ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
36/06.8GAPSR.S1
DATA DO ACÓRDÃO 10/20/2011
SECÇÃO 3.ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL RECURSO PENAL
DECISÃO PROVIDO
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR RAUL BORGES

DESCRITORES HOMICÍDIO QUALIFICADO
VÍCIOS DO ARTº 410.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
MATÉRIA DE FACTO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONHECIMENTO OFICIOSO
PROVA
PRINCÍPIO DA CONTINUIDADE DA AUDIÊNCIA
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
NULIDADE

SUMÁRIO I -Os vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei, tratando-se de vícios da decisão e não do julgamento.
II - A partir de 01-01-99, na sequência da reforma do CPP, operada pela Lei 59/98, de 25-08, deixou de ser possível interpor recurso para o STJ com fundamento na verificação dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP. A partir de então, o STJ conhece oficiosamente desses vícios quando, num recurso restrito exclusivamente à matéria de direito, constate que, por força da inquinação da decisão recorrida por algum deles, não possa conhecer de direito sob o prisma das várias soluções jurídicas que se apresentam como plausíveis, devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excepcional, surgindo como último remédio contra tais vícios.
III - A crítica ao julgamento da matéria de facto, a expressão de divergência do recorrente relativamente ao acervo fáctico que foi fixado e ao modo como o foi, ou seja, as considerações por si tecidas, quanto à análise, avaliação, ponderação e valoração das provas feitas pelo tribunal são, de todo, irrelevantes, pois ressalvada a hipótese de prova vinculada, o STJ não pode considerá-las, sob pena de estar a invadir o campo da apreciação da matéria de facto.
IV - A sanção da perda de eficácia da prova prevista no n.º 6 do art. 328.º do CPP é questão que se coloca apenas em sede de julgamento de 1.ª instância, pretendendo-se assegurar a continuidade da audiência de julgamento, não se aplicando à fase de recurso.
V - A verificação de existência de nulidade, seja por via de requerimento da parte, seja por via oficiosa – actualmente, e a partir de 01-01-1999, com a Reforma de 98 – possibilita a indagação por parte do tribunal superior em matéria de facto, mesmo que o recurso se circunscreva a matéria de direito, alargando-se assim o quadro de possibilidades de incursão no plano fáctico, também possível através da análise da existência de vícios decisórios.
VI -A jurisprudência do STJ firmou-se, de há muito, no sentido de que a decisão deve conter a enumeração concreta, feita da mesma forma, dos factos provados e não provados, com interesse e relevância para a decisão da causa, sob pena de nulidade, desde que os mesmos sejam essenciais à caracterização do crime em causa e suas circunstâncias, ou relevantes juridicamente com influência na medida da pena, desde que tenham efectivo interesse para a decisão, mas já não no caso de factos inócuos, excrescentes ou irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação e/ou na contestação, ou ainda a matéria de facto já prejudicada pela solução dada a outra.
VII -O tribunal no cumprimento da obrigação de fundamentação “completa”, há-de apresentar uma fundamentação que permita uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão, com referência ao que foi adquirido e o não foi em termos de facticidade apurada, se possível com explicitação diferenciada do que resultou da acusação, ou do que adveio da contestação e do que emergiu da discussão em audiência, com reporte ao modo de aquisição, permitindo a transparência do processo e da decisão, tendo que deixar bem claro que foram por ele apreciados todos os factos alegados, com interesse para a decisão, incluindo essa apreciação os que não foram considerados provados.
VIII - A fundamentação no acórdão recorrido é apresentada de modo fragmentário, incompleto, desconexo, com falta de clareza, sequência lógica, cadência, ritmo, fluidez e de transparência, ao jeito de conjugação de peças de autêntico puzzle, a impor trabalho de busca de interligação e de conexão, não permitindo uma percepção directa, imediata, rápida, tratando-se de composição de decisão que não obedece aos cânones legais, antes emergindo do texto uma estruturação desgarrada e desconexa.
IX - O acórdão recorrido não cumpriu a injunção legal, pois tinha o dever de enunciar com precisão todos os factos provados e não provados relevantes para a imputação penal e não cumpriu tal exigência de fundamentação. Estamos, pois, perante um incumprimento do disposto no art. 374.º, n.º 2, do CPP, o que fere o acórdão de nulidade, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, por não conter as menções referidas no n.º 2, sendo tal nulidade de conhecimento oficioso, como decorre do n.º 2 do mesmo preceito, introduzido com a Lei 59/98, de 25-08.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL
No âmbito do processo comum com intervenção de tribunal colectivo n.º 36/06.8GAPSR, da então 2.ª Vara de Competência Mista da Comarca de Sintra (actualmente extinta e substituída pela Comarca da Grande Lisboa – Noroeste – Sintra), foram pronunciados os arguidos:

AA, natural da freguesia de C... da P..., A..., nascido em 18-11-1970, casado, mecânico de automóveis, residente na Rua A… S… M…, XX, R/chão Dt.°, A…, S..., actualmente em parte incerta (Angola?), conforme fls. 2700 verso;

BB, natural da freguesia de Santa Justa, Lisboa, nascido em 11-12-1964, casado, empregado de indústria hoteleira, residente na Rua C… de S… C.., n.º XX, R/chão Frente, L....

Era-lhes então imputado, respectivamente:

 - Ao primeiro arguido, a prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.°s 1 e 2, alínea g), do Código Penal, e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 3.º, n.º 5, alínea c), e 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro; e, em co-autoria material, de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código Penal;

 - Ao segundo (pela acusação deduzida pelo Ministério Público não sujeita a instrução criminal, apenas pelo primeiro requerida), em co-autoria material, a prática de um crime de profanação de cadáver, p. e p. pelo artigo 254.°, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e ainda a prática, como autor material, de um crime de favorecimento pessoal, p. e p. pelo artigo 367.°, n.º s 1 e 3, do mesmo diploma legal.

            CC, assistente, por si e em representação da sua filha DD, deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos, peticionando a condenação dos mesmos nos seguintes termos:

- O demandado AA:

- a indemnizar a demandante DD pelos danos morais sofridos pelo próprio EE pelo dano morte como consequência directa do crime de homicídio no montante de 100.000,00 Euros e pelo sofrimento no período em que antecedeu à morte, no montante de 50.000,00 juros, o que perfaz a quantia de 150.000,00 Euros;

- a indemnizar as demandantes pelos danos morais sofridos como consequência directa do crime de homicídio, no montante de 200.000,00 Euros, sendo 100.000,00 Euros para CC e 100.000,00 Euros para DD;

- a indemnizar as demandantes pelos danos patrimoniais ao EE pela perda do direito de adquirir, na quantia de 100.000,00 Euros (setenta e cinco mil euros) - sic;

- Os demandados AA e BB, a solidariamente indemnizarem as demandantes pelos danos morais sofridos pelo crime de profanação de cadáver, no montante de 60.000,00 Euros.

Realizado o julgamento pelo Colectivo da referida Vara Mista de Sintra, por acórdão de 20 de Dezembro de 2007, constante de fls. 1484 a 1518, do 6.º volume, e depositado em 08 de Janeiro de 2008, conforme fls. 1525, foi deliberado julgar parcialmente procedente a pronúncia e, em consequência:

I – Absolver:

1 - O arguido AA, da prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.°, 132.°, n.ºs 1 e 2, alínea g), do Código Penal e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artigos 3.º, n.º 5, alínea c), e 86.°, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.

2 - O arguido BB, da prática, em autoria material, de um crime de favorecimento pessoal, p. e p. pelo artigo 367.º, n.º s 1 e 3, do Código Penal.

3 – Ambos os arguidos dos pedidos de indemnização civil formulados.

II – Condenar:

1 - O arguido AA - pela co-autoria material de um crime de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, p. e p. pelo artigo 254.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de oito meses de prisão, substituídos por pena de multa, por igual tempo, à taxa diária de 5 €, isto é, 240 dias de multa, à referida taxa diária, no total de 1200 €.

2 - O arguido BB - pela co-autoria material de um crime de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, p. e p. pelo artigo 254.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 6 meses de prisão, substituída por pena de multa, por igual tempo, à taxa diária de 5 €, isto é, 180 dias de multa, à citada taxa, no total de 900 €.

        Inconformados com esta decisão interpuseram recurso o Ministério Público, com a motivação de fls. 1576 a 1613, versando matéria de facto e de direito, e circunscrito à parte do acórdão que absolveu o arguido AA da prática do crime de homicídio qualificado, visando os factos provados sob os n.º s 11 a 14, 42 e 49, e entendendo dever dar-se por provado, ao invés do que foi dado por não provado, que o arguido AA teve a intenção directa de provocar a morte de EE; e a assistente e demandante CC, por si e em representação da sua filha DD, conforme fls. 1533 a 1573 (e de fls. 1614 a 1654, no original), impugnando o acórdão de Sintra, igualmente de facto e de direito.

        O arguido AA, após pedido de entrega do suporte técnico das gravações da sessão de audiência de julgamento na qual o recorrente prestou declarações, formulado a fls. 1664 a 1671 (e em original de fls. 1672 a 1679), respondeu ao recurso da assistente, de fls. 1682 a 1705 (no original, de fls. 1764 a 1787) e de fls. 1706 a 1733 (no original, de fls. 1734 a 1763), quanto ao recurso do Ministério Público, com a rectificação de fls. 1789 a 1792.

Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 29-05-2008, constante de fls. 1808 a 1887, ainda do 6.º volume, foram julgados procedentes os recursos e revogada a decisão absolutória, condenando-se o arguido AA, como autor material de um crime de homicídio qualificado, p. p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, alínea i), do Código Penal, na pena de 14 anos e 6 meses de prisão, sendo condenado a pagar às demandantes a título de indemnização pela perda do direito à vida e por danos morais sofridos pela vítima a quantia de € 40.000,00, e pelos danos morais sofridos pela assistente e pela DD decorrentes do homicídio, a quantia de € 20.000,00, sendo 10.000,00 € para a assistente e os outros 10.000,00 € para a DD.

Foram ainda condenados os dois arguidos a pagarem solidariamente às demandantes a título de danos morais sofridos pela profanação de cadáver, a quantia de € 10.000,00.  

(Neste acórdão procedeu-se a alterações na matéria de facto, aditando-se novos factos indicados pelo M.º P.º no seu recurso - fls. 1860/1 - e eliminando-se outros referidos a fls. 1861/2, sem incorporar as “novidades” num corpo único de fundamentação de facto, sendo afastada a tese da legítima defesa do arguido).

O co-arguido BB interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, conforme fls. 1891 a 1895, e em original, de fls. 1988 a 1990 verso, e o arguido AA, de fls. 1896 a 1987, respondendo a assistente a ambos os recursos, conforme fls. 2006 a 2034, e o Ministério Público, de fls. 2037 a 2042, do 7.º volume.

Por acórdão proferido em conferência, datado de 12-02-2009, conforme fls. 2050 a 2056, do 8.º volume, visando apenas a arguida nulidade da decisão recorrida por ter conhecido de questão (indemnização cível), de que não deveria ter conhecido, o Supremo Tribunal de Justiça anulou a decisão do Tribunal da Relação, no tocante à condenação solidária do demandado BB no pagamento de indemnização de 10.000 € por danos morais advenientes da profanação de cadáver, mantendo a condenação criminal do mesmo arguido imposta em primeira instância e já transitada em julgado.

Seguiu-se a requerida audiência para conhecer do recurso do arguido AA, e por acórdão deste Supremo de 26-02-2009, constante de fls. 2069 a 2084, foi deliberado:

- Julgar procedente o recurso na parte cível e revogar a decisão recorrida no que respeita ao pedido de indemnização contra o arguido deduzido pela ocultação de cadáver;

- No mais, declarar nula a decisão recorrida, devendo ser repetida com decisão sobre se os recursos interpostos para a Relação observaram o ónus de impugnação especificada, previsto nos n.º s 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, e se necessário, após prévio convite à correcção das respectivas conclusões.

De novo no Tribunal da Relação de Lisboa, foi proferido novo acórdão em 28-05-2009, fazendo fls. 2117 a 2197 (8.º volume), abordando a questão prévia do ónus de impugnação especificada, a fls. 2148/9, e reeditando o acórdão anterior, transcrevendo-se ipsis verbis, incluídas a utilização de itálico e notas de rodapé, o que respeita ao recurso da matéria de facto interposto pelo M.º P.º, de fls. 2149 a 2172, em tudo correspondente ao contido no anterior acórdão de fls. 1839 a 1862, versando as rubricas «Erro notório na apreciação da prova: “À data dos factos o arguido AA encontrava-se fisicamente debilitado” - facto provado n.º 49» e «Quanto ao exame crítico da prova», incluindo o aditamento de novos factos, que no anterior acórdão se encontrava a fls. 1860/1, e aqui a fls. 2170/1, e os que havia eliminado – ali, a fls. 1861/2, e aqui, a fls. 2172.

Na fundamentação refere o que no acórdão recorrido – da primeira instância - foi dado por provado, de fls. 2132 a 2139 e por não provado, a fls. 2139 (do mesmo modo fora no anterior com factos provados de fls. 1823 a 1829 e não provados a fls. 1830).

Tendo-se procedido às mesmas alterações na matéria de facto, como no anterior, o acórdão não reorganizou a matéria de facto provada e não provada num corpo único, e no mais manteve a condenação na parte criminal e na indemnização cível, aqui com excepção da respeitante a ocultação de cadáver, aliás, já revogada em definitivo.

O arguido AA voltou a apresentar novo recurso dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça, conforme fls. 2203 a 2229 (em original, de fls. 2230 a 2256), com a resposta do M.º P.º, de fls. 2267 a 2270, e a da assistente, de fls. 2272 a 2294.

Após audiência realizada em 10-02-2010 foi proferido acórdão em 24-02-2010, constante de fls. 2347 a 2372 verso (8.º volume), tendo sido dado provimento ao recurso por o acórdão do Tribunal da Relação não ter fundamentado o que decidiu sobre a questão de saber se os recorrentes M.º P.º e assistente, nos recursos que interpuseram do acórdão da 1.ª instância para a Relação de Lisboa, haviam ou não observado o ónus de especificação previsto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, por violação do n.º 2 do artigo 374.º do CPP, e verificação de correspondente nulidade do artigo 379.º, n.º 2, do CPP.

E ainda por, no que toca à nova matéria de facto, após ter procedido à sua alteração, não ter enumerado, de forma perfeitamente clara e inequívoca, quais os factos que, a final, considerava provados e quais os não provados, com violação do artigo 374.º, n.º 2, sendo por isso nulo, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP.

Julgando procedente o recurso foi declarado nulo o acórdão recorrido, devendo ser repetido com decisão fundamentada sobre se os recursos interpostos para a Relação observaram o ónus de impugnação especificada referido nos n.º s 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, e com fundamentação da matéria de facto, designadamente com a enumeração clara e precisa, de todos os factos provados e não provados.

Retornado o processo ao Tribunal da Relação de Lisboa seguiu-se a prolação de novo acórdão em 17-06-2010, constante de fls. 2458 a 2566, que manteve a condenação anterior.

(Continua a constar a exposição dos factos dados por provados no acórdão do Colectivo de Sintra, então recorrido, de fls. 2474 a 2481, e factos não provados, a fls. 2481).

Em obediência ao anterior acórdão do STJ, é de novo abordada a questão prévia de observância ou não do ónus de impugnação especificada, de fls. 2491 a 2508.

Segue-se a apreciação do “Recurso da matéria de facto” - fls. 2509 a 2533 -, transcrevendo-se integralmente o que já constava dos anteriores acórdãos (cfr. fls. 1839 e seguintes e fls. 2149 e seguintes), incluindo os factos aditados – agora a fls. 2531/2 - e os eliminados – a fls. 2532/3.

Muito embora se tenha proclamado no relatório que em obediência ao acórdão de 24-02-2010, se daria cumprimento ao n.º 2 do artigo 374.º do CPP, no que concerne à fundamentação dos factos provados e não provados (ponto 1.1. do Relatório, a fls. 2458), tal não ocorreu.

Na abordagem da qualificação jurídica são enumerados os factos provados resultantes do recurso - fls. 2535 a 2542 – enumerando-se os factos não provados a fls. 2542, mas com a particularidade de se terem como tais apenas aqueles que já constavam da lista do acórdão de Sintra, com a excepção do referente a ausência da intenção de matar e esclarecendo-se a fls. 2542, in fine, que são esses os factos com relevância para o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido AA, mas não se colocam no rol os factos eliminados, maxime, os fulcrais relacionados com a legítima defesa e a alegada debilidade física do arguido por lhe ter passado um carro por cima das costelas.  

O arguido AA voltou a interpor para o Supremo Tribunal de Justiça novo recurso, com motivação de fls. 2575 a 2659, com contra-alegações da assistente, de fls. 2662 a 2684, e resposta do Ministério Público, de fls. 2686 a 2688, do 9.º volume.

Após a realização da requerida audiência em 16-12-2010, foi proferido acórdão em 13-01-2011, constante de fls. 2717 a 2756, o qual anulou o acórdão recorrido, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP, por não descrição do cometimento do crime de forma compreensível por no caso em apreço transitar de uma intenção de a vítima reter o arguido na oficina (“EE pretendia que o arguido AA aguardasse, na oficina, até conhecerem o resultado dessa reunião de FF e opôs-se a que o arguido abandonasse o edifício da oficina quando este manifestou intenção de o fazer”) e, depois, imediatamente a seguir, sem mais, afirmarem-se os disparos (“Os disparos efectuados pelo arguido AA foram causa directa e necessária da morte de EE, devido às lesões traumáticas cranianas e meningo encefálicas que por sua vez provocaram”), determinando à Relação que o fizesse, fornecendo um quadro factual lógico nos moldes indicados, justificando neste termos: “Pela leitura destes dois factos imediatamente sequenciais, ou seja sem hiatos de permeio, fíca-se sem se saber o condicionalismo prévio, justificativo, em que os e disparos - e quantos - ocorreram; quem lê o acórdão nesse segmento é colocado perante uma evidente obscuridade, que não obedece à lógica que deve atravessar transversalmente todo o processo decisório”.

Volvido o processo ao Tribunal da Relação de Lisboa foi proferido novo acórdão, datado de 14-04-2011, e constante de fls. 2772 a 2907.

Tendo-se procedido a alterações de monta na matéria de facto provada e não provada, é revogada a decisão absolutória constante do acórdão recorrido de Sintra, condenando-se agora o recorrente como autor material de um crime de homicídio qualificado, p. p. pelo artigo 132.º, n.º 1 e n.º 2, alínea i), do Código Penal, na pena de 14 anos e 6 meses de prisão, mantendo-se a condenação pela co-autoria de um crime de profanação de cadáver proferida na 1.ª instância e condenando-se o ora recorrente a pagar às demandantes as seguintes quantias: pela perda do direito à vida e por danos morais sofridos pela vítima - 40.000,00 €; pelos danos morais sofridos pela assistente e pela DD decorrentes do homicídio - 20.000,00 €, sendo 10.000,00 para a assistente e 10.000,00 para a DD.

            O arguido AA apresenta então novo recurso, com a motivação de fls. 2952 a 3005, que remata com as seguintes conclusões (em transcrição integral, para melhor percepção das questões colocadas, que, com o devido respeito, não primam pela clareza de exposição):

1. (supra 7° - 35.º) A Relação, ao dar como provado que, o aqui Recorrente empunhando uma pistola, mas com essa arma enfiada nas calças, direccionou o cano da arma de fogo logrando atingir a cabeça do malogrado EE viola a segunda parte do art. 410.º, n.º 2, do CPP, cai na al. c), desse mesmo n.º 2, provocando uma contradição insanável da fundamentação, e a violação do art. 374.º, n.º 2, e consequente nulidade do art. 379.º, n.º 1, al. c), ambos do CPP, bem como, viola a decisão deste STJ, de 13 de Janeiro de 2011, a qual, exige o próprio “condicionalismo prévio, justificativo em que os disparos ocorreram”, impondo-se à decisão da Relação de Lisboa, de 14 de Abril de 2011, por força do art. 205.º, n.º 2, da CRP, e também o disposto, quer o art. 9.º, n.º 1, do CPP, quer o art. 202.º, n.º 2, da CRP, no que toca a reprimir a violação da legalidade democrática.

2. (supra 1.º - 6.º + 36.º - 67.º) A Relação, desconsiderou as declarações do Recorrente, em Primeira Instância, como - depoimento parcial e muito pouco credível, minando a respectiva natureza de prova subjectiva, real, e material, e ainda, autónoma porque obtida, nos termos do art. 345.°, do CPP, sem concomitantemente apresentar alternativa, senão factos aglomerados, inexactos e truncados, alterando profundamente os factos provados e não provados, em violação do art. 127.°, par. único, bem como art. 374.°, n.º 2, ambos do CPP, baseados em declarações em Primeira Instância daquele, cuja validade não admite prorrogação indefinida, por via do art. 328.º, n.º 6, ainda do CPP, pelo que se impunha à Relação à renovação da prova, em honra do princípio da imediação, sob pena de violação do art. 430.º, n.°1, e deste modo caiu na nulidade do art. 379.º, n.º 1, al. c), todos do CPP.

3. (supra 68.º - 99.º) A Relação, no seguimento do Acórdão do STJ, de 13 de Janeiro de 2011, dá como cumprido o “ónus da impugnação especificada”, apenas reconhecendo aos recorrentes um impugnatório “de uma forma um pouco genérica”, dum obscuro, “núcleo de factos”, em violação do n.º 4 do art. 9.º do CC, aplicado ao processo penal, onde a perfeição dos factos praticados só é validada pela sua conformidade com a lei, e da letra do art. 412.º, n.º 3, als. a) e b), do CPP, bem como, da jurisprudência obrigatória do STJ, (v.g. os Acs. 337/20, 183/20, 259/02, 140/04, 322/04, 405/04, 357/06), que impõe uma exclusão da consideração da impugnação genérica, à razão directa da sua inclusão recursal, por afectar o direito do recorrido, a saber concisamente da matéria de facto e probatória de que o recorrente discorda, e viola, assim também, o art. 32.°, n.º 1, da CRP, e é nula por falta de fundamento legal (art. 379.º, n.º 1, al. c), do CPP), e logo, importa a inconstitucionalidade do art. 412.°, n.º 3, al. a), e b), do CPP, interpretado no sentido que: a impugnação “um pouco genérica” dum incerto “núcleo de factos”, equivale à impugnação dos “concretos pontos de facto” tidos pelos recorrentes “incorrectamente julgados”, ou dos pontos da matéria de facto de que os recorrentes discordam.

IV - (Do Pedido ou Das Alterações Pretendidas)

Nestes termos, bem como noutros, melhores e de direito, deverá ser recebido o presente requerimento e, por via dele:

1. Dar curso à realização da Audiência, (em obediência à necessidade de a requerer, nos termos do art. 419.º, n.º 3, al. c), primeira parte, do CPP), nos termos do art. 435.º, par. único do CPP.

2. Quanto ao mais, deve o respectivo processado seguir termos até final, considerando-se que a condenação do ora Recorrente, como acaba de ser concluído, é injusta e inadmissível, porque arbitrária, devendo ser anulada, e proceder tudo o que se objectou aos Recursos da Assistente e do Ministério Público, porque indevida e ilicitamente postergado, devendo improceder, na totalidade, o douto Acórdão do Venerando Tribunal a quo, mantendo-se, na integra a decisão proferida na sentença absolutória, ocorrida no processo n.º 36/06.8GAPSR.

O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa respondeu de fls. 3023 a 3025, defendendo a manutenção do acórdão recorrido.

A assistente e demandante CC, por si e em representação da filha DD, apresentou a resposta de fls. 3026 a 3048, e em original de fls. 3049 a 3071, que remata com as seguintes conclusões:

I - Depois de proferida decisão em 1.ª Instância, da qual as ora Recorridas interpuseram o competente recurso, o qual, por douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, foi julgado procedente, nele se decidindo condenar o Arguido AA, como autor material de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido nos artigos 131° e 132, n.° 1 e 2, al. i), do Código Penal, na pena de 14 anos e seis meses de prisão.

 Mais se condena a pagar às demandantes a título de indemnização, as seguintes quantias: pela perda do direito à vida e por danos morais sofridos pela vítima na quantia de 40.000,00€; pelos danos morais sofridos pela assistente e pela DD decorrentes do homicídio, na quantia de 20.000,00€, sendo 10.000,006para a assistente e, os outros 10.0006para a DD;

II – Agora, vêm os arguidos interpor recurso para esse Venerando Tribunal, pedindo que improceda, na totalidade, o douto Acórdão do Venerando Tribunal a quo, mantendo-se, na íntegra, a decisão proferida na sentença absolutória, ocorrida no processo n.º 36/06.8GAPSR;

III - O douto Tribunal da relação de Lisboa entendeu que não era necessário convidar os ora recorrentes a corrigirem as suas conclusões e fundamentou a sua posição no Acórdão objecto do presente recurso. Com efeito, o douto Tribunal de Apelação entendeu que a imposição legal foi cumprida no que concerne à impugnação especificada.

IV - Começa o Recorrente AA por sustentar que a decisão recorrida violou o princípio do contraditório (artigo 30, n.º 3 do CPC - aplicável por força do disposto no artigo ° 4 do CPP, e artigo 32° da Constituição da República Portuguesa) por não lhe ter sido dada a possibilidade de se pronunciar sobre o teor da informação em que o Venerando Tribunal a quo, decidiu por Conferência, sem que, em nenhum passo do respectivo, tivesse em conta as respostas do ora Recorrente, quer ao Recurso da Assistente, quer ao recurso do Ministério Público;

V - O Recorrente, como demonstrou nas suas alegações de recurso, juntou ao processo as suas respostas ao recurso quer do Digno Procurador do Ministério Público quer das Assistentes, as quais passaram a fazer parte do processo, tendo assim beneficiado do princípio do contraditório;

VI - Foram indicados e ponderados todos os meios de prova carreados para o processo, isto é, todos os exames efectuados, as fotografias e demais documentos, as gravações, os depoimentos testemunhais recolhidos em sede de audiência de julgamento em Ia Instância, bem como as alegações de recurso, quer do Digno Procurador do Ministério Público, quer das Assistentes, quer de ambos os Arguidos;

VII - O Acórdão recorrido é exaustivo na fundamentação usada, sendo que, na parte mais incómoda para os Recorrentes, os motivos de facto expostos, a indicação e o exame crítico das provas usadas pelo tribunal a quo, são aquelas que qualquer cidadão normal no pleno uso das suas faculdades mentais, despido de paixões e que na percepção tida das coisas aquilo que é o comum entendimento das mesmas, não deixará de compreender e aceitar;

VIII - Pelo exame crítico que o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa fez das provas fica assegurado que a decisão não procede de uma actividade arbitrária do Tribunal, do capricho do julgador, de uma convicção exclusivamente intimista, subjectiva escapando ao controle intraprocessual tanto por parte dos seus destinatários imediatos, como a generalidade dos cidadãos, pois a motivação assume, também, um meio de controle extraprocessual, geral, difuso e democrático sobre a justiça da decisão; estabelecer se a decisão é boa, porque fundada em “boas razões” a arquitectura decisora há-de também, repousar em prova objectável e motivável;

IX - Mais do que uma impugnação especificada, ponto por ponto, da matéria de facto, como previsto nos precisos e apertados moldes do art. 412°, n.º 3 e 4, do Código de Processo Penal, a que o Recorrente não deu satisfação. O recorrente controverte antes a convicção probatória do tribunal que levou à condenação, no intuito de sobreposição da sua convicção, o que não vale por impugnação da matéria de facto, a que o Tribunal da Relação não emprestou reflexão, mas sem quaisquer consequências a decretar;

X - Não foi violado o princípio do contraditório ao ser decidida pelo Tribunal recorrido a mudança da decisão proferida em 1ª Instância, pois foi dada a oportunidade ao Recorrente de responder aos recursos apresentados pelo Digno Procurador do Ministério Público e das Assistentes, o que o fez. Fazendo essas respostas parte do processo, o Venerando Tribunal da Relação quando da sua decisão, expressa ou tacitamente, teve em conta todos os elementos constantes do processo;

XI - No caso em apreço fazem-se sentir importantes exigências de prevenção geral. Estamos perante um tipo de crime causador de alarme social, responsável por justificados sentimentos de insegurança;

XII - É ainda inegável que o meio usado pelo arguido revela especial censurabilidade ou perversidade, na medida em que este actuou de forma a garantir que EE morresse, ao apontar a arma de fogo e ter disparado dois tiros à queima-roupa, não lhe dando qualquer hipótese de defesa ou fuga;

XIII - A atitude do arguido é altamente reprovável, não só por pôr em causa o bem supremo que é a vida, mas também pela “frieza de carácter, à insida e ao calculismo empregue pelo arguido AA, quer no acto em que cometeu o homicídio qualificado, quer depois na actuação que levou a cabo para ocultar definitivamente o cadáver, atirando-o ao rio, após o ter enrolado a preceito para ir ao fundo, o que não aconteceu por ter sido descoberto por pescadores, e, só nesse momento o arguido confessou os crimes;

XIV - Relativamente à forma como o Recorrente AA matou a vítima EE é reveladora de uma grande insensibilidade para com a vida humana, mostrando uma forte intenção de matar, de forma "traiçoeira";

XV - No caso em apreço, a ilicitude é muito elevada;

XVI - O arguido, ora Recorrente, apenas confessou os factos quando eram óbvios, mas mesmo assim, ainda tentou enganar as entidades policiais e judiciais ao apresentar várias versões;

XVII - Em momento algum das suas declarações revelou qualquer espécie de arrependimento pelos crimes cometidos;

XVIII - Face a todo o descrito circunstancialismo, a pena terá necessariamente de situar-se na metade superior da moldura abstracta, aproximando-se mesmo do seu máximo, respondendo, desse modo, às necessidades de prevenção geral, que no crime de homicídio são muito elevadas por ter sido violado o bem jurídico supremo, que é a vida humana, necessidades que são satisfeitas, salvo melhor opinião com uma pena de 14 anos e 6 meses de prisão, aplicada pelo Venerando Tribunal da Relação, fazendo respeitar assim as necessidades de prevenção especial;

XIX - Alega ainda o Recorrente que o douto Acórdão recorrido viola ainda o princípio da prova constante no artigo 124° do Código de Processo Penal. A regra da livre apreciação da prova em processo penal, constante do artigo 127 do Código de Processo Penal, não se confunde com apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável, e observaram as regras de experiência comum utilizando como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objectivos genericamente susceptíveis de motivação e controlo;

XX - Nessa medida insindicável, nota-se que a elaboração do Acórdão recorrido proferido pelo Venerando Tribunal da Relação em recurso, obedece a um formalismo que coincide totalmente com o disposto no artigo 374° do Código de Processo Penal;

XXI - Quanto à fundamentação do Acórdão da Relação recorrido não é passível de censura desde que aquela decisão seja legal e suficientemente fundamentada. O Venerando Tribunal da Relação sindicou todo o processo, fundamentou a decisão sobre a procedência, quer do recurso apresentado pelo Digno Procurador do Ministério Público, quer do recurso apresentado pelas Assistentes, em matéria de facto nas provas examinadas no processo, e na parte da matéria de facto que alterou, justificou as divergências de apreciação;

XXII - O dever constitucional de fundamentação da sentença basta-se com o exigido pelo comando do n.° 2 do artigo 374 do Código de Processo Penal e o exame crítico da prova, exige, como o fez o Venerando da Tribunal da Relação, indicando os meios de prova que serviram para formar a sua convicção, mas, também, os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência;

XXIII   - A generalidade da matéria atinente ao pedido de indemnização, foi, em sede de audiência de julgamento em Ia instância, dada como provada. Apenas não foi atribuída a indemnização civil às Assistentes, ora Recorridas, pelo facto de o Tribunal de Ia instância ter também dado como provado a legitima defesa.

XXIV  - Tendo sido alterado esse circunstancialismo, e ter sido alterado o Acórdão, e diga-se que em momento algum foi a matéria atinente ao pedido de indemnização civil impugnada, é lógico, coerente e prudente que tendo sido dado como provada a matéria supra referida, que não foi impugnada em sede de recurso, que seja atribuído pelo douto Acórdão recorrido os valores constantes da decisão a fls 80 do referido acórdão;

XXV - Deve assim ser negado provimento ao recurso dos Recorrentes, mantendo-se, na íntegra, o Acórdão Recorrido.

O recurso foi admitido por despacho de fls. 3072.

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal emitiu douto parecer de fls. 3080 a 3088, começando por afirmar parecer que o acórdão de 14-04-2011, tendo em vista colmatar a ausência quanto à matéria de facto e que havia levado à sua anulação, terá alcançado esse fim, suprindo a omissão, ao acrescentar factos que resultavam das suas fundamentações, enquadrando-os.

Quanto aos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, relembra que o STJ só conhece dos mesmos de forma oficiosa, defendendo a irrecorribilidade do acórdão sobre matéria de facto, designadamente por violação do disposto no n.º 2 do artigo 410.º do CPP, com a consequente impossibilidade de questionar matéria de facto por violação do artigo 127.º do CPP, estando vedado ao STJ conhecer a livre apreciação da prova por não se integrar em matéria de direito.

Quanto à questão colocada pelo recorrente sobre a fundamentação das motivações dos recorrentes M.º P.º e assistente, afirma que já se encontra completamente decidida e fixada, pois sendo objecto do recurso do arguido, o acórdão de 13-01-2011 manteve o decidido pelo acórdão da Relação de 17-06-2010, ou seja, a questão prévia mostra-se definitivamente decidida, não podendo agora ser objecto de apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Adianta não lhe parecer “que se verifique falta de fundamentação da matéria de facto fixada, pois muito pormenorizada e extensamente o tribunal da relação se pronunciou e “explicou” como e porquê chegou àquela determinação”.

Defende estar fundamentada a intenção de matar, não tendo o recorrente suscitado questões de direito como questionar a qualificação do crime de homicídio e/ou a medida da pena, devendo ser negado provimento ao recurso.

Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, veio o recorrente “responder às Vistas do Digníssimo Procurador-Geral”, de fls. 3110 a 3121, defendendo no fulcro a existência de questões de direito prementes que devem ser apreciadas. 

Colhidos os vistos, cumpre decidir em audiência, como requereu o recorrente a fls. 3004.

             Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal - acórdão do Plenário da Secção Criminal, de 19-10-1995, no processo n.º 46580, Acórdão n.º 7/95, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28-12-1995 (e BMJ n.º 450, pág. 72), que fixou jurisprudência, então obrigatória, no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito” e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do CPP - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.                                                

                                                         *******   

          Questões a decidir

Vistas as três conclusões onde o recorrente sintetiza as suas pretensões recursivas, verifica-se a tentativa de impugnação de matéria de facto e a arguição de nulidades do acórdão recorrido.

Aquela impugnação é corporizada pela invocação do vício decisório previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, embora de seguida se refira o vício de contradição insanável, bem como a errada valoração das provas e violação do artigo 127.º do CPP, e a perda de eficácia da prova.

A arguição de nulidades coloca-se em dois planos, a saber, a emergente de falta de fundamentação de facto, por violação de artigo 374.º, n.º 2, do CPP e falta de fundamentação das motivações dos recorrentes M.º P.º e assistente relacionada com observância do ónus de impugnação especificada, prevista nos n.º s 3 e 4 do artigo 412.º do CPP.

Apreciando.

Decisão recorrida é o acórdão da Relação de Lisboa na reformulação de 14 de Abril de 2011, determinada pela necessidade de suprimento de omissão de pronúncia apontada no acórdão deste STJ de 13 de Janeiro de 2011, sendo que decisão recorrida para reapreciação do Tribunal da Relação de Lisboa é - continua a ser - o acórdão de Sintra datado de 20-12-2007.

Porque no presente recurso se impõe uma reanálise da fundamentação de facto, pelas razões que ao diante se explicitarão, para melhor compreensão da exposição, importará rever a fundamentação originária do acórdão do Colectivo de Sintra, de 20-12-2007, que conduziu à absolvição do ora recorrente do crime de homicídio qualificado, e a mais recente – a terceira – formulação do acórdão ora recorrido.

O acórdão da primeira instância, do Colectivo da Vara Mista de Sintra, datado de 20-12-2007, teve como provado o seguinte complexo factual (fls. 1487 a 1494 do 6.º volume, transcrito no ora acórdão recorrido, mas sem numeração, de fls. 2789 a 2796 do 10.º volume, e com redacção não integralmente correspondente e fiel ao original no que respeita ao ponto n.º 11):

1. O arguido AA agregou-se a FF e GG, nome pelo qual era conhecido EE, trabalhando na Oficina de Reparação e Pintura de Automóveis sita na Rua das V…, n° XX, em M.. M…, nesta comarca, da qual eram arrendatários.

2. O arguido AA era, ainda, proprietário de uma outra oficina sita na Rua S… P…, Lote xx, C… do P…, C… da C…, com a denominação “R…”.

3. Para além da actividade de reparação e pintura de automóveis que AA desenvolvia na oficina de M… M…, o FF e EE também se dedicavam, no mesmo local, à viciação de veículos que receptavam para o efeito, conduzindo-os para aquele espaço, bem como ao furto de Caixas de Multibanco, factos estes investigados em processo autónomo, à ordem do qual FF se encontra preso.

4. A determinada altura EE suspeitou que o arguido AA fosse informador da Polícia, pelo que começou a insinuar isso mesmo, afirmando que mataria o “bufo” e a respectiva família caso descobrisse a sua identidade.

5. Por via disso começou o arguido AA a sentir-se muito inseguro, com receio de que EE lhe fizesse mal e à sua família.

6. No dia 6 de Junho de 2006 o arguido AA encontrou-se com FF e com EE na Oficina em M… M… onde estiveram os três e onde almoçaram.

7. Após a saída do FF, pelas 16H30, que saiu do local para se dirigir a um encontro informal com elementos da Polícia Judiciária, ficaram no local apenas o arguido AA e EE.

8. EE pretendia que, posteriormente, FF lhe comunicasse o resultado do encontro deste na Polícia Judiciária, nomeadamente, até que ponto aquela polícia tinha adquirido elementos das actividades ilícitas por si praticadas e por que meio havia adquirido aqueles elementos.

9. EE pretendia que o arguido AA aguardasse, na oficina, até conhecerem o resultado dessa reunião de FF e opôs-se a que o arguido abandonasse o edifício da oficina quando este manifestou intenção de o fazer.

10. EE insinuou por várias vezes que o arguido AA seria o “bufo” da Polícia.

11. Pelas 18H00/18H30 acusou-o directamente nesse sentido e perguntando-lhe o que escondia dirigindo-se-lhe para o agredir e lhe apertar o pescoço.

12. AA atirou uma chave de fendas em direcção a EE e exibiu-lhe a arma de fogo de marca Walther Calibre.22, puxando a culatra atrás, o que não deteve a marcha de EE.

13. Acabaram ambos por se envolver num “abraço” já em iminente acção de luta no interior da secção de mecânica da oficina.

14. Acto contínuo e com medo que a vítima EE o matasse, já que tinha conhecimento que andava sempre com armas brancas e de fogo, direccionou o cano da arma de fogo que empunhava com a mão direita, carregada com munições de calibre 22 Long Rifle, para a cabeça de EE e disparou dois tiros consecutivos que atingiram este último na região temporal esquerda, mais precisamente na zona situada atrás do respectivo pavilhão auricular.

15. Nessa altura EE caiu já inanimado no chão, vertendo sangue em abundância da região atingida que derramando-se acabou por formar uma poça.

16. Depois disso o arguido AA decidiu ver-se livre do cadáver de EE.

17. Para o efeito, procedeu primeiramente ao acondicionamento do cadáver recorrendo a artefactos que encontrou quer na oficina quer na zona com entulho de obras situada nas suas imediações.

18. Enrolou primeiramente o cadáver com um cobertor de criança com as medidas 1,05 m por 74 cm e envolveu a cabeça com papel pardo com vestígios de tinta clara que também serviu para absorver o sangue que essa zona apresentava.

19. Seguidamente embrulhou-o num lençol de cor clara com l,50m por 2,60m e meteu-o no interior de uma manga em plástico transparente com 2m por 2,80m cujas extremidades rematou com dois sacos de cor preta, do tipo dos utilizados para acondicionamento do lixo.

20. Atou então o “embrulho” formado com o cadáver de EE com vários metros de corda de sisal, uma corda lilás com pintas vermelhas com 2,18m e um esticador de cor clara com pintas pretas com l,50m com os quais igualmente amarrou à parte inferior do cadáver um bloco de cimento e uma alavanca tipo pé-de-cabra com punho em tubo galvanizado.

21. Por último atou à parte superior do cadáver um pedaço de muro com tijolo e reboco de cimento que prendeu com o auxílio de uma cinta de tecido de cor preto e laranja, com as medidas de 4,35m por 22mm e com um gancho em plástico numa das extremidades.

22. Em seguida o arguido AA levou o cadáver assim acondicionado para a bagageira do veículo marca Renault, modelo Clio, com a matrícula XF-XX-XX, onde foram detectados vestígos hemáticos nas borrachas da porta da bagageira e no respectivo tapete pertencentes a EE.

23. Cerca das 19H00 do mesmo dia, já com o cadáver de EE na bagageira do citado veículo, conduziu-o o arguido até à Margem Sul, depositando-o no interior da arrecadação anexa à oficina "R…", de sua propriedade, sita na C… da C…, Almada.

24. Posto isso foi o arguido a casa jantar, onde chegou pelas 21H00.

25. Em seguida, pelas 23H00, deixou a sua residência e encontrou-se com o arguido BB na Rotunda do Centro Sul, onde o atraiu com o pretexto de que o auxiliasse num transporte.

26. Nesse local combinou novo encontro com o arguido BB, após o regresso deste de Lisboa, onde entretanto se deslocou para levar uns amigos que trazia consigo.

27. Enquanto isso o arguido AA deslocou-se a casa da mãe, na Cova da Piedade, de onde trouxe o veículo propriedade do seu irmão HH, de marca Citroen C3, comercial, uma vez que tinha a bagageira mais espaçosa que o seu e, por isso, ai caberia mais facilmente o cadáver de EE.

28. Depois de ter recolhido o arguido BB, no mesmo local, só a caminho da oficina "R…" é que lhe disse o que havia feito, ínformando-o de que o tinha que auxiliar no transporte e depósito do cadáver de EE nas águas da Barragem de Montargil, que conhecia bem.

29. Uma vez na dita oficina os arguidos AA e BB transportaram o "embrulho" com o cadáver de EE para a bagageira do veículo supra citado que o arguido AA conduziu até à ponte situada sobre a barragem de Montargil, Ponde de Sôr, na EN 2, onde chegaram por volta das 3h do dia 7.6.06, seguindo o seguinte itinerário - A2 (direcção à Ponte Vasco da Gama) / A12 / IC3 (direcção a Porto Alto /Alcochete) / EN 118 / EN 119 (direcção Coruche) / EN 251 (direcção a Mora) / EN 2.

30. Na referida ponte os dois arguidos retiraram o cadáver de EE da bagageira do veículo e transportaram-no em mãos até ao corrimão situado no lado direito da ponte (sentido barragem de Montargil) de onde o atiraram para as águas da barragem, onde se afundou.

31. Durante tal operação o arguido AA desligou as luzes do automóvel, a fim de evitar serem vistos por terceiros.

32. Depois disso o arguido AA ainda regressou à oficina de M… M… onde limpou tudo, com o objectivo de eliminar o mínimo vestígio dos factos aí ocorridos, tendo, ainda, lançado para o lixo os pertences da vítima - um par de ténis e uns óculos - bem como a roupa que ele próprio vestia no dia dos factos e que tinha ficado manchada de sangue, artigos estes que não foram recuperados.

33. No dia 7.6.07, da parte da manhã, após ter terminado a limpeza da oficina de M… M…, o arguido AA deslocou-se à Barragem de Montargil a fim de verificar se o cadáver havia submergido.

34. Nessa altura nada viu a boiar nas águas mas como não pôde ali estar muito ' tempo resolveu lá voltar ao fim da tarde para o mesmo efeito, desta vez na companhia de II, a quem pediu emprestada uma mota de água e que o conduzisse até ao local, alegando estar muito cansado.

35. Posteriormente o arguido AA desmontou a oficina de M… M… levando todo o seu recheio para a "R…", na C… da C….

36. No dia 10.6.2006, pelas 16H00, no local denominado Rasquete, na Barragem de Montargil, um grupo de pescadores confrontou-se com um “embrulho” de grandes dimensões a flutuar nas águas, que imediatamente identificaram como tratando-se de um cadáver humano, uma vez que era visível o pé e tornozelo direito.

37. O cadáver em questão foi entretanto reconhecido e identificado como pertencendo a EE, que então já tinha sido dado como desaparecido, embora sob o nome de GG pelo qual era conhecido.

38. O cadáver de EE apresentava: no hábito externo, na região da cabeça – “ (...) bois orifícios com meio centímetro de diâmetro situados a dois centímetros acima do bordo superior do pavilhão auricular esquerdo e separados entre eles por dois centímetros. (...)” • No hábito interno, a nível do crânio, partes moles – “(•••) Infiltrado sanguíneo na bossa frontal esquerda com seis centímetros de comprimento por quatro centímetros de largura... Infiltrado sanguíneo na região tempor-occipital esquerda com dezassete centímetros de comprimento por dez de largura... (...)”• Nos ossos do crânio, abóbada – “ (...) Orifício na região parietooccipital esquerda com dois centímetros de comprimento por um de largura com escorrencia de massa encefálica em decomposição... Fractura com início no orifício descrito, horizontal, atingindo a parte anterior do parietal esquerdo e prolongando-se até à zona média do frontal com doze centímetros de comprimento e atingindo a parte posterior do parietal e prolongando-se até ao occipital com dez centímetros de comprimento... (...)”. Na base (do crânio) – “ (...) Perfuração com meio centímetro de diâmetro e um centímetro e meio de profundidade no estenoide esquerdo de onde foi retirado fragmento metálico com um centímetro de comprimento e meio centímetro de largura ...(...)”.

39. Os disparos efectuados pelo arguido AA foram causa directa e necessária da morte de EE, devido às lesões traumáticas cranianas e meningo encefálicas que por sua vez provocaram.

40. No momento da morte EE apresentava uma taxa de alcoolémia de setenta e nove centigramas por litro (0,79 g IX).

41. Da busca realizada à residência do arguido, sita na Rua A… S… M…, n° XX, R/ch Dt°, S…, A…, resultou a apreensão de: - Uma pistola "Walther P22" com número de série G 004496, de calibre.22, com respectivo estojo, 01 carregador, um sistema de mira Casekm duas chaves próprias e um escovilhão para limpeza; - Um revólver "Taurus Ultra-lite", com o número de série “5041-941”, com tambor para oito munições de calibre.22 Magnum, com respectiva caixa em cartão, duas chaves próprias, uma chave de fendas e um escovilhão para limpeza; Uma espingarda carabina da marca "Walther G 22", com o número de série WP003732, com dois carregadores próprios, de calibre.22LR, com estojo próprio, uma mira óptica e diversas chaves próprias; Um outro carregador próprio para a referida pistola “Walther”; Uma caixa com 95 munições de calibre. 22 LR; Uma caixa com 51 munições de calibre. 22 LR; Uma caixa com 50 munições de calibre. 22 Federal; Uma caixa com 50 munições de calibre. 22 Maxi Mag; Uma caixa com 29 munições de calibre. 22 Maxi Mag; Um coldre externo misto, da EE "GK Profissional", em material de nylon de cor preto; Um cartão de identidade de sócio efectivo do "Grupo P…" - "S… de T… n° 2 de Lisboa", em nome do arguido AA; Uma autorização para uso e porte de arma de precisão, n° 1412/04, com validade até 2007. Nov.12, e m nome do mesmo arguido.

42. O arguido AA agiu com a intenção de se defender da investida de EE, acima descrita, embora sabendo que os disparos por si efectuados poderiam atingir uma zona do corpo de EE onde se encontram alojados órgão vitais e, assim provocar, como provocaram, a morte deste.

43. O arguido AA conhecia as características letais da arma de fogo que utilizou para efectuar os disparos.

44. Agiram os arguidos AA e BB em união e conjugação de esforços com o propósito de fazer desaparecer o cadáver de EE que para o efeito o primeiro acondicionou da forma supra descrita e ambos transportaram para a viatura e daí para a Barragem de Montargil onde o deitaram para as águas, com o fim e na expectativa de que após submersão o mesmo acabasse por se deteriorar.

45. Agiu o arguido BB, ainda, com o propósito de, dessa forma, impedir a descoberta do corpo pelas autoridades policiais e assim obstar à perseguição criminal do arguido AA, seu amigo, não obstante saber ter sido ele o autor da morte do ofendido EE.

46. Agiram ambos os arguidos livre, deliberada e conscientemente, sabendo, relativamente ou modo como ocultaram o cadáver de EE, que as suas condutas eram proibidas por lei.

47. EE era procurado pelas por crimes de homicídio, rapto, receptação, posse ilegal de armas de fogo, tráfico de estupefacientes, furto e evasão, nomeadamente pelas autoridades policiais italianas e portuguesa e referenciado no tráfico de estupefacientes pela polícia espanhola (fls. 338, 339).

48. EE praticou escalada e boxe, sendo que o pai lhe havia partido os ossos próprios do nariz com vista a evitar outras lesões durante a prática desse desporto.

49. Á data dos factos o arguido AA encontrava-se fisicamente debilitado por, dias antes, lhe ter passado por cima da zona das costelas um veículo automóvel, quando, juntamente com FF, tentava desbloquear essa viatura.

50. O arguido AA temia represálias dos companheiros e amigos de EE.

51. O arguido AA é mecânico de profissão, auferia cerca de 5000 € de onde retirava as despesas necessárias ao funcionamento da oficina e exercício da sua actividade.

52. Encontra-se divorciado.

53. Tem dois filhos com 2 e 8 anos de idade.

54. Tem o 8º ano de escolaridade.

55. É um profissional empenhado no seu trabalho e colaborante no seu meio social nomeadamente com actividades ao ar livre de jovens estudantes.

56. O arguido BB é empregado de mesa, trabalhando para hotéis e outros serviços similares.

57. Ganha cerca de 500 €/mês.

58. Tem o estado civil de casado mas não vive juntamente com a mulher com quem tem um filho com 22 anos de idade.

59. Vive juntamente com uma companheira com quem tem outro filho com 8 anos de idade.

60. Tem o 6o ano de escolaridade.

61. Anteriormente, o arguido BB foi condenado por crimes de ofensas à integridade física e emissão de cheque sem provisão.

62. EE vivia em união de facto com a Lesada/Demandante CC, como se casados fossem, desde 2002 e era pai de DD.

63. Era um companheiro e um pai dedicado à sua companheira e à sua filha.

64. CC sofreu e sofre desgosto com a morte do companheiro.

65. A DD apesar de ter menos de um ano de idade sentiu a ausência do pai."

O Colectivo de Sintra considerou como não provados os seguintes factos (fls. 1494/5, transcritos no acórdão recorrido a fls. 2796, igualmente sem sujeição a numeração):

Não resultou provado que:

        1. Que EE e FF desenvolvessem a actividade profissional de mecânicos de automóveis no espaço que arrendaram juntamente com o Arguido AA.

        2. Que o arguido AA tivesse sacado a arma do bolso apenas quando já estava em contacto físico com EE.

        3. Que o arguido AA tivesse encostado a arma de fogo à cabeça de EE antes de disparar ou que apenas tivesse disparado o segundo tiro após sentir que a vítima EE ainda se mantinha agarrada a si.

        4. Que o arguido AA tivesse a intenção directa de provocar a morte de EE.

        5. O arguido AA soubesse ser proibida por lei a detenção da espingarda carabina que possuía na sua casa.

        6. Que a assistente é uma abastada empresária, que aufere rendimentos de empresa(s) que titula, e com força económica para prover a si e à filha.

        7. Que EE ia auferir, no exercício da sua actividade empresarial, um vencimento mensal mínimo de 1.500,00 Euros, pelo que deixou de auferir, durante a sua vida de trabalho, sem actualizações, 540.000.00 Euros (quinhentos e quarenta mil euros).

Factos Provados

No acórdão ora recorrido de 14-04-2011, a fls. 2849, consigna-se que “Deste modo e em obediência ao acórdão do STJ, fixa-se a seguinte matéria de facto assente, fazendo a elencagem lógica do como, quando e porquê dos acontecimentos factuais”, seguindo-se a enumeração dos factos provados até fls. 2857.

Nessa sede são enumerados apenas os factos dados por provados.

Os factos não provados só surgirão no dispositivo, sendo a transcrição do que se continha no acórdão de Sintra, retirada obviamente a referência à ausência de intenção directa de matar, mas sem inserir os novos factos dados por não provados, considerados de eliminar. Os três primeiros factos, certamente por lapso de composição de texto, surgem em duplicado.

Em consonância com o que consta de fls. 2849 a 2857 – no dispositivo, de fls. 2899 a 2906 – consta a alteração do acórdão recorrido no tocante à decisão de facto, fixando-se a seguinte matéria de facto como provada:

(Nota - Mantém-se o itálico do original e reduziu-se a tipo de letra menor a enumeração dos factos relativos ao crime de profanação de cadáver que aqui não está em discussão, bem como os factos relativos ao co-arguido BB, sem interesse para o presente recurso.

Anota-se que no parágrafo 41, correspondente ao facto constante do ponto n.º 33 do acórdão de Sintra, consta “No dia 7.6.07…”, o que se deverá certamente a mero lapso de escrita, pois pelo contexto retira-se que a deslocação à barragem de Montargil teve lugar em 7 de Junho do ano de 2006).

“O arguido AA agregou-se a FF e GG, nome pelo qual era conhecido EE, trabalhando na Oficina de Reparação e Pintura de Automóveis sita na Rua das V…, n° XX, em M… M…, nesta comarca, da qual eram arrendatários.

O arguido AA era, ainda, proprietário de uma outra oficina sita na Rua S… P…, Lote XX, C.. do P…, C… da C…, com a denominação "R…".

Para além da actividade de reparação e pintura de automóveis que AA desenvolvia na oficina de M.. M…, o FF e EE também se dedicavam, no mesmo local, à viciação de veículos que receptavam para o efeito, conduzindo-os para aquele espaço, bem como ao furto de Caixas de Multibanco, factos estes investigados em processo autónomo, à ordem do qual FF se encontra preso.

A determinada altura EE suspeitou que o arguido AA fosse informador da Polícia, pelo que começou a insinuar isso mesmo, afirmando que mataria o "bufo" e a respectiva família caso descobrisse a sua identidade.

Por via disso começou o arguido AA a sentir-se muito inseguro, com receio de que EE lhe fizesse mal e à sua família.

No dia 6 de Junho de 2006 o arguido AA encontrou-se com FF e com EE na Oficina em M… M… onde estiveram os três e onde almoçaram.

Após a saída do FF, pelas 16H30, que saiu do local para se dirigir a um encontro informal com elementos da Polícia Judiciária, ficaram no local apenas o arguido AA e EE.

EE pretendia que, posteriormente, FF lhe comunicasse o resultado do encontro deste na Polícia Judiciária, nomeadamente, até que ponto aquela polícia tinha adquirido elementos das actividades ilícitas por si praticadas e por que meio havia adquirido aqueles elementos.

EE pretendia que o arguido AA aguardasse, na oficina, até conhecerem o resultado dessa reunião de FF e opôs-se a que o arguido abandonasse o edifício da oficina quando este manifestou intenção de o fazer.

EE insinuou por várias vezes que o arguido AA seria o “bufo” da Polícia.

O arguido AA tinha a arma de fogo “Walther” guardada no seu carro, tendo, aproveitando uma distracção de EE a falar ao telemóvel, ido buscá-la, sem que este último desconfiasse.

O arguido AA, nessa altura, também aproveitou para carregar o carregador da aludida arma com duas munições e introduzi-la nas calças.

O arguido direccionou o cano da arma de fogo que empunhava com a mão direita, carregada com munições de calibre 22 Long Rifle, para a cabeça de EE e disparou dois tiros consecutivos que atingiram este último na região temporal esquerda, mais precisamente na zona situada atrás do respectivo pavilhão auricular;

Nessa altura EE caiu já inanimado no chão, vertendo sangue em abundância da região atingida que derramando-se acabou por formar uma poça.

            O arguido AA tem experiência de manuseamento de armas de fogo, praticando tiro.

Para que a arma de fogo “Walther” disparasse tinha de se exercer uma força igual ou superior a 2,23 Kg, encontrando-se a mesma munida de um aparelho de pontaria consistente num ponto de mira fixo e alça de mira regulável em direcção.

Depois disso o arguido AA decidiu ver-se livre do cadáver de EE.

Para o efeito, procedeu primeiramente ao acondicionamento do cadáver recorrendo a artefactos que encontrou quer na oficina quer na zona com entulho de obras situada nas suas imediações.

Enrolou primeiramente o cadáver com um cobertor de criança com as medidas 1,05 m por 74 cm e envolveu a cabeça com papel pardo com vestígios de tinta clara que também serviu para absorver o sangue que essa zona apresentava.

Seguidamente embrulhou-o num lençol de cor clara com 1,50m por 2,60m e meteu-o no interior de uma manga em plástico transparente com 2m por 2,80m cujas extremidades rematou com dois sacos de cor preta, do tipo dos utilizados para acondicionamento do lixo.

                Atou então o "embrulho" formado com o cadáver de EE com vários metros de corda de sisal, uma corda lilás com pintas vermelhas com 2,18m e um esticador de cor clara com pintas pretas com l,50m com os quais igualmente amarrou à parte inferior do cadáver um bloco de cimento e uma alavanca tipo pé-de-cabra com punho em tubo galvanizado.

Por último atou à parte superior do cadáver um pedaço de muro com tijolo e reboco de cimento que prendeu com o auxílio de uma cinta de tecido de cor preto e laranja, com as medidas de 4,35m por 22mm e com um gancho em plástico numa das extremidades.

Em seguida o arguido AA levou o cadáver assim acondicionado para a bagageira do veículo marca Renault, modelo Clio, com a matrícula XF-XX-XX, onde foram detectados vestígos hemáticos nas borrachas da porta da bagageira e no respectivo tapete pertencentes a EE.

Cerca das 19H00 do mesmo dia, já com o cadáver de EE na bagageira do citado veículo, conduziu-o o arguido até à Margem Sul, depositando-o no interior da arrecadação anexa à oficina "R…", de sua propriedade, sita na C… da C…, A….

EE media 1,72 m.

No dia 10 de Junho de 2006, EE não apresentava qualquer sinal de lesão traumática no pescoço, tronco, membros superiores e inferiores.

Na cabeça apresentava dois orifícios com meio centímetro de diâmetro situados dois centímetros acima do bordo superior do pavilhão auricular esquerdo e separados entre eles por dois centímetros.

Os projécteis deflagrados pela arma de fogo “Walther” fizeram o trajecto de cima para baixo e de fora para dentro.

O arguido AA, quando entrou em contacto com a Polícia Judiciária de Setúbal, omitiu sempre o homicídio de EE até o cadáver ser descoberto por pescadores.

O arguido, após ter transportado o cadáver de EE da oficina de M… M… para a sua oficina na C… da C…, retirou-o do carro e escondeu os pertences do morto numa caixa de ferramentas.

Depois dirigiu-se a casa, para jantar com a família sem contar nada do que sucedera, onde chegou pelas 21H00..

Às vinte e três horas, voltou a sair de casa, contactando telefonicamente BB de forma a que a mulher não desconfiasse de nada, deixando-a aborrecida por sair àquela hora da noite de casa, continuando a não contar nada do que sucedera.

Em seguida, pelas 23H00, deixou a sua residência e encontrou-se com o arguido BB na Rotunda do Centro Sul, onde o atraiu com o pretexto de que o auxiliasse num transporte.

Nesse local combinou novo encontro com o arguido BB, após o regresso deste de Lisboa, onde entretanto se deslocou para levar uns amigos que trazia consigo.

Enquanto isso o arguido AA deslocou-se a casa da mãe, na C… da P…, de onde trouxe o veículo propriedade do seu irmão HH, de marca Citroen C3, comercial, uma vez que tinha a bagageira mais espaçosa que o seu e, por isso, ai caberia mais facilmente o cadáver de EE.

Depois de ter recolhido o arguido BB, no mesmo local, só a caminho da oficina "R…." é que lhe disse o que havia feito, informando-o de que o tinha que auxiliar no transporte e depósito do cadáver de EE nas águas da Barragem de Montargil, que conhecia bem.

Uma vez na dita oficina os arguidos AA e BB transportaram o "embrulho" com o cadáver de EE para a bagageira do veículo supra citado que o arguido AA conduziu até à ponte situada sobre a barragem de Montargil, Ponde de Sôr, na EN 2, onde chegaram por volta das 3h do dia 7.6.06, seguindo o seguinte itinerário - A2 (direcção à Ponte Vasco da Gama) / A12 / IC3 (direcção a Porto Alto /Alcochete) / EN 118 / EN 119 (direcção Coruche) / EN 251 (direcção a Mora) / EN 2.

Na referida ponte os dois arguidos retiraram o cadáver de EE da bagageira do veículo e transportaram-no em mãos até ao corrimão situado no lado direito da ponte (sentido barragem de Montargil) de onde o atiraram para as águas da barragem, onde se afundou.

Durante tal operação o arguido AA desligou as luzes do automóvel, a fim de evitar serem vistos por terceiros.

Depois disso o arguido AA ainda regressou à oficina de M… M… onde limpou tudo, com o objectivo de eliminar o mínimo vestígio dos factos aí ocorridos, tendo, ainda, lançado para o lixo os pertences da vítima - um par de ténis e uns óculos - bem como a roupa que ele próprio vestia no dia dos factos e que tinha ficado manchada de sangue, artigos estes que não foram recuperados.

No dia 7.6.07, da parte da manhã, após ter terminado a limpeza da oficina de M… M…, o arguido AA deslocou-se à Barragem de Montargil a fim de verificar se o cadáver havia submergido.

Nessa altura nada viu a boiar nas águas mas como não pôde ali estar muito tempo resolveu lá voltar ao fim da tarde para o mesmo efeito, desta vez na companhia de II, a quem pediu emprestada uma mota de água e que o conduzisse até ao local, alegando estar muito cansado.

Posteriormente o arguido AA desmontou a oficina de M… M… levando todo o seu recheio para a "R…", na C… da C….

No dia 10.6.2006, pelas 16H00, no local denominado Rasquete, na Barragem de Montargil, um grupo de pescadores confrontou-se com um "embrulho" de grandes dimensões a flutuar nas águas, que imediatamente identificaram como tratando-se de um cadáver humano, uma vez que era visível o pé e tornozelo direito.

O cadáver em questão foi entretanto reconhecido e identificado como pertencendo a EE, que então já tinha sido dado como desaparecido, embora sob o nome de GG pelo qual era conhecido.

O cadáver de EE apresentava: no hábito externo, na região da cabeça –“(...) bois orifícios com meio centímetro de diâmetro situados a dois centímetros acima do bordo superior do pavilhão auricular esquerdo e separados entre eles por dois centímetros. (...)”. No hábito interno, a nível do crânio, partes moles - "(...) Infiltrado sanguíneo na bossa frontal esquerda com seis centímetros de comprimento por quatro centímetros de largura... Infiltrado sanguíneo na região tempor-occipital esquerda com dezassete centímetros de comprimento por dez de largura... (...)". Nos ossos do crânio, abóbada – “ (...) Orifício na região parietooccipital esquerda com dois centímetros de comprimento por um de largura com escorrencia de massa encefálica em decomposição... Fractura com início no orifício descrito, horizontal, atingindo a parte anterior do parietal esquerdo e prolongando-se até à zona média do frontal com doze centímetros de comprimento e atingindo a parte posterior do parietal e prolongando-se até ao occipital com dez centímetros de comprimento... (...)”. Na base (do crânio) – “ (...) Perfuração com meio centímetro de diâmetro e um centímetro e meio de profundidade no estenoide esquerdo de onde foi retirado fragmento metálico com um centímetro de comprimento e meio centímetro de largura...(...)”.

Os disparos efectuados pelo arguido AA foram causa directa e necessária da morte de EE, devido às lesões traumáticas cranianas e meningo encefálicas que por sua vez provocaram.

No momento da morte EE apresentava uma taxa de alcoolémia de setenta e nove centigramas por litro (0,79 g l\).

Da busca realizada à residência do arguido, sita na Rua A… S… M…, n° XX, R/ch Dt°, S…, A…, resultou a apreensão de: - Uma pistola “Walther P22” com número de série G 004496, de calibre.22, com respectivo estojo, 01 carregador, um sistema de mira Casekm duas chaves próprias e um escovilhão para limpeza; - Um revólver “Taurus Ultra-lite”, com o número de série “5041-941”, com tambor para oito munições de calibre.22 Magnum, com respectiva caixa em cartão, duas chaves próprias, uma chave de fendas e um escovilhão para limpeza; Uma espingarda carabina da marca “Walther G 22”, com o número de série WP003732, com dois carregadores próprios, de calibre.22LR,:com estojo próprio, uma mira óptica e diversas chaves próprias; Um outro carregador próprio para a referida pistola “Walther”; Uma caixa com 95 munições de calibre. 22 LR; Uma caixa com 51 munições de calibre. 22 LR; Uma caixa com 50 munições de calibre. 22 Federal; Uma caixa com 50 munições de calibre. 22 Maxi Mag; Uma caixa com 29 munições de calibre. 22 Maxi Mag; Um coldre externo misto, da EE “GK Profissional”, em material de nylon de cor preto; Um cartão de identidade de sócio efectivo do “G… P… – “S… de T… n° 2 de Lisboa”, em nome do arguido AA; Uma autorização para uso e porte de arma de precisão, n° 1412/04, com validade até 2007. Nov.l2, e m nome do mesmo arguido.

O arguido AA conhecia as características letais da arma de fogo que utilizou para efectuar os disparos.

O arguido AA teve a intenção directa de provocar a morte de EE.

Agiram os arguidos AA e BB em união e conjugação de esforços com o propósito de fazer desaparecer o cadáver de EE que para o efeito o primeiro acondicionou da forma supra descrita e ambos transportaram para a viatura e daí para a Barragem de Montargil onde o deitaram para as águas, com o fim e na expectativa de que após submersão o mesmo acabasse por se deteriorar.

Agiu o arguido BB, ainda, com o propósito de, dessa forma, impedir a descoberta do corpo pelas autoridades policiais e assim obstar à perseguição criminal do arguido AA, seu amigo, não obstante saber ter sido ele o autor da morte do ofendido EE.

Agiram ambos os arguidos livre, deliberada e conscientemente, sabendo, relativamente ou modo como ocultaram o cadáver de EE, que as suas condutas eram proibidas por lei.

EE era procurado pelas por crimes de homicídio, rapto, receptação, posse ilegal de armas de fogo, tráfico de estupefacientes, furto e evasão, nomeadamente pelas autoridades policiais italianas e portuguesa e referenciado no tráfico de estupefacientes pela polícia espanhola (fls. 338, 339).

EE praticou escalada e boxe, sendo que o pai lhe havia partido os ossos próprios do nariz com vista a evitar outras lesões durante a prática desse desporto.

O arguido AA temia represálias dos companheiros e amigos de EE.

O arguido AA é mecânico de profissão, auferia cerca de 5000 € de onde retirava as despesas necessárias ao funcionamento da oficina e exercício da sua actividade.

Encontra-se divorciado.

Tem dois filhos com 2 e 8 anos de idade.

Tem o 8º ano de escolaridade.

É um profissional empenhado no seu trabalho e colaborante no seu meio social nomeadamente com actividades ao ar livre de jovens estudantes.

O arguido BB é empregado de mesa, trabalhando para hotéis e outros serviços similares.

Ganha cerca de 500 €/mês.

Tem o estado civil de casado mas não vive juntamente com a mulher com quem tem um filho com 22 anos de idade.

Vive juntamente com uma companheira com quem tem outro filho com 8 anos de idade.

Tem o 6º ano de escolaridade.

Anteriormente, o arguido BB foi condenado por crimes de ofensas à integridade física e emissão de cheque sem provisão.

EE vivia em união de facto com a Lesada/Demandante CC, como se casados fossem, desde 2002 e era pai de DD.

Era um companheiro e um pai dedicado à sua companheira e à sua filha.

CC sofreu e sofre desgosto com a morte do companheiro.

A DD apesar de ter menos de um ano de idade sentiu a ausência do pai.

Factos não provados  

Como se referiu, a elencagem dos factos não provados, apresentados como tal, surge apenas no dispositivo, constando no ponto 2, a fls. 2906, a propósito dos factos não provados:

«2. Alteram o acórdão recorrido no tocante à decisão de facto, fixando a seguinte matéria de facto como não provada:

“Que EE e FF desenvolvessem a actividade profissional de mecânicos de automóveis no espaço que arrendaram juntamente com o Arguido AA.

Que o arguido AA tivesse sacado a arma do bolso apenas quando já estava em contacto físico com EE.

Que o arguido AA tivesse encostado a arma de fogo à cabeça de EE antes de disparar ou que apenas tivesse disparado o segundo tiro após sentir que a vítima EE ainda se mantinha agarrada a si.

Que EE e FF desenvolvessem a actividade profissional de mecânicos de automóveis no espaço que arrendaram juntamente com o Arguido AA.

Que o arguido AA tivesse sacado a arma do bolso apenas quando já estava em contacto físico com EE.

Que o arguido AA tivesse encostado a arma de fogo à cabeça de EE antes de disparar ou que apenas tivesse disparado o segundo tiro após sentir que a vítima EE ainda se mantinha agarrada a si.

O arguido AA soubesse ser proibida por lei a detenção da espingarda carabina que possuía na sua casa.

Que a assistente é uma abastada empresária, que aufere rendimentos de empresa(s) que titula, e com força económica para prover a si e à filha.

Que EE ia auferir, no exercício da sua actividade empresarial, um vencimento mensal mínimo de 1.500,00 Euros, pelo que deixou de auferir, durante a sua vida de trabalho, sem actualizações, 540.000.00 Euros (quinhentos e quarenta mil euros).”

Nota: Em itálico de nossa responsabilidade, os pontos colocados em duplicado e a forma verbal “fixando”.

Analisando.

Começando pela última questão.

Na conclusão 3 reflecte-se o que se contém no ponto III da motivação subordinado ao título “Poderes de Cognição da Relação – Inconstitucionalidade da deficiente atribuição jurisdicional de força impugnatória especificada” e desenvolvida nos artigos 68 a 99, de fls. 2978 a 3002.

Relembrando o teor desta conclusão:

3. (supra 68.° - 99.°) A Relação, no seguimento do Acórdão do STJ, de 13 de Janeiro de 2011, dá como cumprido o "ónus da impugnação especificada", apenas reconhecendo aos recorrentes um impugnatório "de uma forma um pouco genérica", dum obscuro, "núcleo de factos", em violação do n.° 4 do art. 9.° do CC, aplicado ao processo penal, onde a perfeição dos factos praticados só é validada pela sua conformidade com a lei, e da letra do art. 412.°, n.° 3, als. a) e b), do CPP, bem como, da jurisprudência obrigatória do STJ, (v.g. os Acs. 337/20, 183/20, 259/02, 140/04, 322/04, 405/04, 357/06), que impõe uma exclusão da consideração da impugnação genérica, à razão directa da sua inclusão recursal, por afectar o direito do recorrido, a saber concisamente da matéria de facto e probatória de que o recorrente discorda, e viola, assim também, o art, 32.°, n.° 1, da CRP, e é nula por falta de fundamento legal (art. 379.°, n.° 1, al. c), do CPP), e logo, importa a inconstitucionalidade do art. 412.°, n.° 3, al. a), e b), do CPP, interpretado no sentido que: a impugnação "um pouco genérica" dum incerto "núcleo de factos", equivale à impugnação dos "concretos pontos de facto" tidos pelos recorrentes "incorrectamente julgados", ou dos pontos da matéria de facto de que os recorrentes discordam.

Em causa a questão de saber se o Ministério Público e a assistente haviam cumprido o disposto no artigo 412.º, n.º s 3 e 4, do CPP, a respeito do ónus de impugnação especificada.

Diga-se que vistas as conclusões do recurso da assistente, delimitadoras do respectivo objecto, não se vislumbra que esta tenha feito, ou mesmo pretendido fazer, uma impugnação da matéria de facto em via alargada ao abrigo do artigo 412,º n.º s 3 e 4, do CPP, como se espelha com clareza nas cinquenta e sete conclusões de tal recurso, constantes de fls. 1643 a 1653, que foram transcritas no acórdão de 13-01-2011, de fls. 2722 a 2730, sendo essa ausência anotada no próprio acórdão de 13-01-2011, como se verá infra.

Ao longo das conclusões a assistente apenas exprime a sua discordância com o que foi dado por provado e não provado, procurando fazer vingar o seu ponto de vista, sendo ilustrativo de tal postura o teor da conclusão XXIX e seguintes.

De resto, há que dizer que o contributo recursivo da assistente nem mereceu tratamento autónomo no acórdão ora recorrido, o que com exuberância é manifestado no mesmo a fls. 2887, no ponto 3.2.2. referente ao recurso da assistente em que se diz: “O recurso da assistente, quer quanto à matéria de facto, quer quanto à matéria de direito, ficou na sua substância, também respondido com o deferimento do recurso do M.º P.º que a aproveita na sua essência, sendo por isso inútil analisá-lo”.

A questão de novo suscitada no presente recurso foi resolvida pelo acórdão anterior deste Supremo de 13-01-2011, voltando o Tribunal da Relação no acórdão ora recorrido a debitar sobre a questão, num exercício quanto a nós, redundante e desnecessário, de fls. 2806 a 2824, e que é cópia integral de fls. 2491 a 2508 do 9.º volume, do anterior acórdão.

Como refere a Exma. Procuradora-Geral Adjunta no parecer emitido, esta questão prévia encontra-se definitivamente decidida.

O já citado anterior acórdão deste Supremo Tribunal de 13-01-2011 abordou a questão de saber se havia sido cumprido o estatuído no artigo 412.º, n.º s 3 e 4, do CPP, nos recursos interpostos pelo Ministério Público e pela assistente, o que fez de fls. 34 a 38, nos pontos XIV, XIV (sic) e XV (fazendo fls. 2750 a 2754 do presente processo).

No acórdão então recorrido – acórdão da Relação de Lisboa de 17-06-2010 – a questão prévia de indagação acerca do cumprimento do ónus de impugnação especificada foi versada de fls. 2491 a 2508 do 9.º volume.

Versando o recurso do Ministério Público, no ponto XIV (segundo), o acórdão deste Supremo de 13-01-2011, de fls. 35, in fine, a 37 (fls. 2751 a 2753, no presente processo), conclui do seguinte modo (de resto apontado no artigo 77.º da motivação do presente recurso, a fls. 2987, e no ponto 15 da “resposta às vistas”, a fls. 3115):

«O M.° P.° fez uso, ao nível da matéria de facto, do mecanismo do erro notório da apreciação da prova, mecanismo de via reduzida já que imanente ao contexto decisório e desde que dele seja transparente, a sustentá-lo, erro apreensível, sem esforço, pelo cidadão comum, não sendo, então, de manter, por significar um corpúsculo inadmissível, estranho no silogismo judiciário, repousando em factos ao arrepio da lógica e o bom senso.

Em nosso ver, e em conclusão, o M.° P.° cumpre o ónus que se lhe impõe nos termos da lei».

E no que tange ao recurso da assistente, no ponto XV, a fls. 37 e 38 (fls. 2753 e 2754 do processo), considera-se não se estar perante uma verdadeira impugnação ao abrigo dos n.º s 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, nem mesmo mais ou menos genérica, como entendeu a Relação, antes se estando face a uma diversa versão, perante a expressão de uma discordância entre o que foi decidido e o que a assistente entende que deveria ter sido dado por provado, sobrevivendo este recurso apenas enquanto impugna matéria de direito, beneficiando dos factos conseguidos na Relação à custa da impugnação do M.º P.º, e concluiu-se em consonância, do seguinte jeito:

«Mais do que uma impugnação nas específicas condições do art.° 412.° n.°s 3 e 4, do CPP, as conclusões oferecem uma versão da assistente e filha, sobrepondo-se à do tribunal, uma divergência entre o que se decidiu e o que devia ser decidido.

Logo, nem uma impugnação mais ou menos genérica, como a Relação pondera, mas ainda assim, em afirmação contraditória, com aptidão para satisfação do ónus de impugnação especificada.

De todo o modo o seu recurso sobrevive em termos de impugnação da matéria de direito, aproveitando-lhe os factos conseguidos na Relação pela impugnação pelo M.° P.°, na sua relação com a tipicização penal e os que, sem controvésia, fundam a responsabilidade civil avançada no enxerto cível deduzido pela assistente e menor.»

Posto isto, não havia que retomar o tema, já decidido de forma definitiva e consolidada, devendo então o acórdão ora recorrido ponderar apenas o suprimento da omissão de pronúncia apontada em 13-01-2011 e ter em consideração a necessidade, então igualmente indicada, de explanação da fundamentação de facto na sua globalidade, de forma compreensiva, face ao caso julgado do segmento resolvido, não fazendo, pois, qualquer sentido trazer à colação de novo o problema e muito menos repetir a dissertação sobre o mesmo, ainda que para apenas repristinar as considerações expendidas anteriormente.

Improcede, assim, o sentido da conclusão 3 e a arguição de inconstitucionalidade que ora vem acoplada à questão.  

Vícios decisórios – Artigo 410.º, n.º 2, do CPP - Ilegitimidade de arguição pelo recorrente   

Como se referiu supra, o recorrente na conclusão 1 invoca expressamente, mas de modo algo incongruente, a verificação do vício previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, que prevê o vício de erro notório na apreciação da prova, embora, de imediato, refira ter o acórdão recorrido provocado uma contradição insanável da fundamentação, o que, a verificar-se, constitui outro vício, qual seja, o previsto, não na indicada alínea c), mas na alínea b) daquele n.º 2.

Estando-se perante um acórdão da Relação, que no concreto conheceu do alegado, pelo M.º P.º, vício de erro notório na apreciação da prova, a propósito do facto provado n.º 49 do acórdão de Sintra, e que subsequentemente procedeu a substanciais alterações no quadro fáctico, há que dizer desde já, que não é possível deduzir esta forma de impugnação de matéria de facto, mitigada embora, em recurso dirigido ao Supremo, o que ocorre, aliás, seja ele interposto de acórdão final de tribunal colectivo, seja de acórdão da Relação.

Em causa está averiguar da legitimidade de arguição deste tipo de vícios no presente recurso, consabido sendo que com a decisão da Relação se encerra o ciclo da matéria de facto.

Os vícios do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei.

Vícios da decisão, não do julgamento, como se exprime Maria João Antunes, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro - Março de 1994, pág. 121 – cfr. acórdão do STJ, de 05-11-1997, processo n.º 549/97-3.ª, CJSTJ 1997, tomo 3, pág. 222.

Perante a presente arguição de vícios decisórios é de colocar a questão de saber se o Supremo Tribunal de Justiça pode deles conhecer em recurso interposto de decisão do Tribunal da Relação.

Como é sabido, a partir de 01-01-1999, na sequência da reforma do CPP, operada pela Lei n.º 59/98, de 25-08, deixou de ser possível interpor recurso para o STJ com fundamento na verificação dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, isto é, a incursão do STJ no plano fáctico da forma restrita consentida por esse preceito não é já possível face a questão colocada pelo interessado, ou seja, como fundamento do recurso, a pedido de recorrente, mas tão-só por iniciativa própria deste Supremo Tribunal, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação, ou assente em premissas contraditórias detectadas pelo STJ, ou seja, se concluir que por força da existência de qualquer dos vícios não pode chegar a uma correcta solução de direito e devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excepcional, surgindo como último remédio contra tais vícios, conforme é jurisprudência corrente.
Nada impede o STJ, em tais casos, de conhecer oficiosamente dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.  
            A intervenção oficiosa justificar-se-á, mesmo que não haja uma impugnação da matéria de facto, isto é, mesmo que se esteja perante recurso restrito a matéria de direito.
Conforme consta do acórdão do STJ de 13-12-2007, processo n.º 1404/07 - 5.ª «a não impugnação da matéria de facto pelo recorrente não impede o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, de conhecer oficiosamente dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. É o que resulta do disposto no art. 434.º do referido Código. E compreende-se que assim seja. Para proceder a uma adequada revisão da matéria de direito, é necessário que a matéria de facto se encontre perfeitamente estabilizada. Por isso, se o tribunal de revista, analisando a decisão, conclui pela existência de insuficiências na matéria de facto (…), outra solução não lhe resta senão a de determinar o reenvio do processo, para colmatar o vício».
Neste sentido de possibilidade de conhecimento oficioso, diversos arestos deste Supremo Tribunal, de que são exemplo: os acórdãos de 17-01-2001, processo n.º 2821/00 - 3.ª; de 25-01-2001, processo n.º 3306/00 - 5.ª e de 22-03-2001, processo n.º 363/01 - 5.ª, publicados em CJSTJ 2001, tomo 1, págs. 210, 222 e 257, respectivamente; acórdão de 04-10-2001, processo n.º 1801/01 - 5.ª, em CJSTJ 2001, tomo 3, pág. 182 (aqui se esclarecendo que o Tribunal de recurso tem o poder-dever de fundar a “boa decisão de direito” numa “boa decisão de facto”, ou seja, numa decisão que não padeça de insuficiências, contradições insanáveis da fundamentação ou erros notórios na apreciação da prova); de 30-01-2002, processo n.º 3739/01-3.ª; de 16-05-2002, processo n.º 1072/02-5.ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 202; de 20-03-2003, processo n.º 397/03-5.ª, CJSTJ 2003, tomo 1, pág. 232 (afirmando não haver qualquer contradição nesta posição, e seguindo interpretação que colheu a concordância de Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2.ª edição, revista e actualizada, pág. 371); de 24-03-2003, processo n.º 1108/03 - 5.ª, em CJSTJ, 2003, tomo 1, pág. 236; de 27-05-2004, processo n.º 766/04 - 5.ª, em CJSTJ, 2004, tomo 2, pág. 209 (como regra, está vedado ao STJ o conhecimento da matéria de facto, só podendo (devendo) conhecer os vícios a que se alude no art. 410.º , n.º 2, do CPP, se concluir que, por força da existência de qualquer deles, não pode chegar a uma correcta solução de direito); de 30-03-2005, no processo n.º 136/05; de 03-05-2006, nos processos n.ºs 557/06 e 1047/06; de 18-05-2006, nos processos n.º s 800/06 e 1293/06, todos da 3.ª Secção; de 20-12-2006, processo n.º 3505/06 - 3.ª, em CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 248; de 04-01-2007, no processo n.º 2675/06-3.ª; de 08-02-2007, no processo n.º 159/07 - 5.ª; de 15-02-2007, nos processos n.ºs 15/07 e 513/07 (defendendo-se neste o conhecimento oficioso dos vícios como preâmbulo do conhecimento do direito), ambos da 5.ª Secção; de 21-02-2007, no processo n.º 260/07 - 3.ª; de 08-03-2007, processo n.º 447/07; de 15-03-2007, processo n.º 663/07; de 29-03-2007, processo n.º 339/07; de 02-05-2007, nos processos n.ºs 1017/07, 1029/07 e 1238/07, todos da 3.ª Secção; de 24-05-2007, processo n.º 1409/07 - 5.ª, em CJSTJ, 2007, tomo 2, pág. 200; de 12-09-2007, processo n.º 2583/07; de 10-10-2007 no processo n.º 3315/07; de 24-10-2007, processo n.º 3238/07; de 13-02-2008, processo n.º 4729/07; de 12-03-2008, processo n.º 112/08; de 26-03-2008, processo n.º 4833/07; de 21-05-2008, processo n.º 678/08; e de 02-07-2008, processo n.º 3861/07, todos da 3.ª Secção; de 27-05-2009, processo n.º 145/05-3.ª; de 17-09-2009, processo n.º 421/07.8JACBR.S1-3.ª; de 23-09-2009, processo n.º 426/08-5.ª (a possibilidade de conhecimento oficioso mais não constitui do que uma válvula de escape do sistema, através da qual se assegura que o Supremo não tenha que decidir o direito quando os factos são manifestamente insuficientes, contraditórios ou errados); de 14-10-2009, processo n.º 101/08.7PAABT.E1.S1-3.ª; de 13-01-2010, processo n.º 274/08.9JASTB.L1.S1-3.ª; de 24-02-2010, processo n.º 3/05.9GFMTS-3.ª; de 03-03-2010, processo n.º 242/08.0GHSTC.S1-3.ª; de 07-04-2010, processos n.º 138/09.9JAFAR.S1 e 2792/05.1TDLSB.L1.S1, ambos da 3.ª secção; de 09-09-2010, processo n.º 312/05.7GAEPS.S1-5.ª.
Explicam Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, 2.ª edição, II volume, pág. 967, citado no referido acórdão de 25 de Janeiro de 2001, que: “O considerar-se que não podem invocar-se os vícios do nº 2 do art. 410º como fundamento do recurso directo para o STJ de decisão final do tribunal colectivo, não significa que este Supremo Tribunal não os possa conhecer oficiosamente, como ocorre no processo civil, e é jurisprudência fixada pelo STJ (…)”.

Na fundamentação do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2005, de 20-10-2005, in DR Série I-A, de 07-12-2005, refere-se que a indagação dos vícios faz-se “no uso de um poder-dever, vinculadamente, de fundar uma decisão de direito numa escorreita matéria de facto”.

Por outro lado, continua em vigor o Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ n.º 7/95, de 19-10-1995, in DR, Série I-A, n.º 298, de 28-12-1995, que, no âmbito do sistema de revista alargada, decidiu ser oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.

Em suma, o STJ conhece oficiosamente desses vícios quando, num recurso restrito exclusivamente à matéria de direito, constate que, por força da inquinação da decisão recorrida por algum deles, não possa conhecer de direito sob o prisma das várias soluções jurídicas que se apresentem como plausíveis.

            No caso de recurso interposto de acórdão da Relação, como ora ocorre, porém, o recurso – agora puramente de revista – terá de visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito, com exclusão dos eventuais vícios, processuais ou de facto, do julgamento da 1.ª instância, admitindo-se que o Supremo se possa abster de conhecer do fundo da causa e ordenar o reenvio nos termos processualmente estabelecidos em certos casos.

É que, mesmo nos recursos interpostos directamente deixou de ser possível recorrer-se com fundamento na existência de qualquer dos vícios constantes das três alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, o mesmo se passando com os recursos interpostos da Relação, sendo jurisprudência constante e pacífica deste Supremo Tribunal que no recurso para este Tribunal das decisões finais do tribunal colectivo já apreciadas pelo Tribunal da Relação, está vedada a arguição dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, posto que se trata de matéria de facto, ou seja, de questão que se não contém nos poderes de cognição do STJ, o que significa que está fora do âmbito legal dos recursos a reedição dos vícios apontados à decisão de facto da 1.ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento/decisão pela Relação – cfr. acórdãos de 11-12-2003, processo n.º 3399 - 3.ª, de 22-04-2004 e de 01-07-2004, CJSTJ 2004, tomo 2, págs. 165 e 239, de 08-02-2007, processo n.º 159/07 - 5.ª, de 21-02-2007, processo n.º 260/07 - 3.ª, de 28-02-2007, processo n.º 4698/06 - 3.ª, de 08-03-2007, processos n.ºs 447/07 e 649/07 - 5.ª, de 15-03-2007, processos n.ºs 663/07 e 800/07 - 5.ª, de 29-03-2007, processos n.ºs 339/07 e 1034/07 - 5.ª, de 19-04-2007, processo n.º 802/07 - 5.ª, de 03-05-2007, processo n.º 1233/07 - 5.ª.

Todavia, a incursão no plano fáctico é ainda possível, não já face a questão colocada pelo interessado, mas por iniciativa própria do Supremo Tribunal de Justiça.

Só com o âmbito restrito consentido pelo artigo 410.º, n.º 2, do CPP, com o incontornável pressuposto de que o vício há-de derivar do texto da decisão recorrida, e apenas dele, o STJ poderá avaliar da subsistência dos vícios da matéria de facto, o que é aplicável a recurso interposto de acórdão proferido pela Relação.

Nos acórdãos de 08-02-2006, processo n.º 98/06 - 3.ª; de 15-02-2006, processo n.º 4412/05 - 3.ª; de 15-03-2006, processo n.º 2787/05 - 3.ª; de 22-03-2006, processo n.º 475/06 - 3.ª; de 08-02-2007, processo n.º 159/07 - 5.ª; de 21-02-2007, processo n.º 260/07 - 3.ª; de 15-03-2007, processos n.ºs 663/07 e 800/07, ambos da 5.ª secção; de 02-05-2007, processo n.º 1238/07 - 3.ª e de 21-06-2007, processo n.º 1581/07 - 5.ª; de 28-05-2008, processo n.º 1147/08 - 3ª; de 12-06-2008, processo n.º 4375/07-3.ª; de 13-07-2009, processo n.º 32/05.2TAPCV.C1.S1-5.ª; de 17-09-2009, processo n.º 169/07.3GCBNV.S1-5.ª; de 10-03-2010, processo n.º 112/08.2GACDV.L1.S1-3.ª; de 25-03-2010, processo n.º 427/08.0TBSTB.E1.S1-3.ª; de 15-04-2010, processo n.º 18/05.7IDSTR.E1.S1-3.ª; de 27-05-2010, processo n.º 18/07.2GAAMT.P1.S1-3.ª; de 06-10-2010, processos n.ºs 936/08.0JAPRT.P1.S1-3.ª e 77/07.8TAPTB.G2:S1-3.ª; de 17-11-2010, processo n.º 18/09.8JAAVR.C1.S1-3.ª; de 02-12-2010, processo n.º 16/09.1JAPRT.P1.S1-5.ª; de 19-01-2011, processo n.º 376/06.6BLRS.L1.S1-3.ª; de 31-03-2011, processo n.º 117/08.3JAFAR.E2.S1-3.ª (Independentemente de o recorrente, no recurso para o STJ não poder, segundo a jurisprudência corrente, sindicar os vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP, a verdade é que este Tribunal pode/deve deles conhecer oficiosamente, nos termos dos arts. 434.º do CPP e 729.º, n.º 3, do CPC); de 07-04-2011, processo n.º 450/09.7JAAVR.P1.S1-3.ª; de 27-04-2011, processo n.º 7266/08.6TBBRG.G1.S1-3.ª, admite-se o conhecimento oficioso dos vícios por parte do Supremo, mesmo nos casos em que o recurso vem interposto de acórdão da Relação.

Como se extrai do acórdão de 26-02-2004, processo n.º 267/04 - 5.ª Secção, está fora do âmbito legal do recurso para o Supremo a reedição dos vícios apontados à decisão de facto da 1.ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento pela Relação, sem prejuízo de o tribunal de revista, por sua iniciativa, conhecer daqueles vícios porventura patenteados no acórdão da Relação. 

Como se consignou nos acórdãos de 05-12-2007, processo n.º 3406/07, de 30-04-2008, processo n.º 4723/07, de 22-10-2008, processo n.º 215/08, de 14-07-2010, processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1, por nós relatados, nestes casos de recurso de acórdão da Relação para o Supremo, em que o recurso é puramente de revista, cingindo-se a matéria de direito, é de admitir, exactamente pelas mesmas razões supra-expostas que sustentam a cognição oficiosa – razões de necessidade de certificação de substrato fáctico bastante, congruente, compatível, harmonioso e válido para suportar a decisão de direito – o exame oficioso da existência ou não dos vícios decisórios ao nível do assentamento da facticidade relevante.

       Tal possibilidade ocorrerá ainda nos casos em que o acórdão da Relação conclui de forma diversa, nas situações em que, reapreciando acórdão de colectivo que absolvera o arguido, modifica a matéria de facto, conduzindo a decisão contrária de condenação.

       Concluiu-se ser inadmissível a invocação pelo interessado de vícios da decisão previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, sem que isso obste a que o STJ deles conheça oficiosamente, se o traçado quadro fáctico no concreto caso assim o impuser, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação, ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa do STJ, ou seja, se concluir que por força da existência de qualquer dos vícios não pode chegar a uma correcta solução de direito e devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excepcional, surgindo como último remédio contra tais vícios.

       Errada valoração da prova – Perda da eficácia da prova

       Na conclusão 2 alega o recorrente que a Relação desconsiderou as suas declarações em primeira instância, qualificando-as como depoimento parcial e muito pouco credível, com violação do artigo 127.º do CPP, defendendo ainda que a validade de tais declarações não admite prorrogação indefinida, por via do artigo 328.º, n.º 6, do CPP, pelo que se impunha à Relação a renovação da prova, em honra do princípio da imediação.

       Como se alcança do teor dos artigos 40, 41, 43 e 49 da motivação de recurso, com utilização de linguagem não propriamente encomiástica, é evidente a expressão de uma crítica do recorrente à reapreciação da matéria da facto feita pelo Tribunal da Relação de Lisboa, o que se manifesta ainda nas interrogações que colocadas são nos artigos 45, 46, 47, 50, 53 e 61, da mesma motivação e de que a conclusão 2 se apresenta como condensação. 

       Neste plano, o que na realidade o recorrente faz é manifestar a sua discordância com o decidido ao nível do assentamento da facticidade dada como apurada pela Relação, pretendendo discutir de novo a prova, suscitar a questão da sua valoração, impugnar a convicção adquirida pelos julgadores, em reapreciação de matéria de facto, sobre os factos pertinentes à configuração do crime de homicídio qualificado, por que foi condenado, alterando a matéria de facto assente, tendo como objectivo final a absolvição, olvidando por completo a regra da livre apreciação da prova ínsita no artigo 127.º do CPP.

       O recorrente insurge-se contra a decisão da Relação, por discordar da matéria de facto ali dada por assente, pretende esgrimir argumentos no campo da matéria de facto, não podendo, porém, recorrer com tais fundamentos para o Supremo Tribunal de Justiça, esquecendo que a este Supremo Tribunal compete apenas o reexame da matéria de direito.

       Como inúmeras vezes tem sido frisado por este Supremo Tribunal, são totalmente irrelevantes as considerações que os recorrentes fazem no sentido de pretenderem discutir a prova feita no julgamento e de solicitarem que este Tribunal de recurso modifique tal prova e passe a aceitar como realidade aquilo que o interessado pretende corresponder ao sentido do que teria resultado do julgamento.

       A crítica ao julgamento da matéria de facto, a expressão de divergência do recorrente relativamente ao acervo fáctico que foi fixado e ao modo como o foi, ou seja, as considerações por si tecidas, quanto à análise, avaliação, ponderação e valoração das provas feitas pelo tribunal são, de todo, irrelevantes, de acordo com jurisprudência corrente há muito firmada, pois, ressalvada a hipótese de prova vinculada, o Supremo Tribunal de Justiça não pode considerá-las, sob pena de estar invadir o campo da apreciação da matéria de facto – neste sentido, os acórdãos do STJ, de 18-10-1989, processo n.º 40266-3.ª, sumariado na AJ, n.º 2, pág. 8 e citado no acórdão de 19-09-1990, BMJ n.º 399, pág. 260; de 21-06-1995, BMJ n.º 448, pág. 278; de 29-06-94, processo n.º 45530, CJSTJ 1994, tomo 2, pág. 258; de 10-07-1996, processo n.º 48675, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 229 (maxime, fls. 243); de 01-10-1997, processo n.º 627/97, Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (Assessoria), II volume, n.º 14, pág. 121; de 01-10-1997, processo n.º 876/97-3.ª, ibidem, pág. 122; de 24-03-1999, processo n.º 176/99, CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 249; de 02-10-1997, processo n.º 628/97, ibidem n.º 14, pág. 128; de 06-11-1997, processo n.º 666/97, Sumários Assessoria, volume II, n.ºs 15 e 16, pág. 156 - de 06-11-1997, processo n.º 519/97-3.ª, ibidem, pág. 157; de 06-11-1997, processo n.º122/97, ibidem, pág. 158; de 4-12-1997, processo n.º 1018/97-3.ª, ibidem, pág. 199; de 18-12-1997, processo n.º 47325-3.ª, ibidem, pág. 216  de 18-12-1997, processo n.º 701/97-3.ª, ibidem, pág. 220; de 18-12-1997, processo n.º 930/97, ibidem, pág. 220 e BMJ n.º 472, pág. 185; de 19-01-2000, processo n.º 871/99-3.ª; de 06-12-2000, processo n.º 733/00.

       Como esclareceu o acórdão de 21-05-1992, BMJ n.º 417, pág. 404 “O STJ, como tribunal de revista, não dispõe de poderes de crítica ou censura sobre o concreto desempenho do princípio da livre apreciação da prova exercitada pelo tribunal a quo” – cfr. acórdãos de 25-03-1998, processo n.º 53/98, BMJ n.º 475, pág. 502; de 11-02-1998, processo n.º 1323/97-3.ª, BMJ n.º 474, pág. 309, e mais recentemente, o acórdão de 08-02-2006, processo n.º 98/06-3ª, no sentido de que “a deficiente apreciação da prova produzida é matéria que escapa aos poderes do STJ”.

       Fazendo aplicação destes princípios, podem ver-se os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 05-12-2007, processo n.º 3406/07; de 12-03-2008, processo n.º 112/08; de 30-04-2008, processo n.º 4723/07; de 28-05-2008, processo n.º 1147/08; de 12-06-2008, processo n.º 4375/07; de 04-12-2008, processo n.º 2507/08; de 21-01-2009, processo n.º 2387/08; de 27-05-2009, processo n.º 484/09; de 27-05-2010, processo n.º 18/07.2GAAMT.P1.S1, e de 14-07-2010, processo n.º 149/07.JELSB.E1.S1, todos por nós relatados.

       Daqui resulta que se revelam processualmente inoportunas, impertinentes e irrelevantes as considerações contidas a este respeito na conclusão 2.

       Como se referia no acórdão do STJ de 30-03-1995, BMJ n.º 445, pág. 355, é de rejeitar o recurso por manifesta improcedência quando o recorrente se limita a discutir matéria de facto e a livre apreciação do tribunal.

       De igual sorte os acórdãos de 21-06-1995, BMJ n.º 448, pág. 278; de 17-10-1996, processo n.º 633/96; de 8-10-1997, processo n.º 897/97-3.ª, Sumários da Assessoria 1997, n.º 14, pág. 132; de 9-10-1997, processo n.º 623/97-3.ª, ibidem, n.º 14, pág. 137; de 27-11-1997, processo n.º 1130/97-3.ª, ibidem, pág. 186; de 27-11-1997, processo n.º 291/97, 3.ª, ibidem, pág. 188; de 06-05-1998, processo n.º 113/98; de 05-04-2000, processo n.º 47/00; de 19-05-2004, o processo n.º 904/04 - 3.ª; de 22-11-2006, processo n.º 4084/06 – 3.ª; de 21-05-2008, processo n.º 678/08; de 28-05-2008, processo n.º 1147/08; de 4-12-2008, processo n.º 2507/08; de 21-01-2009, processo n.º 2387/08; de 14-07-2010, processo n.º 149/07.JELSB.E1.S1 e de 28-09-2011, processo n.º 172/07.3GDEVR.E2.S1-3.ª.

        Por outro lado, a sanção da perda de eficácia da prova prevista no n.º 6 do artigo 328.º do CPP é questão que se coloca apenas em sede de julgamento de primeira instância, pretendendo-se assegurar a continuidade da audiência de julgamento, mantendo-se a eficácia da prova produzida em Sintra.

        No mais, não se vislumbra omissão de pronúncia que determine nulidade nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 379.º, aplicável ex vi do artigo 425.º, n.º 4, como aquele do CPP.  

Fundamentação de facto - Nulidade do acórdão recorrido por inobservância do n.º 2 do artigo 374.° - Artigo 379.º, n.º 1, alínea a), como aquele do Código de Processo Penal.

Cotejando o teor do primitivo acórdão proferido pelo Colectivo de Sintra - que em sede de fundamentação de facto, na respectiva descrição, se encontra subordinado a números, que separam, enumeram um a um, individualizando, concretizando, os diversos, todos e cada um, factos dados por provados e não provados, o que se mostra conveniente, útil, prático, porque conducente a uma rápida compreensão do acervo fáctico adquirido - e o conjunto disperso resultante do acórdão ora recorrido, em que se optou, no que tange aos factos provados, por uma descrição compacta, sem numeração, ou outra qualquer forma de individualização, em que – confesse-se – se mostra penoso indicar o posicionamento de determinado facto de que se pretende lançar mão, temos o seguinte quadro:

I – O acórdão ora recorrido, na descrição dos factos provados, mantém na íntegra o que se encontrava elencado no acórdão do Colectivo de Sintra, no que concerne aos pontos de factos provados n.º s 1 a 10, 15 a 23, 25 a 41, 43 a 48, 50 a 65;

II – O ponto de facto provado n.º 24 «24. Posto isso foi o arguido a casa jantar, onde chegou pelas 21H00» é reformulado e redigido de modo diverso.

No ponto equivalente no acórdão ora recorrido, a fls. 2852, consta «Depois dirigiu-se a casa, para jantar com a família sem contar nada do que sucedera, onde chegou pelas 21H00..»

Note-se que é apresentado como facto aditado à matéria de facto provada, com redacção diferente, a fls. 2848, o seguinte «Depois dirigiu-se a casa, para jantar com a família sem contar nada do que sucedera».

III – O acórdão ora recorrido não contém os factos dados por provados no acórdão do Colectivo de Sintra, sob os números 11, 12, 13, 42 e 49, quer no elenco dos factos provados, quer dos factos não provados;

IV – No que respeita ao caso particular do que se continha no ponto n.º 14 dos factos provados do acórdão do Colectivo de Sintra, no acórdão ora recorrido foi “aproveitada” a parte final referente à arma e munições, aos dois tiros e parte do corpo atingida, retirando-se a parte inicial “Acto contínuo e com medo que a vítima EE o matasse, já que tinha conhecimento que andava sempre com armas brancas e de fogo”, que vinha na sequência dos pontos de factos provados n.º s 11, 12 e 13, agora desaparecidos.

Dizia o ponto n.º 14 do acórdão de Sintra: «14. Acto contínuo e com medo que a vítima EE o matasse, já que tinha conhecimento que andava sempre com armas brancas e de fogo, direccionou o cano da arma de fogo que empunhava com a mão direita, carregada com munições de calibre 22 Long Rifle, para a cabeça de EE e disparou dois tiros consecutivos que atingiram este último na região temporal esquerda, mais precisamente na zona situada atrás do respectivo pavilhão auricular».

E conforme se vê de fls. 2850/1, no acórdão ora recorrido foi dado por provado que: «O arguido direccionou o cano da arma de fogo que empunhava com a mão direita, carregada com munições de calibre 22 Long Rifle, para a cabeça de EE e disparou dois tiros consecutivos que atingiram este último na região temporal esquerda, mais precisamente na zona situada atrás do respectivo pavilhão auricular».

O acórdão ora recorrido deu como erro de julgamento de facto (fls. 2848, in fine e terceiro parágrafo de fls. 2849) o que se continha no ponto n.º 14, mas com amputação de parte do que integrava na origem aquele n.º 14, referindo como matéria de facto a eliminar a seguinte “Acto contínuo e com medo que a vítima EE o matasse (…), direccionou o cano da arma de fogo que empunhava com a mão direita, carregada com munições de calibre 22 Long Rifle, para a cabeça de EE e disparou”.

V - No acórdão ora recorrido, aditaram-se aos factos já provados em Sintra outros (treze), intercalados a seguir aos que se continham nos pontos 10 (dois factos), 15 (dois factos), 23 (oito factos, incluída a nova redacção do ex - n.º 24) e 43 (um facto, a consignar a intenção de matar), do referido acórdão de Sintra.

VI – No que tange à enumeração dos factos não provados o acórdão ora recorrido, inovando, insere-os apenas no dispositivo, onde se refere que se procede à fixação de tal matéria, e mesmo assim apenas os que se continham no acórdão de Sintra nos números 1, 2, 3 (repetindo estes), 5, 6 e 7, com exclusão única do ponto n.º 4, que tinha a ver com o afastamento da intenção de matar.

O acórdão deixou em situação indefinida, nem na zona dos factos provados nem no sector dos não provados, factos que seriam de dar como afastados dos assentes, caso dos factos n.º s 11, 12, 13, 14 (na parte inicial, que como se viu, foi considerada, a fls. 2849, como matéria a eliminar), e maxime, os factos n.º s 42 e 49.

Aliás, os pontos de factos provados 11, 12, 13, 14, 42 e 49 foram exactamente objecto de impugnação pelo M.º P.º, e acabaram por não ser retirados e colocados claramente no local próprio destinado a factos não provados, dois factos fundamentais, a saber, o relacionado com a legítima defesa e a questão da alegada debilidade física do recorrente, que no acórdão recorrido, a fls. 2825 a 2831, foi encarado a nível de erro notório na apreciação da prova: “À data dos factos o arguido AA encontrava-se fisicamente debilitado - facto provado n.º 49”.

Não tendo sido claramente colocados no segmento destinado a enumeração de factos não provados, subsistirá nessa medida o elenco dos factos provados do acórdão de Sintra, “coexistindo” os factos provados n.ºs 42 e 49 e a ora declarada intenção de matar, o que encerra uma contradição insanável.

O acórdão recorrido não teve em conta a injunção do n.º 2 do artigo 374.º do CPP, o que, aliás, ocorreu em anteriores versões, como no acórdão de 28-05-2009, do que deu nota, na altura devida, este Supremo no acórdão de 24-02-2010, que apontava a fls. 2371 verso o seguinte: “Porém, não cuidou a Relação de, após, ter procedido a tais alterações - muitas e significativas - enumerar/elencar, de forma perfeitamente clara e inequívoca, quais os factos que, a final, considerou provados e quais os não provados.

Aliás, em rigor, o acórdão recorrido não refere expressamente quais os factos que considera provados e quais os que considera não provados”.

Apontava a necessidade de o novo acórdão conter “fundamentação da matéria de facto, designadamente com a enumeração clara e precisa, de todos os factos provados e não provados”.

E sobre o anterior acórdão da Relação de 17-06-2010, considerou este Supremo no acórdão de 13-01-2011, no ponto IX, a fls. 2730/1, que a estruturação da sentença tal como se condensa no art.° 374.° n.° 2, do CPP, deve, pela sua fundamentação, habilitar os cidadãos à compreensão do raciocínio do juiz e proporcionar do modo mais adequado e eficaz o exercício do direito de submeter a sentença à apreciação de uma jurisdição superior pela via de recurso”.

Prosseguindo, disse ainda: “A motivação, propriamente dita, enquanto enumeração dos factos provados e não provados, os motivos de facto e de direito fundantes da decisão e das concretas provas que serviram para formar a convicção do julgador, pela sanção legal cominada no art.° 379.° n.° 1 a), do CPP, mostram bem a importância que o legislador lhe atribui, como forma de o arguido ficar a conhecer as “reprovações contra ele formuladas”, os demais sujeitos processuais os seus direitos, designadamente o sucesso do recurso, como elementos constituintes do direito a um processo justo (cfr. A motivação da sentença, de Lopes Rocha, in Documentação e Direito Comparado, N.°s 75 e 76, Fevereiro de 1999, pág. 99 e segs.) e a comunidade mais vasta de cidadãos a justeza das decisões proferidas pelos seus órgãos estatais, a quem incumbe o monopólio da aplicação da justiça (Miguel Taruffo, BFDUC, vol. LV( 1979), pág. 29 e segs .

Segue-se, pois, que a sentença constitui uma “incindível unidade lógica” (Ac. do STJ, de 17.3.2004, P.° n.º 4026/03 -3.ª Sec.) e não um mero somatório atomístico de peças, desarticuladamente entre si, desgarradamente dos seus segmentos, tal como o art.° 374.º, do CPP prevê”.

E a fls. 2749, esclarecia:

“De todo o modo o acórdão recorrido nenhuma alusão faz ao contributo do recurso da assistente e filha em termos de matéria de facto.

Desejável seria que, como operação final na reflexão sobre a premissa da matéria de facto do silogismo judiciário a fixar, se explicitasse o elenco factual provado e não provado oriundo de l.ª instância; depois em resultado da impugnação deduzida alinhasse os novos factos provados e não provados e, por fim, apresentasse um acervo factual incorporando a versão definitiva, em fácil consulta, de modo claro, concentrado, imediatamente sequente e proximal, não disperso.

Veja-se, por ex.°, que se reservou a afirmação da intenção homicida para depois do início do descritivo típico da profanação de cadáver, de permeio com ele, e não imediatamente antes daquele descritivo”.

*****

Definindo os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, dispõe o artigo 434.º do CPP, que «Sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito».

Estabelece o n.º 1 do artigo 410.º do CPP que «Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida».

O n.º 2 estatui que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou o erro na apreciação da prova, desde que qualquer dos vícios resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo tais vícios do conhecimento oficioso pelo tribunal de recurso, de harmonia com o acórdão de 19-10-1995, DR, I Série - A, de 28-12-1995.

O n.º 3 prescreve, por seu turno que, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ainda ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.

A verificação de existência de nulidade, seja por via de requerimento da parte, seja por via oficiosa - actualmente, e a partir de 01-01-1999, com a Reforma de 1998 - possibilita a indagação por parte do tribunal superior em matéria de facto, mesmo que o recurso se circunscreva a matéria de direito, alargando-se assim o quadro de possibilidades de incursão no plano fáctico, também possível através da análise da existência de vícios decisórios.

Para indagar da existência da invocada nulidade, importa ter em conta a factualidade certificada na decisão recorrida, impondo-se cotejar a fundamentação do acórdão da Relação e do acórdão do Colectivo sobre que incidiu a reapreciação.

Vejamos se o acórdão sob censura está ferido de nulidade.

O legislador constituinte em 1976 a respeito de fundamentação omitiu qualquer referência.

A consagração na Lei Fundamental do dever de fundamentação das decisões judiciais veio a verificar-se com a primeira revisão constitucional operada pela Lei Constitucional n.º 1/82, de 30/09, prescrevendo então o n.º 1 do artigo 210.º que «As decisões dos tribunais são fundamentadas nos casos e nos termos previstos na lei», redacção que se manteve no n.º 1 do artigo 208.º na revisão da Lei Constitucional n.º 1/89, de 08/07, bem como na revisão da Lei Constitucional n.º 1/92, de 25/11, sofrendo alteração na 4.ª revisão constitucional - Lei Constitucional n.º 1/97, de 20/09 - passando então a dispor o n.º 1 do artigo 205.º que «As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei».

A propósito desta alteração pode ler-se no acórdão n.º 680/98 do Tribunal Constitucional, processo n.º 456/95, de 02-12-1998, in DR, II Série, de 05-03-1999: “A Constituição revista deixa perceber uma intenção de alargamento do âmbito da obrigação constitucionalmente imposta de fundamentação das decisões judiciais, que passa a ser uma obrigação verdadeiramente geral, comum a todas as decisões que não sejam de mero expediente, e de intensificação do respectivo conteúdo, já que as decisões deixam de ser fundamentadas «nos termos previstos na lei» para o serem «na forma prevista na lei». A alteração inculca, manifestamente, uma menor margem de liberdade legislativa na conformação concreta do dever de fundamentação”.

No plano da lei ordinária e no que respeita à lei adjectiva penal, a motivação em processo penal é introduzida apenas no Código de Processo Penal de 1987, com o artigo 374.º.

Definindo os requisitos da sentença penal dispõe o artigo 374.º, n.º 2, do CPP, na redacção actual, dada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, entrada em vigor em 1 de Janeiro de 1999, e mantido inalterado pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto e subsequentes alterações:

«Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».

Relativamente à versão anterior, a resultante da Reforma de 1998 apenas introduziu a necessidade do exame crítico das provas, tendo assim perfeita actualidade as posições jurisprudenciais firmadas a propósito da questão concreta suscitada pelo recorrente, aqui a discutir.

No caso em reapreciação não se está perante uma fundamentação completa, como o exige o n.º 2 do artigo 374.º do CPP.

Só a enumeração concreta e especificada dos factos alegados na acusação ou na pronúncia e, eventualmente nos casos em que existam, contestação criminal, pedido cível deduzido e contestação a este, permite ao tribunal superior, em recurso, determinar se certo facto foi efectivamente apreciado e considerado provado ou não provado, ou se, pelo contrário, nem sequer foi considerado.

A jurisprudência do STJ firmou-se, de há muito, no sentido de que a decisão deve conter a enumeração concreta, feita da mesma forma, dos factos provados e não provados, com interesse e relevância para a decisão da causa, sob pena de nulidade, desde que os mesmos sejam essenciais à caracterização do crime em causa e suas circunstâncias, ou relevantes juridicamente com influência na medida da pena, desde que tenham efectivo interesse para a decisão, mas já não no caso de factos inócuos, excrescentes ou irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação e/ou na contestação, ou ainda a matéria de facto já prejudicada pela solução dada a outra.

Como se extrai do acórdão de 26-05-1999, processo n.º 1488/98-3.ª “Sumários”, n.º 31, pág. 90, “de acordo com o disposto pelo art.º 374.º, n.º 2, do CPP, o tribunal tem de especificar todos e cada um dos factos alegados pela acusação e pela defesa, bem como os que tiverem resultado da discussão da causa, relevantes para a decisão, como provados e não provados”.

A jurisprudência há muito sedimentou o entendimento já exposto, podendo ver-se neste sentido os acórdãos do STJ, de 21-06-1989, processo n.º 40076; de 28-03-1990, processo n.º 40736; de 26-09-1990, BMJ n.º 399, pág. 432; de 03-04-1991, CJSTJ 1991, tomo 2, 19; de 29-05-1991, BMJ n.º 407, pág. 361; de 05-06-1991, CJ1991, tomo 3, pág. 29; de 23-10-1991, BMJ n.º 410, pág. 622; de 18-12-1991, BMJ n.º 412, pág. 383; de 26-03-1992, BMJ n.º 415, pág. 499; de 27-05-1993, processo n.º 43973; de 10-11-93, CJSTJ 1993, tomo 3, pág. 233; de 10-03-1994 (dois), BMJ n.º 435, págs. 653 e 658; de 11-05-1994, processo n.º 46160, BMJ n.º 437, pág. 382 (o desejo da lei é criar a certeza, especialmente para o Tribunal de recurso, de que os factos, todos os factos, foram considerados, sofreram votação do colectivo. Não esclarecendo o acórdão recorrido os factos que não foram provados, impõe-se que o mesmo seja declarado nulo); de 28-09-94, CJSTJ 1994, tomo 3, pág. 206; de 10-05-1995, BMJ n.º 447, pág. 331; de 29-06-1995, CJSTJ 1995, tomo 2, pág. 254; de 25-10-1995, BMJ n.º 450, pág. 339; de 11-01-1996, processo 48474, CJSTJ 1996, tomo 1, pág. 19 e BMJ n.º 453, pág. 298; de 04-06-1996, BMJ n.º 458, pág. 169; de 09-07-96, BMJ n.º 459, pág. 178; de 15-01-1997, CJSTJ 1997, tomo 1, pág. 181; de 16-01-1997, CJSTJ 1997, tomo 1, pág. 202; de 16-10-1997, CJSTJ 1997, tomo 3, pág. 210; de 21-01-1998, BMJ n.º 473, pág. 374; de 11-02-1998, BMJ n.º 474, pág. 151; de 04-06-1998, BMJ n.º 478, pág. 7; de 07-10-98, CJSTJ 1998, tomo 3, pág. 183; de 29-03-2000, processo n.º 57/2000, SASTJ n.º 39, pág. 60; de 14-07-2008, processos n.º s 1775/07 e 1880/07, da 3.ª secção.

O tribunal no cumprimento da obrigação de fundamentação “completa”, há-de apresentar uma fundamentação que permita uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão, com referência ao que adquirido foi e o não foi em termos da facticidade apurada, se possível com explicitação diferenciada do que resultou da acusação, ou do que adveio da contestação e do que emergiu da discussão em audiência, com reporte ao modo de aquisição, permitindo a “transparência do processo e da decisão”, para utilizar a expressão de Michele Taruffo, citado, i. a., no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 680/98 referido supra, tendo que deixar bem claro que foram por ele apreciados todos os factos alegados, com interesse para a decisão, incluindo essa apreciação os que não foram considerados provados - cfr. acórdãos do STJ, de 18-12-1991, BMJ n.º 412, pág. 383; de 11-02-1993, CJSTJ 1993, tomo 1, pág. 191, donde se extrai que «Na fundamentação do acórdão deve constar os factos provados e os não provados que tiverem sido alegados na contestação»; de 11-05-1994 (dois), BMJ n.º 437, págs. 382 e 389; de 28-09-1994, CJSTJ 1994, tomo 3, pág. 206; de 30-04-1997, CJSTJ 1997, tomo 2, pág. 195; de 09-10-97, BMJ n.º 470, pág. 364; de 16-10-97, CJSTJ 1997, tomo 3, pág. 210; de 12-03-98, BMJ n.º 475, pág. 233.

Enumerar é enunciar, ou expor um a um, narrar minuciosamente, especificar, demarcar, seleccionar, metodicamente.

Assim, tal exigência só poderá cumprir-se através de uma enunciação ou indicação, um a um, isto é, de uma descrição especificada, dos factos alegados pela acusação e pela defesa, como ainda os resultantes da discussão da causa.

Estará satisfeita a exigência de fundamentação no acórdão recorrido?

A bem das garantias de defesa do arguido e melhor percepção por parte do tribunal de recurso, na fundamentação do acórdão deveriam constar, em bloco, de modo definitivo, preciso, claro e transparente, todos os factos provados e os não provados, que emergiram das modificações operadas pelo recurso em sede de matéria de facto, as quais foram significativas, bastando ter em conta que a formulação do juízo substitutivo da Relação conduziu a que o acórdão absolutório de Sintra desse lugar a condenação por crime de homicídio qualificado.

Vejamos como procedeu o acórdão recorrido.

A reapreciação da matéria de facto teve lugar em função do recurso do M.º P.º e apenas dele, no ponto 3.2.1. Quanto ao Recurso do Mº Pº - A) – Recurso da Matéria de Facto, de fls. 2824 a 2857, concretizando-se essa reapreciação nas rubricas “B) - Erro Notório na Apreciação da Prova: “À data dos factos o arguido AA encontrava-se fisicamente debilitado” – facto provado n.º 49”, de fls. 2825 a 2831 e “C) - Quanto ao exame crítico da prova”, de fls. 2832 a 2857, que conclui, a partir de fls. 2847, com o aditamento, eliminação e elencagem dos factos provados.

O aditamento de outros factos resultantes da prova produzida em julgamento é feito a fls. 2847/8, em termos absolutamente idênticos aos anteriores acórdãos de 29-05-2008, de 28-05-2009 e de 17-06-2010, conforme fls. 1860/1 (6.º volume), 2170/1 (8.º volume) e 2531/2 (9.º volume), com a única diferença apenas na introdução à exposição dos factos, pois onde agora se diz “Assim adita-se à matéria de facto provada os seguintes factos”, nos anteriores dizia-se: “Assim deverão ser aditados ao leque dos factos provados, os factos que se encontram indicados pelo MºPº, no seu recurso, a saber:”.

Consta de fls. 2847/8 o seguinte:

«São factos que resultam da prova produzida em julgamento:

Assim adita-se à matéria de facto provada os seguintes factos:

O arguido AA tem experiência de manuseamento de armas de fogo, praticando tiro.

Para que a arma de fogo "Walther" disparasse tinha de se exercer uma força igual ou superior a 2,23 Kg, encontrando-se a mesma munida de um aparelho de pontaria consistente num ponto de mira fixo e alça de mira regulável em direcção.

O arguido AA tinha a arma de fogo "Walther" guardada no seu carro, tendo, aproveitando uma distracção de EE a falar ao telemóvel, ido buscá-la, sem que este último desconfiasse.

O arguido AA, nessa altura, também aproveitou para carregar o carregador da aludida arma com duas munições e introduzi-la nas calças.

EE media 1,72 m.

No dia 10 de Junho de 2006, EE não apresentava qualquer sinal de lesão traumática no pescoço, tronco, membros superiores e inferiores.

Na cabeça apresentava dois orifícios com meio centímetro de diâmetro situados dois centímetros acima do bordo superior do pavilhão auricular esquerdo e separados entre eles por dois centímetros.

Os projécteis deflagrados pela arma de fogo "Walther" fizeram o trajecto de cima para baixo e de fora para dentro.

O arguido AA, quando entrou em contacto com a Polícia Judiciária de Setúbal, omitiu sempre o homicídio de EE até o cadáver ser descoberto por pescadores.

O arguido, após ter transportado o cadáver de EE da oficina de M… M… para a sua oficina na C… da C…, retirou-o do carro e escondeu os pertences do morto numa caixa de ferramentas.

Depois dirigiu-se a casa, para jantar com a família sem contar nada do que sucedera.

Às vinte e três horas, voltou a sair de casa, contactando telefonicamente BB  de forma a que a mulher não desconfiasse de nada, deixando-a aborrecida por sair àquela hora da noite de casa, continuando a não contar nada do que sucedera.

O arguido AA teve a intenção directa de provocar a morte de EE».

A eliminação de factos que constavam como provados no acórdão de Sintra é feita a fls. 2848/9, igualmente em termos absolutamente idênticos aos anteriores acórdãos de 29-05-2008, de 28-05-2009 e de 17-06-2010, conforme fls. 1861/2 (6.º volume), 2172 (8.º volume) e 2532/3 (9.º volume).

Consta de fls. 2848, in fine e 2849, o seguinte:

«Por outro lado e seguindo os mesmos ensinamentos, o tribunal errou de facto quando deu como provados os seguintes, a saber:

“Pelas 18H00/18H30 [EE] acusou-o [o arguido AA] directamente nesse sentido [ser o “bufo”] e perguntando-lhe o que escondia dirigindo-se-lhe para o agredir e lhe apertar o pescoço.

AA atirou uma chave de fendas em direcção a EE e exibiu-lhe a arma de fogo de marca Walther Calibre.22, puxando a culatra atrás, o que não deteve a marcha de EE.

Acabaram ambos por se envolver num “abraço” já em iminente acção de luta no interior da secção de mecânica da oficina.

Acto contínuo e com medo que a vítima EE o matasse (...), direccionou o cano da arma de fogo que empunhava com a mão direita, carregada com munições de calibre 22 Long Rifle, para a cabeça de EE e disparou.

O arguido AA agiu com a intenção de se defender da investida de EE, acima descrita (...).

À data da prática dos factos o arguido AA encontrava-se fisicamente debilitado por, dias antes, lhe ter passado por cima das zonas das costelas um veículo automóvel (...).

Assim deverá ser eliminado dos factos provados esta matéria de facto».

Segue-se uma enumeração de factos assentes (e apenas destes, nada se dizendo em relação aos não provados), o que é feito imediatamente a seguir à enunciação dos factos que deveriam ser eliminados, dizendo-se: “Deste modo e em obediência ao acórdão do STJ, fixa-se a seguinte matéria de facto assente, fazendo a elencagem lógica do como, quando e porquê dos acontecimentos factuais”, expondo-se os factos assentes de fls. 2849 a 2857.

Tendo fixado os factos assentes, onde foram incorporados os factos emergentes da discussão no âmbito do recurso, o acórdão não caminhou para a enunciação precisa, cabal, dos factos considerados não provados, ou seja, não extraiu as consequências das eliminações que fizera, de modo a deixar claro o que do acórdão de Sintra subsistia ou era de expurgar.

A enunciação dos factos não provados apenas no dispositivo surgirá, mas em termos que olvidam por completo as eliminações antes proclamadas.

Tendo-se procedido no dispositivo - aí e só aí -  à “fixação” da matéria de facto não provada, da forma restrita como foi feita, repetindo-se, com uma única excepção, o elenco de Sintra, colocar-se-á a dúvida em relação aos factos que dados como provados em Sintra, a dado passo do acórdão recorrido, se considerou que seriam de eliminar. Subsistirão, coexistirão uns e outros?

Em vez da enumeração dos factos não provados - de todos os factos considerados como não provados - avança-se de imediato para o tratamento do recurso da matéria de direito e embora se diga – fls. 2857 - que “Tudo o que se disser neste contexto terá que ter obviamente como base a alteração que foi ordenada da matéria de facto provada e não provada, conforme acima se expôs”, certo é que a anteceder o tratamento subsuntivo não existe a consignação, na sua globalidade, do acervo factual dado por não provado.

No segmento da fundamentação de facto omite-se, pois, a enumeração dos factos não provados.

Afirma-se a fls. 2849 que deverá ser eliminada dos factos provados determinada matéria de facto, mas por um lado, na sede própria, nada se diz, e por outro, no dispositivo, omitem-se tais referências de eliminação, colocando-se apenas os anteriores factos dados por não provados pelo Colectivo de Sintra - com excepção da ausência da intenção de matar - e repetindo-se os três primeiros.  

Para o acórdão ora recorrido, decisão recorrida era o acórdão de Sintra, configurando o ponto de partida para a impetrada reapreciação; ao não constarem do actual lote dos factos não provados alguns que daquela decisão constavam como provados, pode colocar-se a dúvida sobre se subsistem ou não.

Para a integração da conduta no crime de homicídio qualificado, embora proclame a fls. 2859 que “Assim face a tudo o que acima se disse para a qualificação do crime cometido pelo arguido AA importa ter em consideração a matéria de facto provada e não provada”, a verdade é que o acórdão avança para a subsunção sem se mostrar definida na sua completude e inserta num corpo único, global, toda a facticidade tida por provada e não provada, procedendo a uma repetição dos factos provados, incluída a referente à ocultação de cadáver e mesmo à conduta e condições pessoais do co-arguido BB e ao pedido cível - fls. 2859 a 2867; o mesmo exercício de repetição inútil com a maioria dos factos provados é feito no segmento da medida da pena, mas onde também se repetem considerações sobre a subsunção da conduta no homicídio qualificado - fls. 2879 a 2886.

Na verdade, a matéria de facto provada surge enunciada no acórdão recorrido em quatro momentos diversos.

De forma integral:

1 - Na fixação da matéria de facto assente inserta na rubrica (fls. 2824) “3.2.1. Quanto ao Recurso do M.º P.º – A) - Recurso da Matéria de Facto”, de fls. 2849 a 2857;

2 - No segmento “D) - Quanto ao Recurso da Matéria de Direito” (fls. 2857), na qualificação do crime cometido pelo arguido AA, de fls. 2859 a 2867;

3 - No dispositivo, de fls. 2899 a 2906.

De forma parcial (excluídos os três primeiros e os últimos dezoito factos), de fls. 2879 a 2886, no segmento destinado a abordar a “Medida da Pena” (fls. 2877), mas onde se volta à imputação do homicídio qualificado (quanto a este aspecto são elucidativos fls. 2879, in fine, e 2886 – terceiro parágrafo, onde se reafirma a conclusão da prática do homicídio qualificado).

Face às alterações produzidas na fixação da matéria de facto, em caso em que o juízo de absolvição é substituído pelo de condenação, fechando-se o ciclo da matéria de facto na Relação, e não sendo a nova fixação susceptível de impugnação pelo arguido agora condenado, impunha-se maior rigor na enunciação de todo o acervo adquirido, sem deixar quaisquer margens para dúvidas relativamente ao que ficou provado e não provado.

Uma narrativa lógica imporia que se agregassem todos os factos relativos ao iter  executivo do crime de homicídio qualificado, sem hiatos e interpolações da descrição da actividade subsequente de ocultação de cadáver, em sequência lógica e não de forma esparsa, descontínua, desconexa, sem fio condutor, reformulando-se a fundamentação, a descrição da matéria assente,  de modo a conferir ritmo descritivo, optando por uma narrativa factual sequencial, perceptível com uma simples leitura, sem demanda de “trabalho de pinças”, tentando juntar as peças dispersas.

Na verdade, a fundamentação é apresentada de modo fragmentário, incompleto, desconexo, com falta de clareza, sequência lógica, cadência, ritmo, fluidez e de transparência, ao jeito de conjunção de peças de autêntico puzzle, a impor trabalho de busca de interligação e de conexão, não permitindo uma percepção directa, imediata, rápida, tratando-se de composição de decisão que não obedece aos cânones legais, antes emergindo do texto uma estruturação desgarrada e desconexa. 

Repetindo-se o acórdão do STJ, de 17-03-2004, processo n.º 4026/03-3.ª Secção, “a sentença constitui uma incindível unidade lógico-jurídica, não mera soma de segmentos autónomos, qual manta de retalhos”.

A incompletude de fundamentação é motivo de nulidade, como decorre dos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a), ambos do CPP.

Ora, o acórdão recorrido não cumpriu a injunção legal, pois tinha o dever de enunciar com precisão todos os factos provados e não provados relevantes para a imputação penal e não cumpriu tal exigência de fundamentação.

Estamos, pois, perante um incumprimento do disposto no artigo 374.º, n.º 2, o que fere o acórdão de nulidade, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, por não conter as menções referidas no n.º 2, sendo tal nulidade de conhecimento oficioso, como decorre do n.º 2 do mesmo preceito, introduzido com a Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto.

Decisão

Pelo exposto, acordam nesta 3.ª Secção em, julgando procedente em parte o recurso interposto pelo recorrente AA, anular o acórdão recorrido, que deverá ser substituído por outro que contemple o dever de fundamentação de enunciação clara dos factos provados e não provados.

Sem custas.

Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do CPP.

Lisboa, 20 de Outubro de 2011

Raul Borges (relator)
Oliveira Mendes
Pereira Madeira