ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
7712/05.0TBBRG.G2.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/03/2011
SECÇÃO 2ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO CONCEDIDA A REVISTA E ORDENADA BAIXA DOS AUTOS
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR OLIVEIRA VASCONCELOS

DESCRITORES DIREITO DE PREFERÊNCIA
PRÉDIO RÚSTICO
PRÉDIO URBANO

SUMÁRIO
1. Pressuposto fundamental para o exercício do direito de preferência atribuído pelo art.1380º do Código Civil aos proprietários de terrenos confinantes, é de que estes sejam considerados terrenos aptos para cultura.
2. A classificação da natureza do prédio provinda da descrição predial, assim como inscrição matricial é indiferente para efeitos da qualificação civil, se bem que quer da descrição predial, quer da inscrição matricial, podem resultar elementos de facto úteis, para o julgador, no que toca ao conhecimento das realidades prediais que lhe cumpre qualificar.
3. O conceito de prédio rústico – e, logo, de prédio urbano – é um conceito jurídico e não um facto, na medida em que qualificar é valorar juridicamente os factos para o efeito de se decidir se os mesmos se subsumem ou não à norma legal vocacionalmente chamada a decidir o caso.
4. A lei civil – artigo 204º do Código Civil – não conhece o conceito de prédio misto e distingue um prédio rústico de um prédio urbano com base numa avaliação casuística, tendo subjacente um critério de destinação ou afectação económica.
5. Um logradouro é um espaço complementar e serventuário de um edifício, com o qual constitui uma unidade predial.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 2005.07.28, no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, AA instaurou a presente acção com processo ordinário contra BB, CC, DD e EE
pedindo
que fosse reconhecido o autor como dono e legítimo possuidor do prédio que identifica e titular do direito de preferência sobre o prédio negociado entre os réus, de forma a haver para si esse imóvel
alegando
em resumo, que é proprietário de um prédio confinante com o prédio que os primeiros réus venderam aos segundos, o qual beneficia de um direito de preferência legal, pois que, para além de confinantes, ambos possuem uma área inferior à unidade de cultura, sendo que nunca lhe foi dado conhecimento de tal venda.
Contestando
e também em resumo, os réus alegaram que
- o prédio alienado não tinha a natureza rústica, mas sim urbano;
- o autor sabia perfeitamente do negócio realizado, tendo sempre dito que não pretendia comprar tal prédio;
- o preço da vendo do imóvel foi superior ao constante da escritura pública, algo que o autor também bem sabia.
Reconvindo
os réus DD e EE deduziram pedido reconvencional, solicitando que, caso a acção tenha procedência, o autor seja condenado a pagar-lhes uma quantia de 8.663,64€, a título de benfeitorias e despesas pagas com a escritura aqui em causa.

Proferido despacho saneador, fixada a matéria assente e elaborada a base instrutória, foi realizada audiência de discussão e julgamento.

Foi proferida sentença, da qual houve recurso, que determinou a sua anulação, para realização de novo julgamento de matéria inserida em novo artigo aditado à matéria de facto.

Em 10.05.06, depois de efectuado esse julgamento, foi proferida nova sentença, com o seguinte teor:
Em consonância com o exposto, decide-se julgar a presente acção procedente e parcialmente procedente a reconvenção e, em consequência:
- reconhecer o autor como dono e legítimo possuidor do prédio composto de cultura e fruteiras, sito no lugar do ........., freguesia de Oliveira São Pedro, com a área de 11.326m2, confrontando de Norte com caminho de consortes e EN n.º 302, Sul com caminho de servidão e herdeiros de FF, Nascente com EN 302 e Poente com GG e CC, descrito na Conservatória de Registo Predial de Braga sob o n.º 0000000000, bem assim que o mesmo é titular de um direito de preferência sobre o prédio rústico de cultura e ramada, sito no lugar de ........, freguesia de Priscos, concelho de Braga, descrito na 2.ª Conservatória de Registo Predial sob o número 000 e inscrito na matriz sob o art.º4, nomeadamente sobre a venda efectuada pelos réus AA e CC aos réus DD e EE, pelo preço de €22.500.
- condenar o autor a pagar aos réus DD e EE a quantia que se vier a liquidar, correspondente ao aumento do valor do prédio ora objecto de preferência decorrente da colocação de arreostas e ferros na ramada existente, reparação do sistema de rega, plantação de videiras e reparação do caminho.
- absolver o autor do demais peticionado em via reconvencional…”

Ambas as partes deduziram apelação – o autor subordinadamente - tendo a Relação de Guimarães, por acórdão de 2011.05.03, julgado procedente a apelação dos réus, absolvendo-os do pedido, não conhecendo do recurso subordinado.

Inconformado, o autor deduziu a presente revista, apresentando as respectivas alegações e conclusões.
Os recorridos contra alegaram, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

As questões

Tendo em conta que
- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;
- nos recursos se apreciam questões e não razões;
- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido
a única questão proposta para resolução consiste em saber se o prédio do autor tem natureza rústica.

Os factos

São os seguintes os factos que foram dados como provados nas instâncias:
1. Por escritura pública outorgada no Terceiro Cartório Notarial de Braga, em 3 de Fevereiro de 2005, exarada a fls. 20 e 21 do livro para escrituras diversas 129-A, os primeiros réus, BB e mulher CC, declararam que, pelo preço de €7.500, que já receberam, vendem ao ora segundo réu, DD, o prédio rústico de cultura e ramada, sito no lugar de ......., freguesia de Priscos, deste Concelho, descrito na Segunda Conservatória de Registo Predial sob o nº 000 e inscrito na respectiva matriz sob o art. 4º e anteriormente inscrito sob os arts. 670 e 671.
2. Há pelo menos 25 anos, o autor por si e antecessores, no terreno de cultura e fruteiras, sito no lugar do ......., freguesia de Oliveira São Pedro, com a área de 11.326m2, confrontando de Norte com caminho de consortes e EN n.º 302, Sul com caminho de servidão e herdeiros de FF, Nascente com EN 302 e Poente com GG e CC, encontrando-se o mesmo descrito na Conservatória de Registo Predial de Braga sob o n.º 000000000, tem plantado, numa parte com 7238m2, kiwis e vinha de bordadura, fazendo-o à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de que tal lhe pertence.
3 – O terreno identificado em 2), confina com o terreno mencionado na escritura pública de 1).
4 – A parte de 7238m2 do prédio descrito em 2-) está destinada à plantação de fruta e kiwi, o mesmo se passando com o prédio transmitido pelos réus.
5 – O prédio descrito em 2-) é composto por casas de habitação de senhorio e caseiro de 2 andares, com área coberta de 556m2, logradouro de 4.034m2 e terreno de cultura e fruteiras de 7238m2, sendo que o valor económico das casas de habitação (senhorio e caseiro) é superior à restante parte do prédio, pelo menos 3 vezes.
6 – O autor tinha conhecimento da intenção dos réus BB e CC em venderem o prédio, bem como da intenção dos réus DD e mulher em lho comprarem, sendo que os réus AA e CC comunicaram ao autor que pretendiam vender o prédio e este não manifestou interesse na sua compra.
7 – O preço real da venda foi de 22.500€, e não de 7500€, conforme declarado na citada venda, valor esse que os réus DD e EE Pagaram aos réus BB e CC.
8 – Após a compra de tal imóvel, os réus DD e EE executaram no prédio os seguintes trabalhos e obras: colocaram arreostas e ferros na ramada existente, repararam todo o sistema de rega, plantaram videiras, repararam o caminho que dá acesso ao prédio.
9 – E pagaram a quantia de 163,64€, proveniente de imposto de selo, emolumentos notariais e certidões, por via de tal transmissão.
10. Os segundos réus não são proprietários de terrenos confinantes com o prédio acima identificado e que por eles foi adquirido.


Os factos, o direito e o recurso

Na sentença proferida na 1ª instância entendeu-se julgar procedente a acção porque, para além do mais, se considerou que o prédio do autor tinha natureza rústica, uma vez que a sua “afectação primordial” era a actividade agrícola.
No acórdão recorrido entendeu-se que essa afectação não estava provada, pelo que “indemonstrada a natureza rústica do seu prédio confinante” improcedia a acção proposta pelo autor, dado cumprir a este a sua demonstração.
O recorrente entende que o terreno em causa tinha que ser tido como rústico, pois gozava de autonomia funcional e económica da casa e logradouro também pertencentes aos réus transmitentes.
Vejamos.

Pressuposto fundamental para o exercício do direito de preferência atribuído pelo art.1380º do Código Civil aos proprietários de terrenos confinantes, é de que estes sejam considerados terrenos aptos para cultura.

Na verdade, o referido preceito visa fomentar o emparcelamento de terrenos a minifundiários, criando objectivamente as condições que, sob o ponto de vista económico, se consideram imprescindíveis à constituição de explorações rendíveis - Pires de Lima e Antunes Varela “in” Código Civil Anotado, anotação 4ª ao art.1380º.

Para além deste, referem os mesmos autores na citada obra, mais os seguintes pressupostos do direito real de preferência atribuído a proprietários confinantes:
a) - que tenha sido vendido ou dado em cumprimento um prédio rústico com área inferior à unidade de cultura;
b) - que o preferente seja dono do prédio confinante com o prédio alienado, necessariamente também de natureza rústica;
c) - que o prédio do proprietário que se apresenta a preferir tenha área inferior à unidade de cultura;
d) - que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante.

Assim, temos que concluir que quem pretenda que lhe seja judicialmente reconhecido o referido direito, terá de alegar e provar, de acordo com as regras de repartição do ónus de prova previstas no art.342º do mesmo diploma, estes pressupostos - cfr. Henrique Mesquita, Direito de Preferência, “in” CJ XI 1986, 5, 50.

O único requisito que aqui está em causa é a qualificação como rústico do prédio do autor

Ora, dos factos dados como provados, temos que concluir que a parte do prédio do autor em causa não pode deixar de ser considerada como terreno rústico, uma vez inserida que está num prédio que assume essa natureza.

Trata-se de um prédio composto por casas de habitação de senhorio e caseiro, de dois andares, com área coberta de 556 m2, logradouro de 4.034 m2 e terreno de cultura e fruteiras de 7.238 m2, descrita no Registo Predial como prédio misto.

Como é sabido, esta classificação, assim como a classificação provinda da inscrição matricial, é indiferente para efeitos da qualificação civil, que tem critérios próprios, se bem que “quer da descrição predial, quer da inscrição matricial, podem resultar elementos de facto úteis, para o julgador, no que toca ao conhecimento das realidades prediais que lhe cumpre qualificar” – Menezes Cordeiro “in” Tratado de Direito Civil Português, Volume I, Tomo II, 2ª edição, página 123.

O conceito de prédio rústico – e, logo, de prédio urbano – é um conceito jurídico e não um facto, na medida em que qualificar é valorar juridicamente os factos para o efeito de se decidir se os mesmos se subsumem ou não à norma legal vocacionalmente chamada a decidir o caso.

A lei civil – artigo 204º do Código Civil – não conhece o conceito de prédio misto e define um prédio rústico como “uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica” e um prédio urbano, como “qualquer edifício incorporado no solo, com terrenos que lhe sirvam de logradouro” – nº2 do referido artigo.
A distinção assenta, assim, numa avaliação casuística, tendo subjacente um critério de destinação ou afectação económica.

Ora, no caso concreto em apreço, a área da parte rústica do imóvel do autor dificilmente tornaria defensável a sua subordinação às casas em termos de logradouro.
Na verdade, um logradouro é um espaço complementar e serventuário de um edifício, com o qual constitui uma unidade predial.
No caso em apreço, não vemos como classificar o “terreno de cultura e fruteiras” com a área de 7.238 m2, “destinado à plantação de fruta e Kiwi” como fazendo parte do logradouro de um prédio urbano.
O núcleo essencial do “prédio misto” do autor, a sua destinação e afectação, são próprios de um prédio rústico e não de um logradouro.

A esta conclusão nos conduz a consideração da proporção da sua área com área das casas de habitação – o que indica que a afectação agrícola era primordial – a consideração da distinção feita no Registo Predial entre o “logradouro” das casas e o “terreno de cultura e fruteiras” em causa – o que indica que este não era tido como logradouro das casas – a consideração que essa área maioritária do prédio tinha como destino a plantação de fruta e Kiwi – o que indica a afectação agrícola dessa área – e finalmente, a consideração das existência de “casas de habitação de senhorio e de caseiro” – o que indica se tratava de um prédio destinado a exploração agrícola.

Tudo indica, pois, que a habitação era fundamentalmente um meio de ligação à terra cultivada e não esta um mero complemento da habitação.

É claro que competia ao autor alegar e provar que o seu prédio era rústico.
Mas, salvo o devido respeito pelo entendimento vertido no acórdão recorrido, os factos dados como provados para isso apontam, conforme atrás ficou exposto.

Apenas mais uma nota.
Nos termos do corpo e da primeira parte da alínea a) do artigo 1381º do Código Civil “não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes (…) quando alguns desses terrenos constitui parte componente de um prédio urbano (…)”.
No artigo 8º da sua contestação, os réus alegaram que “o terreno de cultura e fruteiras que integra o prédio misto em causa não tem autonomia física, constituindo apenas um complemento das casas de habitação de senhorio e caseiro”
No ponto 10º da base instrutória perguntou-se se “o dito terreno de cultura e fruteiras não tem autonomia física e constituía um complemento das referidas casa de habitação do senhorio e caseiro”.
Tratavam-se de factos impeditivos do direito invocado pelo autor e, por isso, o respectivo ónus probatório recaía sobre “aquele contra quem a invocação é feita”, ou seja, os réus recorridos.
Tal matéria foi dada como não provada.
Daí que, por este motivo, nada impedia a existência do direito do autor.

Como já ficou referido, para além do carácter rústico do prédio do autor, não estão aqui em causa os restantes requisitos para aquela existência.
Assim não resta outra conclusão senão reconhecê-la.
Merecendo, assim, censura, o acórdão recorrido.

Mercê da decisão de julgar improcedente o pedido do autor de reconhecimento do invocado direito de preferência, a Relação não conheceu do recurso subordinado interposto por este, relativo ao preço da alienação do prédio.
Revogada agora essa decisão, deverá a Relação pronunciar-se sobre a questão levantada pelo autor.


A decisão

Nesta conformidade, acorda-se em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido e repondo-se a decisão proferida na 1ª instância acima transcrita, com excepção da matéria relativa ao preço da alienação, que será objecto de apreciação por parte da Relação de Guimarães no recurso subordinado interposto pelo autor e ainda não conhecido por ela.
Custas pelos recorridos.
Transitado, remeta à Relação de Guimarães.

Lisboa, 3 de Novembro de 2011

Oliveira Vasconcelos (Relator)
Serra Baptista
Álvaro Rodrigues