PROCESSO |
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DATA DO ACÓRDÃO | 11/15/2011 | ||
SECÇÃO | 6.ª SECÇÃO |
RE | |
MEIO PROCESSUAL | REVISTA NEGADA |
DECISÃO | NEGADA |
VOTAÇÃO | UNANIMIDADE |
RELATOR | NUNO CAMEIRA |
DESCRITORES | DANO CAUSADO POR COISAS OU ACTIVIDADES ACTIVIDADES PERIGOSAS PRESUNÇÃO DE CULPA ESCAVAÇÕES RETROESCAVADORA ESGOTO ÓNUS DA PROVA |
SUMÁRIO | I - Na definição do que seja uma actividade perigosa, para os efeitos previstos no art. 493.º, n.º 2, do CC, há inteiro acordo da doutrina e da jurisprudência a respeito de que se trata de um conceito relativamente indeterminado, carecido de preenchimento valorativo caso a caso, em função das circunstâncias concretamente provadas, quer quanto à actividade em si mesma considerada, quer quanto aos meios de que o agente se serviu para a pôr em prática. II - O preceito estabelece uma presunção de culpa para quem, no exercício duma actividade perigosa, causar danos a outrem, de tal modo que o lesante só fica isento de responsabilidade quando demonstre ter empregue todas as providências exigidas pelas circunstâncias aptas para evitar a produção desses danos. III - A actividade de escavação levada a cabo pela ré, mediante o recurso a uma máquina escavadora, para abrir uma vala destinada à introdução de esgotos, numa zona central da cidade de Lisboa, reveste-se, em concreto, da perigosidade tida em vista no n.º 2 do art. 493.º. IV - Desde logo, a abertura de uma vala, em si mesma, é actividade perigosa, pois cria condições propícias ao desmoronamento de terras e a quedas de consequências danosas imprevisíveis para pessoas e coisas; e este perigo potencia-se quando o meio utilizado consiste na utilização duma máquina escavadora, já que o manuseamento desta se reveste de evidente dificuldade, envolvendo limitações de vária ordem para quem a manobra quando inopinadamente surgem perigos que se torne necessário remover num curto lapso de tempo e numa área mais ou menos restrita (limitações essas decorrentes do peso e “envergadura” da máquina, da sua potência e reduzida flexibilidade, etc). V - Por outro lado, a máquina operava numa zona da cidade de Lisboa muito movimentada à superfície (intenso tráfego automóvel e de peões) e densamente “povoada” no seu subsolo por um complexo emaranhado de cabos pertencentes a entidades fornecedoras de serviços essenciais à população (telefone, gás, água, electricidade, etc), o que potenciava grandemente a perigosidade da tarefa, aumentando o risco da ocorrência de danos com relevantes implicações na vida das muitas famílias residentes naquela zona da capital do país e no trabalho das empresas ali instaladas (comércio, indústria e serviços), e obrigando, por isso, a especiais cautelas. |
DECISÃO TEXTO INTEGRAL | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I. Relatório PT Comunicações, SA, propôs uma acção ordinária contra AA, SA, Contacto - Sociedade de Construções, Ldª, e Cª de BB, SA, pedindo a condenação das rés a pagar-lhe: a) A quantia de 91.099.951$00 a título de prejuízos sofridos pela autora em Agosto de 1997; b) A quantia de 5.321.260$00, correspondente à inflação entretanto ocorrida até à citação e susceptível de correcção; c) E juros legais a contar da citação até integral pagamento sobre 91.099.951$00 (sujeita a correcção). Alegou que no dia 30/8/97 a 2ª ré, trabalhando numa obra pertencente à 1ª, quando procedia a trabalhos de escavação para abertura de uma vala para introdução dos esgotos para o Centro Comercial Colombo, cortou e tornou inutilizáveis cabos telefónicos. A 1ª e a 2ª rés transferiram para a 3ª a responsabilidade pelo pagamento dos danos provocados pelo referido sinistro. Todas as rés contestaram. A 1ª arguiu a sua ilegitimidade e a 3ª suscitou incidente de intervenção principal provocada da Cª de Seguros CC, SA, da Cª de Seguros DD, SA, da Cª de Seguros EE, SA, e da FF, SA, alegando que o contrato de seguro celebrado com a 1ª foi em regime de co-seguro. A autora replicou e deduziu incidente de intervenção principal provocada GG e Filhos, Ldª, e de HH, SA. Os incidentes de intervenção principal provocada foram admitidos - fls 166 - tendo as intervenientes, citadas, apresentado as suas contestações. No despacho saneador, além do mais, foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade invocada pela 1ª ré. Realizado o julgamento e estabelecidos os factos foi proferida sentença nos seguintes termos - fls 1353 e sgs: a) A ré Contacto e as intervenientes DD-BB, CC, EE e FF - estas solidariamente com aquela e na proporção estabelecida no contrato de seguro, que é, respectivamente, de 50% para a primeira, 20% para a segunda, 20% para a terceira e 10% para a quarta - foi condenada a pagar à autora a quantia a apurar em incidente de liquidação relativa aos materiais utilizados na reparação dos cabos de fibra óptica n° 601, 602, 603, 605, 608, 612 e 700 e do cabo de cobre nº4, de 2400 pares de capacidade, às horas de trabalho normais, de trabalho extraordinário, de trabalho nocturno e subsídios de refeição, pequeno-almoço e condução pagas aos trabalhadores utilizados na reparação dos referidos cabos, bem como aos lucros que a autora deixou de auferir com o corte destes, tudo com juros à taxa legal desde a citação da ré Contacto - 20.10.99 (fls 42); b) A Ré AA e as intervenientes HH, SA e GG, Ldª, foram absolvidas do peticionado. As rés DD-BB, CC-, Contacto, EE e FF apelaram, mas sem êxito, pois a Relação confirmou a sentença. Mantendo-se inconformadas, as rés DD - BB e CC- interpuseram recurso de revista e, alegando conjuntamente, defenderam a revogação do acórdão da 2ª instância por forma a serem absolvidas do pedido ou, no mínimo, a sua reformulação quanto à condenação em juros, sustentando que estes são devidos somente desde a data da decisão que fixou os montantes indemnizatórios. Formularam, em resumo, as seguintes conclusões úteis: 1ª) - O circunstancialismo de facto apurado, traduzido, em termos práticos, no corte de cabos do tráfego telefónico, não justifica, por si só, a qualificação como perigosa da actividade exercida pela retroescavadora ao serviço da 2ª ré; 2ª) Consequentemente, não havendo lugar à inversão do ónus da prova estabelecida pelo artº 493º, nº 2, do CC, impunha-se à autora que tivesse feito a prova da culpa do lesante, o que, por não ter sucedido, deveria ter levado à improcedência da acção; 3ª) O pedido de pagamento de juros desde a citação deverá, em qualquer caso, improceder, já que os autos evidenciam que só a conduta da autora impossibilitou, a terem existido, a determinação e qualificação dos alegados danos resultantes do corte do tráfego telefónico; 4ª) Portanto, a serem devidos, os juros devem ser contados a partir da data da decisão que fixar os montantes indemnizatórios e não, como se decidiu, desde a data da citação da co-ré Contacto; 5ª) O acórdão recorrido violou o disposto nos artºs 483º, 493º, nº 1 e 805º, nº 3, do CC. As restantes rés deram oportunamente a sua adesão a este recurso, nos termos do artº 683º, nº 4, do CPC. A autora contra alegou, defendendo a confirmação do julgado. Tudo visto, cumpre decidir. II. Fundamentação a) Matéria de Facto De entre os factos que a Relação definitivamente fixou interessa destacar os seguintes, considerando o objecto do recurso: 1) No dia 30/08/97, no decurso de trabalhos de escavação para abertura de uma vala para introdução de esgotos, nas obras envolventes ao Centro Comercial AA, em Lisboa, uma máquina escavadora cortou e tornou inutilizáveis cabos telefónicos da autora. 2) No decurso desses trabalhos foi efectuado o corte dos cabos da autora de fibra óptica n° 601, 602, 603, 605, 608, 612 e 700. 3) E foi parcialmente cortado um 1 cabo TPC de 2400 pares, ficando afectados 400 pares. 4) Os trabalhos referidos em 1) e o corte dos cabos referidos em 2) e 3) foram efectuados por uma máquina retroescavadora ao serviço da 2ª ré. 5) Os cabos referidos em 2) e 3) compõem a infra-estrutura de telecomunicações e estavam ligados à Central de Carnide. 6) À e da Central de Carnide da autora aflui e dimana enorme fluxo de tráfego telefónico sendo o subsolo circunvizinho um emaranhado de cabos telefónicos de grande capacidade. 7) O traçado em que estavam implantados os cabos referidos em 2) e 3) existe há pelo menos 40 anos. 8) A autora forneceu às 1ª e 2ª rés plantas do local e subsolo onde estavam implantados os seus traçados telefónicos, bem como da localização dos blocos de betão por onde aqueles passavam. 9) O tráfego telefónico que circulava pelos cabos nº601, 602, 603, 605, 608, 612 e 700 e pelo cabo de cobre nº4, de 2400 pares de capacidade, ficou interrompido por tempo não concretamente apurado. 10) No âmbito da execução deste contrato de empreitada, a 2ª ré procedeu à desactivação dos diversos cabos da EPAL, LTE, PT, GDL e Redes enterradas de Esgotos e Águas Pluviais, em conformidade com as plantas fornecidas pelas entidades competentes e com pleno respeito pelas instruções prescritas. 11) Na reparação dos cabos referidos na resposta aos artigos 3° e 4°, a autora utilizou materiais de natureza, quantidade e valor não concretamente apurados. 12) Na reparação aludida em 3) a autora ocupou trabalhadores em número e tempo não concretamente apurados e pagou a esses trabalhadores horas de trabalho normais, horas de trabalho extraordinário, horas de trabalho nocturno e subsídios de refeição, pequeno almoço e condução em montantes não concretamente apurados. 13) Desde o momento do corte dos cabos até ao momento em que os mesmos foram reparados, os clientes servidos pelos cabos cortados deixaram de fazer chamadas telefónicas e de as receber; as referidas chamadas proporcionariam a realização de um número não concretamente apurado de impulsos em valor unitário também não concretamente apurado. 14) Os cabos foram sendo reparados e colocados em serviço gradualmente. b) Matéria de Direito Nas duas primeiras conclusões da revista coloca-se questão relacionada com a interpretação e aplicação do artº 493º, nº 2, do Código Civil, mais precisamente com a definição do que seja uma actividade perigosa para os efeitos previstos nesta norma, que dispõe o seguinte: “Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”. Há inteiro acordo da doutrina e da jurisprudência a respeito de que estamos perante um conceito relativamente indeterminado, carecido de preenchimento valorativo caso a caso, em função das circunstâncias concretamente provadas, quer quanto à actividade em si mesma considerada, quer quanto aos meios de que o agente se serviu para a pôr em prática [1]. Que no caso presente existem danos e nexo causal entre eles e a conduta da segunda ré também é ponto assente, agora indiscutido. Existe acordo, de igual modo, quanto ao facto de o preceito em análise estabelecer uma presunção de culpa para quem, no exercício duma actividade perigosa, causar danos a outrem, de tal modo que o lesante só fica isento de responsabilidade quando demonstre ter empregue todas as providências exigidas pelas circunstâncias aptas para evitar a produção desses danos. E também é certo, bem vistas as coisas, que nesta fase do processo as recorrentes admitem não ter feito a demonstração a que se aludiu, referente à utilização das providências necessárias para obstar à verificação dos prejuízos. Deste modo, a pretensão que formulam no sentido de serem absolvidas do pedido assenta tão somente na tese de que, por não ser perigosa a actividade levada a cabo pela 2ª ré, a presunção do artº 493º, nº2 não tem aplicação, valendo, antes, a regra geral estabelecida no nº 1 do artº 487º, segundo a qual é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão. Entendemos, contudo, que não lhes assiste razão, pois deduz-se dos factos acima destacados, analisados no seu conjunto, que a actividade levada a cabo pela 2ª ré - escavação, mediante o recurso a uma máquina escavadora, para abrir uma vala destinada à introdução de esgotos - se revestiu, em concreto, da perigosidade tida em vista no nº 2 do artº 493º. Desde logo, a abertura de uma vala, em si mesma, é actividade perigosa, pois cria condições propícias ao desmoronamento de terras e a quedas de consequências danosas imprevisíveis para pessoas e coisas; e este perigo potencia-se quando, como sucedeu no caso ajuizado, o meio utilizado consistiu na utilização duma máquina escavadora, já que o manuseamento desta se reveste de evidente dificuldade, envolvendo limitações de vária ordem para quem a manobra quando inopinadamente surgem perigos que se torne necessário remover num curto lapso de tempo e numa área mais ou menos restrita (limitações essas decorrentes do peso e “envergadura” da máquina, da sua potência e reduzida flexibilidade, etc). Isto, por um lado. Por outro, não pode deixar de ter-se presente que a máquina se encontrava a operar numa zona da cidade de Lisboa muito movimentada à superfície (intenso tráfego automóvel e de peões) e densamente “povoada” no seu subsolo por um complexo emaranhado de cabos pertencentes a entidades fornecedoras de serviços essenciais à população (telefone, gás, água, electricidade, etc); ora, sem dúvida que tudo isto potenciava grandemente a perigosidade da tarefa, aumentando o risco da ocorrência de danos com relevantes implicações na vida das muitas famílias residentes naquela zona da capital do país e no trabalho das empresas ali instaladas (comércio, indústria e serviços), e obrigando, por isso, a especiais cautelas. Impõe-se, pois, a conclusão de que a actividade em concreto desenvolvida pela segunda ré deve ser qualificada como perigosa; cabia-lhe, assim, provar em juízo que adoptou todas as providências exigidas pelas circunstâncias apontadas para evitar os danos ocorridos; tal prova, no entanto, não foi feita, legitimando-se até a conclusão de que a recorrida poderia ter evitado os danos ocasionados, uma vez que a autora lhe forneceu oportunamente as plantas do local e subsolo onde estavam implantados os seus traçados telefónicos, bem como da localização dos blocos de betão por onde aqueles passavam (facto 8). Nas conclusões seguintes as rés sustentam que, a serem devidos, os juros devem ser contados a partir da decisão que fixar os montantes indemnizatórios, e não, como se decidiu, desde a data da citação da ré Contacto. Mas também neste ponto o recurso é infundado. Com efeito, a circunstância da indemnização arbitrada - a sua liquidação - ter sido relegada para ulterior incidente não é impeditiva da condenação em juros de mora a contar da data da citação, como manda a 2ª parte do artº 805º, nº 3, do Código Civil, visto que a autora formulou um pedido líquido e reclamou juros a contar da citação, sendo certo que o devedor fica constituído em mora (e portanto na obrigação da reparar os danos causados ao credor - artº 804º, nº 1) depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir (nº 1 do artº 805º). Nada a objectar, consequentemente, ao decidido pelas instâncias, improcedendo todas as conclusões da minuta. III. Decisão Nega-se a revista. Custas pelas recorrentes. Lisboa, 15 de Outubro de 2011 [1] Cfr. neste sentido, a título de exemplo, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português II, Tomo 3, pág. 584 e sgs; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª Edição reelaborada, pág. 588; e Pires de Lima/Antunes Varela, CC Anotado, I, 3ª edição, pág. 469. |