ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
550/09.3GBPMS.C1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/23/2011
SECÇÃO 3ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL RECURSO PENAL
DECISÃO NEGADO PROVIMENTO
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR SANTOS CABRAL

DESCRITORES TRIBUNAL DE JURI
PRINCÍPIO DA LEALDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
INEXISTÊNCIA PROCESSUAL
EXAMES E PERÍCIAS
PARECER TÉCNICO

SUMÁRIO


I-O júri, na sua essência, delibera sobre a ocorrência dos factos relevantes para saber se se verificam os elementos constitutivos do tipo de crime, se o arguido praticou o crime ou nele participou, se o arguido actuou com culpa, se se verifica alguma causa que exclua a ilicitude do facto e se se verifica qualquer outro pressuposto de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação de uma medida de segurança. Depois de apreciar os factos, o júri delibera sobre todas as questões de direito suscitadas pelos factos julgados. Esta actividade decisória insere-se na apreciação da questão da culpabilidade, e a ela se refere o artigo 368.° do Código de Processo Penal II-Comum a todos os membros do tribunal de júri é a obrigação de procura da verdade material a qual, porém, não invalida o diferente apetrechamento em termos de domínio das regras procedimentais que conduzem tal procura III- A lei processual ao consubstanciar a função do júri no respectivo Tribunal, e precisar o foco da sua intervenção, não deixou por alguma forma de acentuar a intervenção concreta que é exigida aos seus elementos singularmente considerados pois que á necessária formação jurídica dos Magistrados se contrapõe, em relação aos membros do júri não Magistrados, a exigência de uma intervenção de cidadania, mas que não está necessariamente ligada uma qualificação que habilite a intervenção em termos de direito. É nessa sequência que a Lei nº 59/98, de 25.8, veio consagrar o voto de vencido em termos de direito, mas restringindo-o aos juízes togados, não obstante a competência dos jurados para decidir sobre a questão de direito IV Princípio envolvente, e estruturante do processo penal na sua globalidade é o princípio do processo justo. Esta máxima, formulada em termos de cláusula geral, é uma consequência das decisões valorativas fundamentais do Estado de Direito e do Estado Social V-A ideia do procedimento justo expresso, processualmente, no princípio da lealdade, deve compreender-se como uma exigência concreta da optimização de valores constitucionais. Nesse plano assumem uma inegável relevância valores como a dignidade humana, que tem inscrita a protecção do princípio de confiança recíproca na actuação processual, que deve pautar a conduta de todos os intervenientes processuais (qualquer que seja o plano em que se movimentem), e o princípio de igualdade de armas (este em determinadas fases processuais) VI- Face a tal principio não são admissíveis condutas processuais orientadas para a instrumentalização do processo penal, colocando-o ao serviço de finalidades que visam o seu entorpecimento, quando não a negação dos seus princípios orientadores VII-Em termos gerais e, em qualquer litígio, a existência de um princípio geral da lealdade é essencial para a afirmação da existência do Estado de Direito VIII-A não oposição á junção de um documento e a posterior invocação da inexistência da decisão de junção, em relação á qual se afirmou a mesma não oposição, é uma conduta que tocas regras da lealdade processual e, como tal, afecta a existência de um processo justo. IX-Qualquer elemento do tribunal de júri no caminho para a determinação da culpabilidade, e determinação da sanção, tem o direito, e dever, de se esclarecer, incluindo o de promover todos os meios de prova cujo conhecimento se afigure necessário á descoberta da verdade. Porém, situação distinta é a aferição da regularidade jurídica de um procedimento processual quando este recaia no âmbito dos poderes de direcção da audiência o qual deve ser efectivado pelo Presidente do Tribunal X-Admitindo-se a inexistência nunca a mesma pode ter como consequência o expurgar de actos que se mantêm incólumes na sua integridade processual, ou seja, o facto de um acto processual ser inexistente não implica a viciação insuperável de todo o julgamento. Tal extrapolação constitui uma inaceitável expansão de efeitos que devem ser limitados única, e simplesmente, ao que se encontra em relação de causa e efeito com o vício cometido XI-Tal deriva do próprio princípio da proporcionalidade que não é uma auto-estrada de uma só via cuja protecção se restrinja ás limitações de prova resultantes da limitação imposta pela protecção de direitos fundamentais. Pelo contrário, o mesmo também implica que tais restrições se limitem única e exclusivamente ao admissível e proporcional na reposição da legalidade violada. XI-O uso do princípio da proporcionalidade em sentido estrito implica que se verifique se a restrição dos direitos individuais sujeitos á sua aplicação consagra uma relação razoável ou proporcional com a importância do objectivo que se pretende atingir. XII-Definidos tais pressupostos de aplicação do principio da proporcionalidade é manifesto que decorre do mesmo a necessidade uma justa equação entre a violação cometida e as suas consequências, ou seja, mesmo admitindo-se, por mera hipótese, a inexistência processual nunca a mesma poderá ter, em abstracto, um efeito metastizante relativamente ao julgamento considerado globalmente, mas única e simplesmente em relação aos actos contaminados pelo acto processual inexistente. XIII-O efeito irradiante das nulidades e proibições de prova, fazendo estender os seus efeitos a actos processuais, quando não até ao próprio julgamento, que não têm qualquer relação de causalidade com o vício cometido é o assumir de um processo formal, longe da procura da verdade material, no qual a declaração da existência do vicio surge muitas vezes como forma de evitar o encarar as questões substanciais da responsabilidade criminal XIV-A inexistência corresponde a um tipo processual em que a anomalia é tão grande que o acto nem sequer é comparável com o seu esquema normativo, não alcançando aquele mínimo imprescindível para poder ser reconhecido como tal e ter vida jurídica XV-A fundamentação da decisão judicial constitui um elemento indispensável para assegurar o efectivo exercício do direito ao recurso, que de forma explícita foi constitucionalmente garantido com o aditamento da parte final do n.º 1 do artigo 32.º da CRP XVI- Na denominada fase pré-processual, e nos termos do artigo 249 do Código de Processo Penal, a entidade policial procederá aos exames dos vestígios do crime, assegurando a manutenção do estado das coisas e dos lugares; colhendo informação das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição; procedendo a apreensões no decurso de revisas e buscas. Estamos em face de uma competência cautelar pré-ordenada para os fins do processo, mas que não tem uma natureza processual, sendo certo que a sua posterior aquisição no âmbito do processo está dependente de uma convalidação, efectuada pelo “dominus” do inquérito -o Ministério Público- a qual tem como pressuposto o circunstancialismo em que actuou o mesmo órgão de policia criminal XVII-Importa precisar a distinção entre competência para a prevenção criminal e a competência para a prática de actos em regime de pré-inquérito pois que estes, sendo reactivos á notícia de um crime, são exercidos com vista á sua futura convalidação. Por contraposição, a prevenção criminal, existe fora do âmbito do espaço processual e, não estando sujeita aos princípios de processo criminal, está subordinada aos normativos constitucionais limitativos de intromissões em direitos, liberdades e garantias XVIII-A inspecção pode incidir em pessoas - quer agentes, quer vítimas da infracção, quer intervenientes acidentais -, em locais - onde se praticou e/ou se congeminou o crime ou em objectos que podem ter sido os instrumentos do crime ou quaisquer outros que apresentem relevância para a descoberta da verdade Á prova por inspecção ocular estão sujeitas todas as coisas, mas também as pessoas com vida e os cadáveres, na medida em que podem influenciar o convencimento do juiz através da sua existência, situação ou natureza. A realização duma inspecção ocular pode ter lugar instrumentalizando todo e cada um dos sentidos; através da vista (observação do lugar do facto, da situação do cadáver, das feridas e manchas de sangue, impressões digitais, rastos de pegadas), por meio da audição (perfil de uma aparelhagem musical), através do olfacto (alimentos em mal estado, estrume acumulado ao ar livre), pelo tacto (o gume da faca). XIX- Os exames consubstanciam uma providência cautelar que tem por finalidade que se fixe em auto os vestígios e os indícios ou se permita a observação directa dos factos que relevem em matéria de prova. XX-Os autos, tal como os documentos, as imagens e as perícias são, quase sempre, provas que, em princípio, não carecem de leitura - basta o contraditório e o exame -, mas a sua leitura e visualização pode ser requerida na audiência. Esta norma tem a utilidade de tornar bem claro que a tal não podem colocar-se obstáculos que não sejam aqueles que ela mesma enuncia. XXI- O Código de Processo Penal refere-se aos pareceres de técnicos (como também aos pareceres de advogados e jurisconsultos) nas normas disciplinadoras da prova documental - art. 165.° do CPP - para determinar que os mesmos podem ser juntos aos autos até ao encerramento da audiência. Os pareceres técnicos podem versar sobre uma pluralidade de temas, mas têm em comum não assentarem o seu juízo no conhecimento pessoal e directo dos factos objecto de prova sobre os quais se pronunciam XXII-Caso as suas convicções se fundamentem em factos directamente percepcionados, então o meio processual próprio de as manifestar consistirá na prestação de depoimento testemunhal, não podendo ser valorado o alegado conhecimento directo de factos constante de parecer XXIII-O valor probatório do parecer é apreciado livremente pelo tribunal. Situação diferente é o valor cominado para a prova pericial em relação á qual o art. 166 do Código de Processo Penal estabelece uma presunção juris tantum de validade do parecer técnico apresentado pelo perito o qual obriga o julgador. Significa o exposto que a conclusão a que chegou o perito só pode ser desprezada se o julgador, para poder rebatê-la, dispuser de argumentos, da mesma forma, científicos (n.º 2 do art. 165). *


DECISÃO TEXTO INTEGRAL

                                   

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

            AA veio interpor recurso da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra que o condenou, em autoria material de um crime de homicídio, pºpº no artigo 131 do Código Penal agravado pelo cometimento com a arma nos termos p.p. no nº3 do artigo 86 da Lei 5/2006 na pena de doze anos e seis meses de prisão; pela prática de um crime de detenção de arma proibida p.p. pelo artigo 86 nº1 alínea c) da mesma Lei foi o arguido condenado na pena de um ano e dois meses de prisão.

            Em sede de cúmulo jurídico o arguido foi condenado na pena única de treze anos de prisão.

     As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões da respectiva motivação de recurso onde se refere que:

B1: Na parte agora em apreço do aresto do tribunal da relação de Coimbra — relativa à competência e funcionamento do tribunal do júri — entendeu-se que a decisão sobre produção de prova requerida durante a fase da audiência pertence aos juízes do tribunal colectivo que compõem o tribunal do júri, intervindo o júri apenas no momento da sentença, e só quanto às decisões respeitantes à culpabilidade e à determinação da sanção. Por consequência, não se verificaria a preconizada nulidade do julgamento, estando apenas em causa uma mera "irregularidade".

B2: Na aludida peça processual (art. 416° do Código de Processo Penal), o agora recorrente louva-se, desde logo, nos conhecimentos do seu defensor, na opinião recente de DÁ MESQUITA, Processo penal, prova e sistema judiciário, Wolter Kluver/Coimbra editora, 2010, sobretudo 202 ss, o qual preopina justamente no sentido em que corre o pensamento da lei, do recorrente e, mais do que isso, no ponto 7 do item III da exposição de motivos do CPP87, cujo teor, que consta da motivação, se dá por aqui transcrito

B3: O bom entendimento encontrou, outrossim, acolhimento no recentíssimo estudo de DAMIÃO DA CUNHA, A reforma legislativa em matéria de corrupção, uma análise crítica das leis nos 32/2010, de 2 de setembro e 41/2010, de 3 de Setembro, Coimbra Editora, 2011, 26, n. 21.

B4: Já no momento da elaboração da presente minuta, viu-se o entendimento sufragado na "Apostila" ao "Parecer" junto anteriormente, também da autoria de FARIA COSTA, "respondendo" ao confucionismo sufragado pelo acórdão do tribunal da relação de Coimbra, ora sob recurso. Com efeito,

B5: Requerida a intervenção do tribunal do júri é evidente caber a todos os respetivos membros, em pé de igualdade a tomada de todas as decisões relativas ao decurso da audiência.

O que está claramente explicitado, embora com outra linguagem, no acórdão, em página não numerada, onde a relação resume nos seguintes termos, o seu insustentável entendimento a propósito do art. 13° do Código de Processo Penal, norma que, por isso mesmo, foi violada:

"Atribuindo o art. 368°, n° 1 do C.P.P. a competência para a decisão das questões prévias ou incidentais, não ao Presidente do Tribunal, mas ao Tribunal, então é aos Juízes do Tribunal Coletivo, que compõem o Tribunal de Júri, que compete decidir este tipo de questões"., a qual, teria a "vantagem" de entronizar "valores" e interesses "corporativos".

B6: A "conceção diferenciadora", baseada numa visão "mista" dos poderes de um certo tribunal do júri, jurados que assim seriam como que meros auxiliares do fulcro do tribunal do júri, os membros do tribunal coletivo, e, por conseguinte, estranhos (os jurados laicos) à essência daquele tribunal, mas aos quais a lei reconhece. inequivocamente poderes em matéria estritamente de direito e em pé de igualdade com os juízes togados.

B7: E mais e, nesta sequência, que dizer do seguinte "argumento" constante do aresto?

"Se atendermos, porém, ao despacho de 30 de novembro de 2010, a folhas 1585, onde o Ex. Mo juiz presidente, sem mencionar a existência de deliberação, declarou que 'Entende o coletivo de juízes togados que a decisão sobre a admissibilidade da prova lhe competia inteiramente e por isso se limitou a fazer uso da sua competência", é bem provável que também o despacho em causa, proferido a 28 de setembro de 2010, tenha sido precedido de deliberação dos juízes do tribunal coletivo, que compõem o tribunal do júri"?

Ora, a compreensão dos dados legislativos, bem como a daqueles resultantes dos autos e respetivas atas, não pode basear-se em meras probabilidades.. No caso concreto, até existe uma ata cujo teor arreda definitivamente a assinalada "probabilidade".

B8: É o mesmo que dizer: foi A o autor do crime? É provável! Então tem de ser condenado.

B9: Aliás, examinando criticamente este argumento, FARIA COSTA, na já acima referida apostila, fustiga-o em termos que não podem deixar de ser acompanhados por qualquer jurista que queira reclamar-se das credenciais de "juiz": "imparcialidade" e zelador do cumprimento da CRP e demais legislação em vigor. Posto isto,

BIO: é, desde logo precípuo e sem prejuízo do demais que se referirá de caminho, que o tribunal incorreu na nulidade prevista no artigo 379°-1, ai. c), do CPP. ao verdadeiramente omitir qualquer consideração de índole substancial sobre a questão da competência e funcionamento do tribunal do júri.

B11: Passar-se-á a concluir sobre certas considerações bordadas pela relação a propósito do decurso dos autos. E assim:

"Das atas de audiência de julgamento dos dias 4 de outubro de 2010 e 30 de novembro de 2010, resulta, expressamente, que os despachos em causa foram proferidos pelo ex.mo juiz presidente após deliberação dos juízes do tribunal coletivo. Considerando que a admissibilidade da prova requerida durante a audiência de julgamento é da competência dos juízes do tribunal coletivo que compõem o tribunal do júri, cremos que nenhuma ilegalidade foi então cometida"

B12: "Da ata da audiência de julgamento, do dia 28 de setembro de 2010, apenas resulta, acrescenta-se no texto recorrido, que o ex.mo juiz presidente proferiu um despacho admitindo a junção de um documento.

Se atendermos, porém, ao despacho de 30 de novembro de 2010, a folhas 1585, onde o ex.mo juiz presidente, sem mencionar a existência de deliberação, declarou que "Entende o Coletivo de Juízes togados que a decisão sobre a admissibilidade da prova lhe competia inteiramente e por isso se limitou a fazer uso da sua competência", é bem provável que também o despacho em causa, proferido a 28 de setembro de 2010, tenha sido precedido de deliberação dos juízes do tribunal coletivo, que compõem o tribunal do júri". Então

B13: O vício aqui recorrente, é a inexistência dos atos praticados com usurpação de funções, ou seja, aqueles provenientes de entidades putativas, ou entidades às quais a lei não reconhece poderes (jurisdição) para a prática de determinados atos processuais, no caso os juízes togados que compuseram o coletivo meramente integrante da colegialidade do tribunal do júri, a qual constitui a pedra de toque da visão legal deste tipo de jurisdição (Código de Processo Penal, parte I, Livro I, título I, capitulo I (da jurisdição), artigos 8°e9°e 13°.

B14: Aquele ato era, nos termos legais, da competência do tribunal do júri. Não se verificou qualquer ato, mas mera aparência dele, vício que o tribunal a quo considerou de somenos, atribuindo-lhe o qualificativo de mera irregularidade (!!!).

B15: Porém, como ensinava o Prof. CAVALEIRO DE FERREIRA, a referida situação configura, justamente, de forma típica o exemplo de escola do vício da inexistência. Invalidade que acarreta a da globalidade do procedimento no âmbito do qual ocorreu, com a consequência de que do "ato" procedimental não sobra mais do que mera aparência deste, vício genético de tal forma inquinador que não pode deixar de considerar-se de conhecimento oficioso porque não se forma caso julgado a propósito da respetiva "matéria", devendo ser conhecido e declarado a todo o tempo, com a assunção da legal consequência que é a da anulação e necessária repetição do encadeamento de atos (julgamento) do qual aquele, a existir, devia ter feito parte.

B16: O recorrente passará agora a concluir sobre as razões objeto de reflexão no item A3 da motivação: a questão da "codeína". A este propósito, fica evidenciado sem resto, que o tribunal recorrido raciocinou como se estivesse a julgar um feito cível. Com efeito, a indicação, pelos sujeitos processuais, nos momentos procedimentais côngruos, não tem por escopo o exercício de qualquer contraditório, mas apenas o controlo judicial da adequação dos meios de prova propostos, nos termos dos artigos 283°-3, 284o-2, ai. b) e 315°-2, todos do Código de Processo Penal e na referida medida todos violados na compreensão que lhes foi adscrita. Ora,

B17: foi este irrito entendimento que constituiu o demiurgo da ausência de referência à "codeína", existente no sangue da vítima e nessa medida pericialmente demonstrada, com interesse para a avaliação probatória de certas reações da vítima e que, nessa medida, integrou a violação do disposto no artigo 163° do Código de Processo Penal, ao impedir o seu "funcionamento" e ainda integrou o vício da decisão consistente na omissão de pronúncia, exprobrado pelo disposto no artigo 379°-1, I. c) do Código de Processo Penal, o que sempre teria de conduzir à anulação do acórdão, desde logo, de 1a instância.

B18: Quanto à "segunda questão", a da ilicitude da valoração como "meios de prova" de certos "papéis" com que, à sorrelfa, as autoridades pretenderam tripudiar os autos, em benefício da pretensão punitiva do estado. Ora,

B19: esta problemática que há muito devia considerar-se "morta e sepultada", contra o que o pretório considerou a tal respeito — tenha-se em conta o ensino de DAMIÃO DA CUNHA citado na motivação e posteriormente o entendimento versado por pautados e reputados cultores do processo penal e, sobretudo, a jurisprudência dominante — foi agora, inopinada e erroneamente, ressuscitada. Com efeito,

B20: diz-se na motivação — ponto A4.2.1., in fine — e ao fazê-lo, se bem se cuida e com ressalva de eventual melhor opinião, diz-se tudo ao referido propósito, ao considerar-se da seguinte forma: "Ora, no caso dos autos, os "meios de prova" inquinados — dizendo por outras palavras, os que porque apenas sendo batoteiros, não são "meios de prova" nenhuns — não foram, ao menos, examinados em audiência, a fim de propiciar, ainda que as mais das vezes apenas formalmente, como se depreende da mera leitura das atas, assim resultando violados, ao serem aqueles "papéis" tomados em conta, e de que maneira, o disposto no já referido art. 355°-1 do CPP e 32°-5, segunda parte, da CRP", normas, acrescentar-se-á agora, que foram violadas. Veja-se, infra, em especial, a conclusão B25. E ainda:

B21: o argumentário que a relação chamou em apelo da sua salvífica tese acerca da tal matéria "morta e sepultada" releva, também ele, de uma conceção passadista e, pior do que isso, da chamada à colação de soluções que, de iure constituto, não têm atual arrimo legal pois, bem vistas e refletidas as coisas, como é mister, o artigo 249° do Código de Processo Penal — medida cautelar — foi revogado já desde a entrada em vigor da Lei n° 21/2000, de 10 de agosto, nessa mesma situação se mantendo no posterior âmbito daquela n° 49/2008, de 27 de agosto, por força do respetivo inciso 2°-3 (mês, o de agosto, que se vem revelando particularmente apetecível ao legislador para promulgar soluções esdrúxulas no âmbito do processo penal. Ora,

B22: revogada a única medida cautelar quanto a meios de prova conhecida pelo Código, ficaram apenas a subsistir as chamadas "de polícia", pelo que, naquele domínio, o artigo 253° perdeu campo de aplicação no âmbito para o qual a relação julgou que o mesmo lhe daria respaldo, subsistindo apenas, não é demais referi-lo, no das "de polícia". Ora, como se tudo isto não bastasse, porventura ainda pior do que o demais já denunciado,

B23: o tribunal considerou, referindo-o expressamente, para que dúvidas não pudessem subsistir acerca do seu menosprezo pelas realidades fundantes da arquitetura constitucional pátria, que o processo penal português teria "natureza" acusatória e não "estrutura" acusatória, como de forma insuscetível de duas leituras resulta da primeira parte do artigo 32°-5 da Constituição. Ora,

B24: não se diga, contra isto, que a alusão é meramente embirrenta, pois o gravíssimo erro no qual o tribunal incorreu é claramente indiciário de fundo desconhecimento acerca do cariz do processo penal nacional. Com efeito,

B25: a "natureza" acusatória é algo de essencialmente diferente da "estrutura" acusatória, sendo aquela a própria dos sistemas processuais penais vigentes na generalidade dos países de cultura anglo-saxónica e, por conseguinte, breve, a bem dizer, praticamente ou em muitos e substantivos setores, nos antípodas dos de matriz continental, em geral, e especificamente do português. Foi este erro básico que, por exemplo,

B26: inquinou, como já premunido acima o referido na conclusão B19.

B27: sendo ainda certa a irritude da conceção do art. 355°, como mera norma do direito ordinário e não, como realmente é, um. comando de "natureza análoga" aos formalmente constitucionais e, nessa medida, uma densificação, ao nível do direito legislado, do disposto na segunda parte do artigo 32°~5 da CRP, o que colimou uma conceção relativizante da natureza cogente deste inciso,

B28. ainda inconstitucionalizando materialmente todo o decurso do julgamento, que decorreu, por conseguinte, à revelia do artigo 204° da CRP, o que foi absolutamente ignorado pelo m.mo presidente, o qual, ./". a., se encontrava presente com o dever funcional de impedir a aplicação de comandos inconstitucionais.

B29: Quanto à questão do estudo médico legal da autoria de duas médicas tanatologistas da delegação do centro do instituto nacional de medicina legal, cumpre salientar liminarmente que o referido parecer tem, desde logo, salvo o devido respeito, a virtualidade de desmistificar uma afirmação que não se esperava ver num acórdão de um tribunal superior, aquela do seguinte teor (pág. 69 da motivação): ""Um cidadão médio que tivesse disparado a sua arma caçadeira contra outro cidadão, acidentalmente, não deixaria de referir imediatamente que tinha disparado acidentalmente e, com visível atrapalhação (!!!), logo explicar o que acontecera".

B30: relativamente a tal "parecer" o areópago mostrou desprezar em absoluto o respetivo cariz científico — que, curiosamente, arrasa a matéria   de   fato   no   que   concerne   a   "intenção   de   matar"  — fundamentalmente, ponto 87 da matéria de fato —, circunstancia que causa os maiores engulhos a um pensamento desapegado de qualquer pré-juízo — não tomando em conta, como lhe competia, a sua relevância para uma séria e ponderada apreciação das conclusões B14 e B15 da motivação apresentada em 1a instância, ou seja, aquelas relacionadas com a problemática da "intenção de matar". Ora,

B31: do referido parecer, cumpre isolar as seguintes considerações: "Com efeito, a querer-se provocar a morte, não se iria dar um tiro tangencial que, aliás, só por mero acaso acabou por provocar a morte (e seguramente mais pelo pneumotórax indirectamente decorrente da situação do que das lesões directamente provocadas pelos chumbos)". Ora,

B32: as reflexões de pessoas competentes acabadas de referir, são claramente demonstrativas, quando cotejadas com a matéria de fato dada como provada, que o tribunal se deparou a respeito da questão em apreciação com um non liquet, o que lhe impunha que desse prevalência ao princípio do in dúbio pro reo — como lhe é constitucionalmente imposto pelo art. 32°-2 da CRP — em vez de pretender superá-lo através de inferências que, razoavelmente há que considerar não serem de jaez suficiente para percutir espíritos realmente desapegados dos tais pré-juízos e, nessa medida, realmente imparciais

B33: assim violando, por ostracização — mais uma vez, omissão de pronúncia — o disposto quanto ao referido princípio pelo artigo 32o-2 da CRP, aliás neste setor, nos termos do art. 18°-1 da CRP, diretamente aplicável.

B34: O olímpico e racionalmente ininteligível desprezo a que o tribunal votou o parecer — que havia, por comportamentos concludentes, como a alusão ao mesmo, considerado meio de prova atendível (embora porventura menos do que os "papéis" da autoria da prestigiada polícia judiciária ...) para mais elaborado por duas facultativas especializadas na tantas vezes tormentosa matéria da tanatologia forense e membros do quadro de pessoal da delegação do centro do instituto nacional — que não é, longe disso, o mesmo que o gabinete médico-legal de Leiria, aliás, segundo a vox populi, muito desacreditado — fez com que o acórdão, uma vez mais, se "socorresse" da solução a que por sistema fez apelo, ante situações de dilucidação mais complicada: a lei do silêncio (que é de ouro) e assim olvidasse a obrigação que impede sobre os tribunais de afrontar todas as questões com as quais sejam confrontados, maxime as de primordial relevância, como é o caso daquela em discussão e

B35: destarte incorrendo em omissão de pronúncia, assim tornando o acórdão nulo, face ao disposto no artigo 379°-1, ai. c) do Código de Processo Penal, também aplicável às decisões proferidas pelos tribunais superiores, em regra (mal) apodados de recurso.

B36: Inadmissível é outrossim e nessa medida necessariamente conducente à anulação da decisão recorrida, pela sua grosseira, salvo o devido respeito, irritude, o asserto segundo o qual:

"Ora estes dados verdadeiramente incontornáveis, porque apurados sem margem para dúvidas, permitem "impor", a ilação a qual se infere, sem margem par qualquer dúvida razoável, que o arguido quis matar a vítima. De outro modo, em circunstâncias de não haver terceiros presentes, ou, como a que neste caso se verificou em que o agente da GNR nem "reparou sequer no fato de a vítima ter sido atingida, ver-nos-íamos na inevitabilidade de que só a confissão do arguido pudesse levar à prova do fato, o que implicaria, na generalidade, a impossibilidade material de prova dos elementos subjetivos de todo e qualquer crime". Por conseguinte

B37: bem analisada, sopesada e refletida a precedente afirmação, é forçoso concluir que a mesma constitui, da parte dos senhores julgadores, um grito de revolta ante o princípio segundo o qual "homo bónus praesumiter", o verdadeiro fundamento da ideia do in dúbio pro reo e de rebeldia perante o mínimo de qualquer aceção garantística e, nessa medida, claramente, de forma consciente ou inconsciente, espezinhador do disposto em normas como as do artigo 1o, 9o, ai. b) e 32°-2 da CRP

B38: De tudo o exposto resulta que a uma apreciação jurídica o facto 87.° foi julgado incorretamente, situação que deve ser cassada pelo tribunal de revista, o qual, raciocinando com base no princípio in dúbio pro reo deve considerá-lo não provado. Por outro lado,

B39: O acórdão recorrido ao não apreciar o parecer médico-legal também errou no que refere a questão do "dolo de matar" Ê que,

B40: A conclusão a que chegaram as instâncias nada tem de necessário, pois deixa em aberto outras situações jurídico materialmente relevantes, designadamente a de um eventual "aberratio ictus", ou erro na execução,

B41: Que foi o que aconteceu na espécie dos autos. Com efeito, nada permite afirmar que o disparo do arguido tenha direta necessária e adequadamente causado a morte da vítima, mas mera circunstância que contribuiu indiretamente. como salientam as senhoras médico-legistas. Ora,

B42: Verificou-se, no dizer de FIGUEIREDO DIAS, relativamente ao dolo do agente a produção de outro resultado que só pode configurar um crime negligente,

B43: Uma vez que os elementos decorrentes da autópsia permitem a conclusão de que o tiro resultou de disparo de arma caçadeira dado a curta distância e com uma orientação absolutamente tangencial. relativamente à superfície corporal, pelo que "todas as características do quadro lesionai são muito mais consentâneas com uma natureza acidental do disparo do que com uma situação de disparo voluntário".

B44: Como assim, uma de três: ou o arguido é absolvido do crime pelo qual foi condenado e agora ser considerado ter ocorrido em homicídio negligente; ou o acórdão recorrido é anulado para se lhe erradicarem os erros formais que o inçam, ou ainda o Julgamento é declarado inexistente e determinada a respetiva repetição.

Respondeu o Ministério Publico advogando a manutenção da decisão recorrida e formulando as seguintes conclusões

1.         Não existe qualquer fundamento na pretensão do recorrente de ver o julgamento declarado inexistente, independentemente da posição que se tenha quanto à competência decisória no decurso da audiência de julgamento do Tribunal do Júri, pois:

1.1.      A junção pelo assistente de Assento de Nascimento com averbamento do óbito da vítima e factura de agência funerária respeitante ao funeral (fls 1448-1450) releva, como já foi referido, exclusivamente para o pedido de indemnização civil;

1.2.      A deliberação que deferiu o requerimento do MP para inquirição da testemunhaBB, filho do arguido, sobre a matéria criminal é irrelevante, pois, como foi declarado para a acta pelo advogado do recorrente, "a testemunha a ser inquirida foi arrolada em sede de contestação crime", pelo que sempre o Ministério Público tinha direito a a contra-interrogar, nos termos do n°4 do art° 348° CPP. Advertida nos termos do art° 134° n°l.a) CPP, a testemunha declarou "pretender prestar declarações";

1.3.      Quanto ao indeferimento da "produção de prova pericial sobre os factos que materializam a alteração não substancial", importa referir que o único facto que estava em questão resultava da "possibilidade de alteração da qualificação jurídica de um crime de ofensa à integridade física por um crime de ofensa à integridade física por negligência", sendo irrelevante qualquer novo esclarecimento probatório neste ponto, pois o procedimento criminal veio a ser declarado extinto nesta parte por inexistência de queixa

2.         Não se verifica nos autos qualquer "omissão de pronúncia" pela não consideração no acórdão da existência de codeína no sangue da vítima, já que não ocorreu qualquer divergência do tribunal face às conclusões periciais, nos termos do n°2 do art° 163° CPP, que devesse ser fundamentada;

3.         Também não merece qualquer censura o acórdão recorrido ao ter considerado como meios de prova válidos os documentos de fls 199/205 e 490/491, não se verificando qualquer violação do disposto no n°l do art° 355° CPP ou nos artigos 32o-5- e 204° da Constituição da República Portuguesa;

4.         Assim como não houve qualquer omissão de pronúncia por parte do Tribunal da Relação quanto ao Parecer Médico-Legal 8/2010 nem este põe em causa o facto provado de que o arguido agiu com a intenção de matar, alicerçado em provas produzidas e examinadas no decurso da audiência de discussão e julgamento, cujo processo racional de convicção se encontra adequadamente exposto no acórdão do Tribunal do Júri e também no acórdão do Tribunal da Relação;

5.         Razões porque deve ser negado provimento ao recurso e confirmada o acórdão recorrido.

Nesta instância o ExºMº Sr.Procurador Geral Adjunto emitiu parecer em que sufraga as opiniões expressas na resposta.

                                          Os autos tiveram os vistos legais.

                                                           *

                                               Cumpre decidir.

Em sede de decisão recorrida encontra-se provada a seguinte factualidade:

1.         No dia 16 de Outubro de 2009, cerca das 2 h 10 m, J...L...B...da S... preparava-se para se introduzir nas instalações dos Armazéns “M..., S.A.”, sita na IC2 (antiga Estrada Nacional n.º 1), em  Calvaria de Cima, Porto de Mós, através de uma abertura na parede do armazém.

2.         Actuava com o objectivo de subtrair e fazer seus todos os objectos de valor que encontrasse, nomeadamente gasóleo que se encontrava no depósito de combustível de veículos pesados aí estacionados, contra vontade de legítima proprietária.

3.         O arguido, alertado por seu funcionário V...M...R...da S..., deslocou-se para o local armado com uma espingarda caçadeira, de calibre 12, de dois canos sobrepostos, da marca “FAMARS (Abbiatico & Salvinelli), de modelo PLUTONE, de duplo gatilho, com número de série 93307, com dois canos sobrepostos, calibre 12, fuste e coronha em madeira, de tiro a tiro, de 2 canos, de alma lisa com o comprimento do cano de 708 mm e o comprimento da(s) câmara(s) de 70 mm.

4.         A referida arma pesa 3,20 Kg.

5.         Esta é uma arma de tiro unitário múltiplo, com um sistema de percussão central e indirecta.

6.         O seu mecanismo de disparo são dois percutores e dois gatilhos, correspondendo o primeiro gatilho (anterior) ao cano inferior.

7.         Para accionar os referidos gatilhos, é necessário realizar um peso de 2,95 Kg. no primeiro gatilho (anterior) e de 2,82 Kg no segundo gatilho (posterior).

8.         É composta por dois canos sobrepostos, basculantes, de alma lisa, com fita de refrigeração, no cano superior.

9.         Apresenta choke(s) / diâmetro(s) à boca dos canos de 17,8 mm no cano Inferior e 17,7 mm no cano superior.

10.       O seu sistema de segurança é por fecho.

11.       Apresenta extractor automático comum a ambas as câmaras (canos) o qual é accionado com o basculamento dos canos.

12.       A sua alimentação é manual, por introdução dos cartuchos nas câmaras.

13.       A carcaça da arma é metálica, com coronha e fuste em madeira, com chapa de coice em plástico.

14.       Apresenta um comprimento total de 1135 mm.

15.       O seu aparelho de pontaria é um ponto de mira fixo.

16.       A referida arma apresentava-se em boas condições de funcionamento com ausência de qualquer deficiência assinalável que afectasse a realização de disparos em ambos os canos.

17.       A arma apenas permite a realização de disparos por acção sobre as teclas dos gatilhos, existindo ausência de libertação involuntária do seu mecanismo de disparo se sujeita a pancada e/ou queda.

18.       A referida arma encontra-se na posse do arguido desde 14 de Janeiro de 1983 e registada em seu nome desde 21 de Outubro de 1983, sendo objecto do Livrete de Manifesto de Armas n.º 64622, série G.

19.       O arguido havia municiado a referida arma com dois cartuchos de calibre 12, da marca “SPECIAL COMPETITION” e “PULVICHUMBO”, carregados com bagos de chumbo n.º 7 1/2, de plástico de cor vermelho, em boas condições de utilização, deflagráveis à primeira percussão.

20.       O arguido ainda transportava consigo, pelo menos, 3 cartuchos de características similares aos acima referidos.

21.       Quando o arguido chegou ao local acima referido, já aí se encontravam quatro militares da G.N.R., devidamente uniformizados, que se preparavam para abordar o armazém e tentar a detenção do autor do furto que estava a decorrer, que suspeitavam ainda se encontrar no seu interior.

22.       Os referidos militares decidiram separar-se por equipas e circundar o referido armazém.

23.       Os militares da G.N.R.  P...M...dos S...P... e L...M...S...M... circundaram o armazém pela direita.

24.       O militar da G.N.R. da Batalha J...C...M...D... ficou junto à porta principal.

25.       O militar da G.N.R. F...M...C...A...acompanhado do arguido, circundaram o armazém pela esquerda e desceram um caminho em terra batida paralelo ao armazém.

26.       O arguido empunhava a espingarda caçadeira acima referida, municiada com dois cartuchos.

27.       Os militares da G.N.R. F...M...C...A...e P...M...dos S...P... alertaram o arguido para não levar a arma de fogo acima referida consigo, mas não o conseguiram demover.

28.       O militar da G.N.R. F...M...C...A...disse ao aqui arguido para ter cuidado com o manuseamento da caçadeira que empunhava e para que não a disparasse.

29.       Cerca das 2 h 30 m, a alguns metros de uma abertura vertical então existente na parede do armazém, com altura e largura para um adulto passar, no pinhal próximo de um caminho florestal em terra batida e brita, paralelo, pelo lado esquerdo, aos armazéns da empresa “M...”, a cerca de 322 metros do IC2, o militar F...M...C...A...apontou a lanterna para o local e viu um indivíduo a fugir.

30.       De imediato gritou "-Alto, G.N.R.!".

31.       Junto aos bidões apreendidos, J...L...B...da S... levantou-se e começou a correr para o interior do pinhal.

32.       F...A... guardou a arma de serviço que empunhava e correu atrás do mesmo.

33.       Percorreram alguns metros, tendo realizado um trajecto em meia-lua, no sentido do caminho de terra batida, sempre dentro do pinhal.

34.       Depois de percorrer alguns metros, F...A... alcançou J...L...B...da S....

35.       Sozinho, manietou-o e algemou-o, colocando-lhe os braços atrás das costas.

36.       Simultaneamente, durante o momento temporal de perseguição acima referida, o arguido continuou a caminhar e a descer pelo caminho de terra batida.

37.       Junto à abertura na parede das instalações da sociedade M... S.A., acima referida, situada a 22 metros do local onde posteriormente foi encontrado o cadáver de J...da S..., o arguido procedeu a dois disparos com a acima referida espingarda.

38.       Acto contínuo, no interior do armazém, procedeu ao basculamento dos canos comum da espingarda e procedeu à sua alimentação manual, por introdução de um cartucho em cada uma das duas câmaras da arma.

39.       O arguido andou mais 38 metros no referido caminho.

40.Após, procedeu à realização de dois disparos com a espingarda.

41.Acto contínuo, procedeu ao basculamento dos canos comum da espingarda e procedeu à sua alimentação manual, por introdução de pelo menos um cartucho de calibre 12, da marca “SPECIAL COMPETITION” e “PULVICHUMBO”, carregado com bagos de chumbo n.º 7 1/2, de plástico de cor vermelho na câmara inferior da arma.

42.Simultaneamente, após algemar J...da S..., o militar F...M...C...A...encaminhou-o para o acima referido caminho florestal, agarrando-o pelo braço esquerdo com o seu braço direito.

43.A sua arma de serviço encontrava-se guardada no coldre.

44.Na sua mão esquerda, com o braço levantado, transportava uma lanterna que iluminava o caminho.

45.Andaram cerca de 10 metros.

46.J...L...B...da S... caminhava sem oferecer resistência, meio curvado.

47.O arguido caminhou 60 metros e deslocou-se para o referido militar.

48.No referido local, o arguido perguntou ao militar da G.N.R. quem era o indivíduo.

49.F...M...C...A...disse-lhe não saber e que deviam continuar a caminhar para junto das viaturas policiais.

50.O arguido inverteu a marcha que trazia e aproximou-se de J...da S....

51.Empunhava a espingarda, à altura da cintura.

52.Tinha os canos apontados à região axilar/peitoral do lado direito de J...da S....

53.Estava com a arma municiada, em posição de fogo (rápido) e colocou o dedo no gatilho.

54.Accionou o primeiro gatilho, correspondendo ao cano inferior da referida espingarda.

55.Como consequência directa e necessária, foi realizada a deflagração de um cartucho de calibre 12, da marca “SPECIAL COMPETITION” e “PULVICHUMBO”, carregados com bagos de chumbo n.º 7 1/2, de plástico de cor vermelho.

56.J...da S... sofreu no seu corpo o impacto da bagada de chumbos, ainda todos concentrados, que lhe foi causa directa e necessária:

a.         Na cabeça, de equimose arroxeada na região supra-ciliar direita, com 3,5 cm x 2 cm; vária escoriações na região frontal esquerda e média, a maior com 2,5 cm x 1 x cm, à esquerda; equimose arroxeada na região malar direita, com 3 cm x 2 cm; escoriações várias, superficiais, circulares, na região sub-mentoneana, com cerca de 4-5 mm de diâmetro; escoriações várias, na mesma região, lineares e paralelas entre si, ligeiramente oblíquas, da direita para a esquerda e ligeiramente de baixo para cima, umas com 2 cm x 0,5 cm e outras com 1 cm x 0,5 cm (lesões por bagos de chumbo); equimose arroxeada, ocupando toda a zona sub-mentoneana, prolongando-se ao pescoço;

b.         No pescoço: zona equimótica, arroxeada, na região anterior do pescoço, com 10 cm x 5 cm; várias pequenas feridas perfurantes, superficiais, com perfuração da pele e tecido celular subcutâneo, sem atingir os planos musculares correspondendo a lesões por bagos de chumbo após embate na grelha costal, com infiltração sanguínea dos músculos esterno-cleido-mastoideus e infiltração sanguínea peri-esofágica ;

c.         No tórax: um orifício de entrada de bagos de chumbo no hemitórax direito, a cerca de 3 cm da linha axilar anterior e 10 cm do mamilo direito, circular, com 2,5 cm de diâmetro, com orla de escoriação e de queimadura, bordos ligeiramente escoriados e invertidos para dentro; orla de negro de queimadura em forma de hemi-circulo direito, com 2 mm de espessura e prolongando-se até à axila, em forma de triângulo, com contornos de equimose arroxeada; duas faixas equimóticas na axila, sobre as quais assentam três zonas de negro de queimadura paralelas entre si, respectivamente com 1,2 cm x 0,2 cm, 1 ,5 cm x 0,2 cm e 1 cm x 0,8 cm, com lesões perfurantes dos planos musculares e grelha costal, com fractura dos arcos médios e anteriores da 1ª ,2ª e 3ª costelas direitas e esquerdas e do manúbrio esternal, com enfisema pulmonar no pulmão direito e lobo superior com vários pequenos orifícios, circulares, superficiais e perfurações do parênquima com infiltrações sanguíneas (trajecto de bagos de chumbo) associado a congestão, mais acentuada no lobo superior do referido pulmão direito e no pulmão esquerdo enfisema pulmonar com o lobo superior com vários pequenos orifícios circulares, superficiais e várias perfurações do parênquima, com infiltrações sanguíneas (trajecto de bagos de chumbo) e congestão mais acentuada do lobo inferior;

d.         No tórax, um orifício de saída de bagos de chumbo, com solução de continuidade na região do manúbrio esternal e paraesternal direita, irregular, bordos rasgados e evertidos, corados de negro de queimadura, com 12 cm de eixo horizontal e 9 cm de eixo vertical, evidenciando destruição de tecidos e costelas; equimose arroxeada, com 22 cm x 17 cm, na região esternal e supra-clavicular

57.A chumbada proveniente do disparo atravessou o corpo de J...da S..., nos termos acima referidos e atingiu a zona da axila e do braço esquerdo do militar F...A....

58.Como consequência directa e necessária do disparo, este sofreu feridas múltiplas com aspecto de dispersão com aspecto compatível com ferimentos produzidos por projécteis de arma de fogo, sendo de dimensões oscilando entre os 3 mm e os 5 mm, arredondadas, mas abundantes nas faces anteriores e internas do membro superior esquerdo e outra da palma da mão esquerda, as maiores com 16 por 3 mm e 16 por 5 mm.

59.Que lhe determinaram um período de doença de dez dias, sendo oito com afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.

60.A direcção do disparo, foi da direita para a esquerda, ligeiramente de baixo para cima e com ligeira inclinação de lado para a frente, quase tangencial, a uma distância não superior a 50cm da zona do toráx de J...da S... onde se deu a entrada dos chumbos nos termos acima referidos

61.F...A... sentiu calor no seu braço esquerdo e disse ao arguido que este o atingira.

62.O arguido respondeu que caso o tivesse atingido, não seria nada de especial.

63.Após, o arguido transportou a arma na mão direita e com o seu braço esquerdo pegou no braço direito da J...da S... e auxiliou-o a andar pelo caminho para junto das viaturas policiais.

64.J...da S... caminhou pelo seu pé, apoiado pelo arguido e pelo militar F...A..., cerca de 120 metros.

65.A cerca de 300 metros do IC2, antiga Estrada Nacional 1 e cerca de 14 metros do início do muro J...da S... desfaleceu e caiu ao chão, primeiro de joelhos e depois em decúbito dorsal.

66.Respirava e gemeu.

67.Como consequência directa e necessária de lesões traumáticas torácicas acima referidas, J...da S... morreu.

68.Às 3 h 15 m foi verificado o óbito de J...da S....

69.A noite apresentava-se escura, com visibilidade reduzida.

70.A única luz existente provinha do foco da lanterna do militar F...A....

71.O arguido conhecia J...L...B...da S... desde que o mesmo era jovem.

72.J...L...B...da S... já havia trabalhado na empresa "M..., S.A.", de que o arguido é administrador, durante cerca de um ano.

73.Estiveram juntos em ocasiões sociais, porquanto um irmão do falecido esteve casado com uma filha do arguido.

74.O arguido sabia manejar bem a arma.

75.Sabia quais os actos materiais para manter a mesma em segurança, nomeadamente abrindo a mesma e descarregar os referidos cartuchos.

76.Já exerceu caça com a referida arma.

77.O arguido foi titular da Licença de Uso e Porte de Arma de Caça n.º 147, válida de 11 de Janeiro de 2002 a 10 de Janeiro de 2005.

78.Na data de 16 de Outubro de 2009 o arguido não era titular de qualquer licença de uso e porte de arma de fogo.

79.O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com intenção de matar J...da S....

80.Sabia que o falecido se encontrava manietado, algemado e detido por militar da G.N.R. e que existiam outros três militares a tomarem conta da ocorrência.

81.Actuou com o propósito de lhe tirar a vida, com recurso a arma de fogo.

82.Nomeadamente por M..., S.A. já ter sido objecto de vários furtos em que não se apurou autoria dos mesmos.

83.Quis apontar o cano da arma de fogo à região axilar/peitoral do lado direito de J...da S..., em zonas onde sabia estarem alojados órgãos vitais do corpo humano, a curta distância do mesmo.

84.Sabia que estava com a arma em posição de fogo, sem a desarmar e com o dedo no gatilho no momento do disparo.

85.Sabia que havia sido intimado a não utilizar a referida arma.

86.Devia ter desarmado e entregue a referido arma a militar da G.N.R.

87.Previu e quis accionar o gatilho da arma que empunhava e em consequência realizar disparo letal contra J...L...B...da S....

88.Agiu subitamente sem que a vítima se pudesse defender, perfeitamente indiferente à presença de quem quer que fosse, nomeadamente de militares da GNR.

89.Não contou com a presença próxima do militar F...A..., estando obrigado e sendo capaz de a constatar, descurando que, atenta a proximidade, poderia atingir o corpo do mesmo.

90.Bem sabia que F...A... era militar da G.N.R., no exercício das suas funções, devidamente uniformizado.

91.Sabia que não podia deter aquela arma de fogo sem licença e que a licença de que era titular já havia caducado na data acima referida.

92.Bem sabia que deveria ter diligenciado pelo respectivo licenciamento junto da respectiva autoridade policial, tinha capacidade para o ter feito e não o fez.

93.Tinha capacidade de determinação segundo as prescrições legais.

                                                               *

               A2) – DA CONTESTAÇÃO

94.O arguido é administrador da empresa de armazém e venda de materiais de construção que gira sob a firma “ARMAZÉNS M..., MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO, S.A.” a qual é proprietária de um stand de venda ao público e de um armazém sito no concelho de Porto de Mós, do lado esquerdo da Estrada Nacional nº 1, para quem segue no sentido Norte/Sul.

95.De há uns tempos atrasadamente à data da ocorrência a que se referem os autos, o dito estabelecimento (sobretudo na sua parte de armazém), foi alvo de sucessivos assaltos, ocorridos durante a noite, por força dos quais, quem os praticava se apropriava ilegitimamente e contra a vontade da proprietária M..., de diversas coisas móveis e em especial do combustível (gasolina, gasóleo) ali existente, quer em recipientes próprios, quer nos depósitos dos veículos pesados de tal firma, que ali recolhiam durante a noite.

96.Só no período de mais ou menos um mês antes dos acontecimentos a que se reportam os autos, a mesma foi alvo de pelo menos quatro assaltos durante a noite, dos quais deu conta às autoridades competentes (GNR de Porto de Mós).

97.Atenta esta factualidade, a M... entendeu mandar reforçar a vedação do seu logradouro mediante o alteamento do muro já existente, o que foi feito pouco antes da fatídica noite.

98.Muro este em tijolo, ferro e cimento com a extensão de cerca de 70 metros e a altura de cerca de 4 metros, tendo ainda mandado instalar um sistema de segurança electrónico, que só foi colocado após os factos dos autos.

99.Na ocasião a que se reportam os autos, esse muro tinha um buraco para colocação de um pilar, do lado esquerdo tendo em conta a situação do edifício principal, virado para a antiga Estrada Nacional nº 1, tendo sido pelo mesmo que alguém se introduziu no espaço traseiro (logradouro) da empresa na noite a que se reportam os autos, e onde recolhiam, a céu aberto, as viaturas pesadas

100.Na noite em questão, a vítima fazia-se deslocar no veículo marca Opel, modelo Corsa, de cor azul, matrícula VJ-...-..., que se encontrava junto ao local da ocorrência – no interior de um pinhal adjacente – que foi apreendida e de que era proprietária ou lhe foi emprestado.

101.No exterior encontravam-se seis bidons para transporte de líquidos, ainda vazios, além de mangueiras.

102.No interior das instalações, várias das viaturas pesadas tinham os depósitos de combustível violados,

103.No interior da viatura Opel já referida encontravam-se maços de tabaco de enrolar e um isqueiro.

104.A vítima era toxicodependente de longa data.

105.Nas análises ao sangue recolhido da vítima foi detectada a existência de vestígios de morfina.

106.O arguido é um “self made man”, que conseguiu angariar apreciáveis meios de fortuna à custa do seu esforço pessoal desde a juventude.

107.Trata-se de pessoa (empresário) muito respeitada e acreditada ao nível local, bem como noutras localidades, como Batalha, Leiria, Coimbra, Figueira da Foz.

                                                           *

               A3) – OUTROS FACTOS PROVADOS

Mais se provou que:

108.O arguido é administrador da empresa M..., S.A. e de outras empresas.

109.É dono de três prédios urbanos, que deu de arrendamento a terceiros.

110.Em 2008 e em 2009 teve rendimentos líquidos de € 53.108,26 e de € 58.703,86, respectivamente.

111.Goza de grande estima entre a generalidade das pessoas, contribuindo com frequência para colectividades e associações e ajudando algumas pessoas com dificuldades.

112.Possui uma personalidade de estrutura equilibrada, assente em traços de estabilidade emocional, revelando propensão para agir com pouca ansiedade.

113.Não tem antecedentes criminais.

                                                               *

                         A4) – DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL

114.Os factos provados da acusação.

115.O demandado é proprietário de imóveis e utiliza veículos de luxo.

116.Uma filha do demandado foi casada com um filho dos demandantes, irmão da vítima.

117.Viviam em aldeias próximas, convivendo, tendo a demandante M..., uma filha desta e a vítima, sido funcionários da M..., havendo relações pessoais e de amizade.

118.O demandado conhecia a vítima.

119.Os factos foram comentados na região e publicados na imprensa.

120.A vítima é filho dos demandantes, seus únicos herdeiros, tinha 42 anos e era divorciado.

121.Encontrava-se desempregado,

122. tendo antes a profissão de carpinteiro.

123.Vivia num anexo, junto da casa dos pais.

124.A sua morte causou profunda tristeza nos demandantes.

125.Entre o momento dos disparos e a sua morte passaram alguns minutos.

126.Teve de caminhar amparado,

127.tempo este em que padeceu fortes dores, com dificuldade em respirar.

128.Com plena consciência da gravidade dos ferimentos,

129.E da iminente morte.

130.O demandante F... encontra-se reformado.

131.A demandante M... era, à data dos factos, funcionária da empresa M..., onde não voltou a trabalhar após a baixa.

132.A vítima exercera, antes de se encontrar desempregada, a profissão de carpinteiro.

133.Os demandantes despenderam, com o funeral do filho, quantia não apurada.

                                                              *

               A5) – DA CONTESTAÇÃO AO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO

134.Foram a demandante M...F... e a filha R...M...B...da S..., quem, por sua vontade, puseram fim à relação laboral que mantinham com a empresa M..., em 10 de Maio de 2010, posteriormente à dedução do pedido de indemnização civil.

135.A vítima trabalhara para a M... até data que se situa há mais de 10 anos, dependendo directamente do irmão, ao tempo genro do demandado.

136.Há já vários anos que não trabalhava, sobrevivendo do que a mãe lhe dava.

                                                             **

B)        FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provaram todos os demais factos [sendo que ao Tribunal, nesta sede, só compete ajuizar factos, e não juízos de valor jurídico ou conclusões – e que por isso não serão aqui indicados, devendo considerar-se terem essa natureza] que se não compaginam com a factualidade apurada, designadamente e no essencial que:

               B1) – DA ACUSAÇÃO

(i)        J...L...B...da S... introduziu-se nas instalações dos Armazéns M..., S.A.)

(ii)       Actuava sozinho.

(iii)      O arguido transportasse consigo, pelo menos, 4 cartuchos similares.

(iv)      Fosse atendendo à urgência da situação que os militares da GNR não o conseguiram demover.

(v)       Tenha sido introduzido um cartucho em cada uma das câmaras da arma.

(vi)      F...A... transportasse a lanterna com o braço estendido.

(vii)     J...L...B...da S... caminhasse quieto, calado e cabisbaixo.

(viii)    O arguido não tivesse proferido palavra alguma.

(ix)       O arguido empunhasse a espingarda com ambas as duas mãos.

(x)        Antes já estivesse com o dedo no gatilho.

(xi)       Após, o arguido passasse a arma para a mão direita.

(xii)      J...da S... caminhasse sem nada dizer.

(xiii)     F...A... tivesse retirado a espingarda ao arguido e aberto a mesma.

(xiv)     O arguido tivesse actuado com insensibilidade, indiferença e profundo desprezo pelo valor da vida humana.

(xv)      Nomeadamente pela situação particularmente indefesa da vítima, deixando-se motivar pela vingança e putativa defesa da sua propriedade.

(xvi)     O arguido cumprisse um desígnio já anunciado que o fez munir-se de arma adequada ao efeito pretendido e sair de casa com a espingarda e munições suficientes.

(xvii)    O arguido tivesse configurado como possível, atento o ângulo do disparo e a proximidade do militar F...A..., que os bagos de chumbo provenientes do cartucho deflagrado com disparo atingissem o corpo deste e por isso se tenha conformado com essa realização.

                                                              *

                  B2) – DA CONTESTAÇÃO

(xviii)   Nunca passasse pela cabeça do arguido tirar a vida à vítima, não previsse a morte como consequência da sua conduta e não se tenha conformado com o desfecho.

(xix)     Tivesse sido mandado instalado um sistema de segurança electrónico junto ao muro de vedação, à data dos factos.

(xx)      Na ocasião a que se reportam os autos o muro tenha sido devassado por alguém que tivesse destruído a cofragem do mesmo e aberto um buraco.

(xxi)     Alguém já tivesse conseguido encher diversos “jerricans” com gasóleo retirado das viaturas pesadas estacionadas.

(xxii)    Fossem sete os bidons ainda vazios que se encontravam no exterior.

(xxiii)   As chaves de fendas se encontrassem no interior das instalações da M....

(xxiv)   Houvesse mais do que um isqueiro no interior do veículo Opel Corsa.

(xxv)    Fossem oito os veículos com os depósitos de combustível violados.

(xxvi)   O combustível que viesse eventualmente a ser furtado se destinasse a revenda e a posterior aquisição de estupefacientes.

                                                               *

                  B3) – DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL

(xxvii)  Factos dados como não provados da acusação.

(xxviii) O arguido seja pessoa de grandes recursos económicos, seja o principal accionista da sociedade M... e que esta seja patrocinadora do futebol da União de Leiria.

(xxix)   O arguido seja proprietário de veículos de luxo.

(xxx)    Tivesse qualquer relação de parentesco com os demandantes.

(xxxi)   O arguido privasse com a vítima.

(xxxii)  Na altura dos factos constatasse quem era a vítima.

(xxxiii) À data dos factos a vítima tivesse 46 anos e fosse solteiro.

(xxxiv) Na profissão de carpinteiro tivesse auferido 1.200,00€ mensais.

(xxxv)  Fosse homem forte e robusto, activo e com alegria de viver, socialmente considerado e respeitado.

(xxxvi) Vivesse na mesma casa com os pais e fosse um conforto para estes.

(xxxvii)          Ajudasse na lida doméstica e contribuísse para as despesas familiares.

(xxxviii)           Tivesse uma esperança de vida de 29 anos ou superior.

(xxxix) Fosse carinhoso, amigo dos pais e outros familiares e fosse um elo forte na alegria do lar e família.

(xl)       Com a morte os pais tenham entrado em depressão e se tenham socorrido de apoio a nível psicológico.

(xli)      O demandante F... B... tenha 70 anos e aufira de reforma 200€.

(xlii)     A demandante M...F... tenha 66 anos de idade.

(xliii)    Não recebesse da segurança social.

(xliv)    A vítima tivesse também tido a profissão de serralheiro e nela auferisse 1200 euros mensais.

(xlv)     A vítima entregasse todos os meses aos pais 500 euros ou qualquer outra quantia, para ajuda das despesas domésticas.

(xlvi)    A vítima auxiliasse no quotidiano e os demandantes contassem com esses apoios.

(xlvii)   Os demandantes tivessem, sem o apoio da vítima, de frequentar lares ou ajuda de terceiros e os lares custem mais de 1200 euros por mês e por pessoa.

(xlviii)  Os demandantes contassem com a vítima para ter a velhice assegurada e por falta da mesma vivam numa situação difícil.

(xlix)    Os demandantes tenham despendido 1000 euros com o funeral da vítima.

               B4) – DA CONTESTAÇÃO AO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO

(l)        O demandado conhecesse a vítima apenas muito superficialmente e não tivesse fixado as suas feições.

                                                               *

I

A primeira questão suscitada pelo recorrente é o invocado vício da inexistência que afectará a validade de três despachos proferidos no decurso da audiência de discussão e julgamento por não assentarem em deliberações do Tribunal do Júri o que teria como consequência "a anulação e necessária repetição do encadeamento de actos (julgamento )".

Assim,

1. Na audiência de discussão e julgamento a 28/9/2010, o mandatário do assistente requereu ao tribunal "a junção de documento do qual já facultou cópia ao ilustre mandatário do arguido, documento esse que aliás protestou juntar no pedido cível", que integra Assento de Nascimento com averbamento do óbito da vítima e factura de agência funerária respeitante ao funeral (fls 1448-1450), o que não mereceu oposição nem do arguido nem do Ministério Público, tendo sido proferido pelo Juiz Presidente o seguinte despacho: "Admite-se a requerida junção ( ... )" - fls 1459;

2. Na audiência de discussão e julgamento a 4/1012010, o Ministério Público requereu que o filho do arguido, "testemunha da contestação civil", fosse inquirido "sobre aspectos da acusação, designadamente, quanto ao que ocorreu concretamente aquando do contacto (com o pai após a prática dos factos), e ainda sobre aspectos como a detenção da arma por parte do mesmo", tendo o defensor do arguido declarado que "a testemunha a ser inquirida foi arrolada em sede de contestação crime por isso e como é próprio de quem ignora o disposto no artigo 348°, n04 do CPP, bem sabe que o requerido é néscio" (sic), tendo, "após deliberação", sido deferido o requerido pelo MP (fls 1496). A testemunha em causa -BB -, tendo sido advertida nos termos do art° 134° n°1.a) CPP, declarou "pretender prestar declarações" (fls 1495);

3-Concluída a produção da prova, foram proferidas na audiência de 19/1 0/20 1 as alegações orais, dada a palavra ao arguido e declarada encerrada a discussão;

4-No dia 16/11/2010, foi proferido despacho pelo qual o tribunal comunicou, para os fins previstos nos art° 358° nº 1 e 3 do CPP, ao arguido: "a possibilidade de alteração da qualificação jurídica de um crime de homicídio qualificado para um crime de homicídio simples ("embora ainda com a agravante dos nº 3 e 4 do art° 86° da Lei n° 5/2006, de 23/2, na redacção que lhe foi introduzida pela Lei nº17/2009, de 6/5", que já constava da acusação); e "a possibilidade de alteração da qualificação jurídica de um crime de ofensa à integridade fisica por um crime de ofensa à integridade fisica por negligência" - indicando o facto novo que integra essa diferente qualificação, que corporiza o elemento subjectivo do crime de ofensa à integridade física (fls 1551/1552);.

5-A 26/11/2010, requereu o arguido "a produção de prova pericial sobre os factos que materializam a alteração não substancial, produção de prova essa a ser efectuada pela Exª.Mª Mestre C...C... da Delegação de Coimbra do INML, a qual já foi indicada para o efeito pelo Ex.Mº Senhor Presidente desta instituição" (fls 1570). Na audiência de 30/11/2010, tendo o MP requerido o indeferimento, o "Tribunal Colectivo" deliberou "que o mandatário do arguido concretize ponto ou pontos do crime de ofensa à integridade física que pretende ver esclarecidos", o que este não fez, acabando por ser indeferido o requerido, explicitando-se no despacho de indeferimento "dos membros togados do Tribunal Colectivo" : "Na fase a que se refere o art° 358° nºl CPP, só é admissível prova sobre factos que tenham sido objecto de alteração ou resultem de alteração eventualmente a efectuar. No caso dos autos apenas no que diz respeito ao crime de ofensa à integridade física se verifica alteração, aliás devidamente autonomizada no despacho de comunicação" (fls 1580/1582);

6. O procedimento criminal pelo crime de ofensa à integridade física por negligência veio a ser declarado extinto, no acórdão da 1 a instância, por inexistência de queixa.

            O recorrente entende que estes actos foram praticados indevidamente pelo "tribunal colectivo", ou pelo juiz presidente, quando o deveriam ter sido pelo tribunal do júri, do que resulta o vício da sua inexistência que, a seu ver, e de acordo com a Apostilha e Parecer subscritos pelo Prof. Doutor José de Faria Costa, deve determinar "a própria inexistência da relação jurídica processual, devendo o mesmo julgamento ser repetido e nele cumpridos os postulados de competência do Tribunal de Júri, enquanto unidade incidível em todas as questões materiais ligadas á culpabilidade e à determinação da sanção" (fls 2379);

            O tribunal recorrido, por seu turno, entende, em sentido diferente, que "por força do art° 2° nº3 do DL nº387-A-87, o Tribunal do Júri, composto por três juízes, que constituem o Tribunal Colectivo e por quatro Jurados, apenas decide e já na fase da sentença, as questões da culpabilidade e da determinação da sanção", sendo a admissibilidade da prova competência dos três juízes que constituem o Tribunal Colectivo (cf. art° 340° nº1 CPP), sendo deste e do Juiz Presidente.

                                                              +

A Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais refere-se ao tribunal do júri nos artigos 110.° e 111.° nº 1 os quais  deter­minam a composição e competência do júri,

O artigo 111.° deter­mina, no n. ° 1, que compete ao tribunal do júri julgar os crimes a que se refere o artigo 13.° do Código de Processo Penal, salvo se tiverem por objecto cri­mes de terrorismo ou crimes que se enquadrem no conceito de "criminali­dade altamente organizada". O nº 2 estabelece que a intervenção do júri no julgamento "é definida pela lei de processo".

O regime do júri consta do Decreto-Lei nº 387-A/87, de 29 de Dezembro. O nº 1 do artigo 1.°estabelece que o júri é composto por três juízes e por quatro jurados efectivos e quatro suplentes. Os jurados não podem ser, entre o mais, juízes ou magistrados do Ministério Público, membros dos con­selhos superiores da magistratura, do Ministério Público ou dos tribunais admi­nistrativos e fiscais, advogados ou solicitadores ou docentes das faculdades de direito (cf. o artigo 4.°).

De acordo com o n.o 2 do artigo 2.0 "júri intervém na decisão das questões da culpabilidade e da determinação da sanção". Por seu turno, o nº 1 do artigo ·14.° estabelece que "[o]s jurados decidem apenas segundo a lei e o direito e não estão sujeitos a ordens ou instruções".

Do regime legal cujas linhas gerais se acaba de explicitar resulta que o tri­bunal do júri intervém no julgamento de questões criminais particularmente graves, decide a questão de facto e a questão de direito, é composto maiorita­riamente por elementos sem formação jurídica (os 4 jurados) e a suas deci­sões estão subordinadas à lei e ao direito.

Como refere José Manuel Vilallonga[1] o júri, na sua essência, delibera sobre a ocorrência dos factos relevantes para saber se se verificam os elementos constitutivos do tipo de crime, se o arguido praticou o crime ou nele participou, se o arguido actuou com culpa, se se verifica alguma causa que exclua a ilicitude do facto e se se verifica qualquer outro pressuposto de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação de uma medida de segurança. Isto quanto à apreciação dos factos relevantes para a determinação da responsabilidade penal. Depois de apreciar os factos, o júri delibera sobre todas as questões de direito suscitadas pelos factos julgados. Esta actividade decisória insere-se na apreciação da questão da culpabilidade, e a ela se refere o artigo 368.° do Código de Processo Penal. Apreciada a questão da culpabilidade e tendo o júri concluído pela aplica­ção de uma pena, ou de uma medida de segurança, ao arguido, o tribunal deli­bera e vota sobre a espécie e a medida da sanção a aplicar.

Deve ter-se presente que a medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita, nos termos do artigo 71.° do Código Penal, em função da culpa do agente e das finalida­des de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, nomeadamente o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, a conduta do agente anterior e pos­terior ao facto, ou a falta de preparação para manter uma conduta licita, mani­festada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena, entre outras circunstâncias que podem igualmente ser ponderadas.

Estas são, em linhas muito gerais, as ponderações que o tribunal, e portanto o tribunal do júri, tem de realizar na decisão judicial de um caso penal. Como refere o autor citado note­-se que a descrição sumária a que se procedeu remete para con­ceitos dogmáticos, noções jurídicas, critérios normativos que, na sua globali­dade, constituem (integram) a teoria geral da infracção. Em face da composi­ção do tribunal do júri (como se viu, três juízes e quatro jurados efectivos mais quatro jurados suplentes), pode a sorte de qualquer uma das questões enuncia­das ser determinada em função do voto de sujeitos sem qualquer formação científica ou mesmo técnica.

Relativamente ao controlo das provas importa salientar que o mesmo consubstancia uma das dimensões mais importantes da actividade do juiz. Saliente-se a circunstância de a apreciação da prova, para efeito de uma condenação, em particular de uma condenação pela prática de um crime, não constituir uma actividade cujo exercício decorra sempre de algo inato a qualquer indivíduo. Na verdade, uma valoração adequada da prova tem, muitas vezes,de neutralizar convicções e juízos prévios naturais, neutrali­zação que a formação jurídica (e, nomeadamente, a formação dos magistrados) facilita.

Quanto à maior atenção que os jurados prestam, ou devem prestar, ao desenrolar da audiência, o mesmo não significa que o incumprimento dos deveres funcionais que sobre os magistrados impendem (incumprimento que, a ocorrer, se pretende isolado e residual) possa generalizar-se, de modo a permitir uma qualquer comparação com os jurados[2]. Com efeito, comum a todos os membros do tribunal de júri é a obrigação de procura da verdade material a qual, porém, não invalida o diferente apetrechamento em termos de domínio das regras procedimentais que conduzem tal procura.

Aliás, a própria lei processual ao consubstanciar a função do júri no respectivo Tribunal, e precisar o foco da sua intervenção, não deixou por alguma forma de acentuar a intervenção concreta que é exigida aos seus elementos singularmente considerados pois que á necessária formação jurídica dos Magistrados se contrapõe, em relação aos membros do júri não Magistrados, a exigência de uma intervenção de cidadania, mas que não está necessariamente ligada uma qualificação que habilite a intervenção em termos de direito.

 É nessa sequência que a Lei nº 59/98, de 25.8, veio consagrar o voto de vencido em termos de direito, mas restringindo-o aos juízes togados, não obstante a competência dos jurados para decidir sobre a questão de direito.(sobre a constitucionalidade de tal disposição confrontar Paulo Pinto de Albuquerque em Comentário pag 958)

A primeira, e fundamental questão, é, então, a de saber a quem competia a prática dos actos denominados como inexistentes pelo recorrente:- se ao tribunal de júri; se ao seu presidente ou ao tribunal colectivo.

Aqui importa estabelecer uma destrinça entre as situações relatadas:-a primeira refere-se á junção de um documento- uma certidão de nascimento- em relação ao qual o recorrente afirmou nada ter a opor. Assim, e desde logo, se suscita a questão da admissibilidade de comportamentos processuais de sinal contrário, ou seja, a admissibilidade de um comportamento que contradiz a postura anteriormente assumida no processo o que toca o princípio da lealdade processual

Na verdade,

Como já tivemos ocasião de referir [3]  princípio envolvente, e estruturante do processo penal na sua globalidade (mandato superior do direito processual penal como refere Roxin (10)), é o princípio do processo justo. Esta máxima, formulada em termos de cláusula geral, é uma consequência das decisões valorativas fundamentais do Estado de Direito e do Estado Social.

A ideia do procedimento justo expresso, processualmente, no princípio da lealdade, deve compreender-se como uma exigência concreta da optimização de valores constitucionais. Nesse plano assumem uma inegável relevância valores como a dignidade humana, que tem inscrita a protecção do princípio de confiança recíproca na actuação processual, que deve pautar a conduta de todos os intervenientes processuais (qualquer que seja o plano em que se movimentem), e o princípio de igualdade de armas (este em determinadas fases processuais).

Nenhum argumento, ou principio, poderá ser mobilizado para provocar a erosão do pressuposto fundamental que se consubstancia na exigência de que todos os actores do processo penal tenham a sua actuação procedimental pautada pela finalidade última que é a de realização da justiça, e de procura da verdade material. Este objectivo teleológico não se compadece com a realização processual que visa a utilização estratégica do processo como instrumento acrítico e neutro, procurando outras finalidades laterais e, até, em clara oposição com aquela realização e procura.

Do juiz até ao mais anódino interveniente todos são construtores de um processo justo, necessariamente orientado, de forma linear e objectiva, para a procura da verdade.
 Tal principio, e pressuposto, não admite inscrever no seu perfil a admissibilidade de condutas processuais orientadas para a instrumentalização do processo penal, colocando-o ao serviço de finalidades que visam o seu entorpecimento, quando não a negação dos seus princípios orientadores

Refere o refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3/03/2004 que a lealdade não é uma noção jurídica autónoma, mas é sobretudo de natureza essencialmente moral e ética, e traduz uma forma de estar em conformidade com o respeito dos direitos do cidadão e a dignidade da Pessoas e da Justiça. A lealdade, a boa-fé, a confiança, o equilíbrio entre o rigor das decisões do processo e as expectativas que delas decorram, são elementos fundamentais a ter em conta quando seja necessário interpretar alguma sequência que, nas aparências, possa exteriormente apresentar-se com algum carácter de disfunção intraprocessual.

A procura do processo justo e leal, e a confiança como elemento do princípio do processo equitativo, derrubam qualquer obstáculo formal e não nos permitem tomar outra decisão que não seja garantir aquela finalidade.

Na verdade, ousamos afirmar que o cumprimento do princípio da lealdade processual revela até que ponto se reflecte no processo a credibilidade de um regime democrático. O mesmo princípio, particularmente em processo penal, é revelador da forma, e condições, sobre as quais se concebem as relações do Estado e o Cidadão. A natureza democrática, ou não, de um Estado depende, também do estatuto do cidadão face ao poder público, especificamente face á instância de controle reforçado, que é característica do processo penal, e da forma leal, ou desleal, como é tratado no seu catálogo de direitos e deveres.

O princípio da lealdade no comportamento processual, nomeadamente na recolha de prova, representa uma imposição de princípios gerais inscritos na própria dignidade humana, e da ética, que deve presidir a todos os actos do cidadão. O mesmo liga-se, de forma inexorável, ao direito a um processo justo e ao princípio da igualdade de armas.
Em termos gerais e, em qualquer litígio, a existência de um princípio geral da lealdade é essencial para a afirmação da existência do Estado de Direito.

Em nosso entender a não oposição á junção de um documento e a posterior invocação da inexistência da decisão de junção, em relação á qual se afirmou a mesma não oposição, é uma conduta que tocas regras da lealdade processual e, como tal, afecta a existência de um processo justo.

  Na verdade, a partir do momento em que um acto processual é construído também com a adesão do sujeito processual, com inteiro e completo conhecimento de causa, não é admissível uma inflexão que vise destruir aquilo que previamente se construiu.

Ultrapassada esta primeira referência subsiste o denominador comum ás situações elencadas que se situa na competência para a sua prática o que se traduz, de forma indirecta, na competência do tribunal de júri.

São situações distintas aquelas que reporta o recorrente:- a primeira é o deferimento de um requerimento de junção de documento; a segunda é uma questão relativa á forma de produção de prova testemunhal em relação a testemunha que estava a ser inquirida e a terceira o indeferimento de produção de prova pericial em relação a alteração não substancial dos factos determinada nos termos do artigo 358 do Código de Processo Penal.

O recorrente desenha o percurso de lógica argumentativa em que pretende a redução de todas aquelas situações ao âmbito de produção de prova com génese no artigo 340 do mesmo diploma de que adviria, na sua perspectiva, a consequência de a decisão de deferimento, ou indeferimento, ter necessariamente subjacente um processo de formação de vontade colegial em que deveria estar presente e não esteve..

Importa precisar que as normas legais podem dividir-se em dois grupos: as gerais e as excepcionais. As primeiras são as que correspondem a princípios fundamentais do sistema jurídico e, por isso, constituem o regime geral do tipo de relações que disciplinam. As segundas são as que, regulando um sector restrito de relações com uma configuração especial, consagram para o efeito uma disciplina oposta à que vigora para o comum das relações do mesmo tipo, fundada em razões especiais, privativas daquele sector de relações

O art.340.º do Código de Processo Penal está inserido no capítulo que trata da “Produção da prova”, tendo como epígrafe “Princípios gerais”. Como refere Figueiredo Dias, são os princípios gerais do processo penal “...que dão sentido à multidão das normas, orientação ao legislador e permitem à dogmática não apenas «explicar», mas verdadeiramente compreender os problemas do direito processual penal e caminhar com segurança ao encontro da sua solução.” - [4]

Dito numa outra forma o referido normativo tem um campo de aplicação próprio que, aliás, conflui num princípio estruturante do processo penal. Questão distinta é a regulamentação procedimental de situações suscitadas pelos meios de prova susceptíveis de serem carreados á audiência de julgamento, e que existem efectivamente no caso vertente, pois que não estamos perante o oferecimento meios de prova, mas simplesmente o de saber se, em relação ao meio de prova pré-existente, no caso. testemunhal, é admissível a formulação de depoimento para além do objecto previamente determinado, ou seja, tratamos de uma questão directamente relacionada com o artigo 346 do Código de Processo Penal cuja decisão compete ao Presidente do Tribunal no exercício dos seus poderes de direcção, devidamente fundamentada, com contraditório prévio e sujeita a recurso.

De igual forma se dirá em relação á concessão de prazo, ou o diferimento para a produção de prova em relação a alteração não substancial cuja decisão nos termos do artigo 358 do CPP compete ao Presidente do Tribunal.

            Aliás, qualquer elemento do tribunal de júri no caminho para a determinação da culpabilidade, e determinação da sanção, tem o direito, e dever, de se esclarecer, incluindo o de promover todos os meios de prova cujo conhecimento se afigure necessário á descoberta da verdade. Porém, situação distinta é a aferição da regularidade jurídica de um procedimento processual quando este recaia no âmbito dos poderes de direcção da audiência o qual deve ser efectivado pelo Presidente do Tribunal nos termos citados.  

Significa o exposto que, com o devido respeito pela opinião em contrário, nomeadamente a expressa pelo Sr. Professor Faria e Costa, não estamos perante uma questão de admissibilidade de meio de prova, mas da conformidade das decisões proferidas á regulamentação processual especifica de determinados momentos processuais como é o caso da inquirição de testemunha previamente indicada, e inquirida, e do exercício do direito de defesa perante a alteração não substancial a que alude o artigo 358 do código de Processo Penal.

Chegando a tal conclusão é evidente que a discordância do recorrente se deveria ter expresso pelo uso do direito ao recurso pois que, como já ensinava Alberto dos Reis, dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se [5]

Aliás,

 Importa, ainda, referir que do invocado vício de inexistência decorre, na perspectiva do recorrente, a viciação insuperável de todo o julgamento. Assim, sucede como resultado da premissa que é a existência de decisões oriundas de órgão inexistente recaindo sobre prova testemunhal á qual o recorrente não se opôs; sobre o alargamento do objecto de depoimento e, ainda, da não produção de prova relativamente á alteração dos factos.

            O elencar destes factos, que constituem a premissa apta a extrair a conclusão segundo as normas de processo penal, implica a ideia de que qualquer que seja a patologia que afecte tais actos, admitindo-se a inexistência como mera hipótese, nunca a mesma poderia ter como consequência o expurgar de actos que se mantêm incólumes na sua integridade processual, ou seja, o fato de um acto processual ser inexistente não implica a viciação insuperável de todo o julgamento como pretende o recorrente. Tal extrapolação constitui uma inaceitável expansão de efeitos que devem ser limitados única, e simplesmente, ao que se encontra em relação de causa e efeito com o vício cometido.

            Tal deriva do próprio princípio da proporcionalidade que não é uma auto-estrada de uma só via cuja protecção se restrinja ás limitações de prova resultantes da limitação imposta pela protecção de direitos fundamentais. Pelo contrário, o mesmo também implica que tais restrições se limitem única e exclusivamente ao admissível e proporcional na reposição da legalidade violada.

Na verdade, o delicado equilíbrio entre direitos fundamentais e as necessidades impostas pela eficiência da justiça penal, que também é nuclear no funcionamento do Estado de Direito encontra o seu eixo fundamental no princípio da proporcionalidade á luz dos requisitos da idoneidade, necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, nos quais se decompões. Estas três exigências são requisitos intrínsecos de toda a medida processual restritiva de direitos fundamentais e exigíveis, tanto no momento da sua previsão pelo legislador, como na sua aplicação prática.

O respeito pelo principio da idoneidade implica que as limitações dos direitos fundamentais antecipadas pela lei estejam adaptadas aos fins legítimos a que se dirigem e que as mesma sejam adequadas á prossecução das finalidades que visam atingir em função da sua adequação quantitativa e qualitativa e de seu espaço de aplicação subjectivo. Significa o exposto que o juízo sobre a idoneidade não se esgota na demonstração da capacidade abstracta de uma medida determinada para conseguir determinado objectivo, nem na adequação objectiva da mesma, tendo em consideração as circunstâncias concretas, mas também requer o respeito pelo principio da idoneidade a forma concreta e ajustada como é aplicada a medida por forma a que não se persiga uma finalidade diferente da antecipada pela lei.

Pela aplicação do princípio da necessidade o sujeito chamado a aplicar a medida restritiva deve eleger, entre aquelas medidas que são igualmente aptas para o objectivo pretendido, aquela é menos prejudicial para os direitos dos cidadãos 

Por último, o uso do princípio da proporcionalidade em sentido estrito implica que se verifique se a restrição dos direitos individuais sujeitos á sua aplicação consagra uma relação razoável ou proporcional com a importância do objectivo que se pretende atingir.

Consequentemente, a ponderação do princípio da proporcionalidade em sentido estrito terá de sopesar os interesses em conflito o que, na prática se resume aos direitos do indivíduo face aos interesses prosseguidos pelo Estado.(conf Gomes Canotilho e Vital Moreira-ibidem pag 392 e seg)  [6]

Definidos tais pressupostos de aplicação do principio da proporcionalidade é manifesto que decorre do mesmo a necessidade uma justa equação entre a violação cometida e as suas consequências, ou seja, mesmo admitindo-se, por mera hipótese, a inexistência processual nunca a mesma poderá ter, em abstracto, um efeito metastizante relativamente ao julgamento considerado globalmente, mas única e simplesmente em relação aos actos contaminados pelo acto processual inexistente. Dito por outra forma as invalidades processuais existem na exacta medida em que pela sua comissão são afectados direitos e garantias fundamentais e nem mais nem menos.

O efeito irradiante das nulidades e proibições de prova, fazendo estender os seus efeitos a actos processuais, quando não até ao próprio julgamento, que não têm qualquer relação de causalidade com o vício cometido é o assumir de um processo formal, longe da procura da verdade material, no qual a declaração da existência do vicio surge muitas vezes como forma de evitar o encarar as questões substanciais da responsabilidade criminal.

Mas, mesmo que assim não fosse importa referir que nunca existiria qualquer vício de inexistência processual.

Na verdade, 

Como refere Conde Correia (Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais) São estas necessidades práticas, reveladoras de assinaláveis diferenças entre as nulidades absolutas e a inexistência jurídica que, em grande parte, têm justificado a autonomia e a subsistência da figura na doutrina processual penal. No entanto, mesmo no perfil interno, existem divergências conside­ráveis entre os conceitos processuais penais de nulidade absoluta e inexistên­cia jurídica. Aquela consiste numa simples imperfeição da fattispecie. O acto praticado, embora se identifique com determinado modelo legal, não lhe cor­responde na íntegra, faltando-lhe, pelo menos, um dos seus elementos. Ape­sar de ter existência jurídica o direito não o considera válido. Por seu turno, no caso da inexistência jurídica, nem sequer se pode falar em imperfeição da fattispecie A anomalia é tão grande que o acto nem sequer é comparável com o seu esquema normativo, não alcançando aquele mínimo imprescindí­vel para poder ser reconhecido como tal e ter vida jurídica. Nas nulidades abso­lutas o acta, ainda que imperfeito, é idóneo para produzir os efeitos jurí­dicos que a lei lhe atribui. Na inexistência jurídica o acto é inidóneo para a produção de quaisquer efeitos jurídicos, não os devendo, em caso algum, produzir.

 A ine­xistência processual penal absorve muitos vícios que no direito civil seriam tra­tados como nulidade absoluta. Os efeitos do trânsito em julgado obri­garam o legislador a repensar todo o espectro das sanções processuais penais. Os vícios que não impedem a formação de caso julgado, equiparáveis em muitos aspectos à anulabilidade do direito privado, tomam a designação processual de nulidades e os vícios que impedem a sua formação, a designa­ção de inexistência. Aquele instituto, exclusivo do direito processual, res­tringe assim a relevância das nulidades, privando-as de uma das suas caracte­rísticas essenciais, mas alarga a importância da inexistência. Fruto de um ambiente técnico e valorativo diverso, o conceito tem mais utilidade, acrescida consistência teórica e maior razão de ser no direito processual penal.

…….No entanto, não deve, nunca, perder-se de vista que trata-se de um recurso excep­cional, utilizado para repor a justiça em situações extremas, que quase ultra­passam as fronteiras do imaginável. Importa, portanto, utilizá-lo criteriosa­mente, apenas em casos de gravidade superior àqueles que se encontram previstos na lei como causa de nulidade

Admitindo, como hipótese, que as decisões a que se reportam as conclusões formuladas pelo recorrente deveriam ser objecto de decisão do tribunal de júri estamos perante uma questão de competência funcional que se consubstancia na circunstância de no processo de formação da vontade do órgão colegial, que é o tribunal de júri, apenas terem participado parte dos seus membros.No processo decisório intervieram membros do tribunal de júri somente não intervieram todos os membros o que, na perspectiva do recorrente, afectaria a existência da decisão ou seja existiria uma inexistência processual.

Todavia, como se referiu a inexistência corresponde a um tipo processual em que a anomalia é tão grande que o acto nem sequer é comparável com o seu esquema normativo, não alcançando aquele mínimo imprescindí­vel para poder ser reconhecido como tal e ter vida jurídica, sendo certo que tal patologia se reflecte desde logo na circunstância de a inexistência ser portadora de uma valoração negativa de densidade superior á que corresponde á nulidade de maior gravidade.

Aqui chegados não podemos deixar de ter em atenção a aquisição normativa que se corporiza no artigo 119 a) do Código de Processo Penal, classificando como nulidade insanável a falta de juízes ou de jurados que devem constituir o tribunal ou a violação das regras legais relativas ao modo determinar a respectiva composição. É evidente que a ausência de membros que devem integrar o tribunal constitui uma patologia ainda mais evidente do que aquela que se consubstancia na circunstância de a decisão não ter sido tomada pela globalidade do tribunal de júri, mas apenas por parte deste.

 O argumento do recorrente, tentando reportar uma situação de ausência de essência do próprio acto decisório, falece á partida pela simples circunstância de a decisão provir do tribunal de júri regularmente constituído. Estamos, assim, muito longe daquilo que Marques da Silva (Curso de Processo Penal II  pag 107 e seg) refere quando apostrofa o acto inexistente, referindo que lhes falta a essência do acto processual, ou seja, constitui um fantasma processual. Na verdade, não estamos perante o exemplo clássico do cidadão que profere uma decisão condenatória, ou absolutória, mas perante um tribunal que proferiu decisão que se inscreve na sua competência funcional embora, na perspectiva do recorrente, por forma incorrecta.

            Assim, a existir infracção a mesma constituirá uma nulidade. Porém, em sede de nulidades insanáveis rege a regra da tipicidade pois que só são nulidades insanáveis aquelas que se podem subsumir ao citado normativo do artigo 119, sendo certo que este é insusceptível de aplicação analógica. Por igual forma está afastada, do caso vertente, a integração no artigo 120 do Código de Processo Penal porquanto também sujeito á mesma regra da tipicidade. Resta, assim, o eventual vicio cometido na figura da irregularidade a que alude o artigo 123 do mesmo diploma a ser arguida no tempo legal o que não acontece no caso vertente.

                    Improcedem, assim, as invocadas inexistências processuais.

   II

 A segunda questão suscitada pelo recorrente prende-se com a circunstância de o tribunal não ter feito referência á existência de codeína no sangue da vítima afastando-se, assim, do teor do relatório pericial sem qualquer justificação nomeadamente nos termos do artigo 163.

A questão em apreço prende-se directamente, e em primeiro lugar com os requisitos da sentença em processo penal e, nomeadamente, da fundamentação No que concerne importa relembrar as palavras de Michele Taruffo [7] a propósito das duas funções que a mesma fundamentação cumpre: a) uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação e controlocrítico da lógica da decisão, permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, um juízo concordante ou divergente;b) outra, de ordem extraprocessual, já não dirigida essencialmente às partes e ao juiz ad quem, que procura, acima de tudo, tornar possível um controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão - que procura, dir-se-á por outras palavras, garantir a transparência do processo e da decisão.

A fundamentação da decisão judicial constitui um elemento indispensável para assegurar o efectivo exercício do direito ao recurso, que de forma explícita foi constitucionalmente garantido com o aditamento da parte final do n.º 1 do artigo 32.º da CRP, com a Lei Constitucional n.º 1/97.

Ainda recorrendo ao mesmo Autor a motivação da sentença é necessária com vista à impugnação, com o fim de tornar funcional a relação entre o primeiro e o segundo graus de jurisdição; não só as partes podem valorizar melhor a oportunidade da impugnação e individualizar os seus motivos específicos quando, através da motivação, conhecem as razões por que o juiz decidiu de certo modo, como ainda o juiz de recurso está em posição de formular melhor o seu juízo sobre a sentença impugnada quando conhece a argumentação de facto e de direito de que ela é resultado. Constitui ainda factor de legitimação do poder jurisdicional, contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre o qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto, sendo garantia de respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões. É a forma concreta de assegurar perante o cidadão em nome de quem a Justiça administrada a forma benevolente como tal exercício se concretiza demonstrando por um lado a racionalidade e completude da abordagem do objecto do processo e permitindo aos intervenientes o uso dos instrumentos que permitem avaliar em sede de impugnação a bondade da mesma decisão

Como resulta do nº 4 do artigo 339.º do CPP, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º, dispondo o n.º 2 deste artigo 368.º do mesmo diploma legal, que são submetidos a deliberação e votação os factos alegados pela acusação e pela defesa e, bem assim, os que resultarem da discussão da causa, relevantes para as questões a debater e apreciar, quer relativas à questão da culpabilidade, quer da determinação da sanção.

É orientação uniforme da jurisprudência do STJ de que a decisão deve conter a enumeração concreta, feita da mesma forma, dos factos provados e não provados, com interesse e relevância para a decisão da causa, sob pena de nulidade, desde que os mesmos sejam essenciais à caracterização do crime em causa e suas circunstâncias, ou relevantes juridicamente com influência na medida da pena, desde que tenham efectivo interesse para a decisão, mas já não no caso de factos inócuos, excrescentes ou irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação e/ou na contestação, ou a matéria de facto já prejudicada pela solução dada a outra.[8]

A fundamentação deve ser linear para quem contactar com a decisão ao abrigo da qual é emitida e os factos relevantes são aquele e só aqueles que situam no perímetro delimitado pelo objecto processual nas suas diversas valências. Quando a uma determinado facto não é atribuída relevância, nem que seja meramente instrumental, carece o mesmo de força ou legitimidade para ser inscrito no catálogo da relevância do processo.

No caso vertente a existência de codeína não foi elencada como instruindo uma relação de causalidade com qualquer elemento relevante para o julgamento:- não foi em sede acusatória; não foi em sede de contestação bem como não relevou em sede de discussão da causa. Assim, não se pode afirmar que estejamos perante uma questão relevante que necessariamente tenha de merecer a pronúncia do tribunal.

Tal conclusão conduz de imediato á irrelevância da omissão de pronuncia sobre a mesma matéria sendo certo que o facto de a mesma não se encontrar nos factos provados e não provados apenas permite conclui que não se considerou a mesma como relevante. Assim, de forma alguma se pode concluir que o tribunal divergiu ilegalmente da conclusão pericial pois que a montante existe a constatação de que nenhum dos intervenientes processuais apontou tal facto como merecedor de relevância e o tribunal também assim o entendeu.

III

  A terceira questão suscitada prende-se com a valoração feita pela decisão recorrida em relação aos procedimentos adoptados pela Policia Judiciária quando tomou conhecimento da eclosão do crime[9]

    Recordando refere a mesma decisão que o "Relato de diligência externa" da PJ, constante de folhas 199/205, não é propriamente um "relato", pois configura um "exame ao local dos factos" realizado por um órgão de polícia criminal, documentado em fotografias.

O croqui de folhas 205 contém dados objectivos relativos ao local dos factos, em face dos vestígios descritos e fotografados, no exame ao local constante de folhas 199 a 204.

O "Relato de diligência externa" da PJ, constante de folhas 199/205 - traduzindo-se num "exame ao local", alicerçado em fotografias - , bem o como o "Relato de diligência externa", de folhas 490/491 - traduzindo-se numa reportagem fotográfica ao veículo de matricula VJ-26-87, para verificar a possibilidade do mesmo comportar, na bagageira, todos os bidons apreendidos nos autos -, constituem meio de prova documental, sobre o qual foi dada toda a possibilidade ao arguido de discussão em audiência de julgamento, pois como tal era indicada na acusação do Ministério Público.

E, segundo consta da fundamentação da matéria de facto do douto acórdão recorrido, a prova documentada nos autos, que resulta dos exames àquele local e ao veículo, foi mesmo objecto de discussão na audiência de julgamento.

Decidimos, assim, que a valoração pelo Tribunal a quo dos "Relato de diligência externa" de folhas 199/205 e de folhas 490/491, não violou o disposto nos artigos 355.°, nº1 do C.P.P. e 32.°, nº 5 da C.R.P ..

Relativamente à " Informação de Serviço", constante de folhas 24 a 30, o Ministério Público incluiu-a, também, na acusação deduzida contra o arguido, nos meios de prova documental, pelo que dispôs da possibilidade de discutir o seu conteúdo.

O Tribunal a quo apenas teve em consideração a "Informação de Serviço" constante de folhas 24 a 30, para dar como provados os pontos nº 19 e 26, quanto às características dos cartuchos encontrados no local, que menciona terem sido apreendidos ao longo do caminho lateral ao armazém.

Apesar do Ministério Público ter indicado na acusação a "Informação de Serviço", constante de folhas 24 a 30, como prova documental o que possibilitou ao arguido o contraditório, cremos que a menção a esta informação, relativamente às características dos cartuchos encontrados no local, não devia ser indicada na fundamentação da matéria de facto para dar como provados os pontos nº 19 e 26, pois a informação não é um meio de prova, nem de obtenção de prova, relativamente às características dos cartuchos encontrados no local, mas uma comunicação de um inspector da PJ ao Coordenador de Piquete dando conhecimento das diligências que realizou.

De acordo com o disposto no art.355º do C.P.P., esta "Informação de Serviço" não pode, nem deve valer, para o efeito de formação da convicção do tribunal e, consequentemente, não pode a mesma fundamentar a matéria de facto dada como provada nos pontos nºs 19 e 26. Esta é a única sanção.

Acontece que o Tribunal de Júri não fundou a sua convicção, para dar como provados os factos que constam dos citados pontos nºs 19 e 26, apenas na "Informação de Serviço", constante de folhas 27 a 30.

Para o efeito, teve em consideração ainda o depoimento da testemunha N...V... _ que havia elaborado a dita informação -, que se pronunciou, na audiência de julgamento, sobre os cartuchos que encontrou e apreendeu no local e teve ainda em consideração o auto de apreensão de fls. 31, as fotos de fIs.41/43 e 46, o Relato de Diligência Externa da PJ de fIs. 199/205, incluindo o croquis anexo a este e a perícia de fIs.863/872 (em especial fIs. 866). Esta prova documental, pericial e testemunhal, suporta os factos dados como provados nos pontos nº 19 e 26 do acórdão recorrido.

Deste modo, apesar de se considerar que não deve ser valorada a "Informação de Serviço", constante de folhas 27 a 30, para efeito de formação da convicção do tribunal, mantêm-se e a matéria dada como provada, os pontos nº 19 e 26 do acórdão recorrido.

            Um primeiro ponto que importa esclarecer em face das alegações do recorrente é a de que a questão a decidir se centra na admissibilidade dos meios cautelares empregues em relação aos meios de prova pré existentes, ou seja, de aplicação do artigo 249 do CPP e a sua relevância em sede de julgamento.

            Com efeito, não se trata de uma questão de admissibilidade de prova documental a aferir, nos termos do artigo 163 do mesmo diploma [10] mas, como se referiu, da forma como se projecta em sede de fundamentação da convicção do tribunal a prova obtida através dos referidos procedimentos cautelares.

Na verdade, é consabido que o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes, e a responsabilidade destes, e descobrir e recolher as provas em ordem à decisão sobre acusação Inicia-se com a noticia do crime, que o Ministério Público adquire por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos de policia criminal, ou mediante denuncia.

            Por seu turno, o órgão de polícia criminal que tiver conhecimento de um crime, por conhecimento próprio, ou mediante denúncia, deverá transmitir tal notícia ao Ministério Público no mais curto prazo que não pode exceder os dez dias-artigo 248 do CPP. A “contrario sensu”, existirá um momento pré-processual em que a entidade policial poderá realizar, até ao limite temporal referido, todos os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova.

            Nesta denominada fase pré-processual, e nos termos do artigo 249 do Código de Processo Penal, a entidade policial procederá aos exames dos vestígios do crime, assegurando a manutenção do estado das coisas e dos lugares; colhendo informação das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição; procedendo a apreensões no decurso de revisas e buscas. Estamos em face de uma competência cautelar pré-ordenada para os fins do processo, mas que não tem uma natureza processual, sendo certo que a sua posterior aquisição no âmbito do processo está dependente de uma convalidação, efectuada pelo “dominus” do inquérito -o Ministério Público- a qual tem como pressuposto o circunstancialismo em que actuou o mesmo órgão de policia criminal.  

            Importa, assim, precisar a distinção entre competência para a prevenção criminal e a competência para a prática de actos em regime de pré-inquérito pois que estes, sendo reactivos á notícia de um crime, são exercidos com vista á sua futura convalidação. Por contraposição, a prevenção criminal, existe fora do âmbito do espaço processual e, não estando sujeita aos princípios de processo criminal, está subordinada aos normativos constitucionais limitativos de intromissões em direitos, liberdades e garantias

            Linearmente, a linha divisória entre a actividade de prevenção e a actividade processual penal está ligada á suspeita da prática de um crime. Como refere Damião da Cunha a partir da notícia de um crime estaremos sempre perante uma actividade processual penal e todas as operações daí decorrentes serão imputáveis á administração da Justiça.

Dito por outra forma, a jusante da prevenção situa-se a investigação criminal constituída pela actividade de recolha de elementos realizada, ou não, no âmbito de um inquérito formalmente aberto para o efeito e que tem por objectivo esclarecer as circunstâncias que rodearam a prática de um crime, identificar os respectivos autores e recolher meios de prova que permitam a sua responsabilização. A mesma tem uma função instrumental relativamente à prova e comporta métodos positivados com recurso a meios, e técnicas, que têm o seu espaço nas práticas policiais.

            No caso vertente as diligências realizadas corporizaram-se em actos concretos que constituem meios de obtenção de prova como é o caso do exame pois que face ao exposto nº1 do art. 171 do CPP, podemos considerar como exame a inspecção dos vestígios que o crime possa ter deixado e de todos indícios referentes: ao modo como o crime foi perpetrado; ao local onde o crime foi preparado e cometido; às pessoas que o praticaram; e às pessoas e às coisas sobre as quais o crime foi cometido.

A inspecção pode incidir em pessoas - quer agentes, quer vítimas da infracção, quer intervenientes acidentais -, em locais - onde se praticou e/ou se congeminou o crime ou em objectos que podem ter sido os instrumentos do crime ou quaisquer outros que apresentem relevância para a descoberta da verdade Á prova por inspecção ocular estão sujeitas todas as coisas, mas também as pessoas com vida e os cadáveres, na medida em que podem influenciar o convencimento do juiz através da sua existência, situação ou natureza. A realização duma inspecção ocular pode ter lugar instrumentalizando todo e cada um dos sentidos; através da vista (observação do lugar do facto, da situação do cadáver, das feridas e manchas de sangue, impressões digitais, rastos de pegadas), por meio da audição (perfil de uma aparelhagem musical), através do olfacto (alimentos em mal estado, estrume acumulado ao ar livre), pelo tacto (o gume da faca).

Refere Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal II Volume pag 164) que a finalidade do exame é fixar documentalmente, ou permitir a observação directa pelo tribunal, de factos relevantes em matéria probatória. A recolha ou fixação dos factos através de exame não poderá exigir do seu autor conhecimentos especiais de índole científica, técnica ou artística, caso em que há lugar a perícia e não a exame.

Segundo Cavaleiro de Ferreira os exames, conhecidos também por inspecção, são uma técnica própria da descoberta e recolha dos vestígios e modo da sua interpretação e permitem uma inspecção cuidadosa do local, destinada à descoberta dos vestígios ou provas reais da infracção, facilitando, desde logo, a orientação dos interrogatórios, pela possibilidade que dá aos investigadores de controlar a veracidade da prova pessoal (Curso de Processo Penal II volume pag 359) Os exames, como meio de obtenção de prova, encontram-se previstos nos artigos 171.º a 173.º do CCP. Contudo, como salienta Monteiro Valente não se esgotam neste circuito processual, pois podem revestir natureza de medida cautelar e de polícia - al. a) do n.º 2 do art. 249.º conjugada com o n.º 2 do art. 171.º e 173.º, todos do CPP - e, ainda, podem decorrer, no caso de exame no local, em sede de audiência de julgamento- art. 354.º do CPP.

Os exames consubstanciam, assim, uma providência cautelar que tem por finalidade que se fixe em auto os vestígios e os indícios ou se permita a observação directa dos factos que relevem em matéria de prova. Refere Artur Pereira[11]  que a actividade da Criminalística começa no local do crime. A conduta criminosa, bem como o seu resultado, estabelecem uma relação de causa-efeito recíproca com o local e/ou a vítima, pois como já foi referido, segundo a definição de Edmond Locard, “todo o criminoso deposita ou leva consigo indícios ou vestígios”.

           A cena do crime é a forma de comunicação entre o criminoso e o investigador. A capacidade do investigador compreender a linguagem do crime irá determinar como o investiga eficientemente.“Deste modo, a acção a desenvolver no local do crime, contém uma tripla virtualidade:

- Traduz normalmente o primeiro contacto da investigação com o facto criminoso em si mesmo;

- Permite a obtenção, através de conhecimentos típicos e sistemáticos, de valiosos dados e indicações tendentes à reconstituição dos factos (prova material e pessoal), que irão condicionar e dirigir a investigação subsequente;

- Permite a possibilidade de vir a conhecer-se quem fez o quê.

            Partindo de tal pressuposto é evidente que a actividade da Policia Judiciária orientada no sentido de acautelar os meios de prova nos termos do artigo 249 do mesmo diploma é uma actuação que tem inteira cabimentação legal e nem poderia ser de outro modo sob de inexistir qualquer possibilidade de investigação em grande parte dos crimes.

Mas, então a questão que subsiste é a de saber se tais procedimentos, e as provas que foram obtidas através dos mesmos, podem ser valorados em sede de julgamento atento o disposto no artigo 355 do Código de Processo Penal. A resposta é quanto a nós indubitavelmente positiva e resulta desde logo do disposto no nº2 do mesmo normativo quando ressalva as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição seja permitida nos termos dos artigos seguintes. Dentro destes salienta-se o artigo 356 nº1 alínea b) em face do qual é permitida a leitura, audição e, se possível com visualização de autos de ins­trução ou de inquérito que não contenham declarações do arguido, do assistente, das par­tes civis ou de testemunhas.

 Como se refere no Comentário ao Código de Processo Penal dos Magistrados do MºPº do Porto (pag 890) é bem claro que aqui, diferentemente da alínea anterior, estamos perante autos que foram lavrados nas fases preliminares. E que não importa a sua autoria ou a entidade que a eles presidiu. Atenta a sua formulação, não restam dúvidas de que abrange os autos de detenção, de apreensão, de busca, de reconhecimento, de acareação, de exame de pessoas e objectos, de reconstituição dos factos, de vigilância, de recolha de imagens e de som, de intercepção de comunicações e de correspondência, as transcrições das comunicações interceptadas, os tes­tes de análise e pesquisa, os relatórios dos exames e das perícias incluindo as declarações com­plementares dos peritos, as informações de quaisquer entidades, mas também qualquer outro "instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os actos pro­cessuais a cuja documentação a lei obriga e aos quais tiver assistido quem o redige, bem como a recolher as declarações, requerimentos, promoções e actos decisórios orais que tiverem ocor­rido perante aquele" (art. 99.°), como, por exemplo, o auto de notícia ou a participação que não contenham declarações do arguido do assistente, das partes civis ou das testemunhas.

Os autos, tal como os documentos, as imagens e as perícias são, quase sempre, provas a que se aplica a regra do art. anterior, pelo que, em princípio, não carecem de leitura - basta o contraditório e o exame -, mas a sua leitura e visualização pode ser requerida na audiência. Esta norma tem a utilidade de tornar bem claro que a tal não podem colo­car-se obstáculos que não sejam aqueles que ela mesma enuncia.

Consequentemente, na medida em que os "Relatório(s) de Diligência Externa" da PJ a fls 199/205 e 490/491 corporizam uma prova pré constituída relatando o exame ao local dos factos, o primeiro, e uma reportagem fotográfica ao veículo de matrícula VJ-26-87, sendo admissível que decisão recorrida se fundamente também no seu teor. 

Relativamente á "Informação de Serviço" de fls 24/30 a própria decisão recorrida afirma que a mesma não deva constituir meio de prova ou de obtenção de prova sendo certo que nada obsta a que sobre a mesma se pronuncie em audiência de julgamento o agente da PJ que a elaborou.

 Assim, improcede o recurso interposto no que concerne

IV

  Um outro segmento do recurso interposto incide sobre o parecer médico-legal junto aos pelo recorrente e cuja substância não foi atendida na decisão recorrida.

Refere o recorrente que

As reflexões de pessoas competentes acabadas de referir, são claramente demonstrativas, quando cotejadas com a matéria de fato dada como provada, que o tribunal se deparou a respeito da questão em apreciação com um non liquet, o que lhe impunha que desse prevalência ao princípio do in dubío pro reo - como lhe é constitucionalmente imposto pelo art. 32°-2 da CRP - em vez de pretender superá-lo através de inferências que, razoavelmente há que consíderar não serem de jaez suficiente para percutir espíritos realmente desapegados dos tais pré-iuízose, nessa medida, realmente imparciais assím violando, por ostracização - mais uma vez, omissão de pronúncia - o disposto quanto ao referido princípio pelo artigo 320­2 da CRP, aliás neste setor, nos termos do art. 18°-1 da CRP, diretamente aplicável.

O olímpico e racionalmente ininteligível desprezo a que o tribunal votou o parecer - que havia, por comportamentos concludentes, como a alusão ao mesmo, considerado meio de prova atendível (embora porventura menos do que os papéis" da autoria da prestigiada polícia judiciária ... ) para mais elaborado por duas facultativas especializa das na tantas vezes tormentosa matéria da tanatologia forense e membros do quadro de pessoal da delegação do centro do instituto nacional - que não é, longe disso, o mesmo que o gabinete médico-legal de Leiria, aliás, segundo a vox populi, muito desacreditado - fez com que o acórdão, uma vez mais, se socorresse"da solução a que por sistema fez apelo, ante situações de dilucidação mais complicada: a lei do silêncio (que é de ouro) e assim olvidasse a obrigação que impede sobre os tribunais de afrontar todas as questões com as quais sejam confrontados, maxime as de primordial relevância, como é o caso daquela em discussão e destarte incorrendo em omissão de pronúncia, assim tornando o acórdão nulo, face ao disposto no artigo 379°-1, ai. c) do Código de Processo Penal, também aplicável às decisões proferidas pelos tribunais superiores, em regra (mal) apodados de recurso.

Todavia, da análise da mesma decisão, constata-se que esta analisou o mesmo parecer, fundamentando devidamente a não aceitação das conclusões daquele parecer. Refere a mesma decisão que:

O arguido veio juntar entretanto um " parecer médico-legal", elaborado a seu pedido, onde duas médicas do INML vêm sustentar que " todas as características do quadro lesional são muito mais consentâneas com uma natureza acidental do disparo do que com uma situação de disparo intencional", per-spectiva que sai reforçada pelas declarações constantes do processo relativamente à forma como o evento terá decorrido e aos momentos subsequentes.

Para este efeito menciona-se no parecer, designadamente, a orientação e trajecto do disparo, tido como quase tangencial e "que só por mero caso acabou por provocar a morte". Acresce que segundo algumas declarações o arguido estava simultaneamente a segurar a vítima, com uma mão, e a espingarda com a outra, aquando do disparo, o que facilitaria o acidente. Segundo diversas declarações prestadas no processo e particularmente pelo agente da GNR que seguia com o arguido e a vítima, esta continuou a caminhar após o disparo, pelo que é de bom senso considerar que se tivesse existido um disparo intencional, o agente da GNR se teria imediatamente apercebido e não continuaria a caminhar, referindo ainda este, a folhas 894 dos autos, relatório da PI, que na sua opinião se tratou de um acidente porque não o viu apontar a espingarda intencionalmente para o individuo, nem proferir ameaças ou perguntas inquisitórias.

Vejamos.

Antes do mais diremos que cabe ao Tribunal, e não aos médicos, valorar os depoimentos das testemunhas e em face deles, conjuntamente ou não com outros meios de prova, decidir sobre a intenção ou não de matar.

Ainda assim diremos que a folhas ••894 dos autos, no relatório da PI, é reproduzido, em sÚlnula, o depoimento da testemunha F...A..., prestado no inquérito e que as declarações prestadas em inquérito pelas testemunhas apenas poderão ser valoradas se forem lidas em audiência de julgamento, nos termos do art.356.o, do C.P.P ..

No caso em apreciação, não foi lido em audiência de julgamento o depoimento prestado pela testemunha F...A..., durante o inquérito, e o arguido opôs-se mesmo, expressamente, à pretensão do Ministério Público da leitura do depoimento daquela testemunha "quanto à concreta actuação do arguido no momento da aproximação entre os três." Assim, é proibida a valoração do que a testemunha terá dito no inquérito.

Aliás, pressupostos para a conclusão do parecer, como é exemplo, o estar o arguido a segurar a vítima com uma mão, aquando do disparo, não se provaram.

Sobre as características do quadro lesional elas estão bem descritas no Relatório de patologia forense de folhas 834 a 839 e o Tribunal da Relação não vislumbra nenhum motivo para divergir das conclusões dos senhores peritos médicos quando concluem que médicolegalmente e só pela autópsia, não é possível o diagnóstico diferencial seguro entre a natureza homicida ou acidental das lesões.

A intenção de matar, correspondendo a um estado de espírito inapreensível sensorialmente, salvo quando o homicida o declare expressamente, há-de resultar de factos objectivos que a indiciem.

O recorrente alega que da forma como o Tribunal a quo entende que o arguido carregava a arma e a disparou, mencionados nos pontos 52 a 54, conjugada com os factos não provados nos pontos ix - "O arguido empunhasse a espingarda com ambas as duas mãos" e x - "Antes  já estivesse com o dedo no gatilho - e com as regras da experiencia comum, não é, nem pode ser, sustento para dar por provada a intenção de matar.

Salvo o devido respeito, a intenção de matar foi dada como provada, não só com base na forma como o disparo foi efectuado, constante dos pontos n.os 51 a 55 dos factos dados como provados, em que o Tribunal do Júri deu particular relevo ao depoimento da testemunha N...V... , a P J, mas essencialmente, em face da longa fundamentação expressa relativamente aos pontos n.os 78 a 88.

É, assim, manifesto que existiu uma pronuncia sobe a questão em apreço sendo certo que o arguido discorda do seu teor.

Porém importa referir que o julgador não está adstrito a qualquer valor atribuído em abstracto a parecer realizado por técnicos.Com efeito, estamos perante um parecer técnico e não perante uma perícia.

 O Código de Processo Penal refere-se aos pareceres de técnicos (como também aos pareceres de advogados e jurisconsultos) nas normas disciplinadoras da prova documental - art. 165.° do CPP - para determinar que os mesmos podem ser juntos aos autos até ao encerramento da audiência. Os pareceres técnicos podem versar sobre uma pluralidade de temas, mas têm em comum não assentarem o seu juízo no conhecimento pessoal e directo dos factos objecto de prova sobre os quais se pronunciam.

Na verdade, caso as suas convicções se fundamentem em factos directamente percepcionados, então o meio processual próprio de as manifestar consistirá na prestação de depoimento testemunhal, não podendo ser valorado o alegado conhecimento directo de factos constante de parecer

Numa outra perspectiva o parecer técnico é apresentado pelos sujeitos processuais no âmbito da sua autonomia de actuação processual, visando influenciar a decisão - de facto ou de direito - da autoridade judiciária por força da autoridade técnica e científica de quem os emite, não tendo lugar por iniciativa do tribunal. Não lhe é, pois, aplicável o procedimento processualmente previsto para a prova pericial, não gozando da sua força probatória.

António José Latas[12] traça, ainda, a distinção entre prova pericial e o que se pode designar por mera actividade técnica desenvolvida no processo penal, levada a cabo por técnicos ou peritos no sentido comum de pessoa especialista em determinado ramo de actividade ou assunto (expert), e não no sentido estrito de quem intervém nos termos dos arts. 151 e sgs. Ainda que reportando-se a factos que integram o objecto do processo em sentido mais estrito, designadamente porque respeitam à determinação da pena ou medida de segurança aplicáveis, incidindo sobre a personalidade e condições de vida do arguido, a intervenção de técnicos especialistas das chamadas ciências do Homem, prevista na lei de processo, não constitui intervenção enquadrável nos pressupostos e regime da prova pericial, mas antes uma forma de prestar assessoria técnica ao tribunal na decisão de questões para as quais se mostrem particularmente habilitados.

O valor probatório do parecer é apreciado livremente pelo tribunal. Situação diferente é o valor cominado para a prova pericial em relação á qual o art. 166 do Código de Processo Penal estabelece uma presunção juris tantum de validade do parecer técnico apresentado pelo perito o qual obriga o julgador. Significa o exposto que a conclusão a que chegou o perito só pode ser desprezada se o julgador, para poder rebatê-la, dispuser de argumentos, da mesma forma,  científicos (n.º 2 do art. 165).[13]

Em relação ao parecer, e na medida em que já não está sujeito a critérios legais pré fixados, de carácter geral, o julgador pode, em cada caso concreto, aproveitar dos contributos de outras áreas de conhecimento (nomeadamente da psicologia, da sociologia, da ciência), o que permitirá reduzir as margens de em na apreciação da prova.

Por isso, Castanheira Neves (Sumários de Processo Criminal pag 47 e seguintes) assinala que «alguns autores, (Radbruch e Sauer) dizem sistema de "prova científica" aquele que vai implicado no principio da prova livre» Todavia, esta designação de ''prova cientifica" e toda a filosofia que lhe está subacente - que, na sua época, terá tido algum sucesso - deve ser interpretada tendo em atenção as observações de Castanheira Neves no sentido de que, por um lado, a liberdade de convicção de que aqui se fala é ((uma liberdade para a objectividade), que envolve uma convicção "motivada" ou "motivável" e, por outro, do que se trata não é do juízo teorético cientifico (sendo errado identificar a ideia de objectividade com a pura objectividade cientifica), mas antes (porque o que está em causa é (aquela particular obectividade da vida)), que se manifesta em termos de convicção e não em termos de intelecção, do aproveitamento de regras cientificas apenas como factores de investigação e de esdaredmento de uma realidade histórica, cuja natureza e individualidade especificas, de sentido prático-humano, sempre estará para além das puras reduções teoréticas e que, na sua determinação oljectivante, nunca presdndirá de um juízo de natureza também intencionalmente prático-humano)).

Efectivamente, quando o julgador explicita, na fundamentação de facto da sentença, as razões do seu convencimento desenvolve um raciocínio próximo do juízo teorético científico, operando com regras da ciência, da lógica e da experiência. É nesses contexto, afastando qualquer subjectivismo e afirmando uma análise racional, objectiva e crítica das provas produzidas em cada caso concreto que se pode compreender a afirmação feita por Radbruch e Sauer, quando deduzem do principio da prova livre um sistema de prova cientifica.

      Como quer que seja a discordância em relação aos factos que aquele parecer se propunha avalizar- a não intenção de matar- e discordante dos considerados provados, não é uma questão de direito que este Supremo Tribunal de Justiça tenha o ónus de sindicar-artigo 432 do Código de Processo Penal.

V

Resta uma última questão que se prende com o invocado erro na execução. Porém, a afirmação da existência de um “aberratio ictus” tem como pressuposto inarredável a existência de factos que suportem tal conclusão.

           Da análise dos autos, é manifesto que o discurso do recorrente na proclamação da existência da figura em causa não tem o mínimo suporte nos factos quer os mesmos se encarem em relação ao tipo objectivo quer ao subjectivo.

         Termos em que se julga improcedente o recurso interposto pelo arguido AA.

          Custas pelo recorrente.

           Taxa de Justiça 8 UC

Supremo Tribunal de Justiça, 23 de Novembro de 2011

Santos Cabral (Relator)

Maia Costa

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[1] O Tribunal de Júri.Breves Considerações Criticas O Direito 138 I, 169-186)
[2] Como refere o Autor citado  não se nega a relevância do júri. Entende-se, porém, que o seu âmbito deve ser restringido nomeadamente, no que respeita aos poderes de cognição. Na verdade, dificilmente se vislumbra a razoabilidade de atribuir a leigos 'a competência para decidir questões jurídicas tão complexas quanto o são as que integram a teoria geral da infracção. Veja-se a distinção entre dolo eventual e negligência consciente, ou entre excesso de legítima defesa esténico . e asténico, ou m esmo entre causas de justificação e causas de desculpa, ou ainda entre erro moral e erro intelectual, e os exemplos podem multiplicar-se quase ilimitadamente. A aceitação da decisão por uma composição maioritária de leigos só pode significar uma erosão da qualidade científica da decisão a proferir o que manifestamente não pode ser um desiderato do sistema penal, nem mesmo constituir o preço a pagar por um simbolismo democrático que hodiernamente não se justifica no sistema nacional.

[3] Acordão de Uniformização de Jurisprudência 2/11
[4] “Direito Processual Penal”, 1º Vol., edição da C.E., 1974, pág. 192.
[5] " (Comentário ao CPC, vol. II, pág. 507).
[6] A jurisprudência do Tribunal Constitucional nesta matéria foi sintetizada no acórdão n.º187/2001, em que se afirma que o princípio da proporcionalidade, em sentido lato, se desdobra, como se afirmara já no acórdão n.º 634/93, “em três subprincípios: da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio adequado para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos)”. Há, assim, três exigências na relação entre as medidas e os fins prosseguidos. Como se afirmou no acórdão n.º 1182/96, “num primeiro momento perguntar-se-á se a medida legislativa em causa […] é apropriada à prossecução do fim a ela subjacente”; de seguida, “haverá que perguntar se essa opção, nos seus exactos termos, significou a «menor desvantagem possível» para a posição jusfundamental decorrente do direito […]”; finalmente, há que “pensar em termos de «proporcionalidade em sentido restrito», questionando-se «se o resultado obtido [...] é proporcional à carga coactiva» que comporta”.
  Da mesma jurisprudência decorre, igualmente, que, estando em causa actividade legislativa, é reconhecido ao legislador um amplo espaço de conformação. Consequentemente, a avaliação pelos tribunais da inconstitucionalidade de uma norma, por violação do princípio da proporcionalidade, depende da circunstância de se poder apontar uma manifesta inadequação da medida; uma opção manifestamente errada do legislador, o seu carácter manifestamente excessivo, ou inconveniente, manifestamente desproporcionado em relação às vantagens que apresenta. O processo penal é o campo fundamental para tal exercício e, nessa sequência, a medida restritiva de direitos, ou seja a limitação ao jus libertatis de cada cidadão terá a sua justificação numa tarefa que é exercida em nome de toda a comunidade no exercício de um jus puniendi que não é mais do que uma defesa de bens jurídicos indispensáveis á vida em sociedade
 O mesmo princípio da proporcionalidade constitui, conjuntamente com os pressupostos materiais de previsão constitucional expressa, fundamento de restrições ao exercício de direitos, liberdades e garantias com foro constitucional



[7] (“ Note sulla garantizia constituzionale della motivazione”, in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LV, pp. 29 e segs.)

[8] Confrontar Juiz Conselheiro Raul Borges Contingências da objectivação da convicção e a motivação da decisão de facto intevenção no CEJ em 21 de Abril de 2004 disponivel na Internet
[9]   Compulsando os presentes autos, constata-se que de folhas 24 a 30, consta uma informação do Inspector da PJ, N...V..., ao Coordenador de Piquete, comunicando-lhe, no essencial, que pelas 3h15m, foi dado conhecimento ao serviço de Prevenção, pelo Piquete da PJ, da ocorrência de um homicídio, e que tendo chegado ao local do aparecimento do cadáver pelas 4h45m e sido posto ao corrente sobre o que se teria passado por um militar ferido e pelo Sargento Arnalt, passou a observar o local e a vítima que lá se encontrava prostrada, indicando quais os objectos e vestígios detectados e apreensões realizadas, designadamente, de cartuchos deflagrados, chaves de fendas e bidons, referindo ter realizado a este respeito uma reportagem fotográfica.
A folhas 199/204, consta um Relato de "diligência externa" da PJ, elaborado pelo inspector N...V..., que consiste essencialmente numa reportagem fotográfica, realizada no dia 19 de Outubro de 2009, ao local dos factos, com indicação e narração de vestígios aí encontrados, e em face destes, do eventual percurso da vítima na noite dos factos. Inclui a folhas 205, um "croquis", do "Local da ocorrência dos factos", com indicação de localização de vestígios e medições entre eles.
A folhas 490/491, consta um outro Relato de "diligência externa", elaborado pelo inspector N...V..., que consiste numa reportagem fotográfica ao veículo de matricula VJ-26-87, para constatar a possibilidade do mesmo comportar, na bagageira, todos os bidons "apreendidos nos autos.
Na acusação deduzida contra o arguido AA, constante de folhas 948 a 961,
,,_,;O Ministério Público indica como prova, « "Por documentos" - todos os dos autos, ;:.nomeadamente: I) Documento de fls.12; IIi) Autos de apreensão (cfr. jls. 10, 13,59,63,85); III) Licença e livrete constante de fls. 11; V) relatório fotográfico de jls. 15 a 22, 91 a 98, 194 a 196; V) Reportagens fotográficas de jls. 32 e ss., 61 e ss. 64; VI) Informação de Serviço da Polícia Judiciária de jls. 24 a 30; VII) Autos de exame directo 8 cfr. jls. 60, 876, 878); VIII) C.R.C. de arguido (cfr.jls. 106); IX) Relatório de Diligência externa de fls. 199 a 204 e 490 a 491; X) Informação da PSP (que se protesta juntar).».
Na motivação da matéria de facto do acórdão recorrido, o Tribunal a quo consignou que fundamenta os factos dados como provados nos pontos n.o 19 - "O arguido havia municiado a referida arma com dois cartuchos de calibre 12, da marca "SPECIAL COMPETITION" e "PULVICHUMBO", carregados com bagos de chumbo n." 7 1/2, de plástico de cor vermelho, em boas condições de utilização, deflagráveis à primeira percussão." - e 26 _ "o arguido empunhava a espingarda caçadeira acima referida, municiada com dois cartuchos." -, "quanto às características dos cartuchos encontrados no locar', na informação de serviço da PJ de folhas 27/30, no auto de apreensão de fis. 31, fotos de fis.41/43 e 46, bem como do Relato de Diligência Externa da PJ de fis. 199/205, incluindo o croquis anexo a este, (elementos que adiante serão analisados com mais pormenor), e a perícia de fis.863/872.
A propósito da generalidade dos factos respeitantes ao elemento subjectivo do crime e reforço da primeira parte do ponto n. ° 57 - "A chumbada proveniente do disparo atravessou o corpo de José Silva, nos termos acima referidos e atingiu a zona da axila e do braço esquerdo do militar F...A...." -, O Tribunal a quo consignou, na motivação da matéria de facto provada, que teve em consideração que no local do impacto foi detectada uma grande projecção de vestígios biológicos (sangue), tudo conforme consta do Relato de Diligência Externa da P J (com fotos) de fls.1991202, confirmado pelo seu autor (inspector Nuno Eduardo Jordão Valentim), de cuja análise resultou a prova de que tais vestígios biológicos pertenciam à vítima J...L...B...da S....
Na motivação dos pontos nº 1 - ''No dia 16 de Outubro de 2009, cerca das 2 h 10 m, J...L...B...da S... preparava-se para se introduzir nas instalações dos Armazéns "M..., S.A.", sita na IC2 (antiga Estrada Nacional n." I), em Calvaria de Cima, Porto de Mós, através de uma abertura na parede do armazém." - e 2 - "Actuava com o objectivo de subtrair e fazer seus todos os objectos de valor que encontrasse, nomeadamente gasóleo que se encontrava no depósito de combustível de veículos pesados aí estacionados, contra vontade de legítima proprietária." - dos factos provados, na
parte relativa à ponderação sobre a actuação sozinha, da vítima, no furto de combustível, o Tribunal a quo consignou que " os bidons podiam ser todos transportados naquele veículo como se alcança de fls. 195" e que" De resto a possibilidade de o veículo comportar todos os bidons decorre também do Relato de Diligência Externa" defls. 490/491."
Consta ainda da motivação, para prova da matéria de facto do ponto nº20 - "o arguido ainda transportava consigo, pelo menos, 3 cartuchos de características similares aos acima referidos." - que " Todos os vestígios mencionados foram devidamente classificados pelo inspector N...V..., a fls. 205, tendo o mesmo elaborado, a partir dos mesmos, o croquis aí anexo, de onde resulta a localização dos vestígios e, com base nesta localização, o itinerário percorrido pelo agente da GNR F...A... e pelo arguido, bem como destes já com a vítima José Luís Bastos, e que foi devidamente explicado pelo seu autor (N...V...) no seu depoimento.". Aquando da análise do depoimento da testemunha N...V... o Tribunal a quo volta a mencionar na fundamentação da matéria de facto, a forma circunstanciada e rigorosa como elaborou os documentos, com base nos vestígios recolhidos.
Do ora exposto resulta que o chamado "Relato de diligência externa" da PJ, constante de folhas 199/205 incluindo o croquis anexo a este e o "Relato de diligência externa" da PJ constante de folhas 490/491, que o Tribunal de Júri teve em consideração na fundamentação da matéria de facto dada como provada, acabada de citar, foram indicados como prova documental, pelo Ministério Público, com a acusação deduzida contra o arguido.

[10] -Os documentos são instrumentos escritos de qualquer tipo que contêm um conteúdo ideológico ou, por outras palavras, manifestações representadas por caracteres sobre um substracto material. Nos termos do artigo 255 do Código Penal para o qual se remete o presente normativo constitui documento: «a declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta»; Documento de identificação ou de viagem é «o cartão de cidadão, o bilhete de identidade, o passaporte, o visto, a autorização ou título de residência, a carta de condução, o boletim de nascimento, a cédula ou outros certificados ou atestados a que a lei atribui força de identificação das pessoas, ou do seu estado ou situação profissional, donde possam resultar direitos ou vantagens, designadamente no que toca a subsistência, aboletamento, deslocação, assistência, saúde ou meios de ganhar a vida ou de melhorar o seu nível»; por seu turno notação técnica: «a notação de um valor, de um peso ou de uma medida, de um estado ou do decurso de um acontecimento, feita através de aparelho técnico que actua, total ou parcialmente, de forma automática, que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas os seus resultados e se destina à prova de facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua realização quer posteriormente».
[11] (As perícias na Policia Judiciária- www3.bio.ua.pt/.../
[12] Processo Penal e Prova pericial –Psicologia Forense pag 110 e seg
[13] A prova pericial é valorada pelo julgador em três níveis distintos: quanto à sua validade (respeitante à sua regularidade formal), quanto à matéria de facto em que se baseia a conclusão e quanto à própria conclusão. Quanto á validade formal deve apreciar se a prova foi produzida de acordo com a lei ou se não colide com proibições legais. Assim, é necessário verificar sobre a regularidade dos procedimentos como é o caso da notificação do despacho que ordenou a prova (n.º 3 do art. 154), ou, ainda, da prestação do devido compromisso (n.º 1 do art. 156).
 No que concerne aos factos estamos em face de uma premissa em relação a qual o julgador, dentro da sua liberdade de apreciação pode divergir do facto ou factos de que arranca a perícia pois que, a seu respeito, tem entendimento diferente. A presunção a que alude o n.º 1 do art. 163 do Código de Processo Penal apenas se refere ao juízo técnico-científico e não propriamente aos factos em que o mesmo se apoia. Assim, a necessidade de fundamentar-se a divergência só se dará quando esta incide sobre o juízo pericial.
Aceitando-se o juízo científico quanto à perícia o Tribunal tem, todavia, o poder de livre apreciação quanto aos elementos de facto que o informa.