. Esta não é, todavia, solução pacífica em Itália. Tem-se dito que a atribuição de um uso muito prolongado reconduz o contrato ao campo das doações indirectas; e, se se trata da atribuição de um uso por toda a vida do comodatário, ao direito de habitação (cf. Fragalli, ob. cit., artigo 1809.º,nº1, alínea a). É difícil, entre nós, justificar qualquer limite legal de duração do contrato” (Código Civil Anotado, Volume II, 2ª edição, 1981, pág. 595).

40. Na verdade, como salienta Lorenzo Pellegrini “ um outro problema que se suscitou entre os intérpretes foi o de saber, a partir do momento em que o artigo 1809.º do Código Civil não põe nenhum expresso limite à duração do contrato, se é admissível um comodato imobiliário de longa duração, ou mesmo, com a estipulação “ durante toda a vida” (vita naturale durante), destinado, quer dizer, a vigorar enquanto vivo for o beneficiário: não obstante as opiniões contrárias ( ver, por exemplo, Fragali, Dellle obbligazioni, Comodato, cit ,p. 225 s, o qual propendia para a limitação até nove anos da possível duração do comodato; para uma limitação a 30 anos, ver, porém, Tete “Comodato” em Dig. Disc. priv.Sez. civ., III, Turim, 1988, p 44) é hoje quase pacífica a orientação favorável a tal possibilidade, com exclusão igualmente da necessidade de forma escrita ( na jurisprudência, v. Cass, 4 de Dezembro de 1990, n 11620, na Giur it, 1992, 1,c, 1809 ss com anotação de Canale, Comodatovita natural durante’”(“Contrato di Comodato a Termine e Morte del Comodante “ Rivista di Diritto Civile, 2000, Ano XLVI, n.º4, Julho/Agosto, pág. 478/493).

41. Não impondo a lei um limite temporal quando, no comodato, os contraentes convencionam prazo certo para a restituição da coisa, já se vê que o comodante que pretende emprestar a coisa sempre poderia fixar um prazo certo suficientemente alargado por forma a coincidir com o tempo provável de vida do comodatário e, nesse caso, a fraude à lei apenas se vislumbraria se houvesse a lei por inadmissível a fixação de um prazo de longa duração ou a estipulação de empréstimo durante a vida do comodatário, ponto este a que voltaremos.

42. Resulta do n.º 1 do artigo 1137.º do Código Civil que a restituição da coisa não carece de interpelação “ se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição, mas esta foi emprestada para uso determinado”; se houve fixação de prazo certo, a restituição impõe-se, findo o contrato, conforme resulta da conjugação deste preceito com o artigo 1135.º,alínea h) do Código Civil.

43. A dificuldade está em que o n.º 2 do artigo 1137.º do Código Civil prescreve que “ se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restitui-la logo que lhe seja exigida” o que permite considerar que a restituição mediante interpelação se impõe quando não foi convencionado prazo certo para a restituição nem determinado o uso da coisa. Daqui decorre que em todos os casos em que se haja fixado prazo incerto, o comodatário seria obrigado a restituir a coisa logo que lhe fosse exigida.

44. A ser assim, se tivermos por válida a estipulação de um comodato para toda a vida ou por um período indeterminado de tempo ( v.g. empresto-te a minha casa de praia em Albufeira até ao dia em que deixares de trabalhar nessa localidade) parece surpreender-se a incoerência da possibilidade de o comodante exigir a restituição da coisa ad nutum contra o que foi estipulado. Dir-se-á então que a restituição ad nutum será apenas admissível para aqueles casos em que a coisa foi entregue para o uso do comodatário sem qualquer fixação de prazo (v.g. já que foste colocado como professor em Lisboa, empresto-te a minha casa de Lisboa para aí viveres com a tua mulher e filha).

45. Dos exemplos dados, e de outros similares, não parece retirar-se uma razão de ser que justifique a diferença de solução. No primeiro caso apenas porque foi definido o termo incerto do empréstimo, o comodatário pode ver assegurada o gozo da coisa por anos, porventura até por toda a vida se nunca mais deixar de trabalhar em Albufeira ao passo que, no segundo caso, porque o comodante não definiu nenhum momento para a restituição, já o comodatário não pode deixar de restituir a coisa logo que lhe for exigido. Pensamos todavia que a própria fixação de prazo incerto pode resultar da finalidade do comodato. Nos exemplos apontados resulta evidente que o empréstimo da habitação tinha em vista a permanência do comodatário numa determinada localidade; e não seria pelo facto de o comodante num caso não ter mencionado expressamente que o comodatário utilizaria a casa enquanto permanecesse em Lisboa que não se iria considerar que o comodato, também nesta hipótese, tinha em vista um prazo incerto.

46. Dir-se-á, no entanto, que a vinculação do comodante ao contrato estabelecido apenas se justifica quando o comodante se comprometeu durante determinado período à cedência da coisa a favor de outra pessoa ou à cedência da coisa para uso determinado, rectius, para utilização específica, pois, tratando-se de um contrato gratuito, não se deve aceitar que o comodante haja de permanecer vinculado contratualmente por período de tempo indeterminado que pode ser o da própria vida do comodatário. A este argumento acresce ainda que, atenta a natureza deste contrato, deve ser sustentada uma interpretação que proporcione segurança mínima na aplicação do Direito. Os exemplos dados indicam-nos que um comodante que ceda a sua coisa por prazo incerto pode ficar numa situação bem mais gravosa do que aquela que ficaria se tivesse querido tirar proveito da coisa, arrendando-a por contrato de duração indeterminada passível hoje de denúncia ad nutum com a antecedência referida no artigo 1101.º, alínea c) do C.Civil.

47. Argumentar-se-á, em contrário, que se a lei quisesse inequivocamente impor a restituição ad nutum em todos os casos em que não foi convencionado prazo certo, tê-lo-ia seguramente dito, repetindo, no n.º2 do artigo 1137.º do Código Civil, a referência a “ prazo certo” que consta do n.º1 desse preceito. Este argumento, de ordem literal, não parece ser muito convincente, pois a conjugação dos preceitos ( n.º1 e 2 do artigo 1137.º do Código Civil admite o entendimento contrário.

48. Saliente-se ainda que a lei num contrato intuitu personae e gratuito como é o comodato não quis obviamente que o comodante que entregou coisa sua para utilização do comodatário ficasse na contingência de não mais a poder reaver. Como referia Loysel, jurisconsulto francês do século XVI, “ prêter et retenir ne vaut”. Dito isto, não pode deixar de se reconhecer alguma diferença entre a situação em que o comodante empresta a coisa para utilização do comodatário sem qualquer fixação de prazo, hipótese em que não seria de todo compreensível que aquele a não pudesse reclamar quando quisesse, daquela outra em que o comodante concorda com a fixação de um prazo ainda que incerto. É que, neste caso, o comodante quer efectivamente que o comodatário utilize a coisa por determinado período tempo que não deixa de o ser por ser incerta a sua duração. Se ao violinista uma determinada empresa empresta o seu Stradivarius para que ele o utilize durante toda a sua vida profissional, o prazo é incerto, mas não se duvida de que houve efectivamente uma vontade de proporcionar até ao termo da vida profissional do comodatário um tão famoso instrumento que ele, virtuoso da arte, melhor do que ninguém saberá e merece utilizar. Será que esta diferença não encontra na lei uma concreta expressão que permita ponderar em determinados casos e circunstâncias solução diferente da que resulta de uma total assimilação dos casos em que houve fixação de prazo incerto àqueles em que não houve fixação de nenhum prazo?

49. Saliente-se também que, quando a coisa é entregue para um uso determinado, tem-se em vista a utilização da coisa para um determinada finalidade, não a utilização da coisa em si. Emprestar a vivenda para a realização de uma festa constitui comodato para uso determinado, mas não constitui comodato para uso determinado o mero empréstimo da referida vivenda para habitação. Por isso, não será ao abrigo do uso determinado da coisa que ficará impedido o comodante de exigir a restituição ad nutum nos termos do artigo 1137.º/2 do Código Civil. No Ac. do S.T.J. de 29-5-1979 (Santos Victor) 067830, como os demais citados sem outra referência consultáveis em www.dgsi.pt, considerou-se que era determinado o uso do local cedido de instalação de cavalos para aprendizagem de tauromaquia; no entanto, no Ac. do S.T.J. de 12-6-1996 (Sampaio da Nóvoa) 088392 referiu-se que “ no comodato, dois requisitos são necessários para caracterizar o uso determinado do empréstimo de prédio: a) que ele esteja expresso de modo bem claro; b) e, para evitar que em parte a situação se possa confundir com uma atitude de doação, que esse uso seja de duração limitada; neste mesmo sentido, o de o uso ser determinado, veja-se o Ac. do S.T.J. de 26-6-1997 (Fernando Fabião) 97A334 onde se salienta

que que o uso só é determinado quando se delimita a necessidade temporal que o comodatário visa satisfazer, pelo que não se pode considerar como determinado o uso de certa coisa se não se ficar a saber quanto tempo ela vai durar, ou seja, um uso genérico e abstracto que pode subsistir indefinidamente, pois que, de contrário, se atingiria a própria noção do contrato dada pelo artigo 1129 do Código Civil, de que faz parte a obrigação de restituir a coisa entregue, o que revela o carácter temporal do uso (Pires de Lima e Antunes Varela, C.C. Anotado, volume II, 440; Vaz Serra, R.L.J. 114, 21 e 22; acórdão do S.T.J. de 29 de Setembro de 1993, B.M.J. 429, 807; acórdãos da Relação do Porto de 26 de Janeiro de 1984, 6 de Junho de 1991, 11 de Janeiro de 1994, in, respectivamente, C.J. 1984, Tomo 1, 231, 1991, Tomo 3, 246, 1994, Tomo 2, 173). Portanto, o comodatário, neste caso, está obrigado a restituir a coisa logo que lhes seja exigida (artigo 1137 n. 2), extinguindo-se o comodato e ficando os réus sem a poder usar, dado ficarem na posição de depositários, nos termos do n. 1 do artigo 1192 do Código Civil (cf. cit. acórdão da Relação do Porto de 6 de Junho de 1991 e Pires de Lima e Antunes Varela, no local citado por este acórdão).

50. A lei italiana permite a restituição imediata antes do termo do prazo quando “ sobrevenha uma urgente e imprevista necessidade ao comodante” (artigo 1809.º do Código Civil italiano), hipótese que se nos afigura compreendida na justa causa de resolução a que se refere o artigo 1140.º do Código Civil. Não está, assim sendo, o comodante impedido, verificando-se ocorrência que justifique a necessidade de restituição da coisa - e compreende-se que o conteúdo da justa causa, num contrato desta natureza, há-de ter um âmbito mais amplo do que em contratos de diversa natureza - de pôr termo ao contrato. Este ponto é importante porque, a seguir-se orientação idêntica à da jurisprudência italiana, não deixará o comodante ainda assim de poder obter a restituição da coisa num amplo e significativo número de circunstâncias.

51. Referenciando o seu exaustivo estudo “Do Contrato de Comodato” a um contrato de comodato em que é consentida a utilização de habitação “pela duração de vida do comodatário”, o Prof. Júlio Gomes conclui-o com estas palavras:

Dir-se-á, pois, que de jure condito um contrato celebrado pela duração da vida do comodatário e pelo qual uma pessoa consente à outra a utilização de uma habitação é um contrato de comodato e não um contrato de doação e é um contrato em que o uso concedido ao comodatário é temporário, tem a duração da vida remanescente deste, o que equivale à aposição de um termo incerto […] a morte do comodatário é um termo incerto e basta para constituir o termo de eficácia do comodato (Cadernos de Direito Privado, n.º 17,Janeiro/Março 2007, pág. 3-31.

52. Diversamente do que sucedeu em Itália, a jurisprudência francesa considera que “ a obrigação do comodatário restituir a coisa emprestada depois de a ter utilizado é da essência do comodato; se nenhum termo foi convencionado para o comodato de uma coisa de uso permanente, sem que nenhum termo natural seja previsível, o comodante tem o direito de lhe pôr fim a todo o tempo, respeitando um prazo de pré-aviso razoável”(Tribunal da Cassação, 1ª secção cível, de 3 de Fevereiro de 2004) Texto original: “ L’obligation pour le preneur de rendre la chose prêtée après s’en être servi est de l’essence du commodat; lorsqu’un aucun terme n’a été convenu pour le prêt d’une chose d’un usage permanent, sans qu’aucun terme naturel soit prévisible, le prêteur est en droit d’y mettre fin à tout moment, en respectant un délai de préavis raisonnable”.

53. Em anterior decisão do Tribunal da Cassação de 19 de Novembro de 1996 aceitou-se que a restituição não seria de decretar uma vez emprestado o imóvel para satisfazer uma necessidade permanente do comodatário, a de habitação; a ser assim, o comodante arriscava-se, na verdade, a jamais recuperar o seu bem. Nesse acórdão de 1996, ao subordinar-se a restituição da coisa à prova da necessidade urgente e imprevista do comodante, atingia-se fortemente a obrigação essencial do comodato […]. Com efeito, “ o comodatário, susceptível de beneficiar de um comodato vitalício, encontra-se numa situação semelhante à do usufrutuário. Quanto ao comodante, uma vez que ele tinha acordado num contrato de benefício, o qual, por definição, não implica nenhum ganho, metamorfoseava-se, para seu mal, numa espécie de doador em que a sua ausência de ganho inicial se transformava num verdadeiro empobrecimento. Uma tal descaracterização do comodato para uso não é admissível. A mistura dos tipos não é nunca de aceitar à luz da técnica jurídica. Deve louvar-se o acórdão de 3 de Fevereiro de 2004 por ter reposto com clareza as fronteiras entre o comodato e a doação, e, para além disso, as do contrato de benefício e a liberalidade, a partir da obrigação essencial do contrato de comodato para uso” (Cyril Noblot in Recueil Dalloz, 1 de Abril de 2004, 180.º ano, n.º13, pág. 903/906).

54. Também louvando esta jurisprudência da Cour de Cassation que considera igualmente em sintonia com o artigo 1750.º do Código Civil de Espanha do qual o Supremo Tribunal, no entanto, se terá afastado quando negou aos pais, no Ac. de 2 de Dezembro de 1992 (R. 10250), a restituição do apartamento que eles tinham emprestado ao filho e nora, não lhes reconhecendo a faculdade de pôr termo ao comodato ad nutum, impondo-lhes, assim, o ónus de provar que tinham necessidade urgente da propriedade, Pedro Olmo, depois de salientar que o objectivo dos comodatos para uso é o de permitir que as pessoas sejam generosas uma com as outras, facilitando-se, assim, a disponibilização gratuita do uso das propriedades, refere ainda o seguinte: “ na minha opinião , não é boa ideia introduzir mais limites ao direito de o proprietário pôr termo por sua vontade ao contrato do que aqueles que constam do artigo 1750.º do Código Civil. Este direito de pôr termo ao contrato por mera vontade do comodante funda- -se na natureza gratuita do comodato pelo que limitar esse direito é errado e incoerente com a sua própria razão de ser. É esta natureza gratuita do commodatum que também explica o direito de o comodante exigir a restituição da coisa antes do prazo no caso de carecer urgentemente dela (artigo 1749.º do Código Civil). Estes dois direitos levam a que os proprietários mais facilmente disponibilizem as suas coisas porque sabem que a sua generosidade não lhes causará nunca problemas no futuro” (European Review of Private Law, 2007, Vol 15, n.º4, pág. 617-629) Dispõe o artigo 1750.º do Código Civil espanhol que “ se não se convencionou a duração do comodato nem o uso a que se destina a coisa entregue, e este não resulta determinado pelos costumes da terra, o comodante pode reclamá-la à sua vontade.

Em caso de dúvida, o ónus da prova cabe ao comodatário”.




Texto original:




Artículo 1750




Si no se pactó la duración del comodato ni el uso a que había de destinarse la cosa prestada, y éste no resulta determinado por la costumbre de la tierra, puede el comodante reclamarla a su voluntad.
En caso de duda, incumbe la prueba al comodatario.

55. O Supremo Tribunal de Justiça tem seguido em Portugal, como é sabido, a orientação dominante Admitindo que no comodato sem prazo destinado a satisfazer uma necessidade duradoura, o comodante apenas com justa causa possa pÕr termo ao comodato, veja- se o Ac. do S.T.J. de 6-3-1986 (Magalhaães Baião) 073658; Ac. do S.T.J. de 26-10-1989 (Jorge Vasconcelos) 076856 e B.M.J. 390-398, de, não convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodante poder exigir a restituição da coisa ad nutum a efectivar mediante interpelação, incorrendo o comodatário em responsabilidade civil pelo incumprimento. Neste sentido, veja-se: Ac. do S.T.J. de 19-3-1981 (Abel Campos) 069211 ( o comodato - precário - abrangido pelo artigo 1137.º/2 do Código Civil não obsta à procedência da acção de reivindicação), Ac. do S.T.J. de 16-2-1983 (Licurgo dos Santos) 070496 (caso de entrega da casa a título gratuito pelos pais e sogros do comodatário sem convenção de prazo nem determinação de uso), Ac. do S.T.J. de 5-8-1984 (Joaquim Figueiredo) 071531, de 23-1-1986 (Góis Pinheiro) 073121, de 15-1-1987 (Tinoco de Almeida) 074062 e também no B.M.J 363-519, de 31-5-1990 (Joaquim de Carvalho) 077043, de 11-3-1988 (Eliseu Figueira) 076603, de 11-6-1991 (Cura Mariano) 080629, de 26-5-1994 (Roger Lopes) 085059, de 3-5-1996 (Nascimento Costa) 087829 (entrega de terreno sem estipulação de prazo para a restituição e sem fixação do uso da coisa), de 14-10-1999 (Mota Miranda), B.M.J, 490-430, de 8-3-2001 (Reis Figueira), revista n.º 190/01, de 6-5-2001 (Silva Paixão) 01A1618, de 13-5-2003 (Silva Salazar) 03A1323, de 27-5-2008 (Alberto Sobrinho), revista n.º 1071/08 ( caso de cedência de imóvel para habitação), de 31-3-2009 (Pereira da Silva), revista n.º 359/09, de 14-7-2009 (Cardoso de Albuquerque), revista n.º 129/06, de 9-2-2010 (Helder Roque), revista n.º 284/06, de 16-11-2010 e de 16-12-2010 (Alves Velho), revista n.º 7232/04 e revista n.º 6512/05 .

56. Esta orientação foi também perfilhada no Ac. do S.T.J. de 14-3-2006, revista n.º 201/06 (Ribeiro de Almeida) C.J.,1, pág. 128, que foi objecto do referenciado estudo ( ver 51 supra), acórdão esse publicado com o seguinte sumário:

I- O comodato é, por natureza, um contrato temporário, não se tendo estipulado prazo para a restituição esta deve ser restituída logo que seja exigida pelo comodatário

II- Encontrando-se o réu no prédio reivindicado mediante autorização do proprietário que lhe permitiu habitar e trabalhar em barracões aí existentes, até ao resto da sua vida, estamos perante um contrato de uso e habitação, nulo por falta de forma por não ter sido celebrado por escritura pública pelo que tal contrato não constitui fundamento para a recusa de entrega.

57. Pelas razões expostas, afigura-se-nos preferível continuar a seguir a jurisprudência dominante e quase pacífica que indicámos. Quer isto dizer que quando a lei, no artigo 1137.º/2 do Código Civil, admite a restituição ad nutum “ se não foi convencionado prazo para a restituição” ela tem em vista obstar à restituição apenas quando houve estipulação de prazo certo. Não há, para este efeito - o de obstar à restituição - tertium genus. A estipulação de uma cláusula “ para toda a vida” implicaria a vinculação das partes, no âmbito de um contrato de natureza obrigacional, a uma prestação correspondente ao usufruto vitalício, não sendo, portanto, válida uma tal cláusula (artigo 280.º do Código Civil) pelo menos enquanto cláusula que importe a ineficácia da faculdade de denúncia ad nutum.

58. Para a lei o que releva é que num contrato desta natureza, em que não haja sido estipulado prazo certo, seja reconhecida a faculdade de denúncia ad nutum. Por isso, seja qual for a cláusula que permita considerar que o prazo convencionado não é um prazo certo, os termos estipulados não vinculam o comodante porque a lei optou por fazer sobrelevar a faculdade de denúncia ao princípio pacta sunt servanda. Tudo se passa como se A. convencionasse com B. que este utilizaria a coisa emprestada nas condições estipuladas salvo sempre a possibilidade de A. pedir a restituição da coisa. Atente-se que a fixação de um prazo incerto não será destituída de interesse. Assim, tornado certo o momento ( certus an incertus quando) em que o contrato finda, impõe-se ao comodatário a obrigação de restituição da coisa (artigo 1135.º, alínea h) do Código Civil); não tendo sido convencionado prazo algum e atribuindo o comodante ao comodatário o gozo da coisa enquanto este quiser ou por tempo indeterminado, então impor-se-á ao comodante interpelação nos termos do artigo 1137.º/2 do Código Civil. No primeiro caso o comodatário incorre em responsabilidade imediata, no segundo caso só incorre em responsabilidade se não restituir a coisa depois de , para tal, ser interpelado. Um ponto a ponderar, mas que sai do âmbito do caso vertente, seria o de saber se o prazo certo que haja sido estipulado que corresponda, na realidade, a um comodato para toda a vida ( empresto-te a casa para a utilizares durante 150 anos!), não deve ser tratado como comodato passível de denúncia nos termos do artigo 1137.º/2 do Código Civil. É que está subjacente a este contrato a natureza temporária da cedência da coisa.

59. A invocação do abuso do direito quando está em causa a possibilidade de o contrato ser denunciado ad nutum conduziria a que afinal se pusesse em causa a própria determinação legal, considerando-se, assim, interpretação diversa do artigo 1137.º/2 do Código Civil .

60. Referimos anteriormente que o acordo de cedência de coisa móvel ou imóvel por prazo incerto contraria a faculdade de denúncia ad nutum. O comodatário, se for convencido de que tal faculdade não irá ser exercida, poderá ser levado a praticar actos que de outro modo não aceitaria praticar. No caso em apreço a autora alegou que ela e o marido disseram aos réus que apenas efectuariam a doação da parcela de terreno destinada a construção urbana se continuassem a utilizar a garagem aí referida ou a que viesse a ser por eles construída em seu lugar (ver quesito 1º). Seria este um caso, se o facto tivesse sido provado, em que a boa fé dos autores teria porventura sido traída. Crê-se que, com tais estipulações, o comodante pelo menos aceita que a desvinculação contratual, não havendo justa causa, não será imediata. Seria manifestamente violador da boa fé, pensando-se no caso vertente ou em situações similares, uma vez reconstruída a garagem integrada no imóvel que foi doado, que os réus imediatamente denunciassem o acordo, o que, diga-se, não sucedeu.

61. Não nos parece de rejeitar o entendimento de que em determinadas circunstâncias a denúncia ad nutum envolva um abuso do direito, impondo-se uma atribuição indemnizatória, mas já não a paralisia do exercício do direito que a lei reconhece ao comodante. Neste sentido, veja-se o Ac. do S.T.J. de 23-3-1999 (Quirino Soares) 99B710 assim sumariado:

I - Em contrato de comodato do tipo negocial definido e regulamentado no artigo 1129 e seguintes do C.Civil, o convencionado acerca da entrega quando os donos precisarem do andar, exprime simplesmente a ideia de que a devolução deveria ser feita logo que exigida, e não constitui, assim, uma condição resolutiva potestativa própria, não arbitrária.

II - Não integra, porem, a figura do artigo 334.º, daquele diploma substantivo, de abuso de direito, impeditiva de exigir tal retribuição o facto de tal ser levado a cabo ao fim de sete anos de habitação, e sem que igual atitude tivesse sido tomada para com os restantes filhos, e sabendo os donos que aquela sua filha e genro pretenderam ao casar, ir habitar outra casa, e porque nem sempre o abusivo exercício dos direitos implica a respectiva paralisação, sob pena de legitimação de situações que a ordem jurídica repele.

III - O titular da coisa emprestada ficará contudo constituído na obrigação de indemnização e ao exigir a restituição daquela, que é uma outra forma de a ordem jurídica, reprovar e desincentivar o exercício ilegítimo do direito no quadro do artigo 1137 do C.Civil.

62. No recente Ac. do S.T.J. de 16-12-2010 (Alves Velho) não se considerou, no caso, verificada uma actuação susceptível de configurar o abuso do direito, não se excluindo, no entanto, a aplicabilidade da figura ainda quando ocorra a situação prevista no artigo 1137.º/2 do Código Civil.

63. Seríamos, pois, levados a ponderar, no caso vertente, se a autora, enquanto comodatária, não poderia com base no abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil) obter indemnização pela exigência de restituição da garagem que vinha ocupando. Adiantamos, desde já, que essa pretensão assim fundada - que não foi deduzida na acção mas que pode ser conhecida oficiosamente - careceria de base factual; no entanto, como se disse, a matéria de facto que a poderia sustentar foi alegada (quesito 1º) mas não se provou ( ver 9 supra da matéria de facto).

64. Para a caracterização do comodato não é suficiente, como se salientou no Ac. do S.T.J. de 26-1-1988 (Meneres Pimentel) B.M.J. 373-488 a existência de uma mera situação de tolerância, mas já preenche a figura do comodato a ocupação de um prédio, a título gratuito, com autorização do seu proprietário (Ac. do S.T.J. de 6-5-1982. n.º 069776 de www.dgsi.pt - Abel Campos - B.M.J. 317-246.

65. As instâncias consideraram que o uso que a A. e seu marido exerceram fundou-se em mera tolerância dos réus, não existindo comodato, não tendo sido convencionada qualquer obrigação de restituição.

66. No caso em apreço foi alegado que os doadores contrataram “ paralelamente à doação a manutenção do uso, sem qualquer contrapartida remuneratória e sem subordinação a qualquer prazo, da totalidade da garagem que integraria a construção a erigir pelos réus, até à morte deles, doadores, do que resultava o uso exclusivo por estes da dita garagem e dessa parte descoberta do prédio” (ver artigo 12.º da petição inicial).

67. Ora se foi convencionado que os doadores utilizariam a garagem até à sua morte - e foi isso o que sucedeu com o marido da autora - não se punha a questão da obrigação de restituição ser convencionada porque isso não fazia sentido. Não será, por tal motivo, que se rejeitará que houve entre as partes um contrato de comodato nos termos alegados.

68. E se a autora tem efectivamente de restituir a coisa comodatada logo que, para tal, seja interpelada, no caso vertente a autora reclama a restituição da posse e a indemnização com base num contrato de comodato a que não foi posto termo pelos réus pelo modo adequado.

69. Ainda que não se houvesse por provado o comodato e, por conseguinte, se considerasse, como entenderam as instâncias, que a autora e marido utilizavam a garagem e o tracto do terreno por mera tolerância ( ver 7 e 8 da matéria de facto), ainda assim o acto praticado pelos réus não é um acto lícito pois uma coisa é exigir a restituição da coisa comodatada possibilitando ao comodatário dela retirar os seus pertences e outra coisa é a actuação de facto de que nos é dado conta. Os réus, pondo termo ao comodato ou a uma mera situação de tolerância, não o podem fazer retendo e danificando os pertences alheios e, por isso, não podem deixar de ser responsabilizados (artigo 483.º do Código Civil).

70. Não deixaremos, portanto, de fixar à A. a indemnização que temos por devida. A título de danos morais, e porque é manifesto que a autora contava utilizar a garagem até ao fim da sua vida e se viu privada de utilizar a sua viatura devido à actuação dos réus ( ver 23 da matéria de facto), as últimas pessoas (filha e genro) de quem certamente esperaria uma tal atitude, fixa-se o montante peticionado de 2.500€; quanto à bateria, posto que o Tribunal não tivesse determinado o custo de uma nova, considera-se em juízo de equidade ( artigo 566.º/3 do Código Civil) o valor de 100€; quanto aos demais danos patrimoniais que a autora reclama (artigos 52.º e 56.º da petição), a autora, para lograr indemnização a liquidar, teria sempre de alegar os prejuízos e prová-los, o que não fez, não sendo, assim, devida outro valor indemnizatório.

71. Uma última questão se suscita e passa ela por saber se deve ou não ordenar-se a restituição da posse como peticionado. É certo que o comportamento dos réus revela intenção concretizada de pôr termo ao comodato. Só que o meio utilizado - via de facto ( ver 7, 8, 17, 20 supra da matéria de facto) não consiste no meio idóneo que a lei põe ao alcance do comodante que é a interpelação (artigo 1137.º/2 do Código Civil). Por isso, proibindo a lei em regra a acção directa (artigo 336.º do Código Civil e artigo 1.º do C.P.C.) considera-se que deve ser ordenada a restituição provisória da posse se não foi posto termo ao comodato de acordo com as exigências legais. De outra forma - temos de convir - não se teria justificado a restituição provisória de posse da garagem e do tracto de terreno, o que não parece aceitável. É certo que os comodantes podem vir a denunciar o comodato, mas os efeitos de tal denúncia valem para o futuro, não para o passado e é com base nas ocorrências concretas alegadas que se justifica a decisão e não com base em ocorrências eventuais ou ainda com suporte em actos de violência contra as coisas como foi o caso daqueles que estão referenciados na matéria de facto.

Concluindo:

I- Se a doação de imóvel ( terreno com garagem implantada) não foi efectuada com reserva de usufruto porque assim o quiseram doadores (pais) e donatária (filha), os poderes de facto que aqueles continuarem a exercer sobre o imóvel não correspondem ao exercício de um direito real limitado como é o direito de usufruto que apenas se pode considerar constituído nos termos constantes do artigo 1440.º do Código Civil.

II- Não agindo como beneficiários do direito de propriedade ou do direito de usufruto, não podem deixar os doadores de ser havidos como detentores ou possuidores precários ( artigo 1253.º, alínea a) do Código Civil).

III- Não deixa de configurar um contrato de comodato (artigo 1129.º do Código Civil) o contrato em que os doadores e donatária e respectivo cônjuge acordam que até à morte dos doadores aqueles continuem a utilizar gratuita e exclusivamente não apenas a garagem para guarda do seu veículo e de outras pessoas, como ainda, para cultivo, a parte não coberta do imóvel doado onde a donatária veio a edificar uma moradia integrando a garagem reconstruída.

IV- É que, face a um tal acordo, seria absurdo convencionar-se a obrigação de restituição, não devendo, por esta razão, considerar-se que a ocupação ao longo de anos da garagem e do tracto de terreno foi efectuada por mera tolerância dos donatários.

V- No aludido contrato de comodato não foi convencionado prazo certo para a restituição; quando as partes estipularam prazo incerto ou não estipularam prazo algum para a restituição, rege o disposto no artigo 1137.º/2 do Código Civil segundo o qual o comodatário é obrigado a restituir a coisa entregue logo que assim o seja exigido pelo comodante (denúncia ad nutum).

VI- No contrato de comodato, a cláusula pela qual o comodante declarou proporcionar a utilização da coisa até à morte do comodatário será válida desde que interpretada no sentido de que não obsta, por imposição da própria lei, a que o comodante possa sempre denunciar o contrato ad nutum.

Decisão: concede-se revista parcial, condenando-se os réus a restituir à A. a posse da garagem e tracto de terreno identificados e a pagar-lhe, a título de indemnização por danos materiais e morais, a quantia de 2.600€, mantendo-se, quanto ao mais, a decisão proferida.

Custas por A. e RR na medida do respectivo decaimento.

Lisboa, 15 de Dezembro de 2011.

Salazar Casanova (Relator)

Fernandes do Vale

Marques Pereira