ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
10/10.0TJVNF-K.P1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/23/2011
SECÇÃO 6ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR NUNO CAMEIRA

DESCRITORES PLANO DE INSOLVÊNCIA
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO
CRÉDITO FISCAL
LEI GERAL TRIBUTÁRIA
CONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
MORATÓRIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
ACORDÃO FUNDAMENTO
ACÓRDÃO RECORRIDO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO

SUMÁRIO



I - A oposição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito ocorre quando a mesma norma jurídica se mostre interpretada e (ou) aplicada em termos opostos no acórdão recorrido e no acórdão fundamento. Exige-se sempre a identidade do núcleo da situação de facto e da norma ou normas jurídicas em questão nos dois casos.
II - Se no acórdão fundamento se entendeu que a aprovação e homologação de um plano de insolvência que envolva perdão ou redução de dívidas fiscais não viola os princípios da legalidade e da igualdade constitucionalmente consagrados por apenas estar em causa a derrogação, pelas normas da insolvência, de regras de cariz tributário, fruto de uma opção político-legislativa em matéria falimentar que igualou todos os credores, incluindo o próprio Estado, sem prejuízo da prevalência das garantias dos créditos das várias categorias de credores, e no acórdão recorrido, diversamente, se considerou que por virtude das alterações introduzidas aos n.ºs 2 e 3 do art. 30.º da LGT pelo art. 125.º da Lei n.º 55-A/2010, de 31-12 (que aprovou o Orçamento do Estado para o ano de 2011) um plano de insolvência que preveja a redução, extinção, ou estabeleça uma moratória relativamente aos créditos fiscais sem obediência às condições previstas nas próprias leis fiscais não deve ser homologado, a conclusão a extrair é a de que em tal caso não ocorre a oposição de acórdãos que torna admissível o recurso para o STJ, nos termos do art. 14.º, n.º 1, do CIRE.




DECISÃO TEXTO INTEGRAL

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

No processo em que se decretou a insolvência de ... 2 – Obras Públicas e Engenharia, Ldª, foi apresentada a proposta de plano de insolvência, con­forme o disposto nos artigos 209º e 212º do CIRE (Código de Insolvência e Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL 53/2004, de 18/3, e alterações subsequentes), prevendo o seguinte em relação ao credor Fazenda Nacional:

“IV – Conteúdo do Plano (artigo 195.º do CIRE)

4.1 – O plano de insolvência deve indicar claramente as alterações dele decorrentes para as posições jurídicas dos cre­dores da insolvência.

Os credores da insolvência registarão as seguintes alterações:

4.1.1 – Credores Privilegiados e Garantidos

4.1.1.1 – Credores Privilegiados – Estado/Fazenda Nacional

Valor indicado pelo devedor: 15.744,71 euros

Plano de Regularização: aceita-se, como pagamento de créditos sobre a insolvência, a compensação já efec­tuada em sede de IVA pela administração fiscal, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tri­butário (CPPT), nomea­damente do artigo 196º e seguintes.

Isto porque, à data da apresentação da Proposta de Plano de Insolvência, a Administração Fiscal, já pro­cedeu ao recebimento do referido valor, por compensação do IVA a recuperar. Em consequência, não são conhecidas dívidas à Fazenda Nacional.

Relativamente às custas, coimas, juros de mora e compensatórios e demais despesas serão perdoados 100%.

Regime de dedução do IVA a que se refere o artigo 78º, n.º 11, ex vi n.ºs 7 e 8 alínea d), do CIVA:

Considerando a situação patrimonial da insolvente, a dedução do IVA na parte correspondente aos perdões de capital que esta Proposta de Plano de Insolvência estipula, só poderá ser exercida em partes iguais, por períodos corres­pondentes aos meses civis, nos 4 anos que se seguem à declaração de insolvência ou outro prazo que o artigo 98º, n.º 2 do CIVA venha a estabelecer, contando-se como primeiro período para este efeito o mês de Agosto de 2010, pelo que, a primeira regularização constará do referido mês de Agosto e enviar no mês de Setembro.

O que se justifica por do mesmo modo os credores podem usufruir deste seu direito também nasce para a insolvente a obrigação de entregar um averba de igual montante ao Estado – Fazenda Pública.

Ora esta entrega ao Estado terá que ser liquidada pela Insolvente ao Estado.

Os créditos do Estado – Fazenda Pública que tenham ou venham a ter a sua origem no direito à dedução ou reem­bolso que os credores venham a realizar nos termos do artigo 78º do CIVA, serão pagos em 50% do seu valor pela aqui insolvente, sendo os restantes objecto de perdão.”

A proposta de plano de insolvência foi posta à votação na assembleia de credores realizada a 26/8/10. Estiveram presentes representantes de 78,56% dos créditos reconhecidos, dos quais vota­ram a favor 84,16%, contra 15,84%, abstendo-se 6,67% ( fls 56 a 62).

Por despacho de 14/10/10, atento o resultado da votação, foi considerada aprovada a pro­posta do plano de insolvência (fls 63), que veio a ser homologado por sentença proferida em 17/12/10 (fls 64 a 68).

Esta decisão foi notificada ao Ministério Público em 20/12/10 (fls 223/224).

Inconformado com a decisão homologatória, e porque o Ministério Público manifestou a intenção de não recorrer, o Director Geral de Impostos apelou.

Dando provimento ao recurso, a Relação do Porto revogou a sentença, determinando, em conse­quência, que a 1ª instância diligenciasse pela prolação de nova decisão na qual a homologação do plano de insolvência seja recusada no que se refere aos créditos fiscais reclamados pela recorrente Fazenda Nacional.

Inconformada, a apelada recorreu para o Supremo Tribunal, invocando a oposição de acórdãos a que alude o artº 14º, nº 1, do CIRE - no caso presente entre o acórdão recorrido e o acórdão da Relação de Coimbra proferido em 11/7/11 no processo 285/10.4T2AVR-C.C1, transitado em jul­gado no dia 26/7/011.

Em conclusão, pediu a revogação do acórdão da 2ª instância e a consequente reposição da sentença homologatória do plano de insolvência aprovado com fundamento na violação dos artºs 112º, nº 2, da Constituição, 7º, nº 3 e 12º do Código Civil, 97º, 196º e 215º do CIRE, 12º da Lei Geral Tri­butá­ria, 123º e 125º da Lei 55-A/2010, de 31 de Dezembro.

Não houve contra alegações.

Tudo visto, cumpre decidir.

II. Fundamentação  

O presente recurso, como acima se referiu, foi interposto ao abrigo do artº 14º, nº 1, do CIRE, que dispõe o seguinte, na parte que interessa ao caso:

“Nos processos de insolvência não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das Relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 732º-A e 732º-B do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele con­forme”.

Importa por isso verificar, previamente, se há efectiva oposição de acórdãos que justifique a admissão e conhecimento do recurso.

A oposição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito ocorre quando a mesma norma jurídica se mostre interpretada e (ou) aplicada em termos opostos no acór­dão recorrido e no acórdão fundamento. Exige-se sempre, de acordo com doutrina pacífica, há muito estabelecida, a identidade do núcleo da situação de facto e da norma ou normas jurí­dicas em questão nos dois casos.

Ora, analisados os acórdãos em presença verifica-se que não ocorre a apontada iden­tidade.

Vejamos porquê.

No acórdão fundamento entendeu-se que a aprovação e consequente homologação de um plano de insolvência que envolva perdão ou redução de dívidas fiscais (capital e juros), não viola o princípio da legalidade e da igualdade constitucionalmente consagrados, por apenas estar em causa a der­roga­ção, pelas normas da insolvência, que estabelecem um regime especial, de regras gerais de cariz tri­butário, fruto de uma opção político-legislativa em maté­ria falimentar, que traçou um esquema de igualização de todos os credores, incluindo o pró­prio Estado, sem prejuízo da prevalência das garantias dos créditos das várias categorias de credores. Este entendimento foi também o acolhido, designadamente, nos acórdãos do STJ de 13/01/2009 (Pº 08A3763) e de 4/6/2009 464/07.1TBSJM-L.S1, encontrando-se claramente enunciado nos respectivos sumários, de que destacamos os seguintes pontos:

Pº 08A3763 [1]:

- O art. 194.º do CIRE consagra de forma mitigada a igualdade dos credores da empresa em estado de insolvência.

....

- Os arts. 30.º, n.º 2, e 36.º, n.º 3, da LGT, e art. 85.º do CPPT, têm o seu campo de aplica­ção na relação tributária, em sentido estrito, não encontrando apoio no contexto do pro­cesso especial como é o processo de insolvência, onde o Estado deve intervir também com o fito de contribuir para uma solução, diríamos, de olhos postos na insolvência, se essa for a vontade dos credores, numa perspectiva ampla de auto-regulação de que a desjudicialização do regime consagrado no CIRE é uma das essenciais características.

- Numa perspectiva de adequada ponderação de interesses, tendo em conta os fins que as leis fali­mentares visam, seria desproporcional que o processo de insolvência fosse colocado em pé de igualdade com uma mera execução fiscal, servindo apenas para a Fazenda Nacional actuar na mera posição de reclamante dos seus créditos, mais a mais privilegiados, sem atender à particular con­di­ção dos demais credores e da insolvência.

- Assim, porque cabe na competência da assembleia de credores ao abrigo do art. 196.º, n.º 1, als. a) e c) do CIRE, o perdão ou redução do valor dos créditos sobre a insolvência, quer quanto ao capi­tal, quer quanto aos juros, bem como a modificação dos prazos de ven­cimento ou as taxas de juro, sejam os créditos comuns, garantidos ou privilegiados, aprovado o plano que respeitou o quorum estabelecido no artigo 212°, e não tendo sido pedida a não homologação pela Fazenda Nacional, com fundamento no art. 216º, nº1, a) daquele diploma, homologado o plano de insolvência este vincula todos os credores, sejam comuns, sejam privilegiados.

- Esta interpretação da lei não viola o art. 103.º, nº 2, da Constituição da República;

Pº 464/07.1TBSJM-L.S1 [2]:

- Não se verifica impedimento na homologação judicial do plano de insolvência, apre­sentado pelo administrador da insolvência e aprovado pela assembleia de credores da empresa insolvente, se no mesmo plano estiver prevista redução ou perdão de dívidas do insolvente ao Estado, de natureza fiscal (capital ou juros) e, muito menos, que a sentença homologatória de tal plano padeça dos vícios de violação do princípio de legalidade, de igualdade e de inconstitucionalidade por derrogação de normas imperativas por vontade das partes.

- Não ocorre, nesta situação, qualquer derrogação de normas legais imperativas (fiscais ou outras) por vontade dos credores ou partes, como vem afirmado (até porque os particulares não têm poder para “derrogar” normas emanadas do poder legislativo) sendo que a der­rogação é operada pela pró­pria lei da insolvência que estabelece um regime especial e nessa medida afasta do seu âmbito de aplicação o regime normativo geral (lex specialis derrogat legi generali), fruto da opção político-legislativa que, tendo em conta a relevância do tecido empresarial na estrutura económica da socie­dade e, do mesmo passo, a necessidade de obviar, na medida do possível, ao prejuízo da insatisfação dos créditos concedidos à insolvente, cujo ressarcimento se frustra frequentemente nestas situações, gizou um esquema legal que contribuísse para atenuar a tensão dialéctica, reconhecidamente exis­tente, entre estas duas realidades contrapostas.

- Tal não significa que os créditos fiscais deixem de ser privilegiados ou que percam as suas garan­tias, pois o artº 47º do CIRE prevê justamente a existência de créditos privilegiados e garantidos e, em vários outros preceitos do mesmo Código, se faz referência a créditos desta natureza, em con­traposição com os créditos comuns, como se colhe, v.g., dos artºs 174º e 175º do aludido diploma legal.

- Não obstante o carácter privilegiado desses créditos, a própria lei afirma, no artº 192º do dito compêndio normativo, que o pagamento dos créditos sobre a insolvência... «pode ser regulado num plano de insolvência em derrogação das normas do presente código» e nem o disposto no nº 2 do citado preceito legal, obsta a que proceda ao perdão ou redução do valor dos créditos, por isso que estas são, justamente, duas das amplas providências legais com incidência no passivo que estão expressamente previstas, como se viu, na alínea a) do nº 1 do artº 196º do CIRE, não se criando qualquer regime de excepção para os créditos privilegiados ou garantidos ou cujos titulares sejam pessoas colectivas de direito público, designadamente o próprio Estado, salvo o que se encontra previsto no nº 2 do mesmo pre­ceito legal.

No acórdão recorrido, diversamente, considerou-se que por virtude das alterações intro­duzidas aos nºs 2 e 3 do artigo 30º da Lei Geral Tributária pelo artigo 125º da Lei do Orça­mento de Estado de 2011, um plano de insolvência que preveja a redução, extinção ou estabeleça uma moratória relati­vamente aos créditos fiscais sem obediência às condições previstas nas próprias leis fiscais não deve ser homologado. Isto porque o artigo 123º da Lei nº 55-A/2010, de 31-12 (Lei do Orçamento de Estado para 2011) veio acrescentar ao artigo 30º da LGT um nº 3, segundo o qual “O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial”. Este nº 2, por seu turno, determina que “O cré­dito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária”. E o artigo 125º da mencionada Lei n.º 55-A/2010, que é uma norma transitória, estabelece :“O disposto no n.º 3 do artigo 30.º da LGT é aplicável, designadamente aos pro­cessos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objecto de homologação, sem prejuízo da prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores previstos no Código do Trabalho sobre quaisquer outros cré­ditos”. Ora, estas normas entraram em vigor a 1/1/2011 (artº 187º da citada Lei), delas resultando, sem qualquer dúvida, como se afirma no acórdão recorrido, que “o princípio geral de que o cré­dito tribu­tário é indisponível, só podendo ser reduzido ou extinto com respeito pela igualdade e legalidade tributária, impõe-se no processo de insolvência, caindo por terra o argumento deste último processo estar regulado em lei especial, sem que tivesse sido feita qualquer ressalva para os créditos fiscais - ver o men­cionado artigo 30º, 3, da LGT. O legislador afastou, pois, por forma expressa, a interpretação de que a lei especial (CIRE) derroga a aplicação da lei geral (LGT), no caso em apreço. Depende do acordo do Estado, em conformidade com as normas próprias da LGT e CPPT, nomeadamente, a redução ou extinção dos seus créditos fiscais e/ou concessão de moratória, créditos que não podem ser afectados, contra sua vontade, pelo plano de insolvência”.

Decorre do exposto que as decisões em confronto não se fundaram em interpretações opostas de uma ou mais normas jurídicas aplicadas a idênticas situações de facto. Com efeito, a disposição legal determinante da decisão adoptada no acórdão recorrido foi o nº 3 do artº 30º da Lei Geral Tribu­tária, que no acórdão fundamento não se aplicou porque, aprovado ainda em 2010 o plano de insolvência aí em causa, foi entendido que tal era motivo suficiente para não julgar o caso à luz da lei nova (a posta em vigor pela Lei do OE de 2011 - seu artº 125º). A isto acresce que, relativamente à questão de direito atrás identificada, e na lógica sequência da aplicação da lei nova por que optou, o acórdão recorrido não teve que pronunciar-se sobre o bem ou mal fundado do entendimento expresso, quer no acórdão fundamento, quer nos dois citados arestos do STJ.

Não ocorre, consequentemente, a oposição de acórdãos justificativa da admissão da revista.

III. Decisão

Com os fundamentos expostos acorda-se em julgar findo o recurso pelo não conhe­ci­mento do seu objecto, nos termos dos artºs 726º e 700º, nº 1, h), do CPC.

Custas pela recorrente.

 Supremo Tribunal de Justiça, 23 de Novembro de 2011

Nuno Cameira (Relator)

Sousa Leite

Salreta Pereira

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[1] Relator: Fonseca Ramos
[2]Relator:ÁlvaroRodrigues