ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
154/06.2TTCTB.C1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 10/26/2011
SECÇÃO 4ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO NEGADA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR GONÇALVES ROCHA

DESCRITORES ACIDENTE IN ITINERE
LIGAÇÃO AO TRABALHO

SUMÁRIO I - Os acidentes que se verifiquem no trajecto normalmente utilizado pelo trabalhador e durante o período de tempo habitualmente gasto entre a sua residência habitual ou ocasional e o local de trabalho, são qualificados como acidentes de trabalho indemnizáveis, conforme resulta dos artigos 6º, nº 2, alínea a) da Lei 100/97 de 13 de Setembro e 6º, nº 2 alínea a) do DL nº 143/99 de 30 de Abril.

II - É necessário no entanto, que exista uma ligação ao trabalho.

III - Deixa de existir tal ligação se o sinistrado, tendo terminado o trabalho ao meio-dia, só iniciou a viagem de regresso à sua residência ocasional cerca de quatro horas depois de ter deixado de trabalhar.

IV – Por isso, não se pode qualificar o acidente por si sofrido cerca das 17horas e 50 minutos, quando se dirigia no IP 8 em direcção ao Fundão, onde ia passar o fim-de-semana, como um acidente de trabalho in itinere.



DECISÃO TEXTO INTEGRAL

Acordam na secção social do Supremo Tribunal de justiça:

        

1----

AA, veio intentar uma acção com processo especial, emergente de acidente de trabalho, contra:

BB SEGUROS, SA, com sede no Porto e

 CC, EMPRESA DE TRABALHO TEMPORÁRIO, LDª, com sede em Avelar, pedindo a condenação da entidade que vier a ser declarada responsável nos seguintes valores:

a) € 7.412,72, relativos a ITA do período compreendido entre 14 de Maio de 2005 a 26 de Outubro de 2006;

b) A pensão anual e vitalícia de € 4.444,16;

c) € 4.448,00, a título de subsídio por elevada incapacidade;

d) € 32,00, relativos a transportes;

e) Juros legais – artigo 135° do C.P.T.

Alegou para tanto que, no dia 14 de Maio de 2005, pelas 17,50 horas, no IC 8, foi vítima dum acidente de trabalho que consistiu em o veículo motorizado onde se fazia transportar como passageiro ter colidido com um veículo que transitava em sentido contrário, do qual lhe resultaram lesões de que pretende ser indemnizado.

Citadas as rés, vieram estas contestar alegando a seguradora que não é responsável pela reparação do acidente dos autos, porquanto a colisão não se verificou na sequência da prestação de trabalho, nem no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo ininterrupto habitualmente gasto pelo trabalhador entre a residência e o local de trabalho.

Por seu turno, a ré patronal veio declinar também a sua responsabilidade, pois entende que o acidente não se pode caracterizar como acidente de trabalho “in itinere”, pois o autor apenas trabalhou até às 12 horas, tendo o acidente ocorrido às 17,50, ou seja, quase seis horas após o termo da jornada de trabalho. Além disso, tinha a responsabilidade infortunística totalmente transferida para a seguradora.

Por despacho de fls. 162 a 164, foi fixada ao autor uma pensão anual provisória de € 4.444,16 a suportar pelo FAT.

O “Hospital Amato Lusitano” de Castelo Branco interveio na acção para pedir a condenação dos réus no pagamento da quantia de € 1.340,81, acrescida dos juros legais, vencidos e vincendos, e que é devida a título de despesas com cuidados hospitalares que prestou ao sinistrado, incidente que foi admitido e gerou contestação da ré seguradora a declinar qualquer responsabilidade no pagamento da quantia reclamada.

Proferido o despacho saneador, foi seleccionada a matéria de facto assente e organizada a base instrutória, de que ninguém reclamou.

Efectuada a audiência de julgamento, foi proferida sentença na qual se decidiu julgar totalmente improcedente a acção, com a consequente absolvição dos réus dos pedidos formulados pelo A e pelo Hospital Amato Lusitano.



Inconformado veio o autor apelar, mas o Tribunal da Relação de Coimbra julgou a apelação improcedente.

Novamente inconformado, trouxe-nos o A a presente revista, tendo rematado a sua alegação com as seguintes conclusões:

1- O douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra viola o disposto no art. 684º-A, n°3, do CPC, porquanto não cuidou de remeter os autos à primeira instância no sentido de apurar dos motivos que conduziram ao hiato existente entre o fim da prestação de trabalho e o início da viagem de regresso a casa pelo acidentado;

2- Mas mesmo que assim se não entenda, sempre a interpretação que resulta do acórdão recorrido, na aplicação que faz dos art. 6º da Lei 100/97 e do Decreto-Lei 143/99, é violadora do princípio constitucional de tutela do direito do trabalhador, porquanto o referido hiato entre o início da viagem de regresso a casa e o fim da prestação laboral não pode ser causador da descaracterização do acidente como "in itinere".

3- Dever-se-á considerar incluído no contrato de seguro o trajecto quer de ida para o local de trabalho quer o seu regresso, independentemente da hora de início da viagem, pois continua a ser um percurso feito no tempo ininterrupto e habitualmente gasto pelo trabalhador.

Os RR não alegaram.

Subidos os autos a este Supremo Tribunal, a Senhora Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, e que notificado às partes não motivou qualquer reacção.

Corridos os legais vistos, cumpre decidir.

2----

            Para tanto, temos de atender à seguinte factualidade:

Da Matéria de Facto Assente

1. Considero reproduzido o teor do auto de não conciliação junto ao processo.

2. O autor, mediante contrato de trabalho escrito, desempenhava as funções de pedreiro ao serviço da 2ª ré, sob as suas ordens, direcção e fiscalização (dá-se por reproduzido o teor de contrato de trabalho temporário, a fls. 61 dos autos).

3. O autor auferia o salário anual de 6.944,00E, ou seja, 496,00E x 14 meses por ano.

4. No dia 14 de Maio de 2005, pelas 17h50m, no IC 8, no sentido Coimbra - Sertã, ao km 106,470, área da Sertã, o autor foi vítima dum acidente que consistiu em o motociclo em que se fazia transportar como passageiro ter colidido com um veículo ligeiro de mercadorias que transitava em sentido contrário (cfr. participação do acidente a f1s. 63 a 65, cujo teor aqui se dá por reproduzido).

5. Dá-se por reproduzido o teor dos boletins clínicos de f1s. 66 a 70 e 75 e 76, e nos autos de exame médico de f1s. 80 a 83 e 97 e 98, ali se examinando e descrevendo lesões sofridas pelo autor.

6. Nos autos de exame médico efectuados no Gabinete Médico-Legal da Covilhã e por força das lesões aí descritas, o Senhor Perito Médico daquele Gabinete arbitrou ao autor uma ITA desde a data do acidente (14/5/2005) até à data da alta (26/10/2006) e, a partir desta data, uma IPP de 70,00% com IPATH para o trabalho habitual de pedreiro pois, resultou-lhe esfacelo do membro inferior esquerdo, com amputação desse membro pelo 1/3 proximal da coxa esquerda.

7. À data do acidente, a segunda ré tinha a sua responsabilidade totalmente transferida para a primeira ré, através da apólice n° ….

8. Realizada a tentativa de conciliação, esta frustrou-se porque a seguradora não aceitou o acidente como de trabalho, nem o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões do sinistrado e, ainda, porque o acidente não pode ser considerado como "in itinere"; e a entidade patronal não aceitou o acidente como de trabalho, nem o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões do sinistrado, e não aceitou qualquer responsabilidade porque tudo transferiu para a seguradora.

9. A seguradora recebeu, em 13 de Junho de 2005, uma carta da co-ré "CC, Ldª", entidade patronal do autor, na qual comunicava a produção de um acidente, ocorrido com dois dos seus trabalhadores, DD e AA, o ora autor, na qual refere aquela co-ré que o autor sofreu um acidente de viação, no dia 14 de Maio de 2005, pelas 17:45 horas, conforme cópia que se junta como documento 1, a fls. 148, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

10. O H.A.L. emitiu a factura n° …, de 17.AGO.2005, da importância de 1.370,81 euros.

Do apenso de fixação de incapacidade:

11. O autor sofreu esfacelo grave do membro inferior esquerdo, que lhe determinou uma IPP de 70% desde 03.06.2005 (dia seguinte ao da alta), com 1PATH.

Da Base Instrutória:

12. As lesões referidas em E) e F) foram consequência necessária e directa do acidente mencionado em D).

13. O autor fez despesas para se dirigir a Tribunal e ao Gabinete Médico-‑Legal para exames e conciliação, tendo gasto, até ao momento, a importância de 32,00€.

14. O autor e o seu colega que veio a falecer, no dia do acidente apenas trabalharam até às 12 horas.

15. A seguradora não recebeu da sua segurada "CC, Empresa de Trabalhos Temporários, Ldª" qualquer participação de sinistro no âmbito do contrato de seguro em vigor entre ambas as partes, relativamente ao evento alegadamente ocorrido com AA, o autor, em 14 de Maio de 2005.

16. (matéria considerada como não escrita pela Relação, em obediência ao disposto no artigo 646º, nº 4 do Cód. Proc. Civil.)

17. O autor pernoitava habitualmente em instalações da empresa.

18. No dia do acidente, a meio da tarde, o autor decidiu ir passar o fim-de-‑semana à sua residência, no Concelho do Fundão.

19. Para o que, juntamente com o colega DD, utilizou uma motorizada.

20. No dia 19 de Maio de 2005, AA deu entrada no Serviço de Urgência do Hospital Amato Lusitano, vindo transferido dos H.U.C., e ficou internado, no Serviço de Ortopedia até ao dia 2 de Junho de 2005.

21. AA recebeu cuidados hospitalares no H.A.L. por motivo de ferimentos, que foram o resultado do acidente referido em D), ocorrido no dia 14 de Maio de 2005.

22. A factura referida em J), na importância de 1.370,81 €, é referente às despesas com a assistência hospitalar prestada a AA, no H.A.L em virtude do acidente dos autos.

3---

            E decidindo:

Conforme decorre das conclusões da alegação do recorrente que, como se sabe, delimitam o objecto do recurso, são duas as questões que o recorrente suscita:

Violação pelo acórdão do disposto no art. 684º-A, n.°3, do CPC, porquanto não cuidou de remeter os autos à primeira instância para se apurar dos motivos que conduziram ao hiato existente entre o fim da prestação de trabalho e o início da viagem de regresso a casa pelo acidentado;

Qualificação do acidente que o A sofreu no dia 14 de Maio de 2005, como acidente “in itinere”, nos termos do disposto nos artigos 6º, nº 2, alínea a) da Lei dos Acidentes de Trabalho e 6º, nº 2 do DL nº 143/99 de 30/04.

            Assim, vejamos então como decidir.

3.1---

            Quanto à primeira questão:

            Resulta efectivamente do nº 3 do artigo 684º-A do CPC, na versão anterior à que lhe foi conferida pelo DL nº 303/2007 de 24 de Agosto, que na falta de elementos de facto indispensáveis à apreciação da questão suscitada, pode o tribunal mandar baixar os autos para se proceder ao julgamento no tribunal onde a decisão foi proferida.

            Ora, antes de mais temos de dizer que a falta de elementos a que se refere o preceito visa o julgamento de questão suscitada pelo recorrido em sede de ampliação do âmbito do recurso, como se vê da respectiva epígrafe “ampliação do âmbito do recurso a requerimento do requerido”.

Donde resulta que, requerida a ampliação do âmbito do recurso por este, para que o tribunal conheça de fundamento em que decaiu, apesar de ter ganho a acção, é para conhecer desta questão que pode o Tribunal mandar baixar o processo.

No caso presente foi o A quem recorreu.

Por isso e não sendo recorrido, o preceito não lhe é aplicável.

Improcede portanto, esta primeira questão.  

3.2---

            Quanto à caracterização do acidente como acidente de trabalho “in itinere”:

            Antes de mais temos de dizer que, tendo o acidente ocorrido em Maio de 2005, é à Lei 100/97 de 13 de Setembro (a seguir designada por LAT[1]) e ao seu regulamento (o DL nº 143/99 de 30/4) que temos de atender.

Ora, resulta do artigo 1º, nº 1 da LAT que os trabalhadores e seus familiares têm direito à reparação dos danos emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais nos termos previstos na presente lei e demais legislação regulamentar.

Pode ver-se neste preceito a consagração dum regime de responsabilidade objectiva em sede de acidentes de trabalho, baseada no risco, ao estabelecer-se que o direito à reparação dos acidentes de trabalho é o que resulta expressamente desta lei, que tipifica os danos a ressarcir – pela Tabela Nacional de Incapacidades, e estabelece as regras para o apuramento da indemnização, enquanto o regime da responsabilidade objectiva do Código Civil se limita a estabelecer limites máximos de indemnização, conforme resulta, por exemplo do artigo 508ª do CC, relativo a acidentes de viação[2].

Por outro lado, o âmbito indemnizatório da responsabilidade objectiva do empregador está circunscrito através da limitação do conceito de acidente de trabalho e dos danos ressarcíveis, sendo responsável por tal reparação o “empregador”, que no entanto, está obrigado a transferir esta responsabilidade para entidades legalmente autorizadas a realizar este seguro, conforme impõe o nº 1 do artigo 37º.

Por isso, só as situações que esta lei tipifica como acidentes de trabalho é que conferirão o direito à sua protecção.

Ora, para além da situação típica do artigo 6º, nº 1 da LAT, que considera acidente de trabalho o acidente ocorrido no tempo de no local de trabalho, também constituirão acidentes de trabalho os que ocorrerem nas situações previstas no nº 2 do mesmo preceito, avultando pela sua importância, o “acidente in itinere” [alínea a)] e cuja regulamentação constitui uma das melhorias introduzidas por esta Lei.

Efectivamente e como se deduz desta expressão, ocorre um acidente “in itinere”, na ida para o local de trabalho ou no regresso do mesmo, desde que o trabalhador se encontre no percurso normal da sua casa para o trabalho e vice-versa.

No entanto, no âmbito da lei 1942, de 27/7/36, e que foi a antecessora da Lei 2 127, a figura do acidente in itinere não constava do elenco dos acidentes de trabalho ressarcíveis.

Entendia-se então que pelo facto de se dirigir para trabalhar ou de regressar a casa vindo do trabalho, o trabalhador ainda não estava ligado ao serviço que prestava ao empregador, nem aos actos subsequentes ligados à prestação laboral.

Por outro lado, também não se encontrava sujeito à autoridade patronal, elemento essencial para se exigir a responsabilidade do empregador pelos acidentes ocorridos ao seu serviço, conforme doutrina que se colhe dos acórdãos do STA de 10/7/58 e 18/6/59, colecção de acórdãos, volume V, pgª 222 e volume XI, pgª 231.

De qualquer forma, foi-se evoluindo, pois quando o meio de transporte usado pelo trabalhador para se deslocar para o trabalho, ou para regressar dele, era fornecido pelo empregador, já se considerava o acidente indemnizável, entendendo-se que nesta situação já estava sujeito à autoridade patronal, conforme também se pronunciava neste sentido o STA, nomeadamente nos acórdãos de 13/2/62, 26/6/62, 18/12/62 e 30/X/73 in acórdãos doutrinais nº 5 pgª 687; 10 pgª 1315; 15 pgª 387; e nº 46 pgª 248; e ainda o acórdão do Tribunal Pleno de 13/4/67, AD nº 67 pgª 1235.

Fora destes casos, mas ainda na vigência da lei 1942 e apesar do silêncio da lei, começou ainda a firmar-se jurisprudência no sentido de se caracterizar o acidente “in itinere” como acidente de trabalho, quando o trabalhador estava sujeito, no trajecto, a um risco particular e específico, não comum à generalidade das pessoas, conforme doutrina que se retira do acórdão do Pleno do STA de 26/2/70, AD nº 101 pgª 783; STA, acórdãos de 3/3/70 e 9/2/71, AD nº 101 pgª 738 e 112 pgª 604.

Mais tarde a jurisprudência veio a evoluir, admitindo que também se caracterizavam como acidentes de trabalho, os acidentes “in itinere” que tivessem resultado de circunstâncias que agravassem o risco do percurso e que o trabalhador era obrigado a suportar precisamente pela sua qualidade de trabalhador e a que a generalidade das pessoas se poderia eximir.

É já a vigência da teoria do risco genérico agravado e que algumas decisões jurisprudenciais já admitiam, conforme advogava Manuela Aguiar, Estudos Sociais e Corporativos nº 25, pgª 76 e 77.

A Lei 2127 veio depois consagrar expressamente a figura do acidente in itinere como acidente de trabalho indemnizável, nos casos em que o meio de transporte é fornecido pela entidade patronal e quando o acidente é consequência de particular perigo do percurso normal, ou de outras circunstâncias que tenham agravado o risco desse percurso, conforme resultava da base V, nº 2, alínea b).

Constata-se assim que esta lei considerava indemnizáveis os acidentes in itinere, resultantes de particular perigo do percurso normal e ainda os que resultassem de quaisquer circunstâncias que tenham agravado o risco genérico, conforme concluía Melo Franco, BMJ, suplemento de 1979, pgª 67.

Quanto à Lei 100/97, ocorreu um salto qualitativo de altíssima importância, na medida em que o acidente “in itinere” passou a ser sempre indemnizável, desde que o trabalhador se encontrasse no trajecto de ida para o local de trabalho ou no trajecto de regresso do seu local de trabalho, conforme resultava do artigo 6º, nº 2, alínea a), da Lei 100/97[3].

E assim sendo, para que se esteja em face dum acidente de trajecto indemnizável, já não exige o legislador o preenchimento daqueles exigentes requisitos da lei anterior, bastando para tanto que o acidente ocorra no trajecto normalmente utilizado e durante o período de tempo habitualmente gasto para o percorrer.

Trata-se da consagração das modernas teorias que consideram que o risco de acidentes neste percurso é inerente ao cumprimento do dever que incumbe ao trabalhador de comparecer no lugar do trabalho, para nele executar a prestação resultante do contrato de trabalho, constituindo assim uma das suas obrigações instrumentais ou acessórias.

Por isso, sendo o trabalhador obrigado a fazer o percurso necessário ao cumprimento da sua obrigação de trabalhar no lugar determinado pela sua entidade patronal e usando, para tanto, as vias de acesso e os meios de transporte disponíveis, justifica-se que os acidente ocorridos neste percurso e no tempo habitualmente gasto para o percorrer, já gozem da protecção própria dum acidente de trabalho, conforme prescrevia o artigo 6º, nº 2 do DL nº 143/99 de 30/4.

Por outro lado, estão abrangidos nesta previsão legal, os acidentes que se verifiquem no trajecto normalmente utilizado pelo trabalhador e durante o período de tempo habitualmente gasto entre a sua residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho - alínea a).

Donde resulta que não basta o trabalhador estar no percurso normalmente utilizado para ir trabalhar ou para regressar a casa depois do trabalho, pois para além disso é preciso que o acidente ocorra dentro do período de tempo que se gasta habitualmente nesse percurso.

De qualquer forma, o acidente não deixará de ser considerado acidente de trabalho quando o trajecto normal tenha sofrido interrupções ou desvios determinados pela satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, bem como por motivo de força maior ou por caso fortuito (nº 3 do artigo 6º do DL nº 143/99).

Por outro lado e quanto ao tempo do percurso, o acidente in itinere será indemnizável desde que se verifique nos trajectos normalmente utilizados e durante o período de tempo habitualmente gasto pelo trabalhador, conforme resulta do nº 2 deste preceito.

Exige-se assim um carácter consecutivo do percurso, pois as suas interrupções só serão consideradas se forem determinadas para satisfação de necessidades atendíveis do trabalhador, ou por motivos de força maior ou por caso fortuito (nº 3).

Assim, não foi considerado acidente indemnizável o que ocorreu mais de uma hora depois do período de tempo habitualmente gasto, se o trabalhador não provou as razões que determinaram este excesso – STJ, 27/2/2008, recurso nº 3901/07-4ª secção – sumários de Fevereiro/2008.

No entanto, o facto do trabalhador não ter regressado imediatamente à residência após o trabalho, por ter ficado cerca de 15 minutos a conversar com um amigo, no café, não afastou a qualificação do acidente como de trabalho - acórdão da RC, de 16/10/ 2008, CJ, 69/4, tendo-se considerado que se tratou dum atraso razoável e dentro da normalidade da vida.

Mas o acidente sofrido pelo trabalhador que esteve 40 minutos a confraternizar com os colegas da empresa e teve um acidente de motorizada quando ia regressar à sua residência, já não foi considerado acidente de trabalho, pois para tanto era necessário que esse regresso se tivesse verificado a seguir ao termo do trabalho – STJ, 27/9/1995, CJS, 269/3.

Postas estas considerações, vejamos o caso dos autos.

3.2.1---

Ora, o A terminou o seu trabalho pelas 12 horas e o acidente só ocorreu pelas 17,50 horas, ou seja, passadas cerca de seis horas.

Efectivamente, pernoitando habitualmente em instalações da empresa para quem exercia funções, a meio da tarde do dia 14 de Maio de 2005, o A decidiu, ir juntamente com o seu colega DD, passar o fim-de-semana à sua residência, no Concelho do Fundão.

Para tanto, utilizaram uma motorizada, conduzida por este último.

No entanto, cerca das 17h50m, no IC 8, no sentido Coimbra - Sertã, ao km 106,470, área da Sertã, o autor foi vítima dum acidente em virtude do motociclo em que se fazia transportar como passageiro ter colidido com um veículo ligeiro de mercadorias que transitava em sentido contrário.

            Donde se conclui que o acidente ocorreu no trajecto entre a localidade onde o sinistrado trabalhava, e o Fundão, local onde se dirigia para passar o fim de semana.

Admite-se portanto, que o acidente ocorreu no percurso normal entre o local de trabalho e o local da residência ocasional.

Mas já não podemos considerar que tenha ocorrido no tempo normal do percurso.

Efectivamente, tendo o A largado o trabalho cerca do meio-dia, só a meio da tarde é que ele e o seu colega decidiram ir passar o fim de semana fora.

Cortou-se assim a conexão com o trabalho, ao deixar-se passar três ou quatro horas sobre o seu termo.

Efectivamente e conforme já vimos, era fundamental para a caracterização do acidente como de trabalho que houvesse um elo de ligação ao trabalho, o qual desapareceu totalmente face ao decurso daquele tempo sobre o seu final.

Deste modo, não se podendo considerar que o acidente tenha ocorrido durante o tempo habitualmente gasto pelo trabalhador para fazer o referido trajecto, não podemos qualificá-lo como acidente de trabalho.

E como tal, não é indemnizável à luz da LAT ao tempo em vigor.

Argumenta o recorrente que esta interpretação dos art. 6º da Lei 100/97 e do Decreto-Lei 143/99, e que também foi seguida pelo acórdão recorrido, é violadora do princípio constitucional de tutela do direito do trabalhador, porquanto o referido hiato entre o inicio da viagem de regresso a casa e o fim da prestação laboral não pode ser causador da descaracterização do acidente como "in itinere", mas esta argumentação improcede.

Com efeito, o que justifica a responsabilização do empregador por este tipo de acidentes é a ligação que o regresso a casa do trabalhador tem com o trabalho, sendo razoável impor-lhe tal ónus em virtude dos trajectos de ida para o trabalho e de regresso a casa depois dele, serem inerentes ao cumprimento do dever de trabalhar.

Por isso, ao deslocar-se para comparecer no lugar do trabalho para o executar, ou ao regressar dele depois de trabalhar, o trabalhador está a dar cumprimento a uma das suas obrigações instrumentais ou acessórias, o que legitima a exigência de responsabilização da entidade patronal pelos acidentes ocorridos neste percurso.

No entanto, estando quebrada a ligação com o trabalho em virtude do trabalhador ter iniciado a viagem três ou quatro horas depois do seu termo, já não há justificação para imputar o risco de acidentes ao empregador.

Assim sendo, não se vislumbra que esta concepção do acidente “in itinere”, tal como se deixou delineada, ponha em causa o princípio constitucional da tutela do direito do trabalhador sinistrado, pois o acidente nenhuma conexão tem com o trabalho.

Por isso, só nos resta confirmar o acórdão recorrido.         

4---

Termos em que se acorda em negar a revista.

Custas a cargo do recorrente.

Lisboa, 26 de Outubro de 2011

Gonçalves Rocha (relator)

Sampaio Gomes

Pereira Rodrigues

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[1] A que pertencerão todos os preceitos a que não seja atribuída outra proveniência.
[2] Romano Martinez, Direito do Trabalho, II volume,2º tomo, 159 e 160, edição de 1999.
[3] É também a posição de Carlos Alegre in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, 2ª edição, pgª 50, que considera acidente de trajecto o que atinge o trabalhador no caminho de ida ou de regresso do local de trabalho.