ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
508/10.0JAFUN.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/23/2011
SECÇÃO 5ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL RECURSO PENAL
DECISÃO PROVIDO EM PARTE
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR SOUTO DE MOURA

DESCRITORES CÔNJUGE
CULPA
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
FACA
HOMICÍDIO QUALIFICADO
ILICITUDE
MEDIDA CONCRETA DA PENA

SUMÁRIO

I - A jurisprudência do STJ tem afirmado, uniformemente, que podem ocorrer outras circunstâncias, para além das mencionadas no n.º 2 do art. 132.º do CP, que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente no cometimento do crime de homicídio. E, por outro lado, apesar da descrição dos factos provados apontar para o preenchimento de uma ou mais als. deste preceito, não é só por isso que o crime de homicídio deva ter-se logo por qualificado. (cf. Acs. de 21-05-2008, Proc. n.º 1224/08, de 13-02-1997, Proc. n.º 986/96, de 21-05-1997, Proc. n.º 188/97, de 10-12-1997, Proc. n.º 1207/97, de 18-02-1998, Proc. n.º 1086/97, de 03-06-1998, Proc. n.º 301/98, e de 08-07-1998, Proc. n.º 646/98).
II - Mostra-se ultrapassada uma concepção do crime ancorada num elemento puramente objectivo, correspondente à ilicitude, e outro subjectivo, integrador da culpa. A dogmática penal passou a distinguir, sempre no campo da ilicitude, entre um desvalor da acção e um desvalor do resultado. A ilicitude deixou de ser só a desaprovação pela ordem jurídica de uma situação criada com a lesão de um certo bem jurídico e passou a incluir, nessa desaprovação, também, a forma como tal situação surgiu, por obra do agente.
III - Se as circunstâncias enunciadas do n.º 2 do art. 132.º do CP fossem taxativas e de aplicação automática seria a ilicitude acrescida a qualificar o homicídio, concretamente por via do desvalor da acção e não por via de um maior desvalor do resultado, já que, sendo o bem vida um valor absoluto e eminentemente pessoal (para a ordem de valores constitucional e portanto para o direito penal, não pode haver vidas humanas mais valiosas que outras), causar a morte de uma pessoa esgota, só por si, o desvalor do resultado.
IV -Torna-se difícil aceitar a concepção de que a qualificação do crime de homicídio resulta de um acréscimo de ilicitude, já que a estruturação do art. 132.º do CP recorreu a exemplos padrão, no seu n.º 2, meramente ilustrativos da clausula geral de agravação enunciada do n.º 1. A descida ao caso concreto para apreciar a especial censurabilidade ou perversidade do agente leva a antecipar a ponderação da sua culpa, para um primeiro momento da integração típica. A qualificação do tipo base ocorre por via da culpa acrescida.
V - O modo do cometimento do crime, pela motivação que a ele presidiu, a forma ou intensidade como foi executado, ou ainda pelas qualidades pessoais do agente ou de vítima, tornam-no mais grave. E mais grave porque a conduta do agente foi mais reprovável, tendo em conta a distância que separa o crime cometido daqueles outros, que continuando a ser inaceitáveis, em que encontra eco “a convicção geral do que são motivos atendíveis ou a que é mais difícil resistir”, conforme escreveu Curado Neves, in “Indícios de culpa ou tipos de ilícitos? – Direito Penal, Parte Especial: Lições, Estudos e Casos”, pág. 255.
VI - A especial censurabilidade ou perversidade do agente não será mais do que a revelação de um desrespeito acrescido ou de um desprezo extremo, do autor, pelo bem jurídico protegido. Traduz também um modo próprio do agente estar em sociedade e, por tal via, um grau de perigosidade que pode merecer particular atenção.
VII - Por “homicídio passional” entende-se o crime cometido, em regra, “repentinamente, na sequência de um impulso emocional súbito”, que resulta “geralmente de um conflito familiar ou amoroso”, em que “caracteristicamente o marido ou amante ocupa ou pretende uma posição de superioridade no casal e não consegue suportar a inversão da relação de poderes que culmina no termo da relação por iniciativa da mulher” ─ cf. Curado Neves, in “A Problemática da Culpa nos Crimes Passionais”, págs. 693 e 715.
VIII - Comete o crime de homicídio qualificado do art. 132.º, n.ºs 1, e 2, al. b), do CP, o arguido que desfere com uma navalha 35 golpes no tórax, no abdómen e nos membros superior direito e esquerdo da vítima, após esta se ter recusado a reatar o relacionamento amoroso que mantiveram durante cerca de 10 anos, que abandona a ex-companheira a esvair-se em sangue ao volante do seu próprio carro, que procura fazer desaparecer os objectos pessoais da vítima do local do crime e que pretende desfazer-se da navalha utilizada.
IX - O passado de relacionamento afectivo entre arguido e vítima deveria, em condições de normalidade, constituir um refreamento para quaisquer impulsos agressivos. É na ultrapassagem desse travão que se revela uma atitude especialmente censurável. Tanto mais que o modo como o crime foi perpetrado acentua o quadro especialmente desvalioso. O cometimento de crime passional, debaixo de emoção mais ou menos violenta ou sob o domínio dos afectos, não neutraliza a especial censurabilidade ou perversidade do acontecido, globalmente considerado.
X - Considerando:
- serem grandes as necessidades de prevenção geral positiva dado o muito forte alarme social gerado e a cada vez maior frequência com que a ruptura de relacionamentos amorosos por parte de um elemento do casal (geralmente o elemento feminino) leva o outro a cometer crimes de homicídio;
- não se fazerem sentir especiais preocupações de prevenção especial dado que o arguido teve um percurso de crescimento e educação sem notas a salientar, que se licenciou e fez mestrado em psicologia clínica, que está inserido correctamente do ponto de vista social e familiar, que não tem passado criminal e que o crime surge como acto isolado, na sequência da ruptura do seu relacionamento amoroso com a vítima;
- que a culpa surge na sua modalidade mais grave, o dolo directo; a pena justa a aplicar ao caso é de 17 anos de prisão.




Nas Varas de Competência Mista do Funchal, em processo comum e por tribunal colectivo, AA, solteiro, psicólogo, nascido em 2/5/1980 no Funchal, onde residia antes de preso, foi julgado e condenado por acórdão de 15/7/2011, para além do pagamento de indemnizações cíveis, como autor material de um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 131° e 132° n.°s 1 e 2 alínea b), do CP, na pena de 19 anos de prisão.

Recorre agora desta decisão para o STJ, quanto à qualificação e medida da pena aplicada.

A  -  FACTOS

É a seguinte a matéria de facto dada por provada:

 “Da acusação

1.1. O arguido e BB mantiveram um relacionamento amoroso durante cerca de dez anos, chegando inclusivamente a manter uma relação de mesa, casa e habitação por um período superior a um ano.

1.2. À data dos factos subsequentemente relatados, BB e o arguido estavam separados desde Setembro de 2010, o que sucedeu por iniciativa de BB.

1.3. Desde essa data, por vezes o arguido e a BB encontravam-se, e este tentava convencê-la a reatar a relação sentimental, o que esta refutava.

1.4. No dia 28 de Outubro de 2010, por volta das 20 horas e 20 minutos, BB e o arguido dirigiram-se para o cruzamento da Estrada..., na freguesia d e..., nesta comarca do Funchal, onde aquela estacionou o veículo que conduzia de marca "Ford", modelo "Fiesta", de matrícula ...-NX, de cor azul.

1.5. Nessa ocasião, o arguido, que estava sentado à frente no lugar do passageiro, insistiu mais uma vez com BB para reataram a relação, e, face à intenção firme desta em não reatar, o arguido, munido com a navalha cuja fotografia consta a fls. 148, desferiu trinta e cinco golpes que atingiram o corpo de BB, sendo dezassete vezes no tórax, seis no abdómen, e as demais no membro superior direito e esquerdo.

1.6. Seguidamente, o arguido pegou na mala castanha da arguida, que continha no seu interior os documentos pessoais de BB, saiu da viatura e jogou a mala num terreno baldio a cerca de cinquenta metros do local onde foram praticados os factos acima descritos.

1.7. O arguido jogou ainda para o terreno baldio a navalha que utilizou para desferir as facadas, e pôs-se em fuga.

1.8. Em consequência dos golpes supra referidas sofreu BB as lesões corporais descritas e examinadas no relatório de autópsia de fls. 324 a 338, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, designadamente e entre outras:

1.8.1. Hábito Externo: 17 (dezassete) feridas inciso-perfurantes no tórax, 7 (sete) feridas inciso - perfurantes no abdómen, feridas incisas no tórax e abdómen; feridas incisas nos membros superiores e membro inferior direito, compatível com lesões de defesa, escoriação no punho direito, feridas inciso; acentuada palidez cutâneo-mucosa.

1.8.2.      Hábito Interno:

a) Lesões traumáticas torácicas: fendas inciso-perfurantes, bilaterais, do músculo peitoral maior, peitoral menor, intercostais; feridas inciso -perfurantes do músculo serrátil anterior e subclávio esquerdos; soluções de continuidade óssea do esterno e das cartilagens costais, bilaterais; fractura pelo arco anterior da 2ª costela à direita; perfurações do saco perícárdico; hemoperícardio; 6 (seis) perfurações do coração; perfurações dos pulmões; hemotórax bilateral; perfuração do músculo diafragma à direita;

b) Lesões traumáticas abdominais: fendas inciso-perfurantes dos músculos rectos anteriores e músculo oblíquo externo, interno e músculo transverso do abdómen à direita; feridas perfurantes no fígado; cavidade peritoneal suja de sangue.

1.9. Os trajectos das lesões traumáticas torácicas descritas no hemitórax direito foram sensivelmente oblíquas de cima para baixo, de diante para trás e da direita para a esquerda, enquanto que na região esternal e hemitoráx esquerdo foram sensivelmente oblíquas de cima para baixo, de diante para trás e da esquerda para a direita.

1.10. Os trajectos das lesões traumáticas abdominais descritas foram maioritariamente oblíquas de cima para baixo, de diante para trás e da esquerda para a direita.

1.11. Tais lesões torácicas e abdominais descritas foram produzidas por instrumento de natureza inciso-perfurante e determinaram, directa e necessariamente a morte de BB.

1.12. BB apresentava ainda feridas incisas nos membros superiores e inferior direito compatíveis com lesões de defesa.

1.13. Ao desferir os ditos vinte e cinco golpes reiterada e violentamente sobre o tórax, e abdómen de BB, o arguido sabia que, tal conduta era apta, atento o meio utilizado, o número de golpes e a área agredida, a causar a morte daquela, e quis causar-lhe a morte por essa forma.

1.14. Ao praticar as supra descritas condutas o arguido actuou com a vontade livremente determinada, e com a consciência de que as mesmas lhe não eram permitidas.

Do pedido de indemnização civil

1.15. CC e consorte DD são os únicos herdeiros por direito de sucessão legítima de BB, falecida no dia 28 de Outubro de 2010, no estado de solteira, sem deixar descendentes.

1.16. Conforme tinham combinado, no dia 28 de Outubro de 2010, o arguido e a BB encontraram-se cerca das 17h30m/17h45m, numa das ruas da cidade do Funchal

1.17. Após o que se dirigiram à Praia Formosa, na viatura ligeira de passageiros marca FORD, modelo FIESTA, matrícula ...-NX, pertencente ao pai de BB e por ela conduzida.

1.18. Após o regresso, dirigiram-se a um Hipermercado, em São Martinho e cerca das 20h 20m para o cruzamento da Estrada ..., concelho e comarca do Funchal.

1.19. Uma vez ali chegados, BB estacionou a viatura que conduzia, enquanto o demandado civil uma vez mais tentou convencê-la a reatar o relacionamento entre ambos.

1.20. Quando o arguido saiu daquela viatura deixou a BB a esvair-se em sangue.

1.21. A morte de BB foi atestada pelas 21h 21m do dia 28 de Outubro de 2010, sendo que a mesma entrou já cadáver no Hospital.

1.22. A BB teve a percepção clara de que não conseguiria resistir e de que a sua morte estava eminente.

1.23. Tendo sofrido dores atrozes, bem como momentos de pânico e angústia.

1.24. A data da morte BB tinha apenas 26 anos de idade, pois havia nascido em 9 de Fevereiro de 1984,

1.25. Era uma pessoa absolutamente robusta e saudável, de grande nobreza de carácter, alegre, extrovertida, com uma vontade enorme de viver e de realizar-se plenamente em termos familiares e profissionais.

1.26. Em termos profissionais a inditosa BB havia obtido o Mestrado em Psicologia Clínica em 20 de Janeiro de 2010 no Instituto Superior de Psicologia Aplicada, em Lisboa.

1.27. À data da morte exercia funções no Serviço de Prevenção de Toxicodependência, no âmbito de um estágio profissional, desenvolvido pelo Instituto de Emprego da Madeira, IP - RAM

1.28. Programa através do qual auferia o valor ilíquido mensal de 969,00 € (Novecentos e sessenta e nove mil euros), acrescido de subsídio de alimentação diário no valor de 4,27 € (Quatro euros e vinte e sete cêntimos)

1.29. A falecida era filha dos ora demandantes, na qual estes se reviam e por quem nutriam grande amor.

1.30. Constituindo uma família absolutamente unida e existindo um óptimo relacionamento entre pais e filha.

1.31. O decesso inesperado e em circunstâncias trágicas de BB causou aos pais, ora demandantes, um desgosto incomensurável e um profunda tristeza.

1.32. Privados de forma abrupta da filha a quem muito amavam, os demandantes ficaram inconsoláveis, tendo chorado amargamente a perda daquele seu ente querido.

1.33. Ainda hoje, a mãe não consegue reprimir o choro quando imagina as circunstâncias em que a filha morreu indefesa.

1.34. Chegando a dizer, por vezes, que já perdeu o interesse que tinha pela vida.

1.35. Desde a morte trágica da filha, a quem muito queriam, que os ora demandantes CC e DD evidenciam graves complicações psicológicas.

1.36. Apresentando ambos uma depressão pós-traumática desde altura do assassinato da filha BB.

1.37. O que os obriga a acompanhamento médico, bem como a efectuar terapia psicológica e farmacológica.

1.38. Durante o período em que foi perpetrada a agressão e aquele em que sobreveio a morte, a referida a referida BB teve dores lancinantes e a consciência de que a sua morte era inevitável.

1.39. Os demandantes despenderam a importância de 4 392,50 € (Quatro mil trezentos e noventa e dois euros e cinquenta cêntimos) com o funeral da sua filha BB.

1.40. Os demandantes despenderam a importância de 89,92 € (Oitenta e nove euros e noventa e dois cêntimos) com o transporte em ambulância de BB para o Centro Hospitalar do Funchal

Da contestação

1.41. O arguido manteve um relacionamento amoroso com a BB, durante cerca de 10 anos, tendo mantido com esta uma relação de mesa, cama e habitação por um período de 6 anos;

1.42. Tanto o arguido como a BB, eram muito ciumentos, pelo que o relacionamento entre ambos foi ficando bastante fechado, tendo os mesmos deixado de conviver e sair com amigos, vivendo apenas um para o outro.

1.43. E assim ano após ano, foram fazendo planos de vida em conjunto, casar, constituir família e até o nome a dar aos filhos, já haviam escolhido.

1.44. Após o rompimento da relação, o arguido passou a andar bastante perturbado e a não se alimentar devidamente, situação agravada por estar desempregado, o que contribuiu para a perda da sua auto estima.

1.45. O arguido deixou de conseguir dormir, sofrendo de insónias, levando a que a mãe passasse noites em claro ao seu lado.

1.46. O arguido foi consultado no dia 19 de Setembro de 2010, no serviço de urgência da clínica..., pelo Dr...., o qual devido ao quadro apresentado pelo arguido de ansiedade e sintomas ansiosos, acompanhado de constantes insónias, diagnosticou-lhe: Dormonoct-Comp l mg (indutor de sono); Victan-Comp 2mg (ansiolítico); Magnesona-Amp (Magnésio) e Becozyme Forte-Comp (Vitaminas).

1.47. Conforme tinham combinado previamente, no dia 28 de Outubro de 2010, o arguido e a BB encontraram-se, sendo que este levava calçados os sapatos que esta, uns dias antes, lhe tinha oferecido.

1.48. O arguido habitualmente transportava consigo uma navalha no bolso das calças.

1.49. O arguido está arrependido dos factos que cometeu e que vieram a provocar a morte da BB.

1.50. Vive diariamente em grande sofrimento e agonia, por ter provocado a morte da BB.

Provou-se ainda que:       

• O arguido não tem antecedentes criminais;

• A inserção e progressão escolar do arguido decorreu de forma ajustada, tendo o arguido evidenciado capacidades cognitivas. Após a conclusão do 12° ano, enquanto aguardava o seu ingresso no ensino superior, exerceu funções de Operador de Caixa num hipermercado da região durante cerca de um ano;

• Ingressou no ensino superior no ano lectivo de 2004/2005, na Licenciatura em Psicologia Clínica, com Mestrado integrado, que concluiu em Janeiro de 2010. Durante os anos que permaneceu em Lisboa partilhou uma casa com a vítima, vivendo em união de facto.

• Após concluir a licenciatura AA regressou à R.A. da Madeira, tendo desenvolvido acções de procura de emprego, tendo enviado curriculum vitae para vários organismos e respondido a entrevistas de trabalho, sem que tenha conseguido qualquer colocação;

• Depende financeiramente dos progenitores;

• No contexto de reclusão tem vindo a manter um comportamento adaptado ao sistema de normas institucionais, apesar de inicialmente isolar-se evitando sociabilizar, tendo manifestado interesse em beneficiar de acompanhamento psicoterapêutico;

• Tem beneficiando do apoio da família, recebendo visitas semanais no Estabelecimento Prisional;”

B  -  RECURSO

A motivação do recurso do arguido terminou com as seguintes conclusões:

“1º No douto acórdão recorrido foi o arguido condenado como autor material de um crime de homicídio qualificado, pep pelos artigos 131° e 132 n.°l e 2 alínea b) do Código Penal na pena de 19 anos de prisão.

2º A atendendo aos factos considerados como provados, entendemos que nunca a decisão poderia ser a de condenar o arguido como autor material de um crime de homicídio qualificado, bem como se discorda, com o devido respeito, da medida concreta da pena que foi aplicada ao arguido, ora Recorrente, pelo que se entende recorrer da decisão ao abrigo do disposto no art. 410°, n.°l do C.P.P

3º Quanto á condenação pelo crime de homicídio qualificado, pep pelos artigos 131° e 132 n.°l e 2 alínea b) do Código Penal, na pena de 19 anos de prisão, entende o Recorrente que não resultaram provados quaisquer factos indiciadores ou susceptíveis de revelar "especial censurabilidade ou perversidade" exigida pelo n.°l do artigo 132° do Código Penal e que constitui condição "sina qua non" para a qualificação do tipo, ainda que tenha sido praticado contra a pessoa que tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação... art.132° n.°2 alínea b) do Código Penal.

4º O art. 132°do CP, possui um tipo de culpa qualificador, não basta que se verifique um dos exemplos padrão, sendo necessário ainda que por intervenção do critério da culpa, se possa dizer que a circunstância se traduziu numa especial censurabilidade ou perversidade do arguido. 5º Através dos factos provados, constantes do douto acórdão, podemos concluir que as circunstancias que o arguido cometeu o crime não revelam uma especial censurabilidade e perversidade distinta, pela sua anormal gravidade, daquelas que se revelam na autoria de um homicídio simples.

6º O facto de a vítima ter sido namorada do arguido e ter partilhado casa mesa e leito durante seis anos, altura em que se encontravam a estudar em Lisboa, não é suficiente para revelar uma especial censurabilidade ou perversidade diferente pela sua anormal gravidade.

7° No douto acórdão recorrido ficou provado que o arguido manteve relacionamento amoroso com a BB, durante 10 anos tendo mantido uma relação de mesa, casa e habitação por um período de 6 anos.

8º A data dos factos subsequentemente relatados, BB e o arguido estavam separados desde Setembro de 2010, o que sucedeu por iniciativa de BB.

9º Desde essa data, por vezes o arguido e a BB encontravam-se, e este tentava convencê-la a reatar a relação sentimental, o que esta refutava.

10° No dia 28 de Outubro de 2010,por volta das 20 horas e 20 minutos, BB e o arguido dirigiram-se para o cruzamento da Estrada Comandante Camacho de Freitas, na freguesia de Santo António, nesta comarca do Funchal, onde aquela estacionou o veículo que conduzia de marca "Ford", modelo "Fiesta", de matrícula ...-NX, de cor azul.

11° Nessa ocasião, o arguido, que estava sentado á frente no lugar do passageiro, insistiu mais uma vez com BB para reatarem a relação, e, face á intenção firme desta em não reatar o arguido, munido com a navalha cuja fotografia consta de fls.148, desferiu trinta e cinco golpes que atingiram o corpo de BB, sendo dezassete vezes no tórax,  seis no  abdómen,  e  as  demais no  membro  superior direito e esquerdo.

12° Quanto aos comportamentos anteriores aos factos, resultou provado que devido aos ciúmes de ambos, o relacionamento entre ambos foi ficando bastante fechado, tendo os mesmos deixado de conviver sair com amigos, vivendo apenas um para o outro e assim ano após ano, foram fazendo planos de vida em conjunto e até o nome a dar aos filhos, já haviam escolhido.

13° Após o rompimento da relação o arguido passou a andar bastante perturbado e a não se alimentar devidamente, situação agravada por se encontrar desempregado, o que contribuiu para a perda da sua auto estima.

14° O arguido deixou de conseguir dormir, sofrendo de insónias levando a mãe a passar noites em claro ao seu lado.

15° No dia 19 de Setembro de 2010, foi consultado no serviço de urgência da Sé, pelo Dr. ..., o qual devido ao quadro apresentado pelo arguido de ansiedade e sintomas ansiosos, acompanhado de constantes insónias diagnosticou-lhe indutor de sono, ansiolitico e vitaminas, tendo descrito na sua ficha clínica "Depressão" intenção suicida e alteração de comportamento.

16° O parecer Psiquiátrico de fls. 314 a 322 considerou que o arguido não apresentava qualquer quadro psiquiátrico diagnosticável, o mesmo é dizer que não sofria de qualquer doença mental e, de facto o arguido não padece de doença mental.

17° O relatório Psicológico de fls. 312 a 313 revela que o arguido tem acentuada  imaturidade   afectiva,   controlo   ansioso   das  emoções  com marcada   angustia  e  revela  infantilismo  na  forma  de  manifestar  as emoções e lidar com a rejeição e ainda que o mesmo apresenta pouca resistência ao stress e á frustração.

18° O referido quadro espelha bem o estado emocional do arguido na altura em que praticou o facto criminoso objecto do presente processo.

19° 0 estado emocional em que se encontrava o arguido, de ansiedade elevada e de constantes insónias que não o deixavam dormir, afectaram a sua vontade, a sua inteligência, a sua capacidade para se confrontar com as normas, levando a que praticasse os factos transcritos nos autos, causando dessa maneira a morte da mulher que ama e que continua a amar como foi referido pelo mesmo na audiência de julgamento.

20° Com o rompimento da relação, em Setembro e 2010, o arguido passou   a   andar  bastante  perturbado,   a  não   comer,  a  não  dormir, apresentando um quadro de ansiedade bastante elevada, pelo que só podemos concluir que o arguido na altura em que golpeou a BB, actuou com forte perturbação em virtude do que ouviu da mesma, com elevada emoção o que alterou a sua capacidade de reflexão.

21° E tal facto torna-se ainda mais patente dada a personalidade do arguido, a sua acentuada imaturidade afectiva, o seu infantilismo.

22° Este circunstancialismo que levou a que o arguido tenha agido por emoção violenta, sem raciocinar, com estado emocional susceptível de nestas circunstancias poder afectar qualquer pessoa normal, apesar de provado, não foi relevado pelo Tribunal "a quo",

23° Acresce ainda o relatório social refere que o arguido é referido por todos como um individuo com um comportamento normal e cordial nas relações, pelo que a conduta que deu origem ao presente processo é encarada com grande estupefacção, referindo ainda que o arguido possui uma imagem associada a um comportamento convencional, pelo que o seu envolvimento no processo é visto com grande surpresa e incredulidade, o que mais uma vez prova que o arguido agiu com forte perturbação, sem  qualquer  reflexão,   encontrando-se   a   sua  vontade afectada.

24° Acresce também o arrependimento sincero revelado pelo arguido, por ter causado a morte da mulher que referiu amar, vivendo diariamente em grande sofrimento e agonia, por ter provocado a morte da BB.

25° Dos infra discriminados factos resulta as circunstâncias anteriores ao crime, ao momento do crime, não revelam especial censurabilidade ou perversidade distintas daquelas que, em maior ou menor grau, se revelam numa autoria de um crime de homicídio simples.

26° Acresce ainda o facto e no douto acórdão resultar também provado que o arguido não premeditou tais factos de forma a concluir-se por especial censurabilidade ou perversidade.

27° E no que tange à outra qualificativa se subjaz um motivo fútil ou torpe, o Tribunal a quo" também considerou que do acervo provado não se pode afirmar que os motivos que levaram o arguido a desferir os golpes com a navalha, atingindo mortalmente a BB são profundamente repugnantes, baixos, gratuitos, concluindo que a motivação á conduta do arguido não constitui motivo fútil. 28° Assim, o arguido não deve ser condenado pelo crime de homicídio qualificado, nos termos dos artigos 131° e 132 n.°1 e 2 al. b, do CP, mas sim deverá ser condenado pelo crime de homicídio simples nos termos do artigo 131° do Código Penal, pois não resultaram provados quaisquer factos indiciadores ou susceptíveis de revelar "especial censurabilidade ou perversidade" exigida pelo n.°l do artigo 132° do Código Penal e que constitui condição "sina qua non" para a qualificação do tipo, ainda que tenha sido praticado contra a pessoa que tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação.

29° Quanto á medida da pena aplicada, o Tribunal "a quo" ao aplicar 19 anos de prisão efectiva ao arguido, o Tribunal "a quo" violou os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, descurando o fim das penas.

30° O Tribunal " a quo" não atendeu á previsão dos artigos 40° e 71 do CP.

31° A determinação da medida concreta da pena, há-de efectuar-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral positiva (protecção dos bens jurídicos), quer a prevenção especial (reintegração do agente na sociedade).

32° As circunstâncias a que se há-de atender para tal são as enumeradas no artigo 71 do CP, mas também todas as que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do arguido ou contra ele.

33° A pena mostra-se desadequada por não espelhar a culpa do arguido e não ter em conta as necessidades e exigências de prevenção.

34° As condições pessoais do arguido e a sua situação económica, sendo de destacar o circunstancialismo referido no relatório social e no relatório de personalidade, o meio familiar, social, não foram devidamente ponderados na decisão recorrida

35° O quadro apresentado pelo arguido de ansiedade e sintomas ansiosos, o facto de já não dormir, não comer estar desempregado e ainda o seu elevado infantilismo na forma de manifestar as emoções e lidar com a rejeição, não foram devidamente ponderados na decisão recorrida

36° A forma repentina de rompimento da relação na qual o arguido depositava todos os projectos de vida levando a que este passasse a andar bastante perturbado, com sintomas de ansiedade, não se alimentando devidamente e tendo deixado de dormir, o que alterou/afectou a sua capacidade de reflexão, a sua vontade tendo culminado nos factos trágicos, objecto do presente processo, não foram devidamente ponderados na decisão recorrida

37° Todas estas circunstancias referidas têm inegável influência na culpa, diminuindo-a de forma relativamente acentuada e revelam para a medida da pena, pois condicionam inevitavelmente o agir do arguido, não foram devidamente ponderadas pelo Tribunal " a quo", pelo que entendemos que a pena deve ser atenuada.

38° Releva ainda o facto e o arguido não ter qualquer plano prévio, com vista a matar a sua ex-companheira e que o Tribunal a quo" também considerou que do acervo provado não se pode afirmar que os motivos que levaram o arguido a desferir os golpes coma a navalha, atingindo mortalmente a BB são profundamente repugnantes, baixos, gratuitos, concluindo que a motivação á conduta do arguido não constitui motivo fútil.

39° A ausência de antecedentes criminais e que o contexto da reclusão tem vindo a manter um comportamento adaptado ao sistema de normas institucionais, tendo manifestado interesse em     beneficiar de acompanhamento psicoterapêutico.

40° E ainda, o arrependimento do arguido que resultou da sua postura no decurso da audiência e que vive diariamente em grande sofrimento e agonia por ter provocado a morte da BB que resultam provados no douto acórdão recorrido.

41° Tais circunstancias não foram devidamente ponderadas ,na decisão recorrida. Dai que se entenda que a pena deva ser atenuada.

42°As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dois bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade.

43° Ou seja, não só a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela   dos   bens  jurídicos,   mas  também,   em  última análise, podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial e de socialização.

44°  Assim,  a  medida  da  pena  deve,  portanto,  em  toda  a  extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente, só deste modo se alcançará uma eficácia óptima de protecção dos bens jurídicos.

45° O douto acórdão ao aplicar a pena de 19 anos efectivos, para além de não ter ponderado na decisão recorrida as circunstâncias supra referidas, descurou por completo o pensamento vasto e profundo, no qual a capacidade de ressocialização do homem é pressuposto necessário, sobretudo quando se encontra ainda no limiar da maturidade, dai que se entenda que a pena deva ser atenuada.

Termina pedindo que a qualificação dos factos respeite ao crime de homicídio simples do art. 131º do CP, e, se assim não for entendido, que a pena se situe nos 14 anos de prisão.

O MP pronunciou-se e concluiu assim a sua resposta:

1º Realizada a audiência de discussão e julgamento, logrou-se obter prova bastante para que o Tribunal "a quo" desse como provado a prática, por parte do arguido AA, de um (1) crime de homicídio qualificado p. e p. pelos arts. 131° e 132°, n°s 1 e 2, alíneas b), i) e j) do Cód. Penal.

2.° Não houve parte do Tribunal "a quo" qualquer erro na apreciação da prova produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, nem na subsunção dos factos ao Direito. Com efeito,

3.° face ao elevador grau de censurabilidade da conduta do arguido AA, à gravidade do crime praticado e há sua situação familiar profissional e social, julgamos que a pena única de dezanove (19) anos de prisão é adequada ao caso em análise, corresponde, na sua essência, às exigências do art.° 40.°, n.° 1, e 71.°, ambos do Código Penal,

4.° O tribunal "a quo" fez uma mais que correcta aplicação dos artigos 40.°, 71.°, 131° e 132°, n°s 1 e 2, alíneas b), todos do Cód. Penal,

Nestes termos, entende-se ser de negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, a manutenção da sentença recorrida.”

Também o MP sedeado neste Supremo Tribunal se pronunciou doutamente pela manutenção do decidido, quanto à qualificação do crime, entendendo porém que a medida da pena a aplicar deveria ficar próxima dos 16 anos de prisão.

Responderam os assistentes a esta tomada de posição, pugnando pela manutenção da pena de 19 anos de prisão aplicada pela Vara Mista do Funchal.

Colhidos os vistos foram os autos levados à conferência.

 C – APRECIAÇÃO

Cumpre conhecer de duas questões: a qualificação penal feita e a medida da pena aplicada.

 a)  Qualificação

1. Começaremos por retomar aqui [1] considerações que continuamos a ter por pertinentes, a propósito do crime de homicídio qualificado, em geral, e aduzindo algumas notas a propósito do chamado “crime passional”.

1. 1. Importa começar por recordar a chamada técnica dos exemplos-padrão utilizada pelo legislador, no art. 132º do CP, e o facto de estarem em causa, pelo menos para parte muito significativa da doutrina, no seu n.º 2, circunstâncias atinentes à culpa do agente e não à ilicitude, as quais podem traduzir uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. [2]

É possível ocorrerem outras circunstâncias, para além das mencionadas, se bem que valorativamente equivalentes, as quais revelam a falada especial censurabilidade ou perversidade. E, por outro lado, apesar da descrição dos factos considerados provados poder apontar para o preenchimento de uma ou mais alíneas do n.º 2 do art. 132º, não é só por isso que o crime de homicídio, cometido, deverá ter-se logo por qualificado. Interessa sim que ocorra uma “imagem global do facto agravada” [3]  

Como resulta da recensão feita no acórdão proferido no Pº 1224/08 desta 5ª Secção, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem-se pronunciado, uniformemente, neste sentido [cf. Acórdãos de 13.2.97 (Pº 986/96), de 21.5.97 (Pº 188/97), de 10.12.97 (Pº 1207/97), de 18.2.98 (Pº 1086/97), de 3.6.98 (Pº 301/98), de 8.7.98 (Pº 646/98), v g.].

1. 2. Esta posição não pode perder de vista o facto, de se mostrar ultrapassada uma concepção do crime ancorada num elemento puramente objectivo, correspondente à ilicitude, e outro subjectivo, integrador da culpa, tendo a dogmática penal passado a distinguir, sempre no campo da ilicitude, entre um desvalor da acção e um desvalor do resultado. A ilicitude deixou, pois, de ser só a desaprovação pela ordem jurídica, de uma situação criada com a lesão de certo bem jurídico, e passou a incluir, nessa desaprovação, também, a forma como tal situação surgiu, por obra do agente.

 Ou seja, no desvalor da acção passou a incluir-se um juízo de desaprovação, ainda em abstracto, resultante do modo como o crime foi cometido.

Para além da lesão ou da colocação em perigo do objecto da acção, o que integra o desvalor de resultado, a ilicitude compreende ainda, no desvalor da acção, modalidades externas do comportamento do agente, bem como circunstâncias que radicam na individualidade da sua pessoa. Daí até que se tenha passado a falar também, a este propósito, de um desvalor da acção referido ao facto, ao mesmo tempo que de um desvalor da acção referido ao autor. [4]   Só a partir destes dados poderá, a nosso ver, ser abordada a construção dogmática escolhida pelo legislador para o crime do art. 132º do CP.

É que, caso as circunstâncias enunciadas no seu nº 2 fossem taxativas e de aplicação automática, estar-se-ia simplesmente perante uma qualificação do homicídio, atenta a ilicitude acrescida. Concretamente por via do desvalor da acção, e não por via de um maior desvalor do resultado, já que, sendo o bem vida um valor absoluto e eminentemente pessoal (para a ordem de valores constitucional e portanto para o direito penal, não pode haver vidas humanas mais valiosas que outras), causar a morte de uma pessoa esgota, só por si, o desvalor do resultado (e tendo em mente o disposto na al. l), do nº 2, do art. 132º do CP, o facto da vítima ocupar um cargo especial, traduzir-se-á a nosso ver, no aumento do desvalor da acção). 

Ora, como a estruturação do preceito recorreu a exemplos padrão, no seu nº 2, meramente ilustrativos da cláusula geral de agravação que está enunciada no nº 1, difícil se torna, segundo cremos, aceitar a concepção, segundo a qual, a qualificação ficaria a dever-se a um acréscimo de ilicitude. Como se viu, o preenchimento dos exemplos padrão nem é sempre necessário, porque pode a qualificação derivar de um circunstancialismo equivalente, também merecedor de especial censurabilidade ou perversidade, nem é suficiente, porque para além do preenchimento de qualquer das alíneas do nº 2 do art. 132º em foco, sempre importará verificar, no caso, a tal especial censurabilidade ou perversidade do agente. A descida ao caso concreto em apreço para apreciar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, é, tudo visto, antecipar a ponderação da sua culpa, para um primeiro momento da integração típica. Portanto, somos confrontados com uma qualificação do tipo base, por via da culpa acrescida.

Já noutro registo, e como nos diz Teresa Serra, “Sozinha, a cláusula geral é passível de críticas, em sede da função de garantia da lei penal, em virtude da sua grande indeterminação. Por seu turno, a enumeração exemplificativa do nº 2, tomada isoladamente, é susceptível de reparo, ou constituir uma violação à proibição da analogia em direito penal”. [5] Mas a salvaguarda da garantia ínsita no princípio da legalidade, e, por essa via, da constitucionalidade do preceito em foco, ver-se-á realizada, se “A admissão de outras circunstâncias reveladoras da especial censurabilidade ou perversidade do agente [estiver] perfeitamente delimitada aos casos em que tais circunstâncias exprimam um grau de gravidade e possuam uma estrutura valorativa correspondente ao Leitbild dos exemplos-padrão enunciados no nº 2”. [6]  

No contexto desta preocupação garantística, os exemplos-padrão, mesmo que não factualmente verificados, têm ainda assim a função de referência, na valoração negativa de circunstâncias não especificamente previstas, mas que autorizam o homicídio qualificado atípico. O não preenchimento de qualquer das alíneas do referido nº 2, e o aproveitamento de outros elementos agravativos, será legítimo, por se situar num espaço de congruência com os exemplos padrão, justificando-se à mesma a especial desaprovação da conduta.

O modo do cometimento do crime, pela motivação que a ele presidiu, a forma ou intensidade como foi executado, ou ainda pelas qualidades pessoais do agente ou da vítima, tornam-no mais grave. E mais grave porque a conduta daquele agente foi mais reprovável, tendo em conta a distância que separa o crime cometido daqueles outros, que continuando a ser inaceitáveis, sempre se poderia dizer, que em relação a eles encontra eco “a convicção geral do que são motivos atendíveis ou a que é mais difícil resistir”. [7]

Por outras palavras, a especial censurabilidade ou perversidade do agente não será mais do que a revelação de um desrespeito acrescido, ou de um desprezo extremo, do autor, pelo bem jurídico protegido. Traduz também um modo próprio do agente estar em sociedade, e, por tal via, um grau de perigosidade que pode merecer particular atenção.

1. 3. A partir da verificação de circunstâncias que o legislador elegeu, “com efeito de indício”, [8] interessará ver se não concorrerão outros factos que, funcionando como “contraprova”, eliminem a especial censurabilidade ou perversidade do acontecido, globalmente considerado. Ou seja, importa verificar a ausência, no caso, de circunstâncias que neutralizem, ou compensem em sentido inverso, o peso agravativo dos exemplo padrão (ou circunstâncias equivalentes), e que, no limite, poderiam apontar, até, para o homicídio privilegiado do art. 133º do C P.

É a propósito desta última questão que se justifica uma breve incursão pelo tema do chamado “homicídio passional”, expressão que é do senso comum e tem a ver com o caso destes autos.

Entender-se-á como tal o crime cometido, em regra, “repentinamente, na sequência de um impulso emocional súbito”. [9]   

Ao direito penal interessam as emoções na medida em que se traduzam em actos externos. Daí que não seja ao direito penal que cabe censurar as emoções (e sentimentos) vividos, antes seja tarefa sua censurar a falta do controlo possível dessas emoções, quando desembocam no acto ilícito. E é pressuposto da culpa a existência de tal controlo, ainda que indirecto e parcial, por parte do agente que não tenha sido declarado inimputável.

Tem sido apontada, como via de controlo das emoções, a revisão de crenças e juízos de valor inapropriados, o que implica a revisão dos fins e desejos que lhes estão associados. Na verdade, a emoção é irracional quando se não adequa aos planos de vida do agente, e é socialmente desadequada quando leva ao crime. Por outro lado, como forma de controlo da conduta propriamente dita, provocada pelas emoções, costuma indica-se a manipulação (alteração ou afastamento) dos contextos que se saiba propiciarem a acção criminosa.

Com D. González Lagier, diremos depois que, “As emoções não excluem uma eleição antes a possibilitam, mas quanto mais intensas são, mais reduzem o campo de actuação da nossa razão. A nossa razão não vive sem as emoções, mas chega uma altura em que passa a dever bastar-se a si própria. Se a emoção vai mais além, a sua ajuda transforma-se em entorpecimento.” [10]  

E, já no domínio da valoração do comportamento, prossegue aquele autor: “de acordo com a tese clássica, própria da concepção mecanicista, as emoções especialmente intensas diminuem a responsabilidade porque reduzem o controle que temos das nossa acções, e portanto, a nossa culpa. Esta tese, porém, não pode ter em conta as novas figuras que agravam a responsabilidade pelas nossas acções já que motivadas por uma emoção inapropriada”. É referida então a postura, segundo a qual, “o efeito das emoções na responsabilidade penal tem que ver, não com a intensidade da emoção e sim com o seu conteúdo. O relevante é saber se as emoções expressam juízos de valor adequados ou não”. [11]  

 No fundo, é este o sentido da exigência de que a emoção violenta seja “compreensível” para que opere a atenuante especial do art. 133º do C P.

Em consonância, diz-nos J. Curado Neves que “não é, ou pelo menos não é só, a intensidade da emoção associada, mas a sua compatibilidade com o “código de valores individual” que dita a sua [do agente] passagem à acção. [12]   

E já em jeito de síntese final das suas antecedentes considerações, refere este autor com claro interesse para a ponderação do caso que nos ocupa, a propósito dos crimes passionais: ”Como fomos vendo ao longo deste estudo, estes resultam geralmente de um conflito familiar ou amoroso. Na maior parte dos casos o homem mata a mulher que pretende por termo ao matrimónio ou à relação amorosa. Este acto tem normalmente origem em características da personalidade do agente e desenvolvimento da relação. Caracteristicamente o marido ou amante ocupa ou pretende uma posição de superioridade no casal e não consegue suportar a inversão da relação de poderes que culmina no termo da relação por iniciativa da mulher. Neste caso não há razão para desculpar o agente, total ou parcialmente. A pretensão do marido não merece qualquer tipo de protecção, pois ele procura realizar objectivos ilegítimos, como seja a restrição da liberdade da sua parceira, maxime negando-lhe a possibilidade de escolher livremente em que relações amorosas se quer envolver e que tipo de vida familiar pretende levar. Ao invés de uma suposição ainda corrente, o homicida passional não mata por amor, quando muito por amor próprio.” [13]

2. O art.131º do CP prevê quem matar outrem é punido com a pena de 8 a 16 anos. Mas, nos termos do art. 132º, n.º 1, “Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos. E pelo n.º 2 se fica a saber que “É susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

b) Praticar o facto contra (...) pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação (...).”

2. 1. O acórdão recorrido considerou preenchida esta circunstância em termos de a conduta do recorrente suscitar uma especial censurabilidade. E disse a dado passo: “No que respeita à esta circunstância qualificativa, assume aqui nítida importância a relação especial do agente com a vítima.

A partir de 2007, por via da Lei n.° 57/2007, de 4 de Setembro, revelando-se sensível ao problema criminal dos maus-tratos conjugais evidenciados socialmente em grau crescente, e coerente com a sua incriminação de uma forma agravada, o legislador passou a entender que a família deixou de ser incólume ao agravamento no caso de homicídio praticado no seio da relação conjugal.

Nela se tem pretendido encontrar uma particular justificação para a ideia de que circunstâncias como esta são particularmente indicativas de que a agravação do homicídio tem que ver também, ao menos por vezes, com um maior desvalor do tipo de ilícito, só por essa via relevando para verificação de um tipo de culpa especialmente agravado. Não parece exacto, no entanto, que nestes casos não seja necessária nenhuma motivação especial do agente para qualificar o homicídio, bastando que o agente tenha consciência da sua relação especial com a vítima, pois toma-se ainda imperioso que em tais hipóteses, a prática do homicídio revele especial censurabilidade ou perversidade, indiciada pelo facto daquele ter vencido as contramotivações éticas relacionadas com tais laços afectivos.

Ora, a factualidade provada preenche a circunstância qualificadora da al. b) do n° 2 do n°2 do art.° 132° do Código Penal, uma vez que o arguido não se coibiu de matar a sua ex-companheira, com quem viveu em condições análogas às dos cônjuges durante cerca de 6 anos (cfr. 1.1. e 1.41 dos factos), golpeando-a por diversas vezes, no interior de um carro, causando-lhe, entre outros ferimentos, 17 feridas inciso perfurantes no toráx e 7 feridas inciso -perfurantes no abdómen, sendo de realçar as 6 perfurações do coração.” [14]

2. 2. Pelo contrário, o recorrente, entende que o crime cometido não revela especial censurabilidade ou perversidade, centrando-se fundamentalmente no facto de o crime cometido ser um crime passional, levado a cabo debaixo de uma emoção violenta, estando o recorrente arrependido. 

Depois de 10 anos de relacionamento amoroso e 6 de coabitação, em Setembro de 2010 o arguido foi confrontado com o rompimento da relação por parte da vítima. Tinham feito antes, naturalmente, planos de vida que passavam pela vontade de terem filhos, viveram um relacionamento dos dois fechado a outras pessoas, e eram ciumentos, ambos.

Perturbação, falta de vontade de comer, desemprego, falta de auto-estima, insónias e ansiedade, são circunstâncias que o arguido invoca para descrever o seu estado subsequente. A ponto de, a 19/9/2010, o recorrente ter procurado apoio médico tendo sido medicado.

Sem ignorar o parecer psiquiátrico de fls. 314 a 322, nos termos do qual o recorrente se apresenta como indivíduo perfeitamente normal, o mesmo apela ao relatório psicológico de fls. 312 a 313 onde lhe é atribuída pouca resistência ao stress e à frustração, e imaturidade afectiva, entre o mais. Refere ainda o facto de, segundo o relatório social apresentado, ser pessoa com um comportamento social normal, e de ter causado surpresa o cometimento do crime a quantos o conheciam.

2. 3. A argumentação usada pelo recorrente não tem o efeito que ele pretende. Ao invés, não podemos deixar de subscrever a posição assumida no acórdão recorrido, perfilhando a mesma qualificação. 

Como antes se referiu, a propósito de crimes ditos passionais, não é pelo facto de estes serem cometidos debaixo de emoção mais ou menos violenta, ou sob o domínio dos afectos, que se terá que enveredar por uma via desculpabilizadora.

Se o recorrente dos autos amava a vítima e portanto lhe queria bem, acabou por actuar fazendo-a por certo sofrer bastante, e eliminando-a do mundo dos vivos. Isto porque, no quadro emotivo que viveu, se sobrepôs a tudo o mais o seu ego ferido. Matou a BB (não se matou a si), porque não suportou a frustração que lhe causara o corte da relação, por iniciativa da vítima. No fundo, foi o despeito que impediu o recorrente de respeitar a liberdade alheia. O arguido não aguentou ser contrariado e matou quando foi contrariado mais uma vez.

O passado de relacionamento afectivo entre arguido e vítima deveria, em condições de normalidade constituir um refreamento para quaisquer impulsos agressivos. É na ultrapassagem desse travão que se revela uma atitude especialmente censurável. Tanto mais que o modo como o crime foi perpetrado acentua o quadro especialmente desvalioso do seu cometimento: número de golpes infligidos (35), vulnerabilidade da vítima ao volante do seu próprio carro, fuga do arguido e abandono da ex-companheira a esvair-se em sangue, tentativa de fazer desaparecer os objectos pessoais da vítima do local do crime e de se desfazer da navalha utilizada.

O recorrente cometeu sem dúvida o crime do art. 132º nº 1, e 2 al. b), do CP.

b)  A medida da pena

Passemos então à medida da pena aplicada, também aqui retomando considerações já constantes doutras decisões nossas, sem que tenhamos motivo para alterar o ponto de vista expresso.

1. O enquadramento geral da tarefa a realizar, para escolha da pena concreta a aplicar, não pode deixar de se prender com o disposto no artº 40º do CP, nos termos do qual toda a pena tem como finalidade “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. E, em matéria de culpabilidade, diz-nos o nº 2 do preceito que “Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
 Com este preceito, fica-nos a indicação de que a pena assume agora, entre nós, um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição qua tale da culpa. Ao julgador não compete retribuir a culpa, o que não impede o legislador de agravar um ilícito típico por força de circunstâncias inerentes à culpa, como é o caso do art. 131º e do art. 132º, ambos do CP.
Do mesmo modo, a chamada “expiação” da culpa ficará remetida para a condição de uma simples consequência positiva, quando tiver lugar, mas não pode ser arvorada em finalidade primária da pena. Sabido que, por expiação, se entende a compreensão da ilicitude e a aceitação da pena que cumpre, pelo próprio arguido, com a consequente reconciliação voluntária com a sociedade. Para alguns, até, expiação reconduz-se à ideia de “conversão moral” do delinquente.

1. 1. Quanto aos fins utilitários da pena, importa referir que, se o artº 40º do CP optou por cumular a defesa dos bens jurídicos com a reintegração do agente na sociedade, não podemos deixar de ver, nesta última, uma finalidade especial preventiva, em versão positiva, e, na dita defesa de bens jurídicos, um fim último que se há-de socorrer do instrumento da prevenção geral.
É que, “a defesa de bens jurídicos” é, ela mesma, em geral, o desiderato de todo o sistema repressivo penal, globalmente considerado, e não um fim que se possa considerar privativo das penas. Mais, toda a política social de prevenção da criminalidade não visa senão a protecção de bens jurídicos. Daí que a expressão deva ser entendida, em sede de fins das penas, como uma referência à prevenção geral, designadamente positiva ou de integração.
Procuremos fazer, sinteticamente, algumas precisões, desde logo quanto ao conteúdo da prevenção geral que se quer prosseguir com a pena.
- Não está excluído que essa prevenção geral se faça sentir na sua vertente negativa ou intimidadora, devidamente controlada pela medida da culpa suportável pelo agente. No entanto, a finalidade mais importante da pena, como instrumento de controlo social ao serviço da defesa dos bens jurídico-penais, analisa-se na vertente positiva da prevenção geral. Não se dirige portanto, enquanto tal, ao delinquente, ou aos potenciais delinquentes, mas sim ao conjunto dos cidadãos.
-  No que foi, a seu tempo, o dizer de Günther Jakobs, encara-se a prevenção geral como processo de “estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida”, como “modelo de orientação para os contactos sociais”, ou ainda como “réplica perante a infracção da norma, executada à custa do seu infractor”. [15] Aqui se desenham, já, as vertentes que podem assinalar-se à própria prevenção geral positiva: um efeito de confiança, outro pedagógico e ainda um efeito de revivescência do próprio ordenamento jurídico.
- O efeito de confiança efectiva-se quando os cidadãos verificam que o direito se cumpre e por  essa via se sentem mais seguros. É um efeito de satisfação das expectativas depositadas na seriedade da advertência, ínsita na previsão normativa penal. O efeito pedagógico retira-se da criação ou do reforço da auto-censura individual, daqueles que têm que refrear os seus impulsos para cometer crimes e não os cometem. Os quais experimentam, mais ou menos confessadamente, uma satisfação dupla: com o sofrimento do criminoso que tem que cumprir pena por ter cometido o crime, e com o facto de o próprio ter resistido ao crime, subtraindo-se a qualquer pena. Do ponto de vista lógico, também a norma jurídica, enquanto tal, para se afirmar como obrigatória, necessita de atribuir consequências que se vejam efectivadas, para o caso de não ser observada.

1. 2. Quanto à prevenção especial, sabe-se como pode ela operar através da “neutralização-afastamento” do delinquente para que fique impedido fisicamente de cometer mais crimes, como intimidação do autor do crime para que não reincida, e, sobretudo, para que sejam fornecidos ao arguido os meios de modificação de uma personalidade revelada desviada, assim este queira colaborar em tal tarefa. [16] Modificação que se não pode impor, obviamente, mas que se pode e deve proporcionar. Vemos no desiderato legal da “reintegração do agente na sociedade” a vertente positiva da prevenção especial, sem se olvidar a utilidade dos efeitos negativos do afastamento, em casos muito contados, tal como, ainda, da intimidação ao nível individual.
Por isso é que a avaliação da culpa do agente fica ao serviço, fundamentalmente, de finalidades garantísticas, e só do interesse do arguido.

1. 3. Quando, pois, o artº 71º do CP nos vem dizer, no seu nº 1, que “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, não o podemos dissociar daquele art. 40º. Daí que a doutrina venha a defender, sobretudo pela mão de Figueiredo Dias, [17] que, se as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos, e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade, então, o processo de determinação da pena concreta a aplicar, por um lado, excluirá que a expressão “em função da culpa do agente” possa ser vista, como uma recuperação de propósitos retributivos enquanto tais. Por outro lado, reflectirá, de um modo geral, a seguinte lógica:
A partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma “sub-moldura” para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela dos bens jurídicos com atenção às expectativas comunitárias, e, como limite inferior, o “quantum” abaixo do qual “já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.” [18]
Ora, será dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva que deverão actuar os pontos de vista da reinserção social. Quanto à culpa, para além de suporte axiológico-normativo de toda e qualquer repressão penal, compete-lhe, como se viu já, estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a aplicar. A prevenção geral negativa ou intimidatória surgirá como uma consequência de todo este procedimento.
A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem-se orientado quase unanimemente num sentido igual ao que acaba de se referir.
O nº 2 do art. 71º do CP manda atender, na determinação concreta da pena, “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele”. Enumera a seguir, a título exemplificativo, circunstâncias referentes à ilicitude do facto, à culpa do agente, à sua personalidade, ao meio em que se insere, ao comportamento anterior e posterior ao crime.

2. Voltando ao caso concreto, vemos que a frequência com que a ruptura de relacionamentos amorosos por parte de um elemento do casal (geralmente o elemento feminino), leva o outro a cometer crimes de homicídio, é infelizmente cada vez mais frequente. [19] O alarme social gerado é muito forte, e tudo isto concorre no sentido de serem grandes as necessidades de prevenção geral positiva.
O crime foi cometido quando o recorrente tinha 30 anos de idade. Teve um percurso de crescimento e educação sem notas a salientar, licenciou-se e fez o mestrado em psicologia clínica. Nunca arranjou emprego, mas está inserido correctamente do ponto de vista social e da família, que lhe dá, aliás, apoio. Não tem passado criminal e o crime dos autos surge como acto isolado, na sequência da ruptura do seu relacionamento amoroso com a vítima. Não se fazem sentir especiais preocupações de prevenção especial.
A culpa surge na sua modalidade mais grave, o dolo directo. A intensidade dolosa, revelada no número de golpes e locais do corpo visados, já foi valorada em sede de qualificação, por via da culpa acrescida.
De notar que, do ponto de vista psiquiátrico o arguido se revelava uma pessoa perfeitamente normal, aquando do cometimento do crime, e do ponto de vista psicológico apresentava traços de personalidade sem peso suficiente para se repercutirem na medida da pena a aplicar. [20]  
Está arrependido e vive em sofrimento pelo acto que praticou (pontos 1.49. e 1.50. dos factos provados). Aos 30 anos tinha o registo criminal limpo. Estas as únicas circunstâncias que podem ter algum valor atenuativo da sua responsabilidade.
A moldura penal do crime cometido vai de 12 a 25 anos de prisão. Tudo visto, entendemos que a pena justa a aplicar no caso é de dezassete (17) anos de prisão.

D  -  DELIBERAÇÃO

Pelo exposto se decide no S T J e em conferência, conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido, e condená-lo pelo crime de homicídio qualificado do art. 132º nº 1, e 2 al. b), do CP, na pena de dezassete (17) anos de prisão, em tudo o mais se mantendo o decidido no acórdão recorrido.

Sem custas.

 Lisboa, 23 de Novembro de 2011

Souto de Moura (Relator)

Isabel Pais Martins

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[1] Cf. Acórdão de 18/3/2010 (P.º 1374/07.8PBCBR.C2.S1), de 27/5/2010 (P.º 517/08.9JACBR.C1.S1), ou de 8/10/2011 (P.º 88/09.9PJSNT.L1.S1), todos com o mesmo relator do presente processo.

[2] Assim Figueiredo Dias, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, pag. 27, e para uma resenha da controvérsia, na doutrina, sobre se as circunstâncias em causa respeitam ao tipo de culpa ou ao tipo de ilícito, vide Teresa Quintela de Brito in “Direito Penal - Parte Especial: Lições, Estudos e Casos”, pag. 191 e seg.   

[3] Cf. Figueiredo Dias ob.cit. pag. 26.
[4] Cf. v.g. Jescheck in “Tratado de Derecho Penal ” vol. I, pag. 323.
[5] In “Homicídio Qualificado – Tipo de Culpa e Medida da Pena”, pag. 122.

[6] Idem pag. 123.
[7] A expressão é de Curado Neves in “Indícios de culpa ou tipos de ilícitos?” – “Direito Penal, Parte Especial: Lições, Estudos e Casos”, autores vários, pag. 255.
[8] Expressão de Teresa Serra, in ob. cit. pag. 126.

[9] Cf. J. Curado Neves in “A Problemática da Culpa nos Crimes Passionais”, pag. 693.

[10] In “Emociones Responsabilidad y Derecho” Marcial Pons, pag. 149.

[11] Idem, pag. 152.

[12] In “A Problemática da Culpa nos Crimes Passionais”, pag. 663.

[13] Idem, pag. 715).

[14] Por outro lado, afastou a ocorrência de numa actuação reveladora de frieza de ânimo, reflexão sobre os meios empregados ou no facto de o agente ter insistido na intenção de matar por mais de 24 horas, nos termos da al. j) daquele n.º 2, dizendo a dado passo: “Como refere Fernando Silva in Direito Penal Especial - Crimes Contra as Pessoas, "Quid Júris", pág. 73, "A ideia fundamental nesta circunstância é a premeditação. Pressupondo uma reflexão da parte do agente. O que acontece é a influência do factor tempo, e o facto de se ter estudado a forma de preparar o crime, demonstram uma atitude de maior desvalor em relação à ordem jurídica. O decurso do tempo deveria fazer o agente cessar a sua vontade de praticar o crime, quanto mais medita sobre a sua prática mais exigível se torna que não actue desse modo. Nestes casos o agente prepara o crime, pensa nele, reflecte sobre o acto e mesmo assim decide matar, combatendo a ponderação que se lhe impunha"

No caso em apreço, provou-se que o arguido e a vítima combinaram um encontra e que este trazia uma navalha consigo, como era seu hábito.

Assim, esta a factualidade não nos permite afirmar que o arguido planeou o sucedido, por forma a concluir-se por uma especial censurabilidade ou perversidade.”

Também entendeu que não estava preenchida a qualificativa da al. e) do preceito em questão, porque, designadamente, “Do acervo fáctico provado temos que o arguido pretendia reatar o relacionamento amoroso com a vítima, que tinha terminado por iniciativa desta cerca de um mês antes dos factos, tendo desferido vários golpes no corpo desta, com uma navalha, quando esta lhe manifestou a intenção firme de não reatar a relação com o arguido.

Ora, trata-se de um "crime passional", não podendo afirmar-se que os motivos que levaram o arguido a desferir os golpes com a navalha, atingindo mortalmente a ex-companheira, são profundamente e brutalmente repugnantes, baixos, gratuitos.”

Tendo por base a definição de especial censurabilidade e perversidade é de concluir que a motivação subjacente à conduta do arguido não constitui um motivo fútil.”
[15] In “Derecho Penal. Parte General, Madrid, Marcial Pons, pág. 8 e segs.
[16] Vide, a propósito, v.g. Roxin in “Derecho Penal-Parte Especial”, Tomo I, Madrid, Civitas, 1997, pág.86.
[17] Cfr. “Direito Penal Português-As Consequências Jurídicas do Crime”, Coimbra Editora, 2005, pags. 227 e segs.
[18] Cfr. Idem pág. 229.
[19] Não será estranho a este estado de coisas a aceitação social de uniões das facto, que se multiplicam, e onde se geram laços afectivos muito fortes, e, por outro lado, a maior facilidade em lhes pôr termo, sem os compromissos próprios do casamento.
[20] De notar que o arguido foi medicado a 19/9/2010 porque sentia ansiedade e tinha insónias, e o crime foi cometido mais de um mês depois.