ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
92/06.9TBMLG.G1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/23/2011
SECÇÃO 6ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR FERNANDES DO VALE

DESCRITORES SUCESSÕES
COLAÇÃO
SONEGAÇÃO DE BENS

SUMÁRIO

I – Salvaguardado o preceituado nos arts. 2110º, nº2 e 2113º, nº/s 1 e 3, ambos do CC, está sujeito a colação tudo quanto o falecido tiver despendido gratuitamente em proveito dos descendentes.

II – Não consubstancia sonegação de bens a ocultação dolosa, por parte do donatário, de doações feitas em vida pelo doador.



DECISÃO TEXTO INTEGRAL

                       Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça

1AA e marido, BB, instauraram, em 04.05.06, na comarca de Melgaço, acção ordinária contra CC e mulher, DD, pedindo se declare que, na data da morte do inventariado, EE, fazia parte da sua herança a quantia de € 128 206,05, que desse dinheiro se encontra na posse dos RR. a quantia de € 123 218,08 e, bem assim, que os RR. sonegaram a existência desses valores, devendo perder em favor deles, AA., o direito que, eventualmente, lhes assistia, nos termos do art. 2096º do CC e, ainda, a condenação dos RR. no pagamento daquela quantia de € 123 218,08, acrescida de juros legais até efectivo e integral pagamento.

       Fundamentando a respectiva pretensão, alegaram, em resumo e essência, que, no âmbito do inventário judicial por óbito do pai da A.-mulher e do R.-marido (irmãos) e após reclamação daquela contra a relação de bens apresentada por este, com fundamento na falta de relacionação de bens, foram as partes remetidas para os meios comuns, para, aí, ser apurada a pertinência dos factos que estiveram na base da reclamação, sendo certo que a quantia indicada fazia parte da herança do inventariado.

       Contestaram os RR., pugnando pela improcedência da acção e mantendo, em resumo, a defesa já apresentada no âmbito do inventário, no sentido de que, na data da sua morte, a herança do inventariado era constituída apenas pelos bens oportunamente relacionados e partilhados.

       Foi proferido despacho saneador tabelar, com subsequente e irreclamada enunciação da matéria de facto tida por assente e organização da pertinente base instrutória (b. i.).

       Prosseguindo os autos a sua tramitação, veio, a final, a ser proferida (em 28.06.07) sentença que, julgando, parcialmente, procedente a acção, declarou que da herança de EE fazia parte, na data da sua morte, a quantia de € 50 000,00, mais se declarando que esta quantia foi sonegada pelo R., CC, que ocultou dolosamente a sua existência, por isso se condenando este R. a entregar à A., AA, a quantia indicada, acrescida de juros de mora contados desde 13.08.00, às taxas legais e até integral pagamento. No mais, a acção foi julgada improcedente, com correspondente absolvição dos RR. do pedido.

       Inconformados, apelaram os RR. e os AA. (estes, subordinadamente), tendo, por acórdão de 13.03.08, da Relação de Guimarães, sido julgado procedente o recurso principal, em consequência do que foi a acção julgada improcedente, com a inerente absolvição dos RR. do pedido.

       Interpuseram, então, os AA. recurso de revista para este Supremo, o qual, por acórdão de 30.09.08 e no provimento do recurso, ordenou a remessa dos autos ao tribunal recorrido, para ampliação da matéria de facto, nos termos do disposto no art. 729º, nº3 do CPC, devendo introduzir-se na b. i. a matéria factual alegada no art. 31º da p. i. (no que toca à doação das importâncias monetárias).

       O Tribunal da Relação de Guimarães anulou, então, a sentença, ordenando a repetição do julgamento, nos termos do disposto no art. 712º, nº4 do CPC, com vista à decretada ampliação da matéria de facto.

       Aditada, em cumprimento do ordenado, a b. i. – resultando a redacção definitiva do aditado art. 19º do deferimento de correspondente reclamação dos AA. –, procedeu-se, oportunamente, a novo julgamento restrito ao aditado art. da b. i., porquanto os demais e respectivas respostas se mantiveram incólumes.

       Da resposta dada àquele art. reclamaram, em vão, os RR., uma vez que a respectiva pretensão foi indeferida, nos termos constantes do douto despacho de fls. 624/625.

       Foi, então, proferida (em 18.02.10) sentença por via da qual, e na parcial procedência da acção, foi declarado que da herança de EE fazia parte, na data da sua morte, a quantia de € 74 061,52, do mais peticionado se absolvendo os RR.

       De novo inconformados, apelaram AA. e RR., vindo a Relação de Guimarães, por acórdão de 03.05.11, a:

----- Julgar totalmente improcedente a apelação dos RR.; e

----- Julgar parcialmente procedente a apelação dos AA., “decidindo-se, para além do que se acha determinado na sentença da 1ª instância, que o R. CC sonegou a importância de € 74 061,52 da referida herança, de que perdeu o direito e terá de restituir à herança de EE, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação, improcedendo o mais peticionado”.

       Ainda irresignados, trazem os RR. a presente revista, visando a revogação do acórdão impugnado, conforme alegações culminadas com a formulação das seguintes e relevantes conclusões:

                                                  /

1- Foram os recorrentes que entregaram aos recorridos, logo após o falecimento do EE, a quantia de 5.000€, que tinham em mão do legado;

2- Assim sendo, à indicada quantia de 74.061,52€ que foi considerada que o EE transmitiu ao recorrente CC, deve subtrair-se a referida quantia de 5.000€, sob pena de haver benefício indevido e sem causa dos recorridos;

3- Como vem provado no ponto 18 da base instrutória, o EE entregava à recorrente EE a quantia mensal de 1.000€ para cuidar deste;

Tratou-se do pagamento dum serviço, pelo que não pode considerar-se esta quantia como uma doação;

4- Deste modo, é inquestionável que este pagamento foi feito através dos levantamentos e das transferências referidas nas alíneas J), K) e L) dos factos assentes; como consta da matéria factual provada, constante dos números 9 e 10 da base instrutória, o EE apenas recebia uma pensão de 91€ por mês, que gastava nas suas despesas;

5- Assim, a quantia de 1000€ mensais durante 24 meses ascende ao montante de 24.000€, que representou esta despesa para o EE, que foi paga com o dinheiro indicado nas alíneas J), k) e L) dos factos assentes, pois este não tinha outro dinheiro para a pagar;

6- Deste modo, à indicada quantia de 74.061,52€ terão de ser subtraídas as acima indicadas quantias de 5.000€ e 24.000€, pelos fundamentos, porquanto não são e podem ser consideradas transmissões gratuitas do EE para os recorrentes;

Assim sendo, restará apenas, como transmitida gratuitamente, aos recorrentes, o que não se concede, a quantia de 45.061,52€;

7- Como referiram no artigo 30° da sua contestação, os recorrentes pagaram o funeral do EE, que custou a quantia de 1.500€;

8- Tratou-se duma despesa da herança do EE que os recorrentes pagaram com o dinheiro mencionado nas alíneas J), K) e L) dos factos assentes e que constava das condições impostas no testamento pelo EE, como consta da matéria provada;

9- Assim, à quantia sobrante, atrás alegada, de 45.061,52€, ainda há que subtrair esta quantia de 1.500€, pelo que, tendo em conta o decidido pela instância inferior, terá sido transmitido gratuitamente aos recorrentes a quantia de 43. 561, 52€;

10- Como também os recorrentes alegaram nos artigos 25°, 31° e 31° da sua contestação o EE procedeu aos levantamentos indicados na alínea J) dos factos assentes e utilizou esse dinheiro como bem entendeu, fazendo, concretamente, liberalidades aos seus netos;

Esta factualidade foi alegada, mas não foi apurada, pelo que, em relação às quantias indicadas na alínea J) dos factos assentes, não se pode considerar que todos esses valores foram entregues pelo EE aos recorrentes;

11- É temerário e injusto, no absoluto silêncio das provas, considerar que todos os valores indicados nessa alínea J) foram dadas aos recorrentes pelo EE, pelo que esta factualidade foi alegada e devia ter sido objecto de prova;

12- Na verdade, no máximo, apenas se poderá considerar que, apenas foi transmitido gratuitamente pelo EE para o recorrente CC a quantia de 43 561,52€, mas não se pode considerar que existe sonegação desta quantia ou de quaisquer outras quantias, por parte do recorrente CC;

13- De acordo com o decidido nas instâncias inferiores, a quantia em causa foi transmitida gratuitamente pelo EE ao recorrente CC em vida daquele, por decisão sua e com a sua intervenção;

14- À data da sua morte, não existia, no acervo hereditário do EE, a quantia em causa ou outra, pois já foram transmitidas gratuitamente em vida, pelo seu proprietário, pelo que, de modo algum, podemos considerar que estamos perante uma sonegação de bens à herança;

15-       O recorrente CC nem sequer tinha necessidade de ocultar esta quantia em dinheiro, porquanto, como consta da matéria factual da alínea D) dos factos assentes, o EE outorgou testamento pelo que "legou à A. a quantia de 1.000.000$00 e aos RR. o restante dinheiro que possui em quaisquer instituições bancárias, com o encargo de tomar conta dele, testador, e ainda com o encargo de pagar todas as despesas  com o seu funeral";

16- Estamos perante a total ausência de sonegação, como resulta da análise do artigo 2096° do Código Civil e da jurisprudência dominante e, como também, foi este o entendimento do S. T.J. no douto acórdão, datado de 30/09/2008, proferido nestes autos, ao referir que:

"Não se poderá considerar, em principio, que os RR. ocultaram esse dinheiro à herança, visto que as importâncias foram levantadas em vida do EE e com a sua intervenção";

17- No presente caso, ainda que se admita que o EE transmitiu gratuitamente ao R. CC alguma quantia em dinheiro, esse facto demonstra que o recorrente CC recebeu legitimamente esse dinheiro do seu proprietário, que lho deu voluntariamente e, em vida deste, pelo que, à data da sua morte, já não existia tal bem no seu património;

18- Também não deverão os recorrentes ser condenados a pagar juros de mora, à taxa legal, sobre a quantia de 74.061,52 €, ou sobre qualquer outra quantia;

19- A existir a obrigação de pagamento de juros moratórios, à taxa legal, sobre a quantia que vier a ser considerada efectivamente transmitida, o início da sua quantificação terá de coincidir com o trânsito em julgado da decisão a proferir nestes autos;

20- O douto acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 2031º, 2032º, 2068º, 2096º e 2097º, todos do Código Civil.

       Deverá o presente recurso de revista merecer provimento nos termos das conclusões formuladas, revogando-se, em consequência, o douto acórdão recorrido.

       Inexistem contra-alegações, nos autos.

       Corridos os vistos e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.

                                                   *

2 – A Relação teve por provados os seguintes factos:

                                                   /

1 – Correu termos, neste Tribunal, sob o nº 121/2000, inventário judicial para partilha da herança aberta por óbito de FF e marido, EE, tendo, no mesmo, exercido funções de cabeça de casal o réu CC (A);

2 – A A., para além de outras reclamações sobre a relação de bens apresentada, reclamou a existência de, pelo menos, Esc. 15 613 653$00 (€ 77 880,57), como pertencentes ao inventariado, à data da sua morte (B);

3 – À data da morte de FF, a A., o R. e o pai de ambos (EE) partilharam e distribuíram entre si dinheiro pertencente ao extinto casal, tendo cabido a cada um dos filhos a quantia de Esc. 3 903 413$00 (€ 19 470,14), para pagamento da qual EE preencheu, assinou e entregou dois cheques, entregando um deles a cada um dos filhos (C);

4 – Por testamento lavrado no Cartório Notarial de Melgaço, em 30.09.98, EE legou à A. a quantia de Esc. 1 000 000$00 e aos RR. “o restante dinheiro que possui em quaisquer instituições bancárias, com o encargo de tomar conta dele, testador, e ainda com o encargo de pagar todas as despesas com o seu funeral” (D);

5 – Aquando da elaboração da relação de bens relativamente aos bens deixados por EE, no que tange ao dinheiro, o R. apenas relacionou o legado de Esc. 1 000 000$00 para a A., não mencionando a existência de qualquer outro dinheiro deixado por aquele (E);

6 – Após reclamação da A., o R. informou que “o inventariado não deixou, à data da sua morte, quaisquer quantias em dinheiro ao cabeça de casal”, mencionando, ainda, que o dinheiro que existia nas instituições bancárias e na “Companhia de Seguros Fidelidade”, à data da morte da inventariada, foi partilhado, após o falecimento desta, pelo inventariado, pelo cabeça de casal e pela A., tendo esta recebido a parte correspondente ao seu quinhão hereditário, pelo que não pode agora novamente peticioná-lo (F);

7 – Por despacho proferido no processo de inventário acima referido, relativamente ao dinheiro que a A. alegava existir no espólio do inventariado, à data da sua morte, depositado em instituições bancárias, o M. mo Juiz remeteu os interessados para os meios comuns, atendendo à “vaguidade da prova até agora produzida e a complexidade da prova necessária” (G);

8 – Nesse mesmo despacho, foi considerado provado que, em Outubro de 1998, o inventariado transferiu para o R. a titularidade da apólice nº 12/407.477, da “Companhia de Seguros Fidelidade”, no valor de € 29 995,21, a qual, em 28.06.02, foi anulada por resgate pelo R., recebendo uma indemnização líquida de € 38 354,33, ordenando a sua inclusão na relação de bens (H);

9 – De tal despacho interpuseram recurso de agravo tanto a A. como o R. e, por acórdão da Relação de Guimarães, transitado em julgado, foi julgado improcedente o recurso da A. e procedente o do R., na parte em que o referido despacho mandara relacionar o montante correspondente à apólice, pelo que A. e R. foram remetidos para os meios comuns, com vista a averiguar-se se existia ou não algum dinheiro no espólio do inventariado à data da sua morte e qual o seu montante (I);

10 – Da conta nº ..., titulada por EE e FF, na agência de Melgaço da Caixa Geral de Depósitos, levantou EE: em 26.08.98, Esc. 1 000 000$00 (€ 4 987,97); em 03.09.98, Esc. 1 173 716$50 (€ 5 854,47); em 08.09.98, Esc. 1 682 606$70 (€ 8 392,80); em 15.10.98, Esc. 1 771 464$20 (€ 8 836,02); em 15.10.98, Esc. 950 000$00 (€ 4 738,58); em 15.10.98, Esc. 1 050 894$80 (€ 5 241,83) (J);

11 – Dessa mesma conta levantou o R.: em 21.10.98, Esc. 1 000 000$00 (€ 4 987,97); em 17.11.98, Esc. 547 290$80 (€ 2 729,87); em 21.12.98, Esc. 420 000$00 (€ 2 094,95); em 21.12.98, Esc. 1 402 045$50 (€ 6 993,37); em 28.12.98, Esc. 2 000 000$00 (€ 9 975,95); em 03.02.99, Esc. 500 000$00 (€ 2 493,98) (K);

12 – Da conta nº ..., titulada por EE e FF, na agência de Melgaço da Caixa Geral de Depósitos, foram levantados: em 15.10.98, por EE, Esc. 250 000$00 (€ 1 246,99); em 27.11.98, pela R. DD, Esc. 200 000$00 (€ 997,59); em 08.03.99, pelo R. CC, Esc. 900 000$00 (€ 4 489,18) (L);

13 – Da conta nº..., titulada por EE e FF, na agência de Melgaço da Caixa Geral de Depósitos, o R. CC levantou, em 17.08.00, a quantia de Esc. 14 044$00 (€ 70,05) (M);

14 – O R. CC era mediador da “Companhia de Seguros Fidelidade” (N);

15 – Aquando da partilha que foi feita entre a A., o R. e o seu pai (EE) do dinheiro pertencente ao extinto casal composto por este e por FF, a EE ficou a pertencer um total de Esc. 15 613 653$00 (€ 77 880,57), correspondente a metade de todo o dinheiro existente e mais um terço da outra metade (1º);

16 – À data da morte de EE existia nas suas contas bancárias a quantia de € 5 070,05 (2º);

17 – Depois de EE entregar ao R. o cheque de Esc. 3 903 413$00 (referente à quantia que cabia a este, conforme indicado em 3), ambos combinaram que esse valor seria pago pelas forças da apólice de seguro nº12/407.477 da Companhia de Seguros Fidelidade, razão por que EE transferiu essa apólice para o nome do R. e este devolveu àquele o referido cheque (3º, 11º, 12º e 13º);

18 – Após o falecimento da mulher, EE passou a viver exclusivamente em casa dos RR. até à sua morte (durante apenas dois anos), em “perfeita comunhão de economia doméstica” (4º);

19 – EE não frequentava quaisquer locais de diversão. Era pessoa muito poupada, condição que não alterou depois da morte da mulher. Já na altura em que foi viver com os RR., EE, praticamente, não saía de casa (5º a 7º);

20 – EE não esteve doente a ponto de ter tido necessidade de ser internado em estabelecimento hospitalar que o obrigasse a gastos com a preservação da sua saúde (8º);

21 – EE recebia uma pensão de reforma de França, onde tinha sido emigrante durante “muitos” anos, cujo montante mensal era de € 91,00, importância essa que continuou a receber até à data da sua morte (9º);

22 – EE gastava consigo, nas suas despesas quotidianas, a totalidade desse montante de € 91,00 mensais (10º);

23 – O R. CC passou a efectuar depósitos periódicos na aludida apólice de seguro, após 30.11.98. Entre 07.06.99 e a data do resgate da referida apólice, aqueleR. efectuou depósitos no montante total de € 7 581,76. Desconhece-se se os valores depositados pertenciam àquele R. ou a EE (14º e 15º);

24 – EE era uma pessoa doente e que, por isso, tinha gastos relacionados com essa condição (17º);

25 – EE entregava à R. DD a quantia de € 1 000,00 mensais para pagar a sua alimentação, demais despesas domésticas e pela assistência que esta lhe dedicava a lavá-lo, cozinhar as suas refeições e tratar-lhe da roupa e da casa, comprar-lhe os medicamentos, acompanhá-lo nas deslocações ao Centro de Saúde de Melgaço para tratamentos e a consultas médicas e exames mensais ao Hospital de Santa Luzia de Viana do Castelo, ou noutras deslocações a locais onde tivesse vontade ou necessidade de se deslocar (18º);

26 – EE transmitiu gratuitamente aos RR., que aceitaram, as quantias referidas em 10, 11 e 12 (19º);

27 – FF faleceu, em 31.07.98, e EE faleceu, em 13.08.00 (docs. fls.233 e 234).

                                                    *

3 - Perante o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes – as quais (exceptuando questões de oficioso conhecimento não obviado por ocorrido trânsito em julgado) definem o objecto e delimitam o âmbito do recurso (arts. 660, nº2, 661º, 672º, 684º, nº3, 690º, nº1 e 726º todos do CPC na pregressa e, aqui, aplicável redacção[1]) –, constata-se que são três as questões por si suscitadas e que demandam apreciação e decisão por parte deste Tribunal de recurso. A saber:

                                                     /

I – Modificabilidade da decisão proferida sobre a matéria de facto, designadamente por forma a que não sejam havidas como gratuitas todas as doações mencionadas na resposta ao art. 19º da b. i.;

II – Indevida qualificação da conduta do recorrente-marido como consubstanciadora de sonegação de bens da herança de EE, em cujo processo judicial de inventário aquele exerceu as funções de cabeça de casal; e

III – Indevida contagem, a partir da citação, dos sentenciados juros de mora.

       Apreciemos, pois, tais questões.

                                                    *

4I – Os recorrentes sustentam que nem todas as importâncias mencionadas em 26 de 2 supra dizem respeito a correspondentes transmissões gratuitas efectuadas, a favor do R.-marido, pelo falecido EE, pai daquele e da A.-mulher, únicos concorrentes à sua herança.

       Na versão trazida aos autos pelo recorrente, € 30 500,00 do montante que se tem como representando o total de tais transmissões não pode ser imputado a doações gratuitas efectuadas pelo EE a favor daquele recorrente, porquanto:

--- € 24 000,00 foram entregues pelo EE a sua nora e, ora, co-R., DD, em remuneração de serviços por esta a si prestados, nos últimos 24 meses de vida;

--- € 5 000,00 foram entregues aos recorridos, a título do legado efectuado pelo falecido, logo após o decesso do EE, pelos recorrentes, que tinham em mão tal quantia; e

--- No funeral do EE, despenderam os recorrentes € 1 500,00.

       Mas a tese dos recorrentes não pode ser aceite, por total ausência de fundamento legal.

       Desde logo, porque abstrai totalmente do facto acolhido em 26 de 2 supra, o qual tem de ser tomado na devida conta por este Supremo, como tribunal de revista que aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que tem por adequado (arts. 729º, nº1, 26º da Lei nº 3/99, de 13.01 e 33º da Lei nº 52/08, de 28.08), só podendo introduzir alterações na matéria de facto fixada pelas instâncias, nos casos excepcionais – aqui inverificados – previstos no art. 722º, nº2, “ex vi” do preceituado no nº2 daquele art. 729º.

       Depois, porque não está demonstrado que o falecido EE apenas dispusesse, em vida, das quantias monetárias a que faz referência o nº26 de 2 supra, antes resultando dos documentos de fls. 515 e segs. que o mesmo era titular de outros valores.

       Finalmente, porque, como bem se ponderou na decisão de fls. 624, “Se a resposta ao quesito 19º tivesse que ser negativa (sob pena de contradição com a matéria de facto já anteriormente dada como provada, como defendem os RR.) seguramente – e até por imposição da lei, que proíbe a prática de actos inúteis – não teriam o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal da Relação de Guimarães ordenado a realização de novo julgamento e de nova produção de prova”.

       Como quer que seja, os recorrentes apenas invocam ocorrências que, ou não têm correspondência na factualidade provada – única que, “hic et nunc”, releva –, ou consubstanciam, em si mesmas consideradas, meras conjecturas sem virtualidade para fundamentarem decisões judiciais.

       Em contrapartida, o nº26 de 2 supra reporta-se a factualidade provada que, como tal, não pode deixar de relevar na apreciação e decisão do litígio a que se reportam os autos.

       Improcedendo, assim, as correspondentes conclusões formuladas pelos recorrentes.

                                                  /

II – Como ensinam os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela[2], “A colação (como logo se infere do étimo de raiz latina – conferir – donde a palavra deriva) é a restituição (as mais das vezes apenas em valor, não em espécie ou substância), feita pelos descendentes, dos bens ou valores que o ascendente lhes doou, quando pretendam entrar na sucessão deste”.

       A colação destina-se à igualação, na partilha, do descendente donatário com os demais descendentes do autor da herança, assentando na presunção de que o “de cujus”, fazendo em vida alguma liberalidade a um seu presuntivo herdeiro legitimário, não quis avantajá-lo aos outros, mas tão só antecipar a transferência da legítima que viria a competir-lhe[3].

       Como se expendeu na “RLJ”, Ano 104º, pags. 348, “A colação é um instituto destinado a proteger, não o donatário contra as pessoas a quem ele transmita os bens recebidos do de cujus, mas os co-herdeiros legitimários do donatário, a quem se procura garantir certa igualação na partilha de acordo com a vontade presuntiva do de cujus”.

       Pressupõe a mesma a verificação, necessária e cumulativa, de determinados requisitos, como sejam, a existência de uma doação em vida, realizada pelo autor da sucessão a um seu descendente, que este seja presuntivo herdeiro legitimário daquele, à data da doação, e concurso do donatário à herança do doador e, finalmente, que a doação não se encontre dispensada da colação, seja por vontade do doador, seja “ex vi legis”, atento o preceituado nas disposições conjugadas dos arts. 2104º, 2105º, 2106º, 2113º, nº/s 1, 2 e 3 e 2114º, nº2, todos do CC.

       Nos termos do disposto no art. 2104º, nº2, do CC, “São havidas como doação, para efeitos de colação, as despesas referidas no art. 2110º”. E, nos termos estatuídos neste art., “Está sujeito a colação tudo quanto o falecido tiver despendido gratuitamente em proveito dos descendentes” (1), exceptuando-se, no respectivo nº2, “as despesas com o casamento, alimentos, estabelecimento e colocação dos descendentes, na medida em que se harmonizem com os usos e com a condição social e económica do falecido”.

       Ante o exposto, estão as questionadas doações mencionadas em 26 de 2 supra sujeitas a colação, pelo que, tendo sido omitida a respectiva relacionação pelo R.-marido e cabeça de casal no processo de inventário que correu termos por óbito do seu pai (e da A.-mulher), EE, preenchido se mostra um dos casos em que o cabeça de casal poderia, nos termos do disposto no art. 2086º, nº1, al. a) do CC, ter sido removido do exercício de tal cargo.

       Não obstante, entendemos que não pode, no caso, considerar-se que houve sonegação de bens da herança, nos termos e para os efeitos previstos no art. 2096º, nº1, do CC, segundo o qual “O herdeiro que sonegar bens da herança, ocultando dolosamente a sua existência, seja ou não cabeça de casal, perde em benefício dos co-herdeiros o direito que possa ter a qualquer parte dos bens sonegados, além de incorrer nas mais sanções que forem aplicáveis”.

       Na realidade, tratando-se de questão que contende com a posse de conhecimentos jurídicos que não estão, facilmente, ao alcance de leigos e suscitando, mesmo, hesitações e divergências entre alguns que daqueles estão munidos, dificilmente poderá sustentar-se a presença de dolo – ainda que nas modalidades de dolo indirecto e/ou dolo eventual (Cfr. Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Ob. citada”, pags. 157) – na correspondente actuação do R.-marido, como seria imprescindível para a integração daquela figura jurídica.

       Aliás, nesta posição, estamos em boa companhia, uma vez que na mesma convergem, designadamente aqueles insignes e saudosos Mestres (in “Ob. citada”, pags. 158, em anotação ao art. 2096º), o Prof. Oliveira Ascensão (in “Direito Civil – SUCESSÕES”, 4ª Ed., pags. 506 – que considera a sanção muito forte, não lhe parecendo que possa estender-se à ocultação de doações em vida, que são também previstas no art. 2086º, nº1, al. a), acrescentando que o carácter penal dificulta a utilização do preceito por analogia) e o Dr. Capelo de Sousa (in “Lições de Direito das Sucessões”, II Vol., pags. 85, Nota 692), o qual, assim, ensina: “Não há, porém, sonegação por não se traduzirem em ocultação de bens da herança, quando se ocultem doações feitas pelo falecido ou se denunciem doações ou encargos inexistentes, mesmo que isso seja feito em proveito exclusivo dos executantes. Haverá, então, lugar a responsabilidade penal, fiscal, responsabilidade civil por perdas e danos e a eventual remoção do cabeça de casal (al. a) do nº1, do art. 2086º do CCiv), mas não à aplicação da sanção do art. 2096º do Código Civil”

       Procedendo, pois, nesta parte, as correspondentes conclusões formuladas pelos recorrentes.

                                                 /

III – Pretendem os recorrentes que os decretados juros de mora sejam contados apenas a partir do trânsito em julgado da correspondente decisão judicial e não a partir da respectiva citação, como foi decidido no acórdão impugnado.

       Não têm, porém, razão os recorrentes, nesta sua pretensão.

       Com efeito, muito embora não possa admitir-se, no caso, a ocorrência de sonegação de bens por parte do recorrente, a verdade é que, como muito bem se ponderou naquele acórdão, nos confrontamos, indubitavelmente, com a ocorrência de um facto ilícito, na medida em que a conduta daquele violou uma disposição legal destinada à protecção do conexo direito da recorrida[4], ou seja, o direito a que as questionadas doações fossem objecto de colação, em ordem à igualação das efectuadas partilhas de bens do inventariado e pai de ambos.

       Assim, estando, embora, em causa um crédito dotado de natureza ilíquida, os juros de mora devidos têm de ser contados, como bem decidido foi, a partir da citação dos RR., por imposição do preceituado no art. 805º, nº3, 2ª parte, do CC.

       Improcedendo, pois, as remanescentes conclusões tiradas pelos recorrentes.

                                                *

5Concluindo:

                                                /

I – Salvaguardado o preceituado nos arts. 2110º, nº2 e 2113º, nº/s 1 e 3, ambos do CC, está sujeito a colação tudo quanto o falecido tiver despendido gratuitamente em proveito dos descendentes.

II – Não consubstancia sonegação de bens a ocultação dolosa, por parte do donatário, de doações feitas em vida pelo doador.

                                               *

6 – Na decorrência do exposto, acorda-se em conceder, parcialmente, a revista, em consequência do que, revogando-se, correspondentemente, o acórdão impugnado, se elimina deste a qualificação da conduta do recorrente como consubstanciando sonegação de bens, em tudo o mais o mantendo.

       Custas, aqui e nas instâncias, por AA. e RR., na proporção dos respectivos decaimentos.

                                                 /

                                      Lx   23/ 11 /11 /  

Fernanades do Vale (Relator)   
Marques Pereira
Azevedo Ramos

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[1]  Como os demais que, sem menção da respectiva origem, vierem a ser citados.
[2]  In “CC Anotado”, Vol. VI, pags. 173.
[3]  Prof. Almeida Costa, in  “Introdução”, 1967, pags. 413; Prof. Pereira Coelho, in “Sucessões”, 1966, pags. 250.
[4]  Cfr., neste sentido, Prof. Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 4ª reimpressão, 1980, pags. 86.