ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
6160/03.1TBOER.L1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 10/27/2011
SECÇÃO 7ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO NEGADA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR GRANJA DA FONSECA

DESCRITORES ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
TÍTULO DE POSSE
OCUPAÇÃO DE IMÓVEL
RESTITUIÇÃO DE IMÓVEL
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO MISTO
CONDOMÍNIO
CASA DE PORTEIRO
INDEMNIZAÇÃO

SUMÁRIO

I - Numa acção de reivindicação, havendo título legítimo para a ocupação do imóvel e não tendo sido provocada previamente a cessação pela forma legalmente prevista da relação contratual que lhe está subjacente, não pode ser ordenada a sua restituição ao proprietário.
II - Há título legítimo para a ocupação do imóvel, dado que autora e ré celebraram um contrato misto, pelo qual a ré presta os seus serviços em troca da habitação que a autora lhe forneceu.
III - Contrapondo-se, embora, prestações heterogéneas, próprias de contratos distintos: arrendamento e contrato de trabalho, trata-se de um contrato só.
IV - Face a tal ocupação legítima, também não tem o dono do prédio direito a qualquer indemnização, quer dos ocupantes da fracção, quer do condomínio do edifício onde a mesma se integra, tudo sem prejuízo da compensação devida pelo condomínio à proprietária da Casa da Porteira pela utilização desta em benefício de todos os condóminos, a pedir numa outra acção, em caso de desacordo entre ambos.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1.

AA L.da, com sede na Quinta da.........., Lote ...., Cave ........, Parede, Cascais, intentou, em 05/06/2003, pelo Tribunal Judicial de Oeiras, 2ª Juízo Cível, esta acção declarativa de condenação, com processo comum sumário, contra BB e CC, casados e residentes na Rua .................., n.º ...., Casa da ......., 2780-764 Paço de Arcos, pedindo, em síntese, a condenação dos Réus:

1) - A reconhecerem à autora o direito de propriedade sobre a fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente à sub-cave ........ do prédio urbano sito na Rua .................., n.º .., na freguesia de Paço de Arcos, inscrita na matriz predial sob o artigo ............ e descrita na 1ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o n.º ....;

2) - A entregarem à autora a referida fracção devoluta de pessoas e bens;

3) - A pagarem à autora, a título de indemnização, a quantia de 300 euros por mês, desde a data da citação até à efectiva entrega da fracção reivindicada.

Alega, como fundamento da sua pretensão, e em resumo, ser proprietária da fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente à sub-cave ........ do prédio urbano sito na Rua .................., n.º ..., em Paço de Arcos. Essa fracção foi edificada, em 1984, pela autora que, após a outorga da escritura de constituição de propriedade horizontal, passou a ser a sua legítima proprietária.

A autora sempre possuiu a fracção dos autos na convicção de que a mesma era sua e sem qualquer oposição.

No ano de 2000, a administração do prédio onde se insere a fracção dos autos intentou uma acção contra a ora autora, pedindo que a fracção dos autos fosse declarada propriedade do condomínio, por se tratar de parte comum do prédio, ou, quando assim se não entendesse, por usucapião.

Tal acção foi julgada totalmente improcedente, na 1.ª instância e no Tribunal da Relação de Lisboa.

Através da referida acção, a autora tomou conhecimento de que os réus residem na fracção dos autos.

A autora nunca celebrou qualquer contrato referente ao imóvel em questão (compra e venda ou arrendamento), ocupando os réus a fracção, sem que disponham de título que justifique a ocupação.

Em 26/02/03, a autora solicitou à ré a entrega da fracção, mas os réus continuam a ocupá-la, sendo tal ocupação ilícita e geradora de responsabilidade civil.

A autora tem direito a uma indemnização enquanto durar a ocupação da fracção, calculada com base no seu valor locativo, no montante mensal de, pelo menos, 300 euros.

Os réus contestaram. Para além de impugnarem parte dos factos alegados pela autora, alegam, em síntese, que foi esta que, em 1984, contratou a ré para porteira do prédio em causa, tendo, no âmbito de tal acordo, a fracção objecto dos autos sido concedida à ré como parte da sua remuneração, quando ainda não tinha sido vendido qualquer andar do citado imóvel.

Mais tarde, com alguns andares vendidos, mas ainda sendo a autora proprietária de várias fracções, foi constituída a administração do condomínio, tendo sido confirmada por essa administração a situação da ré como porteira do imóvel.

O problema da propriedade da fracção ocupada pelos réus ser da titularidade da autora e não parte comum do imóvel é questão a resolver entre a autora e a Administração do Condomínio, não tendo os réus qualquer obrigação de entregar a referida fracção nem de indemnizar a autora.

Concluem pela improcedência da acção e sua absolvição do pedido.

A autora replicou, não tendo sido admitido esse articulado, e deduziu pedido de intervenção principal provocada da Administração do Condomínio (DD, L.da), que foi admitida.

A interveniente “DD, após ter sido citada, apresentou articulado, onde alegou, em síntese, que a matéria articulada pelos réus corresponde à verdade.

A autora, como proprietária da fracção em causa, sempre pagou o condomínio, aceitando as respectivas contas nomeadamente do vencimento da porteira.

Ainda que se entenda ser a autora proprietária da fracção, (o que contesta), o direito de exigir a restituição da posse fica precludido pelo seu assentimento inicial e entrega da dita casa de porteira à ré para aí desempenhar as funções de porteira.

Conclui pela improcedência da acção ou, caso assim se não entenda, pela parcial improcedência, reconhecendo-se o direito da ré a continuar a ocupar a fracção e a desempenhar as suas funções de porteira, reconhecendo ao condomínio o direito de manter a posse da casa de porteira com a actual ré ou com quem a mesma venha a suceder, uma vez que foi esse o destino dado a fracção.

A autora respondeu ao articulado apresentado pelo interveniente, alegando, em suma, que a administração não convocou a autora para as Assembleias de Condomínio nem apresentou contas anuais à mesma.

Conclui, como na petição inicial, pedindo a improcedência das excepções deduzidas no articulado do interveniente.

Oficiosamente suscitado o incidente de valor da acção, foi-lhe fixado o valor de 42.000 euros e atribuída a forma de processo ordinário.

Foi proferido despacho saneador, fixada a matéria de facto assente e elaborada a base instrutória, tendo as reclamações apresentadas pela autora e pela interveniente principal sido apreciadas e deferidas, respectivamente, parcial e totalmente.

Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente tendo, em consequência, sido decidido:

a) - Condenar os réus e interveniente principal a reconhecer o direito de propriedade da autora relativamente à fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente à sub-cave ........ do prédio urbano sito na Rua ............, n.º ........., na freguesia de Paço de Arcos, inscrito na respectiva matriz predial sob o n.º ........... descrita na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o n.º ....;

b) - Absolver os réus do pedido de restituição da referida fracção, bem como do pedido de indemnização.

Custas a cargo da autora e do interveniente, na proporção de 5/6 e 1/6, respectivamente.

Inconformada, apelou a autora para a Relação de Lisboa que, por acórdão de 17/03/2011, negou provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

De novo inconformada, a autora recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

1ª - Os réus não qualificaram juridicamente a pretensa relação contratual entre a autora e a ré nem alegaram qual o seu regime legal e quais os seus elementos e efeitos essenciais.

2ª - Não se pode considerar demonstrada a celebração e a vigência de um contrato de trabalho, pois não ficou provado que a actividade da ré estivesse sujeita a ordens, instruções ou controlo da recorrente, nem que aquela estivesse dependente economicamente desta.

3ª - Mesmo que se considerasse demonstrado a celebração e a vigência de um contrato de prestação de serviços (o que, repete-se, não se aceita), o mesmo seria livremente revogável por qualquer das partes nos termos dos artigos 1156° e 1170° do Código Civil, tendo-se operado a respectiva revogação com o envio da carta junta na petição inicial, como documento 2.

4ª - Constituindo a existência de título de ocupação do andar pela ré, um facto impeditivo do efeito jurídico pretendido pela autora (artigo 493º, nº 3, CPC), sobre os réus recaía o respectivo ónus da prova (artigo 342º, nº 2, CC), necessitando pois de alegar e provar que tipo legal de contrato teria sido celebrado e quais os seus elementos integrantes.

5ª – Nos termos do artigo 516º CPC, não tendo os réus logrado provar tais factos, forçosamente teria sempre que se julgar no sentido da inexistência de um contrato.

6ª - A ocupação da fracção autónoma dos autos por parte dos réus e da Interveniente Principal não é titulada, logo ilegítima e inoponível à autora.

7ª - A recorrente nunca recebeu dos recorridos qualquer contrapartida pela ocupação abusiva do imóvel dos autos.

8ª - Ficou provado por confissão que, através do processo judicial nº 317/2000, no ano de 2000, a autora tomou conhecimento que a ré reside na fracção identificada nos autos.

9ª - De acordo com o artigo 511º, nº l CPC, os factos provados por confissão, não podem ser quesitados. E, tendo sido indevidamente quesitados, não podia o tribunal efectuar a respectiva resposta sob pena da mesma se considerar inexistente (artigo 646º, n.º 4 CPC).

10ª - As respostas à matéria dos quesitos 1º e 2º, por manifesta contradição com a matéria assente da alínea F), devem ser declaradas inexistentes, tendo o Tribunal “a quo” violado o artigo 358º, nº l do Código Civil que fixa a força probatória plena da confissão.

11ª - O Acórdão da Relação não toma uma posição concreta sobre a matéria assente da alínea F). Perante uma decisão contraditória, omissa e não devidamente fundamentada, impõe-se nos termos do nº 3 do artigo 729º CPC, que a Relação fundamente de forma correcta a reapreciação da matéria de facto, no que respeita à matéria factual ínsita nos quesitos 1º e 2º e no ponto 5 da factualidade dada como assente.

12ª - A ocupação ilícita da fracção autónoma dos autos é geradora de responsabilidade civil, tendo a autora direito a uma indemnização (vide artigos 483º e seguintes do Código Civil) enquanto durar a ocupação da fracção, calculada com base no seu valor locativo.

13ª - A matéria factual constante do quesito 4º, através do conhecimento geral e notório, teria que ser sempre dada como provada, isto é, a fracção em questão, com duas assoalhadas tem o valor locativo de, pelo menos, 300 euros.

14ª - Verifica-se um erro notório na resposta restritiva ao quesito 4º, matéria que se considera incorrectamente julgada, pedindo-se consequentemente o recurso à equidade nos termos do nº 3 do artigo 566º CC, com vista à quantificação do valor locativo de 300 euros. Caso assim não se entenda, sem conceder, deve-se pois relegar para liquidação posterior (nos termos do nº 2 do artigo 378º CPC), para determinação exacta do valor locativo em causa.

15ª - Os réus e a Interveniente Principal (Condomínio) devem ser condenados a entregar à autora a fracção dos autos devoluta de pessoas e bens e a pagar à autora a quantia de 300 euros por mês, desde Junho de 2003 (data da citação) até à efectiva entrega da fracção reivindicada.

A recorrida contra – alegou, formulando as seguintes conclusões:

1ª - Toda a matéria de facto e de direito que a recorrente alega foi objecto de devida fundamentação e apreciação correcta da prova por parte do Tribunal da 1ª Instância e da Relação. As duas instâncias fundamentaram até à exaustão, de tal forma que a recorrida para contra-alegar correctamente teria de reproduzir integralmente tudo o que já foi dito pelas instâncias anteriores.

2ª - De tal forma corresponde à verdade, que a recorrente para apresentar as suas alegações, reproduzindo o que já tinha dito quando recorreu para a Relação, alegou retirando frases do contexto para poder chegar a conclusões que motivem o presente recurso.

3ª - Ficou provada a celebração do contrato de trabalho verbal e a condição de condómina, pelo que a recorrida tem todo o direito à habitação que faz parte integrante das condições previstas no regulamento de porteira.

4ª - A recorrida paga uma renda de casa no âmbito das condições contratadas.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

2.

As instâncias consideraram provados os seguintes factos:

1º - A autora é a proprietária da fracção autónoma designada pela letra “A”, correspondente à sub-cave ........ do prédio urbano sito na Rua ............, n.º ......, na freguesia de Paço de Arcos, inscrito na respectiva matriz predial sob o n.º ............, descrita na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o n.º .... (alínea A).

2 - Em 1984, a referida fracção foi edificada pela autora (alínea B).

3 - No ano de 2000, a administração do prédio, onde se insere a fracção dos autos, intentou uma acção judicial contra a autora, pedindo que a fracção fosse declarada propriedade do condomínio por se tratar de parte comum ou, quando assim se não entendesse, por usucapião (alínea D).

4º - A acção judicial, com o n.º 317/2000, que correu termos no 5.º Juízo Cível de Oeiras, foi julgada improcedente, quer na 1ª instância, quer pelo Tribunal da Relação de Lisboa (Processo n.º 10609/02), decisão que já transitou em julgado e na qual ficou provado que, desde 19/06/1984, BB habita a fracção predial “A” correspondente à casa de porteira, habitação essa proporcionada, desde o início, como contrapartida dos seus serviços como porteira que ela presta ao condomínio, acrescida de uma remuneração mensal certa e ainda que a autora vem pagando desde sempre a contribuição autárquica respeitante à fracção em causa (alínea E).

5º - Através do referido processo, a autora tomou conhecimento que a ré reside na fracção identificada nos autos (alínea F).

6º - Foi a própria autora quem, em 1984, contactou a ré para porteira do prédio em causa (quesito 1º).

7º - A fracção foi concedida pela autora à ré como contrapartida dos serviços que prestava, nomeadamente de limpeza do prédio (quesito 2º).

8º - Nessa data muitas das fracções do prédio ainda não tinham sido vendidas (quesito 3º).

9º - A fracção em questão, considerando como tendo duas assoalhadas, tem valor locativo não concretamente apurado, mas não superior a 300 euros (quesito 4º).

3.

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões contidas nas alegações da recorrente, estando vedado o conhecimento de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (artigos 683º, n. os 3 e 4 e 690º, n.º 1 do CPC), a questão a decidir consiste em saber se os réus violaram o direito de propriedade da autora e, em caso afirmativo, determinar as respectivas consequências ou se, pelo contrário, os réus possuem título para ocupar a referida fracção.

4.

A autora interpôs a presente acção, pretendendo o reconhecimento do direito de propriedade que detém sobre a fracção autónoma identificada nos autos e a condenação dos réus na entrega daquela, (dada a sua ocupação ilegítima por parte destes), bem como no pagamento de uma indemnização.

Face à causa de pedir e pedido formulados, trata-se de uma verdadeira acção de reivindicação, regulada nos termos do artigo 1311º e seguintes do Código Civil.

Como ensina Antunes Varela[1], a acção de reivindicação prevista neste artigo é uma acção petitória que tem por objecto o reconhecimento do direito de propriedade por parte do autor e consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela (…). São dois os pedidos que integram e caracterizam a reivindicação: o reconhecimento do direito de propriedade, por um lado, e a restituição da coisa, por outro. Nada impede, no entanto, que, ao abrigo das regras válidas no domínio do direito processual civil (artigo 470º CPC), o autor da reivindicação junte aos dois pedidos referidos no artigo 1311º um pedido de indemnização (v. g. dos danos causados na coisa pelo demandado ou do valor do uso que este dela fez).

A 1ª instância reconheceu o direito de propriedade da autora sobre a fracção, tendo este segmento da decisão transitado em julgado.

Havendo reconhecimento do direito de propriedade do autor sobre a coisa, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei, conforme resulta do disposto no artigo 1311º, n.º 2 CC.

Incumbe assim ao réu que pretenda obstar à restituição da coisa, a prova do respectivo facto impeditivo, nos termos do artigo 342º, n.º 2 CC, ou seja, que é titular de um direito (real ou de crédito) que legitima a recusa de restituição.

A 1ª instância, considerando que os réus alegaram e provaram que foi a própria autora que contratou a ré para porteira do prédio em causa e que a dita fracção foi concedida como parte da sua remuneração, quando ainda não tinha sido vendido qualquer andar, situação que mais tarde foi confirmada pela administração do condomínio, concluiu que os réus lograram demonstrar os factos impeditivos da restituição da fracção à autora, pelo que, mostrando-se titulada a ocupação da aludida fracção pelos réus, julgou improcedente o pedido de restituição da fracção à autora, sua proprietária, bem como a indemnização pela ocupação.

A autora recorreu destes dois segmentos da decisão. Perante a confirmação da decisão pela Relação, volta a questionar a bondade do decidido, repetindo os argumentos utilizados na apelação, continuando a defender que os réus ali se encontram sem título algum que legitime juridicamente a ocupação e utilização por parte deles da sua fracção, o que não corresponde à verdade.

Com efeito, ficou provado que a autora, em 1984, edificou o prédio onde se integra a fracção identificada nos autos, fracção de que é proprietária.

Nesse mesmo ano (1984), data em que muitas das fracções do prédio ainda não tinham sido vendidas, a autora contactou a ré para porteira do prédio em causa, sendo a aludida fracção concedida pela autora à ré como contrapartida dos serviços que prestava, nomeadamente de limpeza do prédio.

Em suma, a autora celebrou com a ré um contrato mediante o qual esta seria porteira do prédio em causa, sendo-lhe a fracção concedida por aquela, como contrapartida dos serviços que esta prestava, nomeadamente de limpeza do prédio. Foi, pois, a própria autora/recorrente que contratou a ré para porteira do respectivo prédio e como contrapartida ou retribuição parcial de tais serviços permanentes cedeu-lhe a vulgarmente chamada “casa da porteira”, que lhe pertencia, situação jurídica de cariz negocial que foi confirmada posteriormente pelo Condomínio e que se mantém até hoje, pois a ré continua a exercer as funções para que foi contratada.

A autora pretende ignorar tal cenário complexo, com o argumento de que nem os réus, nem as instâncias, qualificaram juridicamente o negócio ou a relação em presença, nem o correspondente regime legal, não aceitando, consequentemente, que a Relação haja considerado que “existe uma posição jurídica titulada e radicada num negócio jurídico válido, regular e eficaz, que obsta à procedência da pretensão reivindicativa da autora, independentemente de se considerar um contrato de mera prestação de serviços ou de trabalho”.

Efectivamente, argumenta a recorrente, “a pretensa relação contratual e a tentativa de qualificação da mesma não advém de factos alegados pelas partes e muito menos considerados provados”.

“Na verdade, não ficou provado que a actividade da ré estivesse sujeita a ordens, instruções ou controlo da autora, nem que aquela estivesse dependente economicamente desta. Logo não se pode considerar demonstrada a celebração e a vigência de um contrato de trabalho”.

“E, mesmo que se considerasse demonstrado a celebração e vigência de um contrato de prestação de serviços, o mesmo seria livremente revogável por qualquer das partes, nos termos dos artigos 1156º e 1170º do CC, tendo-se operado a respectiva revogação com o envio da carta junta na petição inicial (documento 2)”.

Pronunciando-se sobre esta questão, considerou a Relação:

“Quer estejamos face a um contrato de mera prestação de serviços (o que é altamente improvável, face aos elementos de facto que possuímos) ou de trabalho (sendo este último tipo negocial o que nos parece que se verifica no caso dos autos – cf., a este respeito e por exemplo, a PRT para os Porteiros, publicado no BMT n.º 18/75 de 1/05 e a diversa jurisprudência citada por Abílio Neto em “Código do Trabalho e Legislação Complementar - Anotados”, 2.ª Edição, Janeiro de 2005, Ediforum, páginas 1057 e 1058), certo é que é por tempo indeterminado (só assim se compreende o período temporal já decorrido de 26 anos) e que tem como um dos seus elementos essenciais e típicos o direito a estar e a usar a dita fracção, como parte da sua remuneração, destinada compensar os serviços de porteira que a mesma presta ao Condomínio e no prédio onde se acha inserida a dita casa”, dir-se-á que os factos alegados e provados são manifestamente suficientes para investir a ré e o seu marido numa posição jurídica titulada e radicada num negócio jurídico válido, regular e eficaz, que ainda se mantém em vigor e que só pode cessar pelas formas legalmente estabelecidas (cf. a anterior lei laboral e o Código do Trabalho, nas suas diversas versões), o que obsta à procedência da pretensão reivindicativa da Autora”.

Atendendo ao que acima ficou exposto, tem razão a recorrente ao considerar que a Relação não qualificou correctamente o contrato em causa mas tal qualificação não tem a virtualidade de poder alterar os factos alegados e provados, os quais são manifestamente suficientes para ter a virtualidade investir a ré e o seu marido numa posição jurídica titulada, carecendo de qualquer fundamento a conclusão retirada pela recorrente, considerando que não existe qualquer relação contratual.

Como qualificar então o contrato celebrado entre a autora e a ré?

O artigo 405º do Código Civil permite expressamente que as partes, “dentro dos limites da lei”, celebrem contratos diferentes dos típicos, modifiquem os tipos legais incluindo neles as cláusulas que lhes aprouver e misturem no mesmo contrato regras de dois ou mais tipos. “Quer isto dizer que o Código admite a livre celebração de contratos completamente diferentes dos tipos legais, contratos que correspondem a modificações dos tipos legais por inserção de cláusulas adicionais e contratos em que sejam reunidos ou misturados vários tipos. Este artigo não institui mas reconhece, formalmente, o princípio da autonomia contratual e a admissibilidade da celebração de contratos atípicos[2]”.

Assim, “para além dos contratos legalmente típicos podem ser celebrados contratos atípicos e estes podem ser completamente diferentes dos tipos legais, ou ser modificações dos tipos legais, ou ser misturas ou combinações desses tipos[3]”.

Dentro dos contratos atípicos devem distinguir-se desde logo os que são completamente diferentes dos tipos contratuais legais, são os contratos atípicos puros, e os que são construídos a partir de um ou mais tipos que são combinados ou modificados de modo a satisfazerem os interesses contratuais das partes. Estes são os chamados contratos mistos.

Segundo Galvão Telles, “os contratos mistos têm carácter unitário, resultando da fusão de dois ou mais contratos ou de partes de contratos distintos, ou da participação num contrato de aspectos próprios de outro ou outros. Os elementos correspondentes a vários tipos contratuais agremiam-se em ordem à realização de função social unitária; ou forma-se um acordo pela conjugação de parte dos elementos de diversos contratos típicos; ou em certa espécie contratual insinuam-se ou incrustam-se elementos estranhos. Em qualquer caso há fusão e não simples cúmulo[4]”. O contrato misto é um só.

Entre os contratos mistos, destaca o ilustre Professor os contratos geminados, os quais “resultam da justaposição de obrigações características de contratos diversos. Uma das partes obriga-se à prestação própria de certo contrato e a outra à prestação própria de outro contrato. Sirva de exemplo o acordo celebrado entre o dono de um prédio e o porteiro, pelo qual este presta os seus serviços em troca de habitação que o primeiro lhe fornece[5]”.

É este exactamente o caso dos autos. As partes celebraram um contrato misto, pelo qual a ré presta os seus serviços em troca da habitação que a autora lhe forneceu, contrapondo-se prestações heterogéneas, próprias de contratos distintos: arrendamento e contrato de trabalho. Mas trata-se de um contrato só.

Assim, temos como certo que os factos alegados e provados são manifestamente suficientes para investir a ré e o seu marido numa posição jurídica titulada e radicada num negócio jurídico válido, regular e eficaz, que ainda se mantém em vigor e que só pode cessar pelas formas legalmente estabelecidas, o que obsta à procedência da pretensão reivindicativa da Autora, tal como já havia considerado o acórdão recorrido.

Este vínculo estabeleceu-se, num primeiro momento, entre a autora e a ré e, depois, entre esta e o Condomínio, a partir da altura em que o prédio passou a ter Administração própria, face à cessão da posição contratual.

Sendo assim, esta parte do recurso, por falta de fundamento legal, tem de improceder.

Quanto à indemnização pela ocupação:

Como muito bem considerou o acórdão recorrido, “face ao que se deixou dito quanto à legítima ocupação da fracção da autora por parte dos réus, ficam logo arredados alguns dos elementos constitutivos da responsabilidade civil extra-contratual (artigos 483º e seguintes e 562º e seguintes do Código Civil), como é o caso da ilicitude, da culpa e do nexo causal entre a mencionada utilização e eventuais danos sofridos pela recorrente”.

“Também o Condomínio, representado pela respectiva administração, não parece ter incorrido em responsabilidade civil de natureza aquiliana, não só porque, aparentemente, se limitou a “herdar”, em circunstâncias não apuradas no processo, a situação fáctica e jurídica em análise (contratação da ré como porteira e cedência, como parte da sua retribuição, da referida fracção) e a manter a mesma, como já vinha de trás e nos moldes que foi gerada e delineada pela própria autora, não podendo, nessa medida, falar-se em qualquer desapossamento ilícito ou abusivo por parte do conjunto dos condóminos (onde se integra a autora) do apartamento em questão”.

“Hipótese diferente, é a articulação entre esta e o Condomínio, relativamente à utilização por parte deste e em benefício de todos os condóminos de uma fracção que é pertença exclusiva da aqui recorrente, como foi reconhecido e declarado por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, já transitado em julgado (não valendo por isso a pena, até porque pode ser entendido como litigância de má fé, continuar a teimar na natureza de parte comum da casa da porteira, quando tal questão está jurídica e definitivamente ultrapassada) e à necessária compensação que tem de ser acordada entre ambos, de maneira a não haver, em última instância, um caso de enriquecimento sem causa por parte do Condomínio à custa da autora”.

“Essa problemática, por extravasar os limites impostos pela causa de pedir e pedidos formulados na presente acção pela Autora, terá de ser contudo discutida e decidida em acção judicial autónoma, caso a mesma e o Condomínio não cheguem a acordo quanto a ela”.

Sendo assim, também este segmento do recurso tem de ser julgado improcedente na sua vertente jurídica.

Ainda na perspectiva da improcedência da acção e da apelação, sustenta a recorrente que as respostas à matéria dos quesitos 1º e 2º, por manifesta contradição com a matéria assente da alínea F), devem ser declaradas inexistentes, não tendo o acórdão da Relação tomado uma posição concreta sobre essa matéria.

Ao contrário do afirmado pela recorrente, o acórdão recorrido apreciou esta questão (fls. 266), concluindo inexistir qualquer contradição.

Conforme resulta do disposto nos artigos 26º da LOFTJ, 722º, n.º 2º e 729º, n.º 2 do Código de Processo Civil, o Supremo Tribunal de Justiça, funcionando como tribunal de revista, não conhece da matéria de facto, sendo os seus poderes de cognição circunscritos à matéria de direito.

A esta regra introduz o n.º 2 do artigo 722º duas excepções: (i) ofensa duma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para existência do facto ou (ii) ofensa de preceito expresso de lei que fixe a força de determinado meio de prova.

A alegada contradição referida nos artigos 712º, n.º 4 e 653º, n.º 4 do Código de Processo Civil implica a existência de uma colisão entre a matéria de facto constante de uma das respostas e a matéria de facto constante de outra das respostas ou com outra factualidade tida como assente ou então com a factualidade provada, no seu conjunto, de tal modo que uma delas seja o contrário das outras.

Tal contradição, a existir, pode implicar a anulação da decisão proferida na 1ª instância, pela Relação (artigo 712º, n.º 4 Código de Processo Civil).

No caso sub judicio, alegou a recorrente, na apelação, existir a citada contradição entre as respostas dadas aos quesitos 1º e 2º e a matéria da alínea f) dos factos assentes, requerendo, por isso, que se considerasse a resposta aos quesitos inexistente, o que não foi atendido, dado não existir, no entendimento da Relação, a alegada contradição.

Insistem os recorrentes, alegando que o Supremo Tribunal deve conhecer dessa decisão da Relação, mas, em nosso entender, sem razão, pois o conhecimento sobre a alegada contradição entre a resposta dada aos quesitos e a alínea f) da matéria assente representa uma questão que se situa no âmbito da matéria de facto, fora dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, além de que a reapreciação de tal matéria está também vedada a este Supremo Tribunal, por força do disposto no n.º 6 do artigo 712º do Código de Processo Civil.

Por outro lado, não vem alegado, procurando demonstrá-lo, que as contradições veladamente imputadas inviabilizem a solução jurídica do caso em apreço, circunstância que também se não vislumbra a determinar o remédio excepcionalmente previsto no n.º 3 do artigo 729 CPC.

Concluindo:

1º – Numa acção de reivindicação, havendo título legítimo para a ocupação do imóvel e não tendo sido provocada previamente a cessação pela forma legalmente prevista da relação contratual que lhe está subjacente, não pode ser ordenada a sua restituição ao proprietário.

2º - Há título legítimo para a ocupação do imóvel, dado que autora e ré celebraram um contrato misto, pelo qual a ré presta os seus serviços em troca da habitação que a autora lhe forneceu.

3º - Contrapondo-se, embora, prestações heterogéneas, próprias de contratos distintos: arrendamento e contrato de trabalho, trata-se de um contrato só.

4º – Face a tal ocupação legítima, também não tem o dono do prédio direito a qualquer indemnização, quer dos ocupantes da fracção, quer do condomínio do edifício onde a mesma se integra, tudo sem prejuízo da compensação devida pelo condomínio à proprietária da Casa da Porteira pela utilização desta em benefício de todos os condóminos, a pedir numa outra acção, em caso de desacordo entre ambos.

5.

DECISÃO

Por todo o exposto, negando a revista, confirma-se o douto acórdão recorrido.

Custas do recurso pela recorrente.

Lisboa, 27 de Outubro de 2011

Granja da Fonseca (Relator)

Silva Gonçalves

Pires da Rosa

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[1] Código Civil Anotado, Volume III, 2ª edição, página 112/113.
[2] Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, 211.
[3] Autor e obra citada 212.
[4] Manual dos Contratos em Geral, Refundido e Actualizado, página 469.
[5] Inocêncio Galvão Telles, Manual dos Contratos em Geral, página 471.