ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
5486/09.5TVLSB.L1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/15/2011
SECÇÃO 6.ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA NEGADA
DECISÃO NEGADA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR NUNO CAMEIRA

DESCRITORES DANO CAUSADO POR COISAS OU ACTIVIDADES
ACTIVIDADES PERIGOSAS
PRESUNÇÃO DE CULPA
ESCAVAÇÕES
RETROESCAVADORA
ESGOTO
ÓNUS DA PROVA

SUMÁRIO I - Na definição do que seja uma actividade perigosa, para os efeitos previstos no art. 493.º, n.º 2, do CC, há inteiro acordo da doutrina e da jurisprudência a respeito de que se trata de um conceito relativamente indeterminado, carecido de preenchimento valorativo caso a caso, em função das circunstâncias concretamente provadas, quer quanto à actividade em si mesma considerada, quer quanto aos meios de que o agente se serviu para a pôr em prática.
II - O preceito estabelece uma presunção de culpa para quem, no exercício duma actividade perigosa, causar danos a outrem, de tal modo que o lesante só fica isento de responsabilidade quando demonstre ter empregue todas as providências exigidas pelas circunstâncias aptas para evitar a produção desses danos.
III - A actividade de escavação levada a cabo pela ré, mediante o recurso a uma máquina escavadora, para abrir uma vala destinada à introdução de esgotos, numa zona central da cidade de Lisboa, reveste-se, em concreto, da perigosidade tida em vista no n.º 2 do art. 493.º.
IV - Desde logo, a abertura de uma vala, em si mesma, é actividade perigosa, pois cria condições propícias ao desmoronamento de terras e a quedas de consequências danosas imprevisíveis para pessoas e coisas; e este perigo potencia-se quando o meio utilizado consiste na utilização duma máquina escavadora, já que o manuseamento desta se reveste de evidente dificuldade, envolvendo limitações de vária ordem para quem a manobra quando inopinadamente surgem perigos que se torne necessário remover num curto lapso de tempo e numa área mais ou menos restrita (limitações essas decorrentes do peso e “envergadura” da máquina, da sua potência e reduzida flexibilidade, etc).
V - Por outro lado, a máquina operava numa zona da cidade de Lisboa muito movimentada à superfície (intenso tráfego automóvel e de peões) e densamente “povoada” no seu subsolo por um complexo emaranhado de cabos pertencentes a entidades fornecedoras de serviços essenciais à população (telefone, gás, água, electricidade, etc), o que potenciava grandemente a perigosidade da tarefa, aumentando o risco da ocorrência de danos com relevantes implicações na vida das muitas famílias residentes naquela zona da capital do país e no trabalho das empresas ali instaladas (comércio, indústria e serviços), e obrigando, por isso, a especiais cautelas.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

PT Comunicações, SA, propôs uma acção ordinária contra AA, SA, Contacto - Sociedade de Construções, Ldª, e Cª de BB, SA, pedindo a condenação das rés a pagar-lhe:

a) A quantia de 91.099.951$00 a título de prejuízos sofridos pela autora em Agosto de 1997; b) A quantia de 5.321.260$00, correspondente à inflação entretanto ocorrida até à citação e susceptível de correcção; c) E juros legais a contar da citação até integral pagamento sobre 91.099.951$00 (sujeita a correcção).

Alegou que no dia 30/8/97 a 2ª ré, trabalhando numa obra pertencente à 1ª, quando procedia a trabalhos de escavação para abertura de uma vala para introdução dos esgotos para o Centro Comercial Colombo, cortou e tornou inutilizáveis cabos telefónicos.

A 1ª e a 2ª rés transferiram para a 3ª a responsabilidade pelo pagamento dos danos provocados pelo referido sinistro.

Todas as rés contestaram.

A 1ª arguiu a sua ilegitimidade e a 3ª suscitou incidente de intervenção principal provocada da Cª de Seguros CC, SA, da Cª de Seguros DD, SA, da Cª de Seguros EE, SA, e da FF, SA, alegando que o contrato de seguro celebrado com a 1ª foi em regime de co-seguro.

A autora replicou e deduziu incidente de intervenção principal provocada GG e Filhos, Ldª, e de HH, SA.

Os incidentes de intervenção principal provocada foram admitidos - fls 166 - tendo as intervenientes, citadas, apresentado as suas contestações.

No despacho saneador, além do mais, foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade invocada pela 1ª ré.

Realizado o julgamento e estabelecidos os factos foi proferida sentença nos seguintes termos - fls 1353 e sgs:

a) A ré Contacto e as intervenientes DD-BB, CC, EE e FF - estas solidariamente com aquela e na proporção estabelecida no contrato de seguro, que é, respectivamente, de 50% para a primeira, 20% para a segunda, 20% para a terceira e 10% para a quarta - foi condenada a pagar à autora a quantia a apurar em incidente de liquidação relativa aos materiais utilizados na reparação dos cabos de fibra óptica n° 601, 602, 603, 605, 608, 612 e 700 e do cabo de cobre nº4, de 2400 pares de capacidade, às horas de trabalho normais, de trabalho extraordinário, de trabalho nocturno e subsídios de refeição, pequeno-almoço e condução pagas aos trabalhadores utilizados na reparação dos referidos cabos, bem como aos lucros que a autora deixou de auferir com o corte destes, tudo com juros à taxa legal desde a citação da ré Contacto - 20.10.99 (fls 42);

b) A Ré AA e as intervenientes HH, SA e GG, Ldª, foram absolvidas do peticionado.

As rés DD-BB, CC-, Contacto, EE e FF apelaram, mas sem êxito, pois a Relação confirmou a sentença.

Mantendo-se inconformadas, as rés DD - BB e CC- interpuseram recurso de revista e, alegando conjuntamente, defenderam a revogação do acórdão da 2ª instância por forma a serem absolvidas do pedido ou, no mínimo, a sua reformulação quanto à condenação em juros, sustentando que estes são devidos somente desde a data da decisão que fixou os montantes indemnizatórios.

Formularam, em resumo, as seguintes conclusões úteis:

1ª) - O circunstancialismo de facto apurado, traduzido, em termos práticos, no corte de cabos do tráfego telefónico, não justifica, por si só, a qualificação como perigosa da actividade exercida pela retroescavadora ao serviço da 2ª ré;

2ª) Consequentemente, não havendo lugar à inversão do ónus da prova estabelecida pelo artº 493º, nº 2, do CC, impunha-se à autora que tivesse feito a prova da culpa do lesante, o que, por não ter sucedido, deveria ter levado à improcedência da acção;

3ª) O pedido de pagamento de juros desde a citação deverá, em qualquer caso, improceder, já que os autos evidenciam que só a conduta da autora impossibilitou, a terem existido, a determinação e qualificação dos alegados danos resultantes do corte do tráfego telefónico;

4ª) Portanto, a serem devidos, os juros devem ser contados a partir da data da decisão que fixar os montantes indemnizatórios e não, como se decidiu, desde a data da citação da co-ré Contacto;

5ª) O acórdão recorrido violou o disposto nos artºs 483º, 493º, nº 1 e 805º, nº 3, do CC.  

As restantes rés deram oportunamente a sua adesão a este recurso, nos termos do artº 683º, nº 4, do CPC.

A autora contra alegou, defendendo a confirmação do julgado.

Tudo visto, cumpre decidir.

II. Fundamentação

a) Matéria de Facto

De entre os factos que a Relação definitivamente fixou interessa destacar os seguintes, considerando o objecto do recurso:

1) No dia 30/08/97, no decurso de trabalhos de escavação para abertura de uma vala para introdução de esgotos, nas obras envolventes ao Centro Comercial AA, em Lisboa, uma máquina escavadora cortou e tornou inutilizáveis cabos telefónicos da autora.

2) No decurso desses trabalhos foi efectuado o corte dos cabos da autora de fibra óptica n° 601, 602, 603, 605, 608, 612 e 700.

3) E foi parcialmente cortado um 1 cabo TPC de 2400 pares, ficando afectados 400 pares.

4) Os trabalhos referidos em 1) e o corte dos cabos referidos em 2) e 3) foram efectuados por uma máquina retroescavadora ao serviço da 2ª ré.

5) Os cabos referidos em 2) e 3) compõem a infra-estrutura de telecomunicações e estavam ligados à Central de Carnide.

6) À e da Central de Carnide da autora aflui e dimana enorme fluxo de tráfego telefónico sendo o subsolo circunvizinho um emaranhado de cabos telefónicos de grande capacidade.

7) O traçado em que estavam implantados os cabos referidos em 2) e 3) existe há pelo menos 40 anos.

8) A autora forneceu às 1ª e 2ª rés plantas do local e subsolo onde estavam implantados os seus traçados telefónicos, bem como da localização dos blocos de betão por onde aqueles passavam.

9) O tráfego telefónico que circulava pelos cabos nº601, 602, 603, 605, 608, 612 e 700 e pelo cabo de cobre nº4, de 2400 pares de capacidade, ficou interrompido por tempo não concretamente apurado.

10) No âmbito da execução deste contrato de empreitada, a 2ª ré procedeu à desactivação dos diversos cabos da EPAL, LTE, PT, GDL e Redes enterradas de Esgotos e Águas Pluviais, em conformidade com as plantas fornecidas pelas entidades competentes e com pleno respeito pelas instruções prescritas.

11) Na reparação dos cabos referidos na resposta aos artigos 3° e 4°, a autora utilizou materiais de natureza, quantidade e valor não concretamente apurados.

12) Na reparação aludida em 3) a autora ocupou trabalhadores em número e tempo não concretamente apurados e pagou a esses trabalhadores horas de trabalho normais, horas de trabalho extraordinário, horas de trabalho nocturno e subsídios de refeição, pequeno almoço e condução em montantes não concretamente apurados.

13) Desde o momento do corte dos cabos até ao momento em que os mesmos foram reparados, os clientes servidos pelos cabos cortados deixaram de fazer chamadas telefónicas e de as receber; as referidas chamadas proporcionariam a realização de um número não concretamente apurado de impulsos em valor unitário também não concretamente apurado.

14) Os cabos foram sendo reparados e colocados em serviço gradualmente.

b) Matéria de Direito

Nas duas primeiras conclusões da revista coloca-se questão relacionada com a inter­pretação e aplicação do artº 493º, nº 2, do Código Civil, mais precisamente com a definição do que seja uma actividade perigosa para os efeitos previstos nesta norma, que dispõe o seguinte:

“Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”.

Há inteiro acordo da doutrina e da jurisprudência a respeito de que estamos perante um  conceito relativamente indeterminado, carecido de preenchimento valorativo caso a caso, em função das circunstâncias concretamente provadas, quer quanto à actividade em si mesma considerada, quer quanto aos meios de que o agente se serviu para a pôr em prática [1]. Que no caso presente existem danos e nexo causal entre eles e a conduta da segunda ré também é ponto assente, agora indiscutido. Existe acordo, de igual modo, quanto ao facto de o preceito em análise estabelecer uma presunção de culpa para quem, no exercício duma actividade perigosa, causar danos a outrem, de tal modo que o lesante só fica isento de responsabilidade quando demonstre ter empregue todas as providências exigidas pelas circunstâncias aptas para evitar a produção desses danos. E também é certo, bem vistas as coisas, que nesta fase do processo as recorrentes admitem não ter feito a demonstração a que se aludiu, referente à utilização das providências necessárias para obstar à verificação dos prejuízos. Deste modo, a pretensão que formulam no sentido de serem absolvidas do pedido assenta tão somente na tese de que, por não ser perigosa a actividade levada a cabo pela 2ª ré, a presunção do artº 493º, nº2  não tem aplicação, valendo, antes, a regra geral estabelecida no nº 1 do artº 487º, segundo a qual é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão.

Entendemos, contudo, que não lhes assiste razão, pois deduz-se dos factos acima destacados, analisados no seu conjunto, que a actividade levada a cabo pela 2ª ré - escavação, mediante o recurso a uma máquina escavadora, para abrir uma vala destinada à introdução de esgotos - se revestiu, em concreto, da perigosidade tida em vista no nº 2 do artº 493º. Desde logo, a abertura de uma vala, em si mesma, é actividade perigosa, pois cria condições propícias ao desmoronamento de terras e a quedas de consequências danosas imprevisíveis para pessoas e coisas; e este perigo potencia-se quando, como sucedeu no caso ajuizado, o meio utilizado consistiu na utilização duma máquina escavadora, já que o manuseamento desta se reveste de evidente dificuldade, envolvendo limitações de vária ordem para quem a manobra quando inopinadamente surgem perigos que se torne necessário remover num curto lapso de tempo e numa área mais ou menos restrita  (limi­tações essas decorrentes do peso e “envergadura” da máquina, da sua potência e reduzida flexibilidade, etc). Isto, por um lado. Por outro, não pode deixar de ter-se presente que a máquina se encontrava a operar numa zona da cidade de Lisboa muito movimentada à superfície (intenso tráfego automóvel e de peões) e densamente “povoada” no seu subsolo por um complexo emaranhado de cabos pertencentes a entidades fornecedoras de serviços essenciais à população (telefone, gás, água, electricidade, etc); ora, sem dúvida que tudo isto potenciava grandemente a perigosidade da tarefa, aumentando o risco da ocorrência de danos com relevantes implicações na vida das muitas famílias residentes naquela zona da capital do país e no trabalho das empresas ali instaladas (comércio, indústria e serviços), e obrigando, por isso, a especiais cautelas. 

Impõe-se, pois, a conclusão de que a actividade em concreto desenvolvida pela segunda ré deve ser qualificada como perigosa; cabia-lhe, assim, provar em juízo que adoptou todas as providências exigidas pelas circunstâncias apontadas para evitar os danos ocorridos; tal prova, no entanto, não foi feita, legitimando-se até a conclusão de que a recorrida poderia ter evitado os danos ocasionados, uma vez que a autora lhe forneceu oportunamente as plantas do local e subsolo onde estavam implantados os seus traçados telefónicos, bem como da localização dos blocos de betão por onde aqueles passavam (facto 8).

Nas conclusões seguintes as rés sustentam que, a serem devidos, os juros devem ser contados a partir da decisão que fixar os montantes indemnizatórios, e não, como se decidiu, desde a data da citação da ré Contacto.

Mas também neste ponto o recurso é infundado.

Com efeito, a circunstância da indemnização arbitrada - a sua liquidação - ter sido relegada para ulterior incidente não é impeditiva da condenação em juros de mora a contar da data da citação, como manda a 2ª parte do artº 805º, nº 3, do Código Civil, visto que a autora formulou um pedido líquido e reclamou juros a contar da citação, sendo certo que o devedor fica constituído em mora (e portanto na obrigação da reparar os danos causados ao credor - artº 804º, nº 1) depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir (nº 1 do artº 805º).

Nada a objectar, consequentemente, ao decidido pelas instâncias, improcedendo todas as conclusões da minuta.

III. Decisão

Nega-se a revista.

Custas pelas recorrentes. 

Lisboa, 15 de Outubro de 2011      
Nuno Cameira (Relator)
Sousa Leite
Salreta Pereira



[1] Cfr. neste sentido, a título de exemplo, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português II, Tomo 3, pág. 584 e sgs; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª Edição reelaborada, pág.  588; e Pires de Lima/Antunes Varela, CC Anotado, I, 3ª edição, pág. 469.