ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
1909/10.9JAPRT.S1
DATA DO ACÓRDÃO 10/20/2011
SECÇÃO 3.ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL RECURSO PENAL
DECISÃO NEGADO PROVIMENTO
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR MAIA COSTA

DESCRITORES HOMICÍDIO QUALIFICADO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA DUPLA VALORAÇÃO
AGRAVANTE
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
CÔNJUGE
MEIO INSIDIOSO
REFLEXÃO SOBRE OS MEIOS EMPREGADOS
FRIEZA DE ÂNIMO
MOTIVAÇÃO
ANTECEDENTES CRIMINAIS
IDADE
ARGUIDO

SUMÁRIO I -O nosso legislador, ao determinar no art. 71.º, n.º 2, do CP, que o tribunal, ao fixar a pena concreta, não deverá atender às circunstâncias que façam parte do tipo, pretende excluir a dupla valoração na determinação da pena concreta, ou seja, impedir que um facto que foi determinante para a subsunção típica funcione também, após essa operação, como circunstância relevante para a fixação da pena, quer em sentido agravativo, quer em sentido atenuativo.
II - Tal não significa, porém, que os factos típicos não possam de todo relevar como circunstâncias agravantes ou atenuantes, na fixação da pena concreta. Na verdade, quando as circunstâncias que integram elementos típicos do crime ultrapassarem, ou ficarem aquém, em termos de intensidade ou consequências, de um “grau médio” de ilicitude pressuposto pelo legislador na fixação da moldura abstracta, essas circunstâncias deverão ser atendidas na determinação da pena concreta, como agravantes ou atenuantes, conforme o caso.
III - Aproximando-nos do caso dos autos, podemos assentar em que as circunstâncias que servirem para qualificar o homicídio podem igualmente relevar em termos de determinação da pena concreta se se revestirem de características que excedam a previsão típica mediana ou “paradigmática” considerada pelo legislador.
IV - O recorrente foi condenado, além do mais, por um crime de homicídio qualificado, tendo agido em circunstâncias que revelam uma especial censurabilidade, uma culpa especialmente agravada, enquadrável no n.º 1 do art. 132.º do CP, culpa essa revelada nas seguintes circunstâncias: a vítima era casada com o arguido – al. b); este agiu com surpresa e à traição sobre a vítima – al. i); actuou de forma reflectida e planeada, persistindo no seu propósito de matar durante mais de 24 horas – al. j).
V - O tribunal recorrido deu especial relevância, na fixação da pena, à violência empregue pelo arguido, à forma insidiosa como o crime foi praticado, ao modo e à frieza de ânimo como foi executado, bem como às suas consequências. Porém, ao fazê-lo, não infringiu o princípio da proibição da dupla valoração, dado que as circunstâncias que no caso determinaram a qualificação do homicídio, especialmente as als. i) e j), excedem notoriamente, em intensidade e consequências, o “grau médio” pressuposto pelo legislador para a qualificação.
VI -Com efeito, o arguido utilizou uma forma especialmente violenta, dolorosa, cruel e ignominiosa de matar a vítima, sua mulher. Primeiro, apanhou-a de surpresa, completamente desprevenida, encurralando-a num espaço onde ela não tinha saída ou defesa; depois regou-a abundantemente com gasolina, e de seguida deitou-lhe fogo, como se de um objecto se tratasse. Planeou o crime utilizando o conhecimento que tinha sobre a rotina de vida da vítima. Executou os factos, apesar da oposição com que na ocasião se defrontou por parte de algumas pessoas presentes no local. A vítima assistiu impotente a esta actuação programada, procurando em vão fugir. Trata-se de um processo executivo do homicídio excepcionalmente perverso e cruel, que levou a vítima a sofrer, mercê das queimaduras, dores intensas até à morte, alguns dias depois. Uma morte lenta, particularmente dolorosa e atroz, foi o procedimento escolhido pelo arguido para matar a sua mulher.
VII - Estas circunstâncias, pelo seu carácter extraordinariamente grave ou desmesurado, excedem notoriamente a previsão típica paradigmática pressuposta pelo legislador no crime de homicídio qualificado, devendo, pois, relevar, como agravantes, para efeitos de determinação da medida concreta da pena.
VIII - O dolo é muito intenso, manifestado na persistência da execução, e já previamente na preparação meticulosa do crime, com antecedência superior a 24 h.
IX - A motivação do arguido, que actuou por “incapacidade” de suportar a decisão da vítima de dele se separar, não merece qualquer valoração positiva, antes pelo contrário, por revelar falta do respeito devido por uma decisão livre da vítima, tomada no uso do seu direito à auto-determinação.
X - A única atenuante de que o arguido beneficia é a ausência de antecedentes criminais, relevante atendendo à sua idade, mas cujo valor, no contexto global dos factos, se mostra bem pálido. A idade (actualmente 75 anos), em si mesmo considerada, não constitui circunstância relevante, já que a lei penal não estabelece nenhuma atenuação específica em função da idade.
XI - Nenhuma censura merece, pois, a pena de 23 anos de prisão fixada para o crime de homicídio qualificado.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

 AA, com os sinais dos autos, foi condenado, por acórdão de 30.6.2011, da 2ª Vara Mista de Vila Nova de Gaia, como autor dos seguintes crimes:

- um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145º, nºs 1, a), e 2, do Código Penal (CP), na pena de 6 meses de prisão;

- um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, b), i) e j), do CP, na pena de 23 anos de prisão.

Em cúmulo destas penas, foi condenado na pena única de 23 anos e 3 meses de prisão.

            Deste acórdão interpôs recurso o arguido, concluindo:

I. O presente recurso tem na sua génese o acórdão que julgou o recorrente, na procedência da acusação, autor material de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, por referência ao artigo 132º, n.º 2, al. b), todos do Código Penal e um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131º e 132º, n.ºs 1 e 2, als. b), i) e j) ambos do Código Penal, e por tal, condenou-o relativamente ao primeiro na pena parcelar de seis meses de prisão e, quanto ao segundo na pena parcelar de vinte e três anos de prisão, e em cúmulo jurídico na pena única de vinte e três anos e três meses de prisão. E, simultaneamente, condenou o recorrente no pagamento da taxa de justiça de 4 UC e demais encargos.

II. Deve dizer-se que a dosimetria concreta da pena nos termos do art. 71º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal deve respeitar os limites definidos na lei, isto é, deverá aplicar-se em função da culpa do agente, considerando ainda a finalidade da pena indicada no art. 40º do referido diploma legal; devendo também atender-se a todas as circunstâncias que, não obstante não fazerem parte do tipo do crime, possam depor a favor do arguido, designadamente as enunciadas no art. 72º do CP.

III. A pena aplicada ao arguido é desajustada à factualidade dada como provada, não se revela proporcional à culpa do recorrente, não se coadunando com as legais consequências da prevenção geral e especial.

IV. O meio utilizado pelo arguido não possuiu extrema violência, nem o recorrente actuou com frieza e insensibilidade.

V. O recorrente não actuou de modo frio, lento, reflexivo, cauteloso, deliberado, calmo na preparação e execução e persistente na execução, actuar de forma serena, com o espírito límpido de emoções.

VI. O recorrente não actuou com persistência querida e voluntária.

VII. O recorrente actuou envolto de um turbilhão de sentimentos que diminuíram a racionalidade e o domínio da sua vontade, especialmente o sentimento do ciúme e da perda daquilo que até então era um dado adquirido da sua felicidade.

VIII. O recorrente não se conforma com as razões em que se alicerça a medida da pena que lhe foi aplicada, pelos motivos que se passam a referir, constituindo este o único ponto em que se encontra em desacordo com o tribunal a quo, consideravelmente ao qual pretende uma correcção da veneranda relação.

IX. A dosimetria da pena escolhida pelo douto Tribunal a quo escorou-se «O grau de ilicitude dos factos praticados (...) atenta a extrema violência»; «frieza e insensibilidade (...) revela uma ilicitude muito elevada»; «persistência e intensidade da vontade de cometer o crime»; «elevada censurabilidade do comportamento do arguido»; «o facto da vítima não desejar continuar a viver com o arguido»; «os ciúmes do arguido»;

X. O comportamento do recorrente não se enquadra no conceito indeterminado agora «elevada censurabilidade» pelo menos com o conteúdo emprestado pelo douto Tribunal a quo.

XI. O meio utilizado pelo recorrente não pode ser reputado como insidioso, nos termos e segundo a classificação e conceptualização concedidas pelo Código Penal.

XII. No caso, o recorrente, não praticou o acto de forma oculta ou dissimulada, na medida em que quando concretiza o seu intento e, apesar de tentado ser demovido pelas referidas testemunhas, a ofendida já havia saído do seu automóvel.

XIII. O recorrente foi educado com critérios rígidos e severos no que diz respeito ao casamento e aos direitos que às mulheres conferem, reportando-se esta educação à sociedade de há 50 e 60 anos atrás.

XIV. Com 74 anos de idade o recorrente espelha nos seus pensamentos e actos a educação que lhe foi transmitida.

XV. Por outro lado, o sentimento que o recorrente devotava à ofendida, o amor e o amor não correspondido potenciaram o descontrolo emocional e racional, pelo facto da ofendida não desejar continuar a viver com o arguido.

XVI. Do que vimos expondo, resulta, em nosso entender, que a culpa provada nos autos, não suporta uma pena particularmente elevada dentro da moldura penal, considerando-se desajustada a pena aplicada ao aqui recorrente.

XVII. No caso em crise a necessidade de prevenção especial manifesta-se particularmente nula, na medida em que um crime deste tipo só se comete relativamente a uma pessoa.

XVIII. As necessidades de prevenção geral são medianas, na medida em que a conduta do recorrente foi isolada e teve uma motivação que a comunidade não aceita, mas a que empresta alguma compreensão.

XIX. Acresce a idade do recorrente que incute na comunidade a convicção de que jamais perpetrará outro crime similar ou diverso.

XX. As exigências de prevenção especial estão no mesmo plano, pois o recorrente não tem antecedentes criminais e tem, no mais, adequado o seu comportamento aos valores, encontrando-se bem integrado socialmente.

XXI. Pode, assim, considerar-se que, na ausência de outras circunstâncias favoráveis ao arguido, para além dos motivos que estiveram na base da sua actuação, a medida óptima de satisfação das expectativas comunitárias se situará ao nível da medida da culpa, proporcional à gravidade do facto, mas, dada a ausência de particulares exigências de socialização, a pena pode [e por isso deve] ser fixada um pouco abaixo, no ponto intermédio da moldura penal, entendendo-se estar aí o mínimo de pena imprescindível à manutenção da confiança colectiva na validade da norma violada.

XXII. A pena justa é, pois, a de 14 anos de prisão, moldura que, s.m.o., se encontre afinada pelos justos critérios dos Tribunais Superiores, especialmente da Veneranda Relação do Porto.

XXIII. Tudo o alegado demonstra o desajuste da decisão recorrida, justamente quanto ao único ponto que se identificou.

XXIV.    Foram violados, entre outros, e com o sentido, interpretação, fim e alcance que se deixaram especificados, os arts. 40.º, 71.º, 72.º e 132.º do Código Penal e art. 18.º da Constituição da República Portuguesa.

                A sra. Procuradora-Adjunta respondeu da seguinte forma:

1º - O Arguido não põe em causa a qualificação jurídica dos factos, designadamente a imputação e condenação pela prática de um crime de Ofensa à Integridade Física Qualificada, previsto e punido pelo disposto nos artigos 143°, n° 1 e 145°, n° 1, al. a) e n° 2, por referência ao artigo 132°, n° 2, al. b), do Código Penal, e pela prática de um crime de Homicídio Qualificado, previsto e punido pelo disposto nos artigos 131° e 132°, n°s 1 e 2, als. b), i) e j), do Código Penal, insurgindo-se relativamente à medida concreta da pena que lhe foi aplicada.

2º - A actuação do Arguido ao provocar a morte da Vítima revela uma especial censurabilidade e perversidade, enquadrando-se ainda em três das alíneas enumeradas no n° 2 do artigo 132° do Código Penal.

3º - Na verdade, o Arguido provocou deliberada e dolosamente a morte da mulher com que tinha casado e com quem tinha partilhado mesa, habitação e intimidade, para com quem tinha especiais deveres de protecção, atenção e carinho. Fê-lo tendo persistido em tal intenção por mais de 24 horas, agindo com grande frieza de ânimo, utilizando meio especialmente censurável, perverso e doloso, como seja queimar a vítima viva, ateando-lhe deliberadamente fogo e provocando a morte lenta, por combustão e em consciência da vítima.

4º - O Arguido, conhecendo as rotinas da Vítima, esperou pela mesma, forçando a vítima a imobilizar o veículo que conduzia, impedindo assim a fuga desta (em estrada estreita e que não permitia a ultrapassagem), abriu a porta do veículo e despejou um conteúdo de um garrafão de gasolina por cima da Vítima. Ao ver tais factos, terceiros gritaram ao Arguido que parasse. Mas este insensível, indiferente e persistindo nos seus intentos, logrou acender um fósforo e atirou-o para o corpo da sua ainda esposa, não obstante esta se encontrar regada com combustível e a gritar que este lhe queria atear fogo. Atente-se na aflição da Vítima e na frieza do Arguido.

5º - Após atirar o fósforo para o corpo da Vítima, esta de imediato se incendiou, começando a arder. Nessa ocasião e, enquanto testemunhas tentavam socorrer a Vítima, o Arguido, mais uma vez indiferente, e com grande frieza, dirigiu-se ainda ao veículo conduzido pela Vítima, acendeu um fósforo e pegou-lhe também fogo.

6º - Tais factos, reafirma-se, revelam, só por si, uma especial e elevadíssima censurabilidade, um profundo desrespeito ante padrões axiológico-normativos estabelecidos, indiferença ao sofrimento e aflição causada à Vítima sua mulher. Ou seja, as circunstâncias em que a morte da Vítima foi causada são de tal modo graves e a actuação do Arguido reflecte uma atitude profundamente distanciada em relação a uma determinação de valores, que a actuação revela uma especial censurabilidade.

7º - A actuação do Arguido revela ainda uma especial perversidade, uma atitude profundamente rejeitável, atente-se no facto de, após o Arguido ter regado o corpo da ofendida com gasolina e quando testemunhas o tentavam demover e impedir e a Vítima mostrava aflição, o Arguido, indiferente, persistiu na sua actuação, conseguindo mesmo assim atear fogo à Ofendida e, vendo-a a arder e a perder a vida, continuou indiferente, não a socorrendo e, ainda actuando com frieza, não satisfeito, foi atear fogo ao veículo conduzido por esta.

8º - A Vítima era mulher do Arguido, pessoa para com quem este tinha especiais deveres de respeito e cuidado, com quem partilhou mesa, habitação e intimidade.

9º - O meio utilizado é insidioso, porque o Arguido surpreendeu a vítima quando esta regressava da residência da sua filha, forçando-a a imobilizar o veículo, e, subitamente, abriu-lhe a porta do carro e, de forma rápida e eficaz, regou-a com gasolina para lhe pegar fogo, tratando-se assim de um ataque súbito, sorrateiro, atingindo a Vítima desprevenida, ao ver aquele que ainda era seu marido, a abrir-lhe a porta do veículo que conduzia e, de forma súbita, inesperada e traiçoeira a regar de combustível para lhe pegar fogo e matar.

10º - O Arguido persistiu na intenção de matar a vítima por mais de 24 horas, munindo-se dos meios que queria utilizar para lhe provocar a morte, actuando com grande frieza de ânimo e reflexão sobre os meios a empregar, conforme já se referiu, demonstrando toda a actuação do arguido uma enorme frieza de ânimo.

11º - O Arguido incorreu, assim, na prática de um crime de Homicídio Qualificado.

12º - Na fixação da medida da pena do crime de Homicídio Qualificado em que o Arguido incorreu, o Tribunal ponderou, como agravantes da conduta do Arguido: a) o grau de ilicitude dos factos praticados pelo Arguido que se mostra relevante atenta a extrema violência que o mesmo revestiu traduzida no meio utilizado (fogo ateado através de gasolina lançada no corpo da Vítima) e no modo e circunstâncias como foi perpetrado; b) o modo de execução do crime de homicídio que se revela particularmente grave tendo em conta, de um lado, a situação de desigualdade em que se encontrava a Vítima - o Arguido muniu-se com um garrafão com gasolina e despejou o conteúdo em cima da Ofendida que na altura se encontrava sentada ao volante com o seu veículo imobilizado e, por outro lado, o Arguido não se coibiu de acender um fósforo que atirou na direcção do tronco da Ofendida que na altura já tinha saído do veículo, desorientada, a gritar que o Arguido lhe queria atear fogo, apesar de vários transeuntes terem tentado demovê-lo a acender algum fósforo, acto que, pela sua frieza e insensibilidade também revela uma ilicitude muito elevada; c) a grande intensidade do dolo, atenta a persistência e intensidade da vontade de cometer o crime, tendo o Arguido agido com dolo directo e persistido no propósito de causar a morte à Ofendida durante mais de 24 horas; d) a elevada censurabilidade do comportamento do Arguido que acendeu um fósforo e atirou-o em direcção do tronco da vítima, quando esta estava desorientada e a gritar que o Arguido lhe queria atear fogo, revelando desprezo pela vida da ofendida; e) os fins ou motivos que determinaram o Arguido no crime de homicídio - o facto da vítima não desejar continuar a viver com o Arguido, o que revela um grau muito elevado de violação dos deveres sociais e familiares impostos ao Arguido. Em favor do Arguido, o Tribunal ponderou a confissão dos factos (embora com pouco relevo quanto ao facto de ter ateado fogo no corpo da sua mulher já que, nesta parte, confessou aquilo que foi presenciado por várias pessoas e, que, portanto, muito dificilmente podia esconder), a sua modesta condição sócio-económica, o facto de ser trabalhador, a sua inserção social e a ausência de antecedentes criminais.

13º - Sopesando estes concretos factores o Tribunal entendeu como justa, necessária e adequada a fixação da pena concreta de 23 anos de prisão, relativamente ao crime de homicídio qualificado. Tal pena concreta mostra-se adequada e proporcional, tendo o Tribunal procedido a criteriosa ponderação e determinação da pena concreta.

14º - Ao contrário do alegado, afigura-se que a visão que o Arguido possui relativa ao casamento, não se enquadra em critérios rígidos de há 50 e 60 anos atrás, tendo em consideração o facto considerado como provado que o Arguido "a nível relacional e afectivo casou mais do que uma vez e estabeleceu uniões de facto", comportamento que não denota um entendimento rígido acerca da instituição casamento. Por outro lado, mesmo que assim fosse, tal não se afigura constituir atenuante da conduta do Arguido.

15º - Saliente-se as elevadíssimas exigências de prevenção geral relacionadas com agressões e mesmo morte praticadas por cônjuges, o que tem vindo a criar um grande alarme e insegurança na sociedade, atenta a frequência com que vê ocorrendo, o que tem vindo a exigir uma maior preocupação do legislador e dos aplicadores de direito, relativamente aos crimes praticados contra cônjuges ou ex-cônjuges.

16º - Atente-se nos factos concretos que rodearam a morte da Ofendida, o Arguido, quando matou a Ofendida, mostrou-se indiferente aos gritos desta quando se viu regada por gasolina e o viu a tentar acender o fósforo para lhe pegar fogo. Por outro lado, mesmo após ter ateado o fogo no corpo da Ofendia, estando esta em aflição e enorme agonia, ao ver-se queimada viva, o Arguido, com frieza e indiferença, nada fez para a socorrer e, ainda não satisfeito, foi pegar fogo ao carro da Ofendida, enquanto a vítima ardia.

17º - Tais factos demonstram uma elevadíssima culpa, enormes exigências de prevenção especial, tendo em consideração os sentimentos demonstrados pelo Arguido, sua frieza e indiferença pelos valores mais importantes da nossa sociedade. Demonstram ainda elevadíssimas exigências de prevenção geral (tendo em consideração o modo como o homicídio foi praticado e o crescente alarme e preocupação por parte de toda a comunidade relativamente a ilícitos cometidos entre cônjuges).

Face ao exposto, conclui-se que a pena concreta fixada pelo Tribunal se mostra adequada e proporcional, tendo o Tribunal procedido a criteriosa ponderação e determinação da pena concreta.

    Neste Supremo Tribunal, a sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer:

O arguido AA nascido a 17/02/1936, por acórdão proferido e depositado 30/06/2011, na 2ª Vara do Tribunal de Vila Nova de Gaia, foi condenado por autoria de um crime de homicídio e recorre para o Supremo Tribunal, respondendo atempadamente o M.P. da sra. Procuradora Adjunta.

O arguido foi condenado na 1ª instância por autoria de um crime de homicídio qualificado, p.p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2 als. b), i) e j) , na pena de 23 anos de prisão e de um crime de ofensa à integridade física qualificada p.p. pelos artºs 143º nº 1, 145º 1 al. a) e nº 2, por referência ao art.º 132º nº 2 al. b) todos do C.P., na pena de 6 meses de prisão, em cúmulo na pena única de 23 anos e 3 meses de prisão.

Inconformado com a medida da pena que lhe foi aplicada, o arguido AA pretende que a mesma seja reduzida a 14 anos de prisão, por ser “desajustada à factualidade dada como provada, não se revelar proporcional à sua culpa do recorrente não se coadunando com as legais consequências da prevenção geral e especial”.

Nas conclusões que delimitam o conhecimento do recurso, o arguido que até interpôs recurso para o Tribunal da Relação, não impugna a matéria de facto, apenas discorda, segundo nos parece, parcialmente de algumas circunstâncias que levaram o tribunal recorrido a considerar que na sua actuação manifestou especial censurabilidade, defendendo que o meio actualizado não possui extrema violência nem que tenha actuado com insensibilidade e frieza de ânimo e com persistência querida e voluntária. Defende ainda que é particularmente a necessidade de prevenção especial, porque este tipo de crime só foi cometido relativamente a uma pessoa e que a necessidade de prevenção geral é mediana porque foi uma conduta isolada com uma motivação não aceitável, mas a que é devida alguma compreensão, para além de dever ser acrescida a idade do arguido/recorrente que deixa na comunidade a convicção de que jamais cometerá outro crime. 

O M.P. na 1ª instância defendeu o doutamente decidido realçando a especial censurabilidade e perversidade que o arguido revelou, por ter persistido por mais de 24 horas na morte da mulher com quem tinha casado, partilhado mesa, habitação e intimidade, agindo com frieza de ânimo, utilizando meio especialmente censurável, perverso e doloroso e com um meio insidioso ao surpreender a vítima.

No entanto, quanto a nós parece-nos poder ser alterada a medida da pena pelo crime de homicídio qualificado p.p. pelo art.º 132º nº 1 e 2 do C.P. suscitada pelo arguido/recorrente, quer pela sua idade vetusta e pelo seu passado criminal isento quer ainda pela duplicação de fundamentos usados para a agravação do crime e igualmente para a dosimetria da pena.

1. O arguido AA, no dia 20/11/2010, tinha 74 anos e 9 meses e a vítima BB 68 anos de idade e haviam casado no dia 11/07/2010; segundo o relatório social (condições sociais e pessoais) e fundamentação do acórdão recorrido, tinham-se conhecido em Janeiro de 2007, em Março de 2010 abriram uma conta conjunta e em Maio do mesmo ano começaram a viver juntos na casa onde a BB havia sido realojada em 21 de Setembro do ano anterior, em 2009; desde que se conheceram ocorriam zangas e episódios de ruptura alternados com reconciliações; houve um acto de certa violência já no casamento e a relação conjugal havia terminado por vontade de BB em princípios de Novembro, contra a vontade do arguido.

Naquele mesmo dia da ocorrência quando a P.J. se deslocou ao local do crime e de onde tinha acabado de sair a vítima assistida pelo INEM, o arguido AA já se tinha apresentado no posto da G.N.R. de Avintes (fls.2) e p. 32 dos factos provados.

2. O arguido AA foi condenado por autoria do crime de homicídio qualificado cujos elementos específicos encontrados quanto à qualificação de especial censurabilidade ou perversidade, para além de censura inerente ao crime de homicídio simples, foram o “ estar ciente que o meio utilizado e a forma súbita e traiçoeira como agiu, retirava qualquer defesa à vítima, tendo persistido no propósito durante mais de 24 horas, ao lançar gasolina no corpo da ofendida, sua mulher, ateando-lhe fogo” – facto praticado contra cônjuge (ou ex cônjuge), utilizar um meio insidioso, persistência na intenção de matar por mais de 24 horas (als. b), i) e j) do art.º 132º do C.P.)            

2.1. Embora o arguido/recorrente não questione a matéria de facto (o também não podia ser apreciado no recurso para o S.T.J., art.º 132º nº 1, al.) do C.P.P.), parece tentar, indirectamente, pôr em causa a qualificação do crime de homicídio.

É certo que da matéria de facto ou da sua fundamentação poderão não resultar factos suficientes no sentido de a intenção de matar ter persistido por mais de 24 horas ou o meio utilizado e a forma de o usar, ter retirado à vítima qualquer hipótese de defesa, quando saiu do carro pedindo ajuda sem que tenha sido fornecida sábia e eficazmente, por duas das testemunhas presenciais.

No entanto o homicídio ter sido praticado na pessoa com quem ainda estava casado e devido às diversas circunstâncias dadas como provadas, não afasta a qualificação do homicídio, revelando especial censurabilidade.

3. Segundo a doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o crime base que o arguido/recorrente cometeu, é o homicídio simples, conforme está determinado no art.º 131º e o homicídio qualificado é uma forma agravada do homicídio simples, não se podendo considerar o contrário por o homicídio simples ser uma atenuação do agravado.

Na medida da pena encontrada entre os 12 e os 25 anos, parece-nos que na sua determinação – 23 anos, foram tidos em consideração na 1ª instância a globalidade das circunstâncias incluindo as que levaram ao juízo da culpa e da sua agravação e servindo de dupla fundamentação para a qualificação do crime e para a dosimetria da pena.

3.1 A pena tem por fim a prevenção geral e a prevenção especial, tal como o arguido/recorrente, defende, e os julgadores entenderam, devendo ser assegurado a convivência dos cidadãos da colectividade com os direitos à liberdade e à dignidade do cidadão/arguido.

Na graduação da pena dever-se-á ter em conta as funções de prevenção geral especial, sem se deixar de fora a culpa do arguido e só depois passar à sua dosimetria, a graduar entre o mínimo e o máximo estabelecido no artº 132º do C.P..

3.1.1 Na pena única aplicável o limite máximo dever-se-á fixar, tendo em conta a medida da culpa que a limitar, salvaguardando a dignidade humana do condenado; e o limite mínimo deverá ser encontrado no quantum da pena que possa realizar com eficácia a protecção dos bens jurídicos; no caso concreto.

3.2 Na determinação da pena, segundo o nº 2 do artº 71º do C.P. deverão ser consideradas diversas circunstâncias que, segundo nos parece não foram tidas em conta, nomeadamente, os motivos que determinaram o cometimento do crime (al. c)), as condições pessoais, (al. d)), as suas condutas anteriores e posteriores aos factos – o ter-se casado com a vítima há poucos meses, o fim da convivência conjugal, o ter ficado desde princípio de Novembro a viver no automóvel, o ter 74 anos e não ter antecedentes criminais, e o ter-se apresentado de imediato na G.N.R.      

Por todos estes fundamentos agora suscitados e definidos, em consonância com os do arguido/recorrente, mas também com base na jurisprudência e doutrina, parece-nos que a medida da pena a fixar pelo crime de homicídio qualificado de censurabilidade cometido pelo arguido poderia ser próxima dos 17 anos, atendendo ao mínimo e máximo da pena aplicável.

Assim, parece-nos que poderá, eventualmente ser dado parcial provimento ao recurso de AA, quanto à medida da pena por autoria do crime de homicídio qualificado com as devidas repercussões na pena única.

    Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP), o arguido nada disse.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

            II. FUNDAMENTAÇÃO

   A única questão a decidir é a da medida da pena do crime de homicídio e eventualmente a da pena conjunta.

    A matéria de facto apurada é a seguinte:

1) O arguido e BB contraíram casamento civil em 11 de Julho de 2010.

2) No dia 3 de Outubro de 2010, cerca das 09h30, no interior da residência do casal, situada na Rua da C…, n.° xx, x.°, esquerdo, em S…, Vila Nova de Gaia, na sequência de uma discussão, motivada por ciúmes do arguido, este agarrou BB pelo pescoço e apertou-lho durante tempo indeterminado.

3) O arguido só parou quando apareceu a vizinha CC, por a ofendida ter gritado por socorro.

4) A ofendida teve necessidade de receber tratamento hospitalar.

5) Em consequência directa e necessária desta conduta resultou para a ofendida BB dores na zona atingida, equimose arroxeada, localizada na metade esquerda do lábio inferior, com 1 cm de diâmetro, escoriação localizada no terço médio da face lateral do pescoço, com 1 cm de comprimento e escoriação linear, localizada medianamente no terço inferior da face anterior do pescoço, com 2 cms de comprimento.

6) Em data não apurada, situada no início do mês de Novembro de 2010, o arguido e BB separaram-se.

7) Em data concretamente não apurada, mas situada após o início do mês de Novembro de 2010, por esta não desejar continuar a viver com o arguido, este decidiu regar a sua mulher com gasolina quando a encontrasse, decidindo, ainda, que, para o efeito, utilizaria o combustível com que costumava andar no veículo, como reserva.

8) Para inflamá-lo, adquiriu uma caixa de fósforos.

9) No dia 20 de Novembro de 2010, o arguido que conhecia as rotinas e locais onde BB costumava circular, esperou que esta saísse da residência da sua filha DD.

10) Depois de esta ter saído, cerca das 16h00, a cerca de 300 metros da aludida residência, o arguido, seguia na Rua P... de P..., em Avintes, Vila Nova de Gaia, a conduzir um veículo automóvel, da marca Fiat, modelo Uno, de cor preta, com a matrícula xx-xx-GH, à frente de BB, conduzindo o veículo da marca Peugeot, modelo 205, de cor branca, com a matrícula xx-xx-FP.

11) O arguido abrandou a marcha do seu veículo até imobilizá-lo, forçando, deste modo, BB a fazer o mesmo, uma vez que a estrada é estreita e não permitia uma ultrapassagem.

12) De seguida, o arguido saiu do veículo que conduzia e do banco traseiro retirou um garrafão de plástico, de 5 litros, contendo gasolina e, com ele, dirigiu-se ao veículo conduzido por BB.

13) O arguido abriu a porta do lado do condutor do veículo conduzido por BB, onde esta se encontrava sentada ao volante e despejou o conteúdo do garrafão em cima desta.

14) Em simultâneo, aquela gritou: "ele vai-me pegar fogo", o que provocou que EE e  FF, que circulavam num veículo automóvel, da marca Renault, modelo Laguna, nessa mesma rua, saíssem do veículo e fossem em socorro de BB, gritando ao arguido que parasse.

15) Todavia, o arguido, persistindo nos seus intentos, tirou do bolso das calças uma caixa de fósforos, tentando acender um, ao mesmo tempo que aquela saía do veículo, desorientada, completamente coberta pelo líquido que o arguido lhe tinha atirado, a gritar que este lhe queria atear fogo.

16) EE e FF tentaram demover o arguido de acender algum fósforo, mas este insistiu.

17) Ao fim de algumas tentativas, o arguido acendeu um fósforo e atirou-o na direcção do tronco de BB, que, de imediato, se incendiou.

18) EE tentou apagar o fogo do corpo da vítima, com peças de vestuário, tendo a ofendida caído sobre o capot do veículo daquele.

19) Nesse momento, surgiu GG, munido de um extintor, tentando apagar as chamas que consumiam o corpo da ofendida, o que conseguiu.

20) Enquanto tal ocorria, o arguido, indiferente à situação que tinha criado, dirigiu-se ao veículo da ofendida e acendendo um fósforo, ateou-lhe fogo.

21) Após, o arguido voltou a entrar no seu veículo automóvel, com intenção de abandonar o local.

22) EE tentou impedir a fuga do arguido, tirando a chave da ignição, todavia, o arguido, que tinha outra chave consigo, conseguiu retirar o veículo do local e fugiu.

23) BB foi, de imediato, transportada para o Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho.

24) Em consequência directa e necessária da conduta do arguido resultou para a ofendida queimaduras de 2.° e 3.° grau em cerca de 55% da área corporal.

25) Extensas lesões de queimadura de 2.° e 3.° graus, na cabeça, com perda total do couro cabeludo, pestanas e sobrancelhas, no pescoço, no tórax, no abdómen, nos membros superior direito e esquerdo, nos membros inferior direito e esquerdo.

26) Lesões de queimadura de 2.° grau na região dorso-lombar, nos órgãos genitais.

27) Estas lesões foram a causa directa e necessária da sua morte, a qual ocorreu no dia 6 Dezembro de 2010.

28) No dia 3 de Outubro de 2010, o arguido actuou com o propósito conseguido de molestar fisicamente a ofendida, sua mulher, no seu corpo e na sua saúde.

29) No dia 20 de Novembro de 2010, o arguido, ao lançar gasolina no corpo da ofendida, sua mulher, e ateando-lhe fogo, nos moldes supra descritos, pretendeu causar-lhe a morte, estando ciente que o meio utilizado e a forma súbita e traiçoeira como agiu, retirava qualquer hipótese de defesa à vítima, tendo persistido no propósito durante mais de 24 horas.

30) O arguido agiu sempre livre, deliberada e conscientemente sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

31) O arguido confessou parcialmente a sua apurada conduta.

32) O arguido no dia 20.11.2010 entregou-se às autoridades policiais.

33) O arguido possui a 4ª classe.

O arguido no início da sua vida adulta aprendeu o ofício de taqueiro, tendo trabalhado noutras áreas.

Desde Maio de 2004, está reformado por invalidez, auferindo uma pensão mensal de € 270,00.

Na situação de reformado manteve a actividade laboral como taqueiro.

Ao nível relacional afectivo casou mais do que uma vez e estabeleceu uniões de facto.

Em Janeiro de 2007 o arguido conheceu a vítima BB, tendo iniciado com ela um relacionamento afectivo.

No meio social e laboral o arguido é referenciado como sendo um indivíduo sério e honesto, muito trabalhador, simples e pacato.

No estabelecimento prisional recebe visitas de um irmão e de amigos.

34) O arguido não tem antecedentes criminais.

Matéria de facto não provada

Não se provou o seguinte facto constante da acusação:

- que o arguido tenha persistido no propósito de causar a morte de BB durante cerca de 15 dias.

Importa também conhecer a fundamentação da medida das penas, que se transcreve:

Em desfavor do arguido e como circunstâncias agravantes da conduta do arguido importa considerar:

1° O grau de ilicitude dos factos praticados pelo arguido quanto ao crime de homicídio mostra-se relevante atenta a extrema violência que o mesmo revestiu traduzida no meio utilizado (fogo ateado através de gasolina lançada no corpo da vítima) e no modo e circunstâncias como foi perpetrado;

2° O grau de ilicitude dos factos cometidos pelo arguido no que concerne ao crime de ofensa à integridade física qualificada é relevante tendo em conta as circunstâncias em que a agressão foi cometida pelo arguido;

3° O modo de execução quanto ao crime de homicídio revela-se particularmente grave tendo em conta, por um lado, a situação de desigualdade em que se encontrava a vítima – o arguido muniu-se com um garrafão com gasolina e despejou o conteúdo em cima da ofendida que na altura se encontrava sentada ao volante com o seu veículo imobilizado e, por outro lado, o arguido não se coibiu de acender um fósforo que atirou na direcção do tronco da ofendida, que na altura já tinha saído do veículo, desorientada, a gritar que o arguido lhe queria atear fogo, apesar de vários transeuntes terem tentado demovê-lo a acender algum fósforo, acto que, pela sua frieza e insensibilidade também revela uma ilicitude muito elevada;

4° A intensidade do dolo no crime de ofensa à integridade física – o arguido agiu com dolo directo, modalidade mais grave do dolo;

5° A grande intensidade do dolo no crime de homicídio, atenta a persistência e intensidade da vontade de cometer o crime, tendo o arguido agido com dolo directo e persistido no propósito de causar a morte a ofendida durante mais de 24 horas;

6° A gravidade das consequências do crime de ofensa à integridade física qualificada: a ofendida BB sofreu dores na zona atingida, equimose arroxeada, localizada na metade esquerda do lábio inferior, com 1 cm de diâmetro, escoriação localizada no terço médio da face lateral do pescoço, com 1 cm de comprimento e escoriação linear, localizada medianamente no terço inferior da face anterior do pescoço, com 2 cm de comprimento;

7º A elevada censurabilidade do comportamento do arguido quanto ao crime de homicídio que acendeu um fósforo e atirou-o em direcção do tronco da vítima, quando esta estava desorientada e a gritar que o arguido lhe queria atear fogo, revelando desprezo pela vida da ofendida;

8° Os fins ou motivos que determinaram o arguido no crime de homicídio – o facto da vítima não desejar continuar a viver com o arguido, o que revela um grau muito elevado de violação dos deveres sociais e familiares impostos ao arguido;

9° Os fins ou motivos que determinaram o arguido no crime de ofensa à integridade física qualificada – os ciúmes do arguido;

10° A pluralidade de crimes agrava igualmente a responsabilidade do arguido.

A favor do arguido releva a confissão dos factos (embora com pouco relevo quanto ao facto de ter ateado fogo no corpo da sua mulher já que, nesta parte, confessou aquilo que foi presenciado por várias pessoas e, que, portanto, muito dificilmente podia esconder), a sua modesta condição sócio-económica, o facto de ser trabalhador, a sua inserção social e a ausência de antecedentes criminais.

As circunstâncias de prevenção especial apresentam relativo relevo atento o facto de não ter antecedentes criminais.

As circunstâncias de prevenção geral são de elevado relevo quer quanto ao crime de homicídio dado o elevado alarme social que cada vez mais a criminalidade violenta contra as pessoas suscita no seio da comunidade, quer quanto ao crime de ofensa à integridade física qualificada (na pessoa da sua mulher) face à proliferação deste tipo de criminalidade na nossa sociedade.

Apreciemos a matéria do recurso.

Nos termos do nº 1 do art. 71º do CP, a pena concreta é fixada em função da culpa e das exigências de prevenção.

    E acrescenta o nº 2 que o tribunal deverá atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, militem a favor ou contra o agente, indicando, exemplificativamente, as seguintes:

a) O grau de ilicitude do facto, especialmente o modo de execução do mesmo e a gravidade das suas consequências;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados pelo agente na prática do crime e as suas motivações;

d) As suas condições de vida;

e) A conduta anterior e posterior ao crime;

f) A falta de preparação para manter conduta lícita.

    Ao determinar que tais circunstâncias não devem fazer parte do tipo, pretende o legislador excluir a dupla valoração na determinação da pena concreta, ou seja, impedir que um facto que foi determinante para a subsunção típica funcione também, após essa operação, como circunstância relevante para a fixação da pena, quer em sentido agravativo, quer em sentido atenuativo.

    Tal não significa, porém, que os factos típicos não possam de todo relevar como circunstâncias agravantes ou atenuantes, na fixação da pena concreta. Na verdade, quando as circunstâncias que integram elementos típicos do crime ultrapassarem, ou ficarem aquém, em termos de intensidade ou consequências, de um “grau médio” de ilicitude pressuposto pelo legislador na fixação da moldura abstracta, essas circunstâncias deverão ser atendidas na determinação da pena concreta, como agravantes ou atenuantes, conforme o caso.[1]

    Aproximando-nos do caso dos autos, podemos assentar em que as circunstâncias que servirem para qualificar o homicídio podem igualmente relevar em termos de determinação da pena concreta se se revestirem de características que excedam a previsão típica mediana ou “paradigmática” considerada pelo legislador.

   Analisemos então o caso dos autos. O recorrente foi condenado, além do mais, por um crime de homicídio qualificado, com referência às als. b) (crime contra cônjuge), i) (meio insidioso) e j) (frieza de ânimo, reflexão sobre os meios empregues ou persistência na intenção de matar por mais de 24 horas) do nº 2 do art. 132º do CP.

Nenhuma dúvida se pode suscitar quanto à correcção do enquadramento jurídico dos factos. Na verdade, o arguido agiu em circunstâncias que revelam uma especial censurabilidade, uma culpa especialmente agravada, enquadrável no nº 1 do art. 132º do CP, culpa essa revelada nas seguintes circunstâncias: a vítima era casada com o arguido - al. b); este agiu com surpresa e à traição sobre a vítima – al. i); actuou de forma reflectida e planeada, persistindo no seu propósito de matar durante mais de 24 horas – al. j).

    Deu o tribunal recorrido especial relevância, na fixação da pena, à violência empregue pelo arguido, à forma insidiosa como o crime foi praticado, ao modo e à frieza de ânimo como foi executado, às suas consequências.

    Ao fazê-lo não infringiu, porém, o princípio da proibição da dupla valoração. Com efeito, as circunstâncias que determinaram a qualificação do homicídio, especialmente as als. i) e j), excedem notoriamente, em intensidade e consequências, o “grau médio” pressuposto pelo legislador para a qualificação.

    Na verdade, o arguido utilizou uma forma especialmente violenta, dolorosa, cruel e ignominiosa de matar a vítima, sua mulher. Primeiro, apanhou-a de surpresa, completamente desprevenida, encurralando-a num espaço onde ela não tinha saída ou defesa; depois regou-a abundantemente com gasolina (cinco litros!), e de seguida deitou-lhe fogo, como se de um objecto se tratasse.

Planeou o crime utilizando o conhecimento que tinha sobre a rotina de vida da vítima. Executou os factos, apesar da oposição com que na ocasião se defrontou por parte de algumas pessoas presentes no local. A vítima assistiu impotente a esta actuação programada, procurando em vão fugir. Trata-se de um processo executivo do homicídio excepcionalmente perverso e cruel, que levou a vítima a sofrer, mercê das queimaduras, dores intensas até à morte, alguns dias depois. Uma morte lenta, particularmente dolorosa e atroz, foi o procedimento escolhido pelo arguido para matar a sua mulher.

Estas circunstâncias, pelo seu carácter extraordinariamente grave ou desmesurado, excedem notoriamente a previsão típica paradigmática pressuposta pelo legislador no crime de homicídio qualificado, devendo, pois, relevar, como agravantes, para efeitos de determinação da medida concreta da pena.

    Se a ilicitude dos factos é elevadíssima, por outro lado, é muito intenso o dolo, manifestado na persistência da execução, e já previamente na preparação meticulosa do crime, com antecedência superior a 24 horas.

     A motivação do arguido também não o favorece. Na verdade, se ele actuou por “incapacidade” de suportar a decisão da vítima de dele se separar, essa motivação não merece qualquer valoração positiva, antes pelo contrário, por revelar falta do respeito devido por uma decisão livre da vítima, tomada no uso do seu direito à autodeterminação, decisão a que aliás não foi certamente alheio o comportamento culposo do arguido, indiciado fortemente pelo crime de ofensa à integridade física contra ela praticado pouco mais de um mês antes.

     É de frisar ainda que o crime de homicídio é qualificado por três circunstâncias, o que acentua obviamente as exigências punitivas. 

Verdadeiramente, a única atenuante de que o arguido beneficia é a ausência de antecedentes criminais, relevante atendendo à sua idade, mas cujo valor, no contexto global dos factos, bem pálido se mostra. A idade (actualmente 75 anos), em si mesmo considerada, não constitui circunstância relevante, já que a lei penal não estabelece nenhuma atenuação específica em função da idade.

    Por último, reportando-nos aos fins das penas, diremos que, se a prevenção especial se mostra pouco exigente, já não se dirá o mesmo em termos de prevenção geral, particularmente imperiosa. Na verdade, estamos perante uma manifestação, especialmente gravosa e dramática, de violência doméstica, um fenómeno persistente na nossa sociedade, que o legislador tem vindo a tentar combater a diversos níveis, entre os quais o penal, e que também a opinião pública condena acerbamente, impondo-se, portanto, que a pena concreta reflicta adequadamente o forte imperativo da prevenção geral.

     Nenhuma censura merece, pois, a pena fixada para o crime de homicídio qualificado e, consequentemente, também a pena única, improcedendo inteiramente o recurso.

        III. DECISÃO

     Com base no exposto, nega-se provimento ao recurso.

     Vai o recorrente condenado em 5 (cinco) UC de taxa de justiça, nos termos do art. 8º do Regulamento das Custas Processuais.

Lisboa, 20 de Outubro de 2011


Maia Costa (relator)
Pires da Graça




[1] Assim, Figueiredo Dias, As consequências jurídicas do crime, p. 235, indicando exemplos.