ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
836/08.4TDLSB.L1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 12/15/2011
SECÇÃO 3ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL RECURSO PENAL
DECISÃO PROVIDO
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR MAIA COSTA

DESCRITORES ACÓRDÃO ABSOLUTÓRIO
CRIME
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
CONDENAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
FACTO ILÍCITO
ILICITUDE
CULPA
DANO
NEXO DE CAUSALIDADE

SUMÁRIO


I - A absolvição em matéria penal não obsta à apreciação do pedido civil e à condenação no mesmo, desde que se provem os factos que constituem os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, ou extracontratual, tal como vêm definidos no art. 483.º do CC, e que são os seguintes: o facto voluntário do agente; a ilicitude; a culpa (imputação do facto ao agente a título de dolo ou mera culpa); o dano; o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
II - Dos factos dos autos resulta que o demandado, enquanto agente de imediação imobiliária, celebrou um contra-promessa de venda de um imóvel com o demandante, na qualidade de procurador de A, que ele indicou como único proprietário do dito imóvel, recebendo logo do demandante, como sinal, a quantia de € 10 000; posteriormente, veio a revelar ao demandante que o imóvel era também propriedade de uma irmã do seu representado, pedindo-lhe mais € 90 000 para aquele poder comprar a parte da irmã. Contudo, o contrato de compra e venda jamais se veio a celebrar, tendo o demandado feito suas as quantias que recebeu do demandante.
III - A conduta do demandado viola frontalmente os deveres a que estava obrigado enquanto agente de imediação imobiliária, designadamente o disposto no art. 16.º do DL 211/2004, de 20-08. O demandado celebrou com o demandante o contra-promessa, em representação do proprietário, prometendo, pois, vender o imóvel, sem esclarecer o promitente-comprador que o prédio pertencia também, em regime de compropriedade, a uma irmã do seu representado, apesar de conhecer tal facto. Induziu, pois, dolosamente em erro o demandante.
IV - Perante a invalidade da efectivação do negócio de compra e venda, cabia ao demandado a obrigação de devolver as quantias recebidas do demandante. Ele as recebera para aquele efeito. Na impossibilidade de realizar o negócio, cessava a causa justificativa desse recebimento. Impunha-se, pois, que restituísse o que recebeu do demandante. Contudo, não efectuou a restituição, fazendo daquelas quantias coisa sua.
V - Tal conduta constitui um enriquecimento sem causa, nos termos do art. 473.º, n.º 2, do CC, pois as quantias foram por ele recebidas em vista de um efeito (celebração do contrato de compra e venda do imóvel) que não se verificou.
VI - Estamos, portanto, no domínio da responsabilidade civil por facto ilícito, não da responsabilidade contratual. Provados que estão todos os pressupostos dessa responsabilidade, o demandado terá de ser condenado no pagamento das quantias recebidas do demandante.



DECISÃO TEXTO INTEGRAL

                Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            I. RELATÓRIO

            AA, com os sinais dos autos, foi condenado, por acórdão de 5.5.2010 da 7ª Vara Criminal de Lisboa, na pena 4 anos de prisão, suspensa na sua execução, como autor de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo art. 205º, nºs 1 e 4, b), do Código Penal.

Foi ainda condenado, na procedência parcial do pedido civil formulado por BB, identificado nos autos, a pagar a este a quantia de 100.000,00 €, a título de indemnização por danos patrimoniais, e ainda a quantia de 30.000,00 €, esta a título de indemnização por danos não patrimoniais, ambas acrescidas de juros à taxa legal, e até efectivo e integral pagamento, desde a data da decisão condenatória.

            Tendo o arguido interposto recurso dessa decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa, este, por acórdão de 5.5.2011, concedeu provimento ao mesmo, absolvendo o arguido do crime imputado, bem como do pedido civil.

            Deste acórdão recorreu para este Supremo Tribunal o demandante BB, que concluiu assim a sua motivação:

1ª - O arguido interpôs recurso do douto acórdão proferido pela 7ª Vara Criminal de Lisboa que o condenou pela prática de um crime de abuso de confiança p. p. pelo art° 205 n° 1 e n° 4 al. b) do CP e que igualmente julgou parcialmente procedente por provado o pedido cível deduzido, e, em consequência, o condenou a pagar ao Demandante Cível, a título de danos patrimoniais a quantia de 100.000,00 €, e a quantia de 30.000,00 € a título de danos não patrimoniais, quantias acrescidas de juros de mora à taxa legal, contados desta a data da decisão condenatória e até efectivo e integral pagamento.

2ª - Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, ora recorrido, considerou-se, face à matéria dada como provada e que manteve inalterada, que o arguido não cometeu o crime de abuso de confiança e que, em consequência, não poderia também ser condenado no pedido cível formulado.

3ª - De acordo com o disposto no n° 1 do art° 377° do CPP "A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no n° 3 do artº 82°". Assim,

4ª - Mesmo em caso de absolvição da matéria penal pode haver lugar à condenação em indemnização civil, caso o pedido se venha a revelar "fundado", o que significa, de acordo com a jurisprudência firmada, que o pedido terá que ter por fundamento os mesmos factos que são pressuposto da responsabilidade criminal e esses factos têm que igualmente permitir a respectiva apreciação como pressuposto ou fonte do direito de indemnizar ao nível da responsabilidade civil extracontratual ou de responsabilidade objectiva ou pelo risco. Pelo que,

5ª - O facto de o arguido ter sido absolvido do crime não leva necessária e obrigatoriamente à sua absolvição do pedido cível formulado, contrariamente ao que foi entendido pelo acórdão recorrido, que, deste modo, não fez correcta interpretação e aplicação do n° 1 do art° 377° do CPP.

6ª - E, ao não ter apreciado, como lhe competia, (o bem fundado) da matéria civil para efeitos do n° 1 do art° 377° do CPP, deixou de se pronunciar sobre uma questão que lhe competia, pelo que, nesta parte, o acórdão recorrido é nulo, de acordo com o art° 379 n° 1 al. c) do CPP. Na verdade,

7ª - Os factos provados pelo Tribunal da 1ª Instância e mantidos pelo Venerando Tribunal da Relação, consubstanciam a prática pelo arguido de um ilícito civil gerador da obrigação de indemnizar ao nível da responsabilidade civil extracontratual. De facto,

                8ª - Encontram-se reunidos todos os pressupostos que a lei civil (artigo 483° do Cód. Civ.) faz depender a obrigação de indemnizar, ou seja, o facto, a ilicitude, a imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, todos eles sustentados nos pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26 e 27 da factualidade dada como assente na 1ª Instância e mantida pelo Tribunal da Relação no acórdão recorrido.

9ª - Os factos praticados pelo arguido - negociar com o lesado, na qualidade de procurador do proprietário do imóvel e enquanto mediador imobiliário, a compra e venda do imóvel identificado nos autos - são ilícitos. Isto porque,

10ª - O mesmo prometeu vender um imóvel que não é possuído pelo vendedor, seu representado, na qualidade de proprietário, pois que o imóvel era detido em compropriedade, sendo necessário o assentimento do outro comproprietário para a venda se concretizar.

                11ª - O arguido não fez constar do contrato promessa nem do seu aditamento a verdadeira situação do imóvel, pois sempre identificou, nestes documentos, o Senhor CC como sendo o proprietário do imóvel.

12ª - Desta situação o arguido não informou o lesado, que desconhecia que o imóvel tinha outro proprietário, até ao momento em que lhe foi solicitado reforço de sinal, que seria, segundo o arguido, destinado a regularizar a situação com o outro comproprietário, mas sem que tenha reflectido esta situação no texto do aditamento ao contrato. Ora,

13ª - O arguido, enquanto mediador imobiliário, promotor da venda em causa, estava obrigado a cumprir os deveres constantes das diversas alíneas do art° 16° do D.L. 211/2004, de 20-08, diploma que disciplina a actividade imobiliária, pelo que logo aquando do contrato de mediação deveria ter aferido da legitimidade do CC para vender o imóvel em causa, reunindo-se de todos os documentos prediais referentes ao imóvel e fornecer toda a informação respeitante ao mesmo, de forma clara e objectiva, aos interessados, neste caso o lesado, procedendo de forma a não os induzir em erro, o que "in casu" sucedeu, porquanto só aquando do pedido de forço de sinal, em 14 de Setembro de 2007, o lesado é informado de quantos são, a final, os proprietários do imóvel e que todos eles tinham que dar o seu assentimento à venda.

14ª - O arguido não ignorava nem podia ignorar estes seus deveres, nem a real situação registral do imóvel, e que estava a celebrar uma promessa de compra e venda de um bem que não era propriedade do seu representado, pelo que a mesma era nula, por se tratar de um bem alheio, devendo e podendo, logo quando foi procurado pelo lesado, informá-lo convenientemente da situação, o que lhe era exigível, para que o lesado se determinasse de acordo com os elementos desde logo fornecidos. Pelo que,

15ª - Resulta claramente que a conduta do arguido, para além de ilícita, foi também culposa.

16ª - E igualmente geradora de danos, uma vez que, logo aquando da celebração da promessa de compra e venda, o lesado entregou ao arguido a quantia de 10.000,00 €, a título de sinal, desconhecendo a real situação do imóvel e eventuais problemas ao nível do outro comproprietário e, aquando do aditamento ao contrato, entregou mais 90.000,00 € ao arguido que se destinariam, segundo este, a comprar a parte do outro comproprietário, o qual nunca veio a concordar na venda, mantendo o arguido as quantias entregues na sua posse, sem que estas lhe pertençam, como está provado.

17ª - O mandato conferido era para vender e receber o preço, pelo que não podendo o mandatário exercer o mandato da venda em nome do mandante, uma vez que este não era proprietário, igualmente não podia, por falta de mandato receber o preço.

18ª - Ao sentir-se enganado pela conduta do arguido, o lesado sofreu também os danos morais provados em sede de 1ª Instância e referidos no douto acórdão. Donde,

19ª - Atentos os factos provados nos autos, verifica-se que resultam reunidos todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual previstos no artigo 483° do C.C. e que constituem o arguido na obrigação de indemnizar o lesado aqui recorrente, por danos patrimoniais e não patrimoniais, conforme valores fixados no douto acórdão da 1ª Instância (100.000,00 €, a título de danos patrimoniais e 30.000,00 €, a título de danos não patrimoniais), quantias a que acrescem os respectivos juros de mora à taxa legal, contados deste a decisão condenatória e até efectivo e integral pagamento.

20ª - Pelo que, ao ter absolvido o arguido do pedido civil contra ele deduzido, o acórdão recorrido violou, para além do n° 1 do artigo 377° do CPP, já referido, igualmente o artigo 483° do Código Civil.

            O demandado respondeu, concluindo:

I- O Arguido agiu a coberto de uma procuração que lhe foi conferida, sem ter extravasado os poderes que a mesma lhe conferia;

II- Estava o Arguido, porque agiu a coberto da referida procuração ao receber as quantias, impedido de devolver, e/ou indemnizar, qualquer quantia ao Recorrente;

III- A conduta do Arguido foi lícita e legítima;

IV- Como bem refere o douto Acórdão recorrido, o Arguido ao receber as quantias que lhe foram entregues pelo Recorrente para pagamento do sinal não teve a intenção de se apropriar das mesmas;

V- Caso o Recorrente entenda ter sido lesado no âmbito da execução e ou do incumprimento do contrato-promessa de compra e venda junto aos autos deverá, em sede cível, demandar a contra-parte naquele contrato, ou seja o promitente-vendedor, ou seja o mandante, e nunca o mandatário, ou seja, o Arguido;

VI- Em suma, não se verifica in casu obrigação de indemnização por parte do Arguido, porquanto, e independentemente de outras considerações, a sua conduta é lícita;

VII- Porque sobre todas estas matérias se pronunciou o Tribunal da Relação de Lisboa é evidente que não existe nulidade do Acórdão por omissão de pronúncia;

VIII- Em suma não assiste razão ao Recorrente em qualquer das suas pretensões;

IX- Pelo que deverá manter-se, na íntegra, o douto Acórdão proferido pela Relação de Lisboa.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

            II. FUNDAMENTAÇÃO

            O recurso é restrito ao pedido civil e é admissível por força do art. 400º, nºs 2 e 3, do CPP.

            Pretende o recorrente, em suma, a repristinação da condenação em matéria cível decretada no acórdão da 1ª instância. Argumenta, em síntese, que da absolvição da matéria criminal não resulta necessariamente a absolvição do pedido civil, face ao disposto no art. 377º, nº 1, do CPP, devendo o tribunal penal condenar no pedido civil se se verificarem os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, o que será o caso dos autos, já que o demandado teria agido ilicitamente, e também culposamente, lesando o demandante na quantia peticionada a título de danos patrimoniais, e provocando-lhe ainda os danos morais provados.

            Estabelece o citado nº 1 do art. 377º do CPP que “a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no nº 3 do art. 82º” [remessa para os tribunais civis quando as questões suscitadas inviabilizarem uma decisão rigorosa ou retardarem intoleravelmente o processo penal].

            Por sua vez, o Assento nº 7/99, deste Supremo Tribunal, publicado no DR, I-A, de 3.8.1999, veio fixar jurisprudência neste sentido: “Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no art. 377º, nº 1, do CPP, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.”

            Desta forma, havendo absolvição da imputação criminal, o tribunal poderá e deverá condenar no pedido civil se os factos que sustentavam aquela imputação forem simultaneamente constitutivos do pedido de indemnização civil e este se fundar em responsabilidade civil extracontratual.

            Assim, a condenação no pedido civil não pode basear-se em factos diferentes dos imputados na acusação, devendo os factos provados em julgamento preencher os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.[1]

Conclui-se, pois, que a absolvição em matéria penal não implica necessariamente a absolvição do pedido civil, ao contrário do que, segundo parece, entendeu a Relação, ao exarar no acórdão recorrido: “Assim não se justifica a condenação do AA por crime que não cometeu. Nestes termos não poderá também ser em consequência condenado no pedido cível formulado.” [itálico nosso]

            A absolvição penal, reitera-se, não obsta à apreciação do pedido civil e à condenação no mesmo, desde que se provem os factos que constituem os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, ou extracontratual, tal como vêm definidos no art. 483º do Código Civil (CC), e que são os seguintes: o facto voluntário do agente; a ilicitude; a culpa (imputação do facto ao agente a título de dolo ou mera culpa); o dano; o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

            Impõe-se, assim, analisar a matéria de facto de forma a indagar se, como pretende o recorrente, se encontram provados todos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.

            É a seguinte a matéria de facto, fixada em 1ª instância e integralmente mantida pela Relação:

1. O arguido AA é gerente da firma denominada “Era Alcântara/Restelo - Casas à Medida - Mediadora Imobiliária”.

2. No dia 14 de Julho de 2007, o arguido assinou um contrato-promessa de compra e venda de imóvel, na qualidade de procurador do proprietário CC contrato este em que BB figurava como promitente-comprador.

3. O imóvel era o prédio que ostenta o n° ..., em Lisboa, e o preço acordado era o de 200.000 €.

4. Com data de 13 de Julho de 2007, BB emitiu o cheque n° ... da C.G.D, no valor de 10.000 €, que entregou ao arguido, a título de sinal.

5. O arguido obteve o pagamento de tal cheque no próprio dia que consta da sua emissão e em que o apresentou no Banco.

6. No dia 14 de Setembro de 2007, o ofendido assinou um aditamento ao contrato-promessa inicial, em que se obrigou a reforçar a quantia anteriormente paga, no montante de 90.000 €.

7. Este reforço deveu-se ao facto do arguido lhe ter comunicado o surgimento de dificuldades na concretização da venda do imóvel, pelo facto do vendedor necessitar da quantia de 100.000 € para comprar a parte da sua irmã, que seria comproprietária do mesmo.

8. Em conformidade, o ofendido emitiu o cheque n°... à ordem do arguido, no montante de 30.000 €, e bem assim o cheque n° ... no valor de 60.000 €, com data de 14 de Setembro de 2007, ambos os cheques sacados sobre a mesma conta, que o primeiro detinha na CGD, e que perfizeram a quantia global de 90.000 €.

9. O arguido fez sua a quantia de 30.000 € titulada no cheque n° ... e depositou o cheque n° ..., na conta de que é titular no BPI, no dia 9 de Outubro de 2007.

10. Sucede que o contrato de compra e venda não se chegou a celebrar, motivo pelo qual o ofendido enviou várias missivas e e-mails, que chegaram ao conhecimento do arguido, no sentido deste último proceder à devolução ao ofendido dos montantes por este entregues à guarda deste último, o que o mesmo nunca fez, antes os fazendo coisa sua.

11. O arguido bem sabia que não podia dispor do dinheiro entregue pelo ofendido que se destinava a pagar o preço de um contrato de compra e venda que não se chegou a celebrar, obedecendo ao desígnio único de fazer suas as quantias supra mencionadas, bem sabendo que delas não podia dispor, por não lhe pertencerem.

12. Agiu livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta lhe era proibida e punida por lei.

13. O arguido foi já condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez e de um crime de desobediência, em penas de multa, conforme consta do seu CRC junto aos autos, que aqui se dá por reproduzido.

14. O teor do relatório social do arguido que consta de fls. 187 a 191 dos autos, que aqui se dá por reproduzido, donde consta que o mesmo coabita com a sua ex-mulher, de quem está divorciado, numa casa que tem como renda mensal a quantia de 1800 Euros, tendo a mesma referido que não trabalha e o arguido igualmente que está inactivo profissionalmente, fazendo apenas pontualmente negócios.

15. O arguido AA é gerente da Firma Ocasião Singular – Sociedade de Mediação Imobiliária, Ldª, que explora a mediadora Imobiliária “Era Alcântara/Restelo”.

16. Através desta mediadora o AA estava encarregue de promover a venda do imóvel, referido no número três, ou seja o imóvel sito no ..., o qual segundo informou ao BB, era propriedade de CC, residente nos Estados Unidos da América.

17. O negócio prometido, acima referido ou seja a compra e venda do imóvel, referido no número três, não se veio a concretizar porque a comproprietária do imóvel, DD, irmã do CC, não estava interessada na venda da sua parte do referido imóvel.

18. Nunca o arguido referiu ao lesado, até ao momento da assinatura do respectivo aditamento, que o prédio em causa era detido em compropriedade, antes sempre se apresentou como representante do único proprietário CC, tal como consta e vem identificado no contrato-promessa que foi assinado e até no respectivo aditamento.

19. Nem nunca forneceu ao lesado quaisquer elementos identificativos do referido imóvel.

20. Pelo que o lesado desconhecia, até ao momento em que lhe foi pedido o reforço de sinal, a existência de uma outra comproprietária do prédio prometido vender e a necessidade do assentimento desta.

21. O AA não esclareceu, assim, aquando da aceitação da proposta de compra nem aquando da celebração do contrato-promessa, a qualidade de mero comproprietário do seu representado, pese embora disso tivesse conhecimento.

22. Logo que teve conhecimento da impossibilidade da efectivação da compra, o BB tentou, através de diversas cartas e e-mail, que chegaram ao conhecimento do AA, obter a devolução das quantias que lhe foram entregues a título de sinal e seu reforço do referido prédio, tendo todas as suas diligências resultado infrutíferas.

23. O AA mantém, assim, em seu poder, indevidamente e contra a vontade do BB, desde, pelo menos, 22-11-2007, data em que através do seu mandatário a comproprietária lhe comunicou não estar interessada na venda da sua parte no imóvel, a quantia de 100.000,00 €, verba que se recusa a devolver.

24. Para poder entregar os valores supra referidos entregues a título de sinal e reforço de sinal, o BB teve necessidade de antecipar o vencimento de depósitos a prazo que possuía e de vender Certificados de Aforro que tinha.

25. Ao sentir-se enganado pelo AA e desapossado das suas poupanças de uma vida de trabalho, o BB sofreu um grande choque emocional, que o deixou em permanente estado de angústia e stress.

26. Agravado por ter de enveredar pela via judicial para as recuperar e sempre na incerteza da sua recuperação, passou a ter dificuldades em dormir e teve de recorrer a medicamentos.

27. E ao tomar consciência de ter sido enganado, o Autor, dada a sua avançada idade, passou a viver num clima de permanente desconfiança, afastou-se do convívio dos amigos, tendo-se tomado numa pessoa solitária.

FACTOS NÃO PROVADOS

Não existem factos não provados da acusação.

Factos, com interesse não provados do pedido cível:

Não resultou provado que:

- O AA se tenha apropriado das quantias acima referidas, na factualidade assente, em nome e para a sociedade Ocasião Singular – Sociedade de Mediação Imobiliária, Ldª, bem como em nome e para CC.

Destes factos resulta, resumidamente, que o demandado, enquanto agente de imediação imobiliária, celebrou um contrato-promessa de venda de um imóvel com o demandante, na qualidade de procurador de CC, que ele indicou como único proprietário do dito imóvel, recebendo logo do demandante, como sinal, a quantia de 10.000,00 €; posteriormente, veio a revelar ao demandante que o imóvel era também propriedade de uma irmã do seu representado, pedindo mais 90.000,00 € ao demandante para aquele poder comprar a parte da irmã. Contudo, o contrato de compra e venda jamais se veio a celebrar, tendo o demandado feito suas as quantias que recebeu do demandante.

A conduta do demandado viola frontalmente os deveres a que estava obrigado enquanto agente de imediação imobiliária. Com efeito, estabelece o art. 16º do DL nº 211/2004, de 20-8:

1. A empresa de mediação imobiliária é obrigada a:

a) Certificar-se, no momento da celebração do contrato de mediação, da capacidade e legitimidade para contratar das pessoas intervenientes nos negócios que irão promover;

b) Certificar-se, no momento da celebração do mesmo contrato, por todos os meios ao seu alcance, da correspondência entre as características do imóvel objecto do contrato de mediação e as fornecidas pelos interessados contratantes, bem como se sobre o mesmo recaem quaisquer ónus ou encargos;

c) Obter informação junto de quem as contratou e fornecê-la aos interessados de forma clara, objectiva e adequada, nomeadamente sobre s características, composição, preço e condições de pagamento do bem em causa;

d) Propor com exactidão e clareza os negócios de que forem encarregados, procedendo de modo a não induzir em erro os interessados;

e) Comunicar imediatamente aos interessados qualquer facto que ponha em causa a concretização do negócio visado.

2. Está expressamente vedado à empresa de mediação:

(…)

c) Celebrar contratos de mediação imobiliária quando as circunstâncias do caso permitirem, razoavelmente, duvidar da licitude do negócio que irão promover.

O demandado celebrou com o demandante o contrato-promessa, em representação do proprietário, prometendo, pois, vender o imóvel, sem esclarecer o promitente-comprador que o prédio pertencia também, em regime de compropriedade, a uma irmã do seu representado, apesar de conhecer tal facto (nº 21).

Induziu, pois, dolosamente em erro o demandante.

Ainda que o demandado tivesse agido, quando pediu o “reforço” do sinal, na esperança de poder adquirir a parte da comproprietária (facto que aliás não está provado), certo é que o negócio veio a inviabilizar-se, devido à oposição da mesma comproprietária.

Perante a inviabilidade da efectivação do negócio de compra e venda, cabia naturalmente ao demandado a obrigação de devolver as quantias recebidas do demandante. Ele as recebera para aquele efeito. Na impossibilidade de realizar o negócio, cessava a causa justificativa desse recebimento. Impunha-se, pois, que restituísse o que recebeu do demandante.

Contudo, não efectuou a restituição, fazendo daquelas quantias coisa sua (nºs 5, 9 e 11).

Tal conduta constitui um enriquecimento sem causa, nos termos do art. 473º, nº 2, do CC, pois as quantias foram por ele recebidas em vista de um efeito (celebração do contrato de compra e venda do imóvel) que não se verificou.

Estamos, pois, no domínio da responsabilidade civil por facto ilícito, não da responsabilidade contratual.

Provados estão todos os pressupostos dessa responsabilidade acima enunciados: o facto, a sua ilicitude, a sua imputação ao demandado, o dano causado ao demandante e o nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano.

Consequentemente, o demandado terá de ser condenado no pagamento das quantias recebidas do demandante.

Igualmente provados estão os pressupostos da responsabilidade por danos não patrimoniais, face à matéria constante dos nºs 25 a 27 da matéria de facto, e ao disposto no art. 496º, nºs 1 e 3, do CC, não merecendo qualquer censura a quantia arbitrada.

Procede, pois, integralmente o recurso.

III. DECISÃO

Com base no exposto, concedendo-se provimento ao recurso, decide-se:

a) Revogar o acórdão recorrido quanto à matéria civil;

b) Condenar o demandado AA a pagar ao demandante BB a quantia de 100.000,00 € (cem mil euros), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros, à taxa legal, desde a data da decisão da 1ª instância e até efectivo e integral pagamento;

c) Condenar o demandado a pagar ao demandante a quantia de 30.000,00 € (trinta mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros, à taxa legal, desde a decisão da 1ª instância, até efectivo e integral pagamento.

Custas pelo demandado.

                                      Lisboa, 15 de Dezembro de 2011

Maia Costa (Relator)
Pires da Graça

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[1] Ver os acórdãos deste Supremo Tribunal de 21.11.2000 (proc. nº 1776/00) e de 10.1.2001 (proc. nº 2757/00).