ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
86/08.0TTVIS.C1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/23/2011
SECÇÃO 4ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO NEGADA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR GONÇALVES ROCHA

DESCRITORES ACIDENTE DE TRABALHO
CÔNJUGE
SEPARAÇÃO DE FACTO
ABUSO DE DIREITO

SUMÁRIO

I - A viúva separada de facto do marido vítima de acidente de trabalho mortal, tem direito a pensão nos termos do artigo 20º, nº 1 alínea a) da Lei 100/97 de 13/9, mesmo não estando a receber alimentos deste, pois a razão de ser do reconhecimento pela lei do direito a pensão nestes casos encontra a sua justificação na obrigação de assistência entre cônjuges que existe mesmo nos casos de mera separação de facto, se esta não for imputável a um qualquer dos cônjuges, conforme consagra o nº 2 do dito artigo 1675º.

 II - Tratando-se de direitos irrenunciáveis e de exercício obrigatório pelo MP nos termos do artigo 99º do CPT, a reclamação de pensão pela viúva não integra abuso do direito, mesmo provando-se que o casal estava separado há mais de 15 anos.



DECISÃO TEXTO INTEGRAL

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

1----

AA, residente em Barreiros, Viseu, intentou uma acção com processo especial, emergente de acidente de trabalho, contra:

BB, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A, com sede no Porto, e

CC e mulher DD, ambos residentes no Sátão, pedindo que os Réus sejam condenados a pagar-‑lhe as seguintes quantias:

a) € 2.520,00 (ou seja no montante remível de € 24.229,80) a título de pensão anual;

b) € 1.704,00 de despesas de funeral;

c) € 105,00 de indemnização por ITA;

d) € 5.112,00 de subsídio por morte;

e) € 20,00 de reembolso de despesas de transporte por si suportadas;

f) Juros de mora à taxa legal sobre todas estas quantias.

Alegou para tanto que é viúva e por isso beneficiária legal do sinistrado EE, falecido em 30-01-2008 vítima de um acidente trabalho ocorrido no dia 24 de Janeiro de 2008, pelas 13h50, em Pedrosinhas, Sátão, quando trabalhava por conta e sob autoridade do Réu CC, mediante a retribuição de € 450,00 mensais, acrescida de subsídio de férias e de Natal de igual montante cada, tendo o acidente consistido em ter caído de uma altura de cerca de 2 metros, quando se encontrava em cima de uma mesa de andaimes a tentar desmontar o mesmo, vindo a desequilibrar-se e a cair no chão e de que lhe resultaram lesões que foram causa adequada da sua morte em 30-01-2008.

Alega ainda que desconhecendo se a responsabilidade da entidade patronal está transferida para a seguradora, o Réu CC dedica-se à construção civil e a Ré mulher é doméstica, vivendo ambos dos proventos que aquele retira da sua actividade, pelo que devem dos RR pagar-lhe os valores peticionados.

O INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL, IP - CENTRO NACIONAL DE PENSÕES, com sede em Lisboa, veio deduzir pedido de reembolso contra os Réus, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 5.074,03 a título de subsídio por morte e pensões de sobrevivência no período de 2008-02 a 2009-02, bem como as pensões de sobrevivência que se vencerem na pendência da acção, vindo tal pedido a ser ampliado, em sede de audiência, para o montante de 9.231,65 euros, atentos os pagamentos entretanto efectuados até 2010-10.

Para fundamentar este pedido alegou que, em face do falecimento do referido EE, a Autora requereu junto do ISS, IP/CNP as respectivas prestações por morte que lhe foram deferidas, tendo-lhe sido paga a quantia de € 5.074,03 a título de subsídio por morte e pensões de sobrevivência no período de 2008-02 a 2009-02, continuando a pagar tais prestações enquanto se verificarem as condições legais do seu recebimento, à razão mensal de € 179,69.

Citados os Réus, veio a seguradora contestar, invocando a invalidade do contrato de seguro porquanto a proposta de seguro subscrita pelo co-Réu CC só foi aceite por si em 25-01-2008, pelo que só a partir desta data o contrato de seguro iniciou a sua vigência, não vigorando portanto, à data do acidente dos autos. Por outro lado, o acidente ocorreu em 21-01-2008, tendo nesse dia o Co-Réu CC transportado o sinistrado para a sua residência, onde o manteve até ao dia 24/01/2008 e só neste dia é que o levou a receber os primeiros socorros no Centro de Saúde do Sátão, só se tendo dirigido a uma mediadora com intuito de fazer um seguro depois da ocorrência do acidente.

Por isso, tendo sonegado factos e mentido quanto ao local do acidente, e tendo agravado as consequências do mesmo, as garantias do contrato de seguro são ineficazes relativamente ao acidente dos autos.

Invoca ainda e por último que não se verificam os legais pressupostos habilitantes ao direito a pensão, dado que a Autora estava separada da vítima há mais de 33 anos, vivendo a vítima sozinha desde essa altura, não contribuindo com qualquer quantia para com a Autora ou para os filhos comuns, vivendo a vítima privada de rendimentos, tanto mais que recebia apoio de uma instituição.

E contestaram também os Réus CC e mulher DD, invocando que a responsabilidade pelo acidente se encontrava validamente transferida para a Ré seguradora, porquanto o contrato de seguro iniciou a sua vigência em 22-01-2008, data anterior ao acidente.

Alegou ainda que o acidente se ficou a dever a culpa da vítima, que agiu contra as instruções do Réu CC, violando elementares regras de segurança, pelo que o acidente deve ser descaracterizado.

Por outro lado, o falecido nunca contribuiu para o sustento da Autora, sendo ele que carecia de ajuda que lhe era prestada por uma instituição de solidariedade social da zona.

A seguradora contestou ainda o pedido formulado pelo ISS, reafirmando os factos que alegou na contestação apresentada à petição inicial da A, e invocando que as quantias que o requerente pagou constituem uma obrigação própria daquele, não existindo por isso sub-rogação, devendo como tal improceder o pedido.

E tendo havido resposta da A e dos RR à contestação de cada um deles, veio a A invocar que não estava separada do seu falecido marido a título definitivo, pois embora se zangassem por vezes, acabavam por fazer as pazes e voltar a prosseguir a sua vida em comum. Impugna ainda que o acidente se tivesse ficado a dever a culpa da vítima, litigando os Réus CC e mulher de má fé.

Após selecção da matéria de facto assente e da matéria controvertida, prosseguiram os autos com a realização da audiência de julgamento, após o que foi prolatada sentença que julgando a acção parcialmente procedente, decidiu:

a)         Absolver os Réus CC e Mulher DD e a Ré BB, Companhia de Seguros, S.A dos pedidos contra eles formulados pela Autora AA e pelo Instituto de Segurança Social, IP - Centro Nacional de Pensões.

b)-       Condenar a Ré BB, Companhia de Seguros, S.A, por se verificar a existência de um acidente de trabalho indemnizável, a entregar ao Fundo de Acidentes de Trabalho a quantia de € 18.900,00 (dezoito mil e novecentos euros), para quem reverte tal quantia em conformidade com o disposto no art° 20°, n° 6 da LAT.

Inconformada, apelou a autora tendo o Tribunal da Relação de Coimbra julgado a apelação procedente, e revogando a sentença recorrida condenou a BB - Companhia de Seguros, SA, a pagar à autora:

a).        A pensão anual e vitalícia no montante de € 1.890,00 (mil oitocentos e noventa euros), com início em 31 de Janeiro de 2008, por ser o dia seguinte ao da morte, obrigatoriamente remível desde a data em que é devida (alínea a) do n° 1 do artigo 56° do Dec. Lei n° 143/99 de 30/04), acrescida dos juros moratórios, à taxa legal, contados sobre o montante da pensão desde a data em que esta devida e até à data de entrega do capital de remição.

b)         A quantia de € 5.112,00 (cinco mil cento e doze euros) a título de subsídio por morte.

c)         A quantia que a autora despendeu com transportes a liquidar em execução de sentença.

É agora a seguradora que irresignada nos traz esta revista, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:

1)         No alcance e na prossecução da subsunção dos factos assentes, por provados, da 1ª instância, com a verificação da existência de "titulares com direito a pensão", nos termos do regime de reparação por "acidente de trabalho", a justa e sana decisão de mérito há-de assentar numa interpretação que vá além da mera verificação dos pressupostos formais, nomeadamente da existência de vínculo conjugal;

2)         esse é o modus do correcto exercício jurisdicional imposto pelo artigo 659º, n° 2 do C.P.C, e pelos gerais deveres de bem administrar a justiça e da consecução da equilibrada decisão do caso concreto;

3)         revogando, como o fez, a acertada e bem fundamentada decisão da 1ª instância, atribuindo o direito à Recorrida/AA. das prestação próprias por "acidente de trabalho", à revelia da patente, por provada, ruptura da vida conjugal e em reiterado incumprimento dos deveres desse vínculo, o Tribunal "a quo"preteriu o seu poder-dever de bem administrar a justiça material e o equilíbrio dos interesses em presença;

4)         com isso e por isso, impondo-se a sua revogação e consequente decisão de, em reposição ad plenum, convalidar o douto aresto da 1ª instância.

 Pede-se assim que seja revogado o acórdão recorrido, com o consequente acolhimento da tese alegada.

A A também alegou, pugnando pela manutenção do julgado.

Subidos os autos este Supremo Tribunal, veio a Ex.mª Procuradora Geral Adjunta a emitir parecer no sentido da improcedência do recurso por estar em causa um direito de exercício obrigatório, a tal não obstando a ruptura conjugal entre a A e o sinistrado.

  E colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2- --

   Para tanto, vem das instâncias a seguinte matéria de facto:

1-        A Autora AA, nascida a 08/11/1942, casou em 04/09/1969 com EE, sem convenção antenupcial, tendo este falecido em 30 de Janeiro de 2008.

2-        O falecido EE quando trabalhava por conta e sob a autoridade e direcção do Réu CC e no exercício das suas funções de servente da construção civil, mediante a retribuição mensal de €450,00 acrescida do subsídio de férias e de Natal, sofreu uma queda quando se encontrava em cima de um andaime.

3-        De tal acidente resultaram para o falecido EE as lesões descritas no relatório de autópsia de fls. 90 a 95, designadamente fractura do membro inferior esquerdo.

4-        EE deu entrada na urgência do Hospital de S. Teotónio às 15h31 do dia 24/01/2008, onde ficou internado e onde veio a falecer no dia 30/01/2008.

5-        O Réu CC dedicava-se e dedica-se à actividade de construção civil e a Ré DD é doméstica e vivem ambos dos proventos que o Réu retirava desta sua actividade.

6-        O Réu CC havia transferido a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho relativamente ao aludido EE para a Ré seguradora pela retribuição aludida no n° 2, através de contrato de seguro, titulado pela apólice n° 0000000000.

7-        O Instituto da Segurança Social, IP, através do Centro Nacional de Pensões, na sequência da morte do aludido EE, pagou à Autora a quantia de € 2.444,46 a título de subsídio por morte e pagou-lhe pensões de sobrevivência, no período de 02-2008 a 02-2009, no total de € 2.629,57, sendo em Fevereiro de 2009 o valor mensal da pensão de € 179,69.

8-        A queda aludida no n° 2 ocorreu cerca das 13h do dia 24 de Janeiro de 2008, em Pedrosinhas, Sátão.

9~ As lesões sofridas pelo EE em consequência de tal queda foram causa directa e adequada da sua morte.

10-      O falecido EE foi sepultado no cemitério da freguesia de Barreiros, Viseu.

11-      Em despesas com transportes a este tribunal a Autora despendeu uma quantia não concretamente apurada.

12-      O contrato de seguro aludido no n° 6 iniciou a sua vigência em 22-01-2008, data que a Ré seguradora expressamente reconheceu e indicou ao Réu CC para efeitos do pagamento do respectivo prémio.

13-      No dia 22 de Janeiro de 2008, o Réu CC assinou perante a mediadora de seguros a proposta de seguro que deu origem ao contrato de seguro aludido no n° 6, onde indicava como seu único trabalhador o falecido EE.

14-      A Ré seguradora recebeu a proposta aludida no n° 13 e analisado o risco, aceitou-a no dia 25/01/2008, aprovando a proposta apresentada que reportava o início pretendido a 22-01-2008.

15-      A Ré DD no dia 24-01-2008 levou o EE a receber os primeiros socorros, que lhe foram prestados pelo "Centro de Saúde de Sátão".

16-      Há mais de 15 anos que o falecido EE saiu do lar conjugal, passando este, desde essa altura, a viver sozinho inicialmente numa barraca e depois num casebre.

17-      Não contribuindo ao longo de todo esse período o falecido EE com qualquer quantia para a Autora ou para os filhos comuns.

18-      O qual por viver privado de rendimentos mínimos e certos, pelo menos desde Novembro de 2007 recebia apoio domiciliário da "Associação Cultural, Desportiva, Recreativa e de Solidariedade Social de S. Pedro de France".

19-      Pelo menos desde a data aludida no n° 16, a Autora nunca mais se preocupou com o falecido EE, sendo o mesmo ajudado pelos Réus CCe mulher.

20-      Foram os Réus CC e mulher que trataram do funeral do falecido EE.

21-      O falecido EE era pessoa simples e pacata.

3---

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas respectivas conclusões, conforme resulta dos artigos 685º-A, nº 1 e 690° n° 1, ambos do Código de Processo Civil, a única questão a decidir reside em saber se a autora tem direito às prestações emergentes do acidente de trabalho que vitimou o sinistrado, seu cônjuge.

Efectivamente, a sentença da 1ª instância, apesar de ter concluído que a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho se encontrava válida e eficazmente transferida para a seguradora pela totalidade do salário auferido pela vítima, e apesar de ter considerado que o evento que vitimou o sinistrado, EE, constitui um típico acidente de trabalho, por se tratar duma queda que ocorreu no tempo e no local de trabalho e não ter ocorrido qualquer causa de descaracterização, acabou por não reconhecer quaisquer direitos à A, argumentando para tanto que a sua reclamação integra um caso de abuso do direito.

Como o acórdão recorrido não acatou tal tese, vindo a reconhecer à viúva do sinistrado o direito a pensão e a subsídio por morte, acrescidos dos juros de mora legais, é contra tal decisão que reage a recorrente, pugnando pela repristinação da sentença da 1ª instância, insistindo na argumentação do abuso do direito. 

Pondo-se a questão nestes termos, vejamos então como decidir.

3.1---

 Antes de mais temos de dizer que, tendo o acidente que vitimou o marido da A ocorrido em 24 de Janeiro de 2008, se aplica ao caso o regime jurídico da Lei 100/97 de 13 de Setembro (a seguir designada por LAT) e respectivo regulamento instituído pelo DL nº 143/99 de 30 de Abril.

Por outro lado, não está em causa a qualificação do acidente como acidente de trabalho, nem a qualidade de responsável da R, recorrente, pois não tendo a recorrente suscitado estas questões, as mesmas transitaram em julgado.

Assim e conforme já se disse, apenas se discute se à A, viúva do sinistrado, deve ou não reconhecer-se a qualidade de beneficiária deste acidente.

Ora, resulta do artigo 20º, nº 1, alínea a) da LAT, que em caso de morte do sinistrado cabe à viúva o direito a uma pensão anual de 30% da retribuição da vítima, passando a 40% a partir da idade da reforma por velhice ou no caso de doença física ou mental que afecte sensivelmente a sua capacidade de trabalho.

Por outro lado, também ao cônjuge judicialmente separado e ao ex-cônjuge reconhece a lei o direito a pensão, bastando para tanto que a vítima esteja obrigada a prestar-lhe alimentos, sendo a pensão igualmente do montante de 30% da retribuição anual, embora tendo como limite o valor destes alimentos, conforme estabelece a alínea b).

Não se prevê expressamente naquela norma o caso da mera separação de facto.  

Parece-nos, no entanto, que a invocada situação do sinistrado estar separado da mulher (de facto) é irrelevante para efeitos do direito a pensão por parte da viúva em caso de acidente de trabalho mortal de que o marido tenha sido vítima.

Na verdade, o que a lei exige é a constância do casamento à data do acidente, pois ao contrário do que sucede com os ascendentes, que só têm direito a pensão desde que se prove que a vítima contribua efectivamente e com carácter de regularidade para o seu sustento, conforme resulta da alínea d) daquele preceito, a lei presume “iuris et de iure” a dependência económica da viúva em relação ao sinistrado[1].

            Assim, só a situação de separação judicial sem direito a alimentos é que será impeditiva da viúva ter direito a pensão pela morte do marido em consequência dum acidente de trabalho, conforme resulta da alínea b) da dita norma (a contrario).

            Donde se conclui que a circunstância da A viver na situação de “separada de facto” do falecido sinistrado não constitui factor de exclusão do direito a pensão.

Na verdade, apurou-se que a autora e o falecido sinistrado estavam separados de facto há mais de 15 anos por este ter saído de casa, não mais tendo contribuído, ao longo deste período, com qualquer quantia para a autora ou para os filhos, tanto mais que vivia privado de rendimentos certos, pois pelo menos desde Novembro de 2007 recebia apoio domiciliário de uma instituição de solidariedade social.

Mas esta circunstância da separação do casal é irrelevante, pois só quando ocorre uma separação judicial sem fixação do direito a alimentos, é que o cônjuge supérstite não terá direito a pensão, conforme já se disse.

              Com efeito, na base do direito à pensão da viúva, está a obrigação alimentar existente entre os cônjuges, uma vez que é imanente ao casamento, mesmo no regime de separação de bens, a contribuição económica recíproca entre os cônjuges, sendo esta obrigação recíproca de assistência, que está consagrada no nº 1 do artigo 1675º, nº 1 do CC, geradora da referida obrigação de alimentos, conforme impõe no artigo 2015° do Código Civil.

            Por outro lado, este dever de assistência mantém-se mesmo durante a separação de facto, se esta não for imputável a um qualquer dos cônjuges, conforme consagra o nº 2 do dito artigo 1675º.

            Assim sendo, e como no caso presente se desconhece qual foi o cônjuge culpado, não estava excluída a possibilidade do falecido sinistrado prestar alimentos à A, desde que tivesse capacidade económica para tal e a A deles carecesse.

            Por isso, a razão de ser do reconhecimento pela lei do direito a pensão à viúva, em caso de acidente mortal do marido de quem esteja separada de facto, encontra a sua justificação nesta obrigação alimentícia, ainda que meramente potencial.

            Concluímos assim que a A, mesmo estando separada de facto do sinistrado, seu marido, reúne todos os requisitos de que a lei faz depender o direito a pensão em caso de acidente de trabalho mortal deste, pois, não estando provada a sua culpa na separação, poderia sempre exigir dele a obrigação de assistência, desde que ele tivesse condições económicas que lhe permitissem suportar os alimentos devidos.

  A recorrente pretende, contudo, eximir-se da sua responsabilidade invocando abuso do direito por parte da A, pois ao reclamar e exercer os direitos que peticiona, está a exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito que se arroga.
Na verdade, provou-se que apesar da Autora se encontrar, à data do acidente, no estado de casada com o falecido EE, o certo é que os mesmos viviam separados, pois há mais de 15 anos que este saiu do lar conjugal, passando desde essa altura a viver sozinho.
Por outro lado, provou-se também que o falecido nunca contribuiu, ao longo deste período, com qualquer quantia para a autora ou para os filhos e que esta também nunca mais preocupou com o falecido.
Mas apesar disso, a reclamação dos direitos emergentes do acidente de trabalho sofrido pelo marido não integra qualquer abuso do direito.
Efectivamente, conforme resulta do artigo 334º do CC, é ilegítimo o exercício dum direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico desse direito.
Vem-se defendendo, no entanto, que não basta um qualquer desvio do fim económico ou social ou uma qualquer ofensa à boa-fé e aos bons costumes, dado que aquele preceito não se basta com isso, pois exige que ocorra um excesso manifesto no exercício dum direito pelo seu titular.
Nesta conformidade a doutrina acentua a densidade da ofensa, exigindo um excesso manifesto e desproporcionado, pronunciando-se neste sentido Galvão Teles, Obrigações, 3ª edição, pgª 6; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, anotado, volume 1º, 3ª edição, pª 296; e Cunha de Sá, Abuso de Direito, 454.
Também Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 63, fala num exercício dum direito em termos clamorosamente ofensivos da justiça; e Vaz Serra, abuso do direito, BMJ 68/253, exige também uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante.

Ora, perante os referidos factos, não podemos considerar que com a actuação da A, reclamando da seguradora o direito a pensão e o subsídio por morte, esteja integrada uma situação de exercício clamorosamente ofensivo da justiça, conforme exige a doutrina.

Na verdade, não estando demonstrado que a culpa da separação tivesse sido da A, e resultando do artigo 1675º, nº 2, que o dever de assistência se mantém-se durante a separação de facto, se esta não for imputável a um qualquer dos cônjuges, e sendo neste pressuposto que o artigo 20º da LAT assenta o direito a pensão, não vemos qualquer exagero no exercício do seu direito pela A.

Por outro lado, embora se tenha apurado que o falecido EE vivia privado de rendimentos, pois pelo menos desde Novembro de 2007 recebia apoio domiciliário da "Associação Cultural, Desportiva, Recreativa e de Solidariedade Social de S. Pedro de France", e que a A, desde que ele saiu de casa, nunca mais se preocupou com ele, também desconhecemos em absoluto se a sua situação económica lhe permitiria algum tipo de ajuda ao falecido EE e se este alguma vez a solicitou.

Além disso, os direitos emergentes dum acidente de trabalho são inalienáveis e irrenunciáveis, conforme resulta do artigo 35º da LAT, tratando-se portanto de direitos de exercício obrigatório, pois conforme resulta do artigo 99º do CPT, o M° P° é obrigado a iniciar o respectivo processo, mesmo que o sinistrado ou os seus beneficiários não pretendam exercer os direitos dele emergentes, conforme acentua a Senhora Procuradora Geral Adjunta no seu parecer.

Por isso, a figura do abuso do direito não é compatível com este carácter irrenunciável e de exercício obrigatório dos direitos emergentes dum acidente de trabalho.

Nestes termos e improcedendo a pretensão da recorrente, só nos resta confirmar o acórdão recorrido.

4---

            Termos em que se acorda nesta Secção Social em negar a revista.

            Custas a cargo da recorrente.

            Anexa-se sumário do acórdão nos termos do artigo 713º, nº 7 do CPC

Lisboa, 23 de Novembro de 2011

Gonçalves Rocha (Relator)

Sampaio Gomes

Pereira Rodrigues 

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[1] Neste sentido, veja-se também Carlos Alegre, Acidentes de trabalho e doenças profissionais, 111, 2ª edição.