ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
5575/06.8TBSTS-A.P1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 12/15/2011
SECÇÃO 1.ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO NEGADA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR MARTIS DE SOUSA

DESCRITORES CONTRATO DE MÚTUO
CONTRATO VERBAL
NULIDADE DO CONTRATO
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
RENOVAÇÃO DO NEGÓCIO
AUTONOMIA PRIVADA
EFICÁCIA DO NEGÓCIO
FIANÇA

SUMÁRIO I - Outorgado, verbalmente, contrato de mútuo para cuja validade seria necessário documento assinado pelo mutuário, autoriza o princípio da autonomia privada que as partes, posteriormente, possam reduzir a escrito o contrato.

II - Enquadra-se a situação na chamada renovação do negócio, solução que permeabiliza a sua validade pois implica uma nova conclusão do mesmo, absorvendo daquele o seu conteúdo e substituindo-o para futuro.
III - Não tendo os respectivos outorgantes prevenido a sua eficácia retroactiva inter partes, a renovação do negócio nulo apenas produz efeitos a partir da data de sua conclusão ou de outra, posterior, nele prevista.

IV - Pela fiança que assumiu naquele contrato vincula o respectivo garante todo o seu património à satisfação do direito do credor.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


I.

AA, executado nos autos em que é exequente BB, deduziu oposição à execução, alegando, no essencial, o seguinte:
a pedido do exequente assinou o contrato de mútuo que serve de título executivo apenas para convencer os segundos outorgantes (mutuários) a assinar o mesmo documento e não para se obrigar também ao cumprimento do negócio; acresce que o documento é falso porque o exequente não entregou qualquer quantia aos segundos outorgantes, à data do contrato ou posteriormente, designadamente o montante de € 15.000,00 que dele consta; na verdade, o exequente havia concedido um empréstimo aos 2ºs outorgantes, mas não tinha qualquer documento que os obrigasse e para os convencer a assinar o documento dado à execução, fixou a dívida em € 15.000,00 e permitiu o seu pagamento em prestações, ao que juntou o fiador; daí que mútuo e fiança sejam nulos.
Concluiu pedindo a procedência da oposição e a condenação do exequente como litigante de má fé.
Notificado da oposição, o exequente veio contestar e, à excepção da alegação da subscrição do contrato de mútuo, impugnou toda a factualidade vertida naquele articulado: negou qualquer conluio entre o exequente e o oponente e referiu que a quantia de € 15.000,00 foi, de facto, emprestada aos mutuários, o que só sucedeu mediante a assunção, por parte do oponente, da qualidade de fiador, mediante documento particular assinado por todas as partes, no estrito cumprimento dos preceitos legais. Concluiu pela improcedência.
Decorridos demais trâmites processuais, teve lugar a audiência de julgamento cuja discussão da matéria de facto culminou com a respectiva decisão fundamentada e sentenciada a causa, decidiu-se julgar a oposição à execução totalmente improcedente, condenando-se o oponente a pagar a quantia de € 15.000,00, a que acrescerão os juros civis desde 20.12.2005 e até integral pagamento.

Inconformado, recorreu o oponente, AA, por apelação, em matéria de facto e de direito, mas sem êxito, porquanto a Relação do Porto, confirmou a sentença proferida na 1ºinstância.
De novo, inconformado, interpôs revista cuja alegação concluiu do seguinte modo:
A) O douto acórdão fez, salvo o devido respeito, errada apreciação da matéria de facto assente e aplicação do direito relativamente à validade do contrato de mútuo. Art. 1142 do CC
B) Com efeito, o contrato de mútuo é um contrato real pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto, e que se completa pela entrega da quantia mutuada.
C) Assim, o empréstimo de certa quantia em dinheiro implica a transferência desse dinheiro do mutuante para o mutuário.
D) Resulta dos factos provados que o Exequente apenas em 2002 entregou a quantia de € 15.000,00 aos mutuários.
E) Não se apurou que tenham sido estipuladas quaisquer condições negociais entre os contraentes até porque o contrato não foi reduzido a escrito, como impõe o art. 1143 do CC.
F) Não constando o contrato de documento escrito verifica-se a sua nulidade pelo vício de forma. Art. 220 do CC
G) Por sua vez o título dado à execução retrata um contrato inexistente.
H) Subjacente ao documento subscrito em 2005 não existe qualquer relação contratual até porque não ocorreu um acordo de vontades para contratar nem a entrega de qualquer quantia.
I) O Recorrente limitou a sua intervenção à subscrição do título dado à execução, uma vez que não participou no contrato de 2002.
J) E evidente que toda a factualidade apurada na decisão recorrida, relativa à fiança, reporta-se exclusivamente ao título dado à execução - o documento subscrito em 20/1/2005.
K) Não ocorreu, assim, a renovação do contrato nulo de 2002 e, por via disso, a validade da garantia (fiança) por vontade expressa do fiador, admitidas pelo Tribunal a quo.
L) A fiança surge ex novo no título executivo, sendo a sua renovação uma ficção.
M) A fiança não é válida se o não for a obrigação principal - art. 632 do CC.
N) A douta decisão recorrida violou ou fez errada aplicação das normas legais citadas e deve ser revogada.
Não foi oferecida contra-alegação.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
A questão da revista prende-se com a renovação do contrato de mútuo nulo por falta de forma e, num segundo momento, com a acessoriedade da fiança.

II.

A - É a seguinte a matéria de facto apurada pelas instâncias:
1. O exequente é portador de um contrato de mútuo gratuito, datada de 20 de Janeiro de 2005 assinado como fiador pelo executado, na qual é confessado o empréstimo de € 15.000,00 pelo período de onze meses e sem juros por ser gratuito.
2. O executado subscreveu, efectivamente, o título (contrato de mutuo) dado à execução.
3. O exequente tratava-se de pessoa até agora considerado amigo, com quem o executado convivera ao longo de vários anos, quer como emigrante em França, quer, ultimamente em Portugal.
4. Por essa razão, o exequente foi até um dos convidados presentes na festa de casamento do filho mais novo do executado.
5. O exequente não entregou qualquer quantia aos segundos outorgantes em 20.01.2005, nem posteriormente, designadamente o montante de € 15.000,00, uma vez que tal quantia foi entregue anteriormente.
6. O dinheiro foi entregue em 20.05. 2002.
7. O exequente só avançou com a execução contra o oponente, fiador, porque tomou conhecimento que aqueles a quem emprestou a dita quantia em dinheiro não tinham bens ou rendimentos que permitissem o seu pagamento.
8. O exequente emprestou a CC e esposa, DD a quantia de € 15.000,00.
9. Tal documento foi assinado pelo executado na qualidade de fiador e principal pagador da quantia mutuada.
10. Posição que o oponente assumiu e que pretendeu assumir, como fez;
11. O exequente só acedeu na concretização do mútuo celebrado mediante a assunção por parte do oponente na qualidade de fiador.
12. O qual era amigo de longa data do exequente e que deu boas referências do casal mutuário;
13. A quantia de € 15.000,00 foi entregue pelo exequente aos mutuários, o que só aconteceu por ter assumido o executado a posição de fiador, mediante documento particular assinado por todas as partes.
14. A assinatura foi aposta pelo punho do executado, tendo o negócio celebrado traduzido a vontade real, livre e esclarecida de todas as partes.

B – Apreciando:

Como resulta da síntese da matéria de facto provada, o exequente emprestou a CC e esposa, DD a quantia de € 15.000,00.
O exequente é portador de um contrato de mútuo gratuito, datada de 20 de Janeiro de 2005 assinado como fiador pelo executado, na qual é confessado o empréstimo de € 15.000,00 pelo período de onze meses e sem juros por ser gratuito.
O executado subscreveu, efectivamente, o título (contrato de mútuo) dado à execução na qualidade de fiador e principal pagador da quantia mutuada.
O exequente não entregou qualquer quantia aos segundos outorgantes em 20.01.2005, nem posteriormente, designadamente o montante de € 15.000,00, uma vez que tal quantia foi entregue anteriormente, em 20.05. 2002.
A quantia de € 15.000,00 foi entregue pelo exequente aos mutuários, o que só aconteceu por ter assumido o executado a posição de fiador.
Considerou a Relação perante esta factualidade que foram celebrados dois contratos de mútuo entre exequente e executado - este na qualidade de fiador -, qualificando o segundo (no qual, ao contrário do primeiro, foi observada a devida forma legal), como uma renovação do primeiro, daí concluindo pela sua validade e a validade da fiança que obriga o autor da revista.
Este insiste, aqui, na nulidade (falta de forma) do primeiro de tais contratos ( e fiança) e inexistência do segundo (falta de entrega da quantia mutuada), negando a referida renovação contratual.
Vejamos, pois:
B1 - Da análise ponderada da factualidade acima exposta resultam evidenciadas duas convenções negociais entre as partes, celebradas em momentos distintos: a primeira, oralmente, em 20.05.2002 na qual teve lugar o empréstimo e entrega da quantia de €15.000 aos mutuários pelo mutuante e a segunda, sob a forma escrita, em 20.01.2005, entre os mesmos outorgantes, versando o empréstimo da mesma quantia que, todavia, como se apurou não foi entregue aos mutuários porque o havia sido, anteriormente, naquela data do ano de 2002.
Integram as aludidas convenções, formalmente, dois contratos de mútuo de natureza civil, não remunerados (arts. 1142º e 1145º,1 do CC), devendo assinalar-se, desde já, a correlação entre ambos.
Nem as partes colocam em causa que o primeiro daqueles contratos era nulo por falta de forma, nos termos do disposto no artº 220º do CCivil, porquanto de acordo com a redacção anterior do artº 1143º do CCivil (introduzida pelo Dec. Lei nº 343/98 de 6/11), para que o mesmo pudesse ser considerado válido necessário se tornava que tivesse sido celebrado sob a forma de documento assinado pelo mutuário.
A referida nulidade, porém, é irrelevante em face da outorga do segundo contrato que, tendo subjacente a renegociação do primeiro, como se viu, procede à sua absorção ou substituição. A isto se chama renovação ou reiteração do negócio, figura de que se socorreu a tribunal recorrido para integrar os factos descritos e que merece o nosso apoio.
Escreve Oliveira Ascensão que “o negócio jurídico é necessariamente um acto de autonomia privada” ( Teoria Geral…II, 1999, p.63). E daí que não se possa recusar aos interessados “inteira liberdade na conclusão de negócio com o mesmo conteúdo de negócio anterior…”(cfr Ac STJ de 14.12.1999, BMJ, 442º, 146) como pura expressão do princípio da liberdade contratual, consagrado no artº405 do CC.
Segundo Rui Alarcão (in Confirmação dos Negócios Anuláveis, 1971, p.107 e ss) a renovação do negócio jurídico consiste na possibilidade de as partes refazerem “um negócio jurídico que antes haviam celebrado, concluindo sobre o seu objecto um novo negócio, destinado a absorver o conteúdo daquele e a substituí-lo para futuro”.
E, explicitando tal noção refere este mesmo autor que o “ negócio anteriormente existente deixa de vigorar – se é que isso não sucedia já – e é substituído por um novo negócio…É como se o acto antecedente não tivesse existido e fosse agora concluído pela primeira vez. Daí a necessidade de se observarem no negócio actual os requisitos substanciais e formais que legalmente se exijam para o antigo. Daí também o facto de aquele negócio só produzir efeito ad futurum, sem retroactividade” ( no mesmo sentido, cfr Manuel de Andrade, Teoria Geral, II, 419, Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª ed. por A. Pinto Monteiro e P. Mota Pinto, , pág. 611).
Resta dizer – voltando a Rui Alarcão, ob cit – que nem sempre a renovação do negócio nulo se fundará numa efectiva vontade das partes, podendo basear-se numa vontade hipotética ou conjectural.
É o que sucede no caso em presença: na falta de vontade directa que a manifeste, a renovação contratual operada há-de conjecturar-se, legitimamente (artº217º,1, 2ª parte do CC) perante a estreita correlação de ambos os contratos celebrados, saliente não só na identidade de seus outorgantes mas também na circunstância de comungarem do mesmo objecto -a quantia que foi mutuada, objecto de entrega aos mutuários na data do primeiro de tais contratos e considerada já entregue aos mesmos mutuários, à data da realização do segundo. Conjectura que, afinal, se molda à renegociação que teve lugar e está subjacente ao clausulado deste último – o contrato dado à execução – onde se dá conta da falta da restituição do tantundem (de outro modo não se entenderia que seu objecto incidisse sobre a mesma quantia) e da necessidade de fixação de um prazo limite para o cumprimento dessa restituição.
Conclui-se, deste modo que face à absorção do primeiro pelo segundo dos contratos de mútuo a que se vem fazendo referência, dúvidas não parecem subsistir de que se está perante uma situação de renovação de contrato nulo, com rectificação da forma legalmente exigida, ao tempo da emissão da declaração, inexistindo, por isso, fundamento de nulidade, renovação esta que se limita aos efeitos ‘ex nunc’, porquanto se não demonstrou nem as partes contratantes quiseram a sua eficácia retroactiva.
Produz, em consequência, o contrato renovado, todos os seus efeitos, a partir da data da renovação, como foi considerado no acórdão recorrido, deste modo se tornando irrelevante e prejudicada a questão da nulidade do contrato de mútuo celebrado em 2002.
B2 - O autor da revista, executado na acção principal em curso, subscreveu o contrato de mútuo na posição de garante, declarando assumir solidariamente com os outorgantes mutuários, a responsabilidade pelo cumprimento integral da obrigação pecuniária dele decorrente, com renúncia ao benefício de prévia excussão. Ou seja. subscreveu o executado um contrato de fiança.
Por via desta, fica vinculado o mesmo executado, a satisfazer o direito de crédito afiançado, ficando pessoalmente obrigado perante o credor e sendo a sua obrigação acessória em relação à daquele (artº627º do CC).
A acessoriedade que caracteriza a fiança revela-se no seu regime legal, segundo o qual não pode exceder a obrigação afiançada nem o ser em condições mais onerosas, dependendo a sua validade da validade da obrigação principal e implicando a extinção desta, a sua própria extinção; cobre, ainda, as consequências legais da mora – cfr artº631º, 634º e 651º daquele diploma legal.
Acrescente-se, por último que a forma da fiança é tributária da forma exigida para a obrigação principal.
Estamos, pois, perante garantia pessoal de qualquer obrigação por via da qual o fiador vincula todos os seus bens patrimoniais à satisfação do direito do credor.
Ora, o recorrente outorgou, na qualidade de fiador, o contrato de mútuo que preside à execução e que, ao contrário do que alega, não padece de vício que afecte a a sua validade, como acima se ponderou; e, mostrando-se, por outro lado, cumpridos os requisitos específicos da fiança que assumiu, tal como se concluiu no acórdão recorrido, não se vislumbra fundamento para impedir, contra ele, o prosseguimento da acção executiva.
Sumariando:
1. Outorgado, verbalmente, contrato de mútuo para cuja validade seria necessária documento assinado pelo mutuário, autoriza o princípio da autonomia privada que as partes, posteriormente, possam reduzir a escrito o contrato.
2. Enquadra-se a situação na chamada renovação do negócio, solução que permeabiliza a sua validade pois implica uma nova conclusão do mesmo, absorvendo daquele o seu conteúdo e substituindo-o para futuro.
3. Não tendo os respectivos outorgantes prevenido a sua eficácia retroactiva inter partes, a renovação do negócio nulo apenas produz efeitos a partir da data de sua conclusão ou de outra, posterior, nele prevista.
4. Pela fiança que assumiu naquele contrato vincula o respectivo garante todo o seu património à satisfação do direito do credor.
III.
Em face do exposto, nega-se a revista e confirma-se o douto acórdão recorrido.
Custas pelo oponente.

Lisboa, 15 de Dezembro de 2011


Martins de Sousa
Gabriel Catarino
Sebastião Póvoas