ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
103/04.2TVLSB.L1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/17/2011
SECÇÃO 7ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO NEGADA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR GRANJA DA FONSECA

DESCRITORES DIREITOS DE AUTOR
DIREITO PATRIMONIAL
DIREITO PESSOAL
TRANSMISSÃO
AUTORIZAÇÃO
FORMA ESCRITA
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
FACTO ILÍCITO
REQUISITOS
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
DECISÃO SURPRESA
MATÉRIA DE DIREITO
ALEGAÇÕES DE RECURSO
RECURSO DE APELAÇÃO

SUMÁRIO

I - A caricatura é um desenho, pintura ou outro meio de expressão que, através do traço, da escolha de detalhes, acentua ou revela certos aspectos mais desagradáveis ou ridículos de uma pessoa, objecto, situação, visando sobretudo efeitos artísticos ou cómicos, pelo que constitui, inequivocamente, uma criação intelectual exteriorizada e, por isso, objecto de protecção nos termos do Código do Direito de Autor e de Direitos Conexos.
II - O direito de autor abrange direitos de carácter patrimonial e direitos de natureza pessoal, denominados direitos morais.
III - Enquanto os direitos de natureza pessoal são inalienáveis, irrenunciáveis e imprescritíveis, por derivarem de carácter eminentemente pessoal da criação literária e artística, os direitos de natureza patrimonial, incluídos do direito de autor, são disponíveis, sendo permitido ao seu titular transmiti-los total ou parcialmente, temporária ou definitivamente.
IV - A autorização da obra por terceiro, uma das várias formas estabelecidas para a referida alienação, só pode ser concedida por documento escrito, contendo obrigatória e especificadamente a forma autorizada de divulgação, publicação e utilização, bem como as respectivas condições de tempo, lugar e preço, competindo ao utilizador desta provar ter sido concedida tal autorização.
V - A utilização desta faculdade pelo autor não implica uma qualquer transmissão dos direitos sobre a obra mas apenas a concessão de uma autorização para a exploração da obra dentro dos limites definidos pela lei e pelo negócio jurídico em si próprio.
VI - Há, porém, situações excepcionais à regra geral enunciada, segundo as quais é possível a utilização de uma obra ou de parte dela, de modo lícito, independentemente do consentimento do autor e sem direito para aquele, nalguns casos, a qualquer remuneração, nomeadamente, a inserção de citações ou resumos de obras alheias, quaisquer que sejam o seu género e natureza, em apoio das próprias doutrinas ou com fins de crítica, discussão ou ensino e na medida justificada pelo objectivo a atingir.
VII - Porém, a citação apenas será lícita se compreender a utilização pontual e breve de obras de um autor e já não uma utilização tão extensa que ultrapasse os limites impostos pela lei, prejudicando o interesse pelas obras.
VIII - Os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual encontram-se preenchidos, de acordo com a matéria de facto provada, impondo-se, por isso, o ressarcimento dos danos provocados pelo recorrente ao autor/recorrido, conforme decidido pelo tribunal a quo.
IX - Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 3.º, n.º 3, e 664.º, ambos do CPC, a regra da proibição das decisões - surpresa limita-se a referir que o juiz não deve tomar decisões no âmbito do processo, sem que as partes tenham a possibilidade de se pronunciarem sobre a matéria de facto que fundamenta essa decisão.
X - Definida a matéria de facto com respeito das regras do contraditório, o juiz não está limitado à apreciação da questão de direito que as partes quiseram aceitar ou adoptar.
XI - O acórdão recorrido não consubstancia qualquer decisão - surpresa, uma vez que se limitou a apreciar a questão de direito aplicável aos factos alegados pelas partes e dados como provados, tendo-se, de resto, as partes pronunciado sobre a questão de direito em sede de alegações de direito e de recurso de apelação.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.

AA, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra BB e Instituto da Comunicação Social, actualmente Gabinete para os Meios da Comunicação Social, pedindo a condenação dos réus a pagar ao autor a quantia de € 80.000,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar desde a citação até integral e efectivo pagamento, bem como a retirar de circulação todos os exemplares dos Volumes III, IV e V da «História da Arte da Caricatura de Imprensa em Portugal» e, ainda, por cada dia de atraso nessa determinação, uma sanção pecuniária compulsória diária de 100 euros.

Alega, como fundamento da sua pretensão, e em síntese, terem os réus utilizado, sem seu consentimento, autorização, conhecimento ou cedência, desenhos e caricaturas da sua autoria, na obra acima referida, esta da autoria do 1º réu e editada por ambos os réus. Acrescenta que a publicação (HACIP) foi subsidiada pelo actual ICS e que tal subsidiação implicava a disponibilização pelo 1º réu ao 2º réu de 900 exemplares, tendo o ICS usado os exemplares que lhe foram entregues. De tal utilização indevida, sofreu o autor danos patrimoniais, no valor de 40.000 euros, a que se deverá acrescer o ressarcimento pelos danos morais, de igual valor.

O réu Instituto da Comunicação Social contestou, impugnando a factualidade vertida na petição inicial e excepcionando a sua ilegitimidade, por não ter sido o autor ou editor da obra, não a tendo publicado, nem patrocinado, a prescrição do invocado crédito, no que tange à publicação dos 4 desenhos inseridos no Volume III da HACI, por tal ter ocorrido em 1999, tendo já decorrido o prazo prescricional de 3 anos e a insuficiente alegação da causa de pedir. Mais peticionou o mesmo réu a condenação do autor como litigante de má fé.

O réu BB também contestou, dando por reproduzida a contestação do co-réu e acrescentando, em resumo, que a obra em causa se inseriu nas “Comemorações Nacionais Dos 150 Anos Da Caricatura Em Portugal”, para as quais havia sido nomeado comissário nacional e que, tratando-se de uma compilação histórica, goza do direito de citação ou referência, para além de que enviou a todos os autores, incluindo ao ora autor, uma circular onde comunicou a idealização do trabalho e colocou a possibilidade dos mesmos autores recusarem a referência e reprodução de parte da sua obra a publicar, sendo que nenhum dos mesmos respondeu.

Termina o réu, peticionando a condenação do autor como litigante de má fé, em multa e indemnização de 1.000 euros.

O autor replicou, propugnando pela improcedência das excepções e peticionando a condenação dos réus como litigantes de má fé.

No saneador, foram julgadas improcedentes as excepções de ilegitimidade passiva e ineptidão da petição inicial e relegado para final o conhecimento da excepção de prescrição.

Por sentença de 2/12/2009, foi a acção julgada improcedente, tendo os réus sido absolvidos dos pedidos e, consequentemente, prejudicada a apreciação da excepção invocada de prescrição, tendo ainda sido julgados improcedentes os pedidos de condenação como litigantes de má fé reciprocamente formulados pelas partes.

Inconformado, apelou o autor para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão de 14/09/2010, considerando improcedente a invocada excepção peremptória da prescrição, decidiu:

1 - Julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, revogou a sentença na parte em que absolveu o réu BB dos pedidos indemnizatórios contra ele formulados, julgando-se procedentes, em parte, condenando-se o mesmo:

a) - A pagar ao autor a quantia que se vier a liquidar pelos danos patrimoniais causados, referidos em D.1., acrescida de juros de mora, à taxa legal, que é actualmente de 4%, desde a citação e até integral pagamento;

b) - A pagar ao autor a quantia de cinco mil euros a título de ressarcimento dos danos não patrimoniais, acrescida dos juros de mora, à taxa supra referida, desde a data da prolação do presente acórdão até integral pagamento;

2 - No demais, confirmou-se a sentença recorrida.

3 – Foram fixadas as custas devidas em 1ª instância e na Relação, pelo autor/apelante e pelo réu BB/apelado, na proporção de 80% e 20%, respectivamente.

Recorreu, agora, para este Supremo Tribunal de Justiça o réu BB, e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

1ª - Vem o presente recurso interposto do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que revoga a sentença da 1ª instância, “na parte em que absolve o réu BB dos pedidos indemnizatórios contra ele formulados, julgando-se procedentes, em parte, condenando-se o mesmo (i) a pagar ao autor a quantia que se vier a liquidar pelos danos patrimoniais causados, referidos em D.1, acrescida de juros de mora, à taxa legal, que é actualmente de 4%, desde a citação e até integral pagamento e (ii) a pagar ao autor a quantia de cinco mil euros a título de ressarcimento dos danos não patrimoniais, acrescida dos juros de mora, à taxa supra referida, desde a data da prolação do presente acórdão até integral pagamento.

2ª - O que está em causa na HACIP não são ilustrações em livros: o objecto de estudo e referência na obra é o autor e todos os outros caricaturistas de Imprensa em Portugal.

3ª - E essa referência, ou citação, da obra, ainda que resumidamente, não pode deixar de ser feita pela publicação dos seus desenhos (a ideia de que a citação apenas abrangeria a publicação de parte do desenho não faz qualquer sentido).

4ª - Repare-se que os desenhos do autor, publicados na HACIP, tendo em conta, por um lado a importância e a longevidade da sua carreira (paralela e simultânea à de outro artista, aliás testemunha neste processo, CID, com o mesmo número de desenhos) e a totalidade dos desenhos contidos na HACIP (mais de 4.000 que foram sendo publicados ao longo de 150 anos, com 653 assinaturas diferenciadas), contém-se dentro dos limites da citação, característica deste tipo de obras.

5ª - Destina-se por isso, ao mundo culto e estudioso, na qual encontrarão novidades, mas sobretudo as referências que permitem sustentar a tese de uma escola de caricatura, marcante e com originalidade europeia.

6ª - Deste modo, os autores citados, naturalmente, não têm qualquer prejuízo pela divulgação/citação da obra que, muito pelo contrário, passará a ser discutida, conhecida da crítica e da história da caricatura de um modo congruente, de abertura de horizontes compreensivos: enquadram-na, explicam-na, propõe-lhe um contexto de artes e, por conseguinte, colocam-na em relevo e destaque no panorama cultural do país.

7ª - Naturalmente, este tipo de estudos e publicações científicas tinha e tem de estar ao lado da estrita regulamentação dos proveitos particulares e imediatos do direito autoral; o plano dos trabalhos metódicos não é o plano do mercado, mas, por assim dizer, um lugar radicular da procura, sem a qual nada está no mundo e sobretudo no mercado, nem obra, nem génio.

8ª - Parece evidente que, neste caso, a regulação do direito de autor aponta o artigo 75º alínea g) como critério de decisão.

9ª – O recorrente pede vénia para reproduzir as alegações de direito que apresentou e foram secundadas pela sentença da 1ª instância, que não merece qualquer reparo.

10ª - As alterações à matéria de facto, introduzidas pelo TRL, em nada prejudica o referido, uma vez que nada alterariam do decidido da 1ª instância.

11ª - A parte final do acórdão recorrido envereda por solução não escrutinada nem submetida a contraditório nem se baseia em factos trazidos aos autos pelas partes.

12ª - Constitui assim uma decisão surpresa.

13ª - A selecção dos desenhos, incluídos na obra, foi feita em relação a todos os jornais publicados em Portugal e em relação a todos os artistas, conforme critério científico que vem referido no artigo 14° da contestação do ora recorrido.

14ª - Sendo de seguida referidos os artistas constantes da obra, pequeno currículo e número de desenhos publicados, entre os quais o autor.

15ª - Resulta de tudo isto que o autor, ora recorrido, iniciou a sua actividade no “Riso Mundial” e no “Pica-Pau”, em 1956 e múltiplas outras publicações desde então e que, só pelo critério cronológico, seriam os desenhos em número de 46 (2002-1956), sem prejuízo das repetições por ano em virtude da simultaneidade de trabalho em várias publicações.

16ª – Sendo a publicação referida nos autos uma obra científica, que se rege pelas regras próprias da exposição, interpretação, análise e pesquisa própria das ciências históricas (o réu é historiador, com o vasto currículo constante dos autos), parece, passe a expressão, não fazer sentido que juristas, por mais qualificados que possam ser, que o são de facto, façam, sem a ajuda de especialistas de outra ciência e sem o escrutínio do contraditório, as suas próprias regras de ciência histórica, à qual são, necessariamente, alheios.

17ª - Não se apreende qual o critério para aceitar a inclusão de uns desenhos na publicação, por razões que se referem e que poderão estar certas ou erradas sob o ponto de vista da ciência histórica, mas que são, de certeza, razões que não se socorrem das regras próprias dessa ciência e a não aceitação de todas os outros, sem qualquer fundamentação, jurídica ou outra, apenas porque se pensa que não.

18ª - Aparte a decisão surpresa e a falta de fundamentação da decisão, em parte nenhuma ficou provada que as citações da obra do autor, já licitamente tornada acessível ao público, não sejam conformes aos bons costumes e não se contenham na medida justificada pelo fim a atingir.

19ª - Este acórdão restritivo da criação científica, a firmar-se na ordem jurídica, não poderá deixar de contribuir para o atraso na investigação científica em Portugal, o que, certamente, não estará nos objectivos desse Alto Tribunal.

20ª - O autor não configurou o seu pedido como de apreciação casuística de cada um dos desenhos.

21ª - Não podia o douto acórdão recorrido socorrer-se do que não foi alegado pelas partes.

22ª - O acórdão é nulo, devendo ser julgado como tal, confirmando, outrossim, a sentença da 1ª instância.

Contra – alegou o autor, apresentando as seguintes conclusões:

1ª - O recorrente não cumpriu os ónus processuais relativos ao fundamento do recurso de revista e à impugnação da matéria de direito, em sede recursiva, previstos nos artigos 721º, n.º 2, e 690º, n.os 1 e 2, ambos do CPC, pelo que o presente recurso padece de irregularidade, com todas as consequências legais.

2ª - Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 3º, nº 3, e 664º, ambos do CPC, a regra da proibição das decisões surpresa limita-se a referir que o juiz não deve tomar decisões no âmbito do processo sem que as partes tenham a possibilidade de se pronunciarem sobre a matéria de facto que fundamenta essa decisão.

3ª - Definida a matéria de facto com respeito das regras do contraditório, o juiz não está limitado à apreciação da questão de direito que as partes quiseram aceitar ou adoptar.

4ª - O acórdão recorrido não consubstancia qualquer decisão surpresa, uma vez que se limitou a apreciar a questão de direito aplicável aos factos alegados pelas partes e dados como provados, tendo-se, de resto, as partes pronunciado sobre a questão de direito em sede de alegações de direito e de recurso de apelação.

5ª - O disposto na alínea g), do nº 1, do artigo 75º, do CDAC, na redacção aplicável à data da prática dos factos (DL 63/85, de 14 de Março, com as alterações introduzidas pelas Leis 45/85, de 17 de Setembro, e 114/91, de 03 de Setembro, e pelos DL 332/97, de 27 de Novembro e 334/97, de 27 de Novembro), não se aplica ao presente caso, uma vez que não se trata de qualquer inclusão de “peças curtas” ou “fragmentos” dos desenhos de autoria do recorrido, nem a HACIP se destinar ao ensino.

6ª - A utilização livre prevista na alínea f), do artigo 75º, do CDADC, na redacção aplicável à data da prática dos factos (DL 63/85, de 14 de Março, com as alterações introduzidas pelas Leis 45/85, de 17 de Setembro, e 114/91, de 03 de Setembro, e pelos DL 332/97, de 27 de Novembro e 334/97, de 27 de Novembro) não é de aplicar ao caso dos autos, porque a reprodução, feita pelo recorrente, de 26 dos 40 desenhos de autoria do recorrido, não pode ser integrada no conceito de citação, atentos os limites previstos no n.º 2 do artigo 76º do CDADC e no artigo 10º, alínea i) da Convenção de Berna.

7ª - O tribunal a quo fundamentou o critério adoptado na apreciação da questão de direito e respectiva conclusão, isto é, de que a utilização pelo recorrente de 26 dos desenhos de autoria do recorrido não é lícita, atentos os dispositivos legais supra referidos, por não ser a utilização de tais desenhos estritamente necessária para evidenciar o carácter singular do respectivo criador e/ou para retratar um contexto histórico marcante, não cumprindo, por isso, os fins de informação e crítica a que se destina a obra em apreço.

8ª - Assim, a publicação de 26 dos 40 desenhos de autoria do recorrido na HACIP, sem a sua autorização, constitui um facto ilícito, estando preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo do crime de usurpação previsto no artigo 195 do CDADC.

9ª - Os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual prevista no artigo 483º, nº 1, do CC, encontram-se preenchidos, de acordo com a matéria de facto provada, impondo-se, por isso, o ressarcimento dos danos provocado pelos recorrente ao recorrido, conforme decidido pelo tribunal a quo.

Termos em que, e nos mais de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado total e manifestamente improcedente e, em consequência, ser integralmente mantido o acórdão recorrido, por ter interpretado e aplicado correctamente a lei aos factos, não merecendo, pois, qualquer tipo de reparo ou censura.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

2.

Nas instâncias, consideraram-se provados os seguintes factos:

1º - O autor dedica-se, entre outras, à criação de obras de desenho humorístico.

2º - O autor exerce a profissão de jornalista e artista plástico há mais de 45 anos.

3º - O autor é um artista com uma vasta e conhecida obra.

4º - O autor publicou, com regularidade, os seus desenhos no jornal “Público”.

5º - O autor detém o curriculum constante do documento junto a fls. 24/34, completado pelo conteúdo de fls. 118 do volume V da HACIP e ainda pelos factos dos artigos 4°, 5° e 6° da contestação do réu BB.

6º - No ano de 2002, BB fez publicar, em vários volumes, uma obra intitulada “História da Arte da Caricatura de Imprensa em Portugal, adiante designada “HACIP”.

7º - O réu executou o controle da obra, tendo decidido do seu conteúdo e da forma como devia ser dada à estampa.

8º - O Réu BB é o autor da HACIP.

9º - Esta obra foi editada pelo réu BB, utilizando a designação de “HUMORGRAFE”.

10º - Tendo organizado e compilado, originariamente, as reproduções que dela constam e decidido que obras dela deveriam fazer parte.

11º - A “HACIP” foi subsidiada por decisão do Secretário de Estado da Comunicação Social. Assim, nos dias 10/10/97 e 28/04/98, respectivamente, o Secretário de Estado da Comunicação Social decidiu conceder dois incentivos específicos, por conta do orçamento do ICS, dos montantes de 3.000.000$00 e de 2.500.000$00, o primeiro para custear o papel da edição em livro da obra “História da Caricatura em Portugal”, e parte do segundo (do montante de 1.000.000$00) para a concretização da edição dessa obra.

12º - A respectiva verba de subsídio foi disponibilizada mediante a apresentação de um projecto instruído.

13º - Tal subsidiação implicou como contrapartida que o réu BB disponibilizaria a oferta de cerca de 900 exemplares desta publicação ao Instituto de Comunicação Social. No ano de 2002, BB fez publicar, em vários volumes, uma obra intitulada “História da Arte da Caricatura de Imprensa em Portugal, adiante designada “HACIP”.

14º - Exemplares que foram, efectivamente, entregues.

15º - Esta obra encontra-se registada sob os ISBN constantes no documento de fls. 762.

16º - O réu BB, autor e editor da “HACIP” fez publicar nela 40 desenhos do autor como consta das páginas 307, 335, 348 e 362 do III volume; 17 (dois desenhos) 48, 56, 59, 61, 66, 70, 86, 91, 103, 119 (dois desenhos), 122, 125, 130, 136, 138, 143, 146, 155, 158, 165, 170, 174, 187, 205, 207, 219, 226, 231, 239, 253, 262, 273 do IV volume; e 118 do V volume.

17º - Tais desenhos constituem criação com carácter original do autor, embora já anteriormente publicados nos órgãos e números indicados na publicação HACIP para cada um deles.

18º - Os réus tinham consciência que nenhum documento de autorização de reprodução constava no processo existente na SEC/ICS.

19º - O então Instituto de Comunicação Social usou os exemplares que lhe foram entregues da “HACIP” para os doar a pessoas ou entidades.

20º - O que constitui uma operação de prestígio.

21º - O réu BB agiu conscientemente e o réu ICS, ao usar os exemplares que lhe foram entregues da HACIP, para os doar a pessoas ou entidades, agiu conscientemente.

22º - Uma das fontes de rendimento do autor provém da comercialização e direitos de reprodução das obras por si produzidas.

23º - Por cada desenho publicado, o autor viu o seu património não acrescido em montante concretamente não apurado.

24º - O réu BB provocou inquietações morais ao autor por uso não autorizado das obras e por inserção delas em publicação, sentindo o autor inquietações pelo facto de constar na publicação em referência a participação do réu ICS.

25º - A obra em questão nestes autos inseriu-se nas “Comemorações Nacionais dos 150 Anos da Caricatura em Portugal”, para os quais BB havia sido nomeado Comissário Nacional.

26º - Até ano concretamente não apurado mas anterior a 2002, o autor confiou obras suas ao réu, BB, para serem levadas a exposições.

27º - O autor nem prévia nem posteriormente autorizou escolha, publicação ou uso por qualquer meio de desenhos, em questão nesta acção.

3.

O autor intentou a presente acção de condenação contra o réu BB Macedo e Instituto da Comunicação Social com fundamento na reprodução, por aqueles, de desenhos de sua autoria na obra HACIP, editada em 2002, sem que, para tal, tivessem obtido ou, sequer, tentado obter, qualquer autorização do autor, pretendendo o mesmo, em consequência, ser ressarcido pelos danos patrimoniais e não patrimoniais.

A 1ª instância absolveu os réus do pedido, tendo a Relação revogado, parcialmente, a sentença, com o que se conformou o autor, ao contrário do réu BB que não aceita a sua condenação.

A revista circunscreve-se, assim, ao segmento do acórdão da Relação que condenou o réu BB (i) a pagar ao autor a quantia que se vier a liquidar pelos danos patrimoniais causados, referidos em D.1, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento e (ii) a pagar ao autor a quantia de cinco mil euros a título de ressarcimento dos danos não patrimoniais, acrescida dos juros de mora, à taxa supra referida, desde a data da prolação do acórdão até integral pagamento.

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões dos recorrentes, estando vedado o conhecimento de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (artigos 684º, n.º 3, 690º, n.º 1 e 660º, n.º 2 CPC), são as seguintes as questões a decidir:

a) - Se a actuação do réu BB, ao publicar os desenhos do autor, é lícita, nos termos do artigo 75º do CDADC;

b) - Se o referido réu incorreu na obrigação de indemnizar o autor;

c) – Se a parte final do acórdão recorrido envereda por solução não escrutinada nem submetida a contraditório nem se baseia em factos trazidos aos autos pelas partes, constituindo assim uma decisão surpresa, sendo, consequentemente, nula.

4.

Da responsabilidade do réu BB:

No ano de 2002, o réu BB, com o apoio do Instituto de Comunicação Social (ICS), publicou a História da Arte da Caricatura de Imprensa em Portugal (HACIP), tendo nela sido publicados quarenta desenhos do autor, sem a autorização prévia ou posterior deste.

Perante tal matéria provada, apresenta-se a questão de saber se a publicação dos desenhos, naquelas circunstâncias, integra, ou não, um facto ilícito.

Encontramo-nos, pois, no domínio da responsabilidade civil extracontratual.

Nos termos do preceituado no artigo 483º nº 1 do Código Civil, “aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

Ali se estabelece pois o princípio geral da responsabilidade civil, fundada em facto que seja objectivamente controlável ou dominável pelo agente, isto é uma conduta humana, que tanto pode consistir num facto positivo, uma acção, como num negativo (omissão ou abstenção), violadora do direito de outrem ou de qualquer disposição legal que vise proteger interesses alheios — comportamento ilícito.

Para que desse facto irrompa a consequente responsabilidade, necessário se torna, à partida, que o agente possa ser censurado pelo direito, em razão precisamente de não ter agido como podia e devia de outro modo; isto é que tenha agido com culpa.

A ilicitude e a culpa são elementos distintos; aquela, virada para a conduta objectivamente considerada, enquanto negação de valores tutelados pelo direito; esta, olhando sobretudo para o lado subjectivo do facto jurídico.

Mas, para além dos requisitos supra-enumerados e para que alguém se constitua na obrigação de indemnizar, é necessário que se verifique a existência de nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Este requisito, consagrado entre nós no artigo 563º do Código Civil, aponta no sentido de que “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”. O normativo em causa não pretende abarcar todavia todos os danos que possam conexionar-se com determinado evento lesivo ou que só se produziram em virtude de uma circunstância extraordinária, mas unicamente aqueles que sejam susceptíveis de nele se filiar através de um nexo de causalidade adequada. Está assim afastada a teoria da equivalência de condições[1];

Como se referiu, nos termos desta disposição legal, a ilicitude pode consistir na violação de direitos subjectivos alheios ou de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios.

No artigo 27º da Declaração Universal dos Direitos do Homem encontra-se consagrado o direito (de autor), segundo o qual “todos têm direito à protecção dos interesses materiais e morais correspondentes às produções cinematográficas, literárias ou artísticas de que são autores”.

De igual modo, o artigo 42º da Constituição da República Portuguesa consagra o direito de autor como um dos direitos fundamentais dos cidadãos, tratando-se de um direito de natureza essencialmente pessoal[2], estabelecendo a protecção legal desses direitos, na liberdade de criação intelectual, artística e científica, sendo que esta liberdade compreende o direito à invenção, produção e divulgação da obra literária ou artística, incluindo a protecção legal dos direitos de autor (vide n. os 1 e 2 do artigo 42º).

Consubstanciando estes princípios, o legislador ordinário publicou o Código do Direito de Autor e dos direitos Conexos, doravante CDADC, sendo que ao caso em presença, uma vez que a HACIP foi publicada em 2002, se aplica o Código, aprovado pelo DL 63/85, de 14/3, com as redacções introduzidas pelas Leis n.º 45/85, de 17/9, 114/91, de 3/9, e pelos DL n.º 332/97 e 334/97, de 27/11, (diploma a que pertencem todas as normas adiante citadas sem menção de origem).

Nos termos do disposto no artigo 1º, n.º 1 do CDADC, “consideram-se obras as criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas, que, como tais, são protegidas nos termos deste Código, incluindo-se nessa protecção os direitos dos respectivos autores”, acrescentando o seu n.º 3 que, “para os efeitos do disposto neste Código, a obra é independente da sua divulgação, publicação, utilização ou exploração”, compreendendo essas criações, entre outras, as obras de desenho (vide artigo 2º, n.º 1, alínea g).

A caricatura é “um desenho, pintura ou outro meio de expressão que, através do traço, da escolha de detalhes, acentua ou revela certos aspectos mais desagradáveis ou ridículos de uma pessoa, objecto, situação, (…), visando sobretudo efeitos satíricos ou cómicos[3]

As caricaturas constituem, pois, inequivocamente uma criação intelectual artística exteriorizada e, por isso, objecto da protecção dos termos do CDADC (artigos 1º, n.º 1 e 2º, n.º 1, alínea 1).

Assim, é inquestionável que o recorrido é o titular do direito de autor dos referidos desenhos (caricaturas) e que tal direito é reconhecido independentemente de registo (vide artigos 11º, 12º e 27º).

Deste modo, atentas as disposições legais citadas, os desenhos do recorrente (caricaturas) merecem a protecção aí prevista pois constituem obras originais, sendo irrelevante o facto de tais desenhos já terem sido publicados na imprensa, nomeadamente em jornais, pois o carácter de originalidade não se extingue com a primeira comunicação lícita da obra ao público, subsistindo e acompanhando a obra nas várias utilizações que dela se fizerem (vide artigos 1º, n.º 3, 68º, n. os 2, alínea a), 3 e 4 e 173º).

E qual o conteúdo do direito de autor?

Quem o delimita é o artigo 9º, estabelecendo o n.º 1 do referido dispositivo que o “direito de autor abrange direitos de carácter patrimonial e direitos de natureza pessoal, denominados direitos morais”.

Explicita o seu n.º 2 que o exercício dos direitos de carácter patrimonial compreende o direito exclusivo de o autor dispor da sua obra e de a fruir e utilizar ou de autorizar a sua fruição ou utilização por terceiro, total ou parcialmente.

Ainda quanto aos direitos de carácter patrimonial, o artigo 67º estabelece que “o autor tem o direito exclusivo de fruir e utilizar a obra, no todo ou em parte, no que se compreendem, nomeadamente, as faculdades de a divulgar, publicar e explorar economicamente por qualquer forma, directa ou indirectamente, nos limites da lei”, aí residindo o objectivo fundamental da protecção legal, assegurado pelo n.º 2 do mesmo artigo.

E pronunciando-se sobre as diversas formas de utilização da obra, acrescenta o n.º 1 do artigo 68º que “a exploração e, em geral, a utilização da obra podem fazer-se, segundo a sua espécie e natureza, por qualquer dos modos actualmente conhecidos ou que de futuro o venham a ser”, pertencendo “em exclusivo ao titular do direito de autor a faculdade de escolher livremente os processos e as condições de utilização e exploração da obra” e sendo “as diversas formas de utilização independentes umas das outras” (cfr. n.os 2 e 3 do mesmo preceito).

Por outro lado, enquanto os direitos de natureza pessoal são inalienáveis, irrenunciáveis e imprescritíveis, por derivarem de carácter eminentemente pessoal da criação literária e artística, perpetuando-se, após a morte do autor, enquanto a obra não cair no domínio público (vide artigos 56º, n.º 2 e 57º, n.º 1), os direitos de natureza patrimonial incluídos no direito de autor são disponíveis, sendo permitido ao seu titular transmiti-los total ou parcialmente, temporária ou definitivamente.

De entre as várias formas estabelecidas para a referida alienação (disponibilização dos direitos patrimoniais), inclui-se o direito do titular originário autorizar a utilização da obra por terceiro, tal como decorre da alínea a) do artigo 40º.

No entanto, tal autorização apenas é válida mediante o cumprimento dos requisitos estabelecidos pelo legislador no artigo 41º, n.os 2 e 3. Assim, a autorização só pode ser concedida por documento escrito, contendo obrigatória e especificadamente a forma autorizada de divulgação, publicação e utilização, bem como as respectivas condições de tempo lugar e preço.

Assim, como regra geral, todo aquele que pretenda utilizar uma determinada obra, carece de obter a respectiva autorização, obrigatoriamente prestada, nos termos acima expostos.

Donde, como bem referiu o autor, “o poder de autorizar, ou proibir, a utilização da obra é do seu criador e constitui o elemento característico fundamental do direito de autor, tanto sob o ponto de vista patrimonial como pessoal.

A utilização desta faculdade pelo autor não implica, por isso mesmo, uma qualquer transmissão dos direitos sobre a obra, mas apenas a concessão de uma autorização para a exploração da obra dentro dos limites definidos pela lei e pelo negócio jurídico em si próprio”.

Ora, sendo, em princípio, necessária a autorização escrita do autor para a reprodução da obra e competindo ao utilizador desta provar ter sido concedida tal autorização, os factos demonstram que o réu não solicitou qualquer autorização ao autor, não se inibindo, no entanto, de publicar a mesma.

Mas ainda assim poder-se-á considerar a publicação do réu uma situação excepcional, que possa permitir a utilização da obra sem autorização do autor (tese defendida pelo réu nas suas doutas alegações), face ao disposto na alínea g) do n.º 2 do artigo 75?

A questão coloca-se porque o legislador consagrou situações excepcionais à regra geral, acima enunciada, segundo as quais é possível a utilização de uma obra ou de parte dela, de modo lícito, independentemente do consentimento do autor e sem direito, para aquele, nalguns casos, a qualquer remuneração, pelo que cumpre apreciar se a situação em causa integra alguma das excepções legalmente previstas.

Essas excepções encontram-se consagradas nas diversas alíneas do artigo 75º, dispondo, no que ora interessa, a alínea g) do n.º 2 do artigo 75º:

São lícitas, sem o consentimento do autor, “a inserção de citações ou resumos de obras alheias, quaisquer que sejam o seu género e natureza, em apoio das próprias doutrinas ou com fins de crítica, discussão ou ensino, e na medida justificada pelo objectivo a atingir”, acrescentando, porém, o n.º 2 do artigo 76º que “a reprodução ou citação não podem ser tão extensas que prejudiquem o interesse por aquelas obras”.

Assim, a lei prevê, relativamente às obras protegidas, que certas utilizações são livres, abrangendo o direito de citação obras não literárias[4].

Isso mesmo flui do texto legal, ao aludir a obras alheias “quaisquer que sejam o seu género e natureza”, sendo, pois, toda a obra passível de citação.

Porém, dada a limitação imposta pelo n.º 2 do artigo 76º, a citação apenas será considerada lícita se compreender a utilização pontual e breve de obras de um autor e já não uma utilização tão extensa que ultrapasse os limites impostos pela lei, prejudicando o interesse pelas obras.

Aliás, este princípio é um corolário lógico decorrente do próprio conceito de citação, inserto na citada alínea g) do n.º 2 do artigo 75º, pois que a citação é uma “forma breve de referência colocada entre parêntesis no interior do texto ou anexado ao texto como nota de pé de página, e que permite identificar a publicação onde foram obtidos a ideia, o enxerto, etc, e indicar a sua localização exacta na fonte[5]”.

Estabelece, por sua vez, o artigo 10º da Convenção de Berna para a Protecção das Obras Literárias e Artísticas de 9 de Setembro de 1886, completada e revista, por vários Actos, o último dos quais em Paris a 24 de Julho de 1971 (e aprovado por Portugal, por adesão através do Decreto n.º 73/78, de 26/7/78) que “são lícitas as citações tiradas de uma obra, já licitamente tornada acessível ao público, na condição de serem conformes aos bons costumes e na medida justificada pelo fim a atingir, incluindo as citações de artigos de jornais e recolhas periódicas sob a forma de revistas de imprensa”.

O Tribunal recorrido, tendo como pano de fundo os citados preceitos, procedeu, de seguida, a uma análise dos fins da obra em causa, atento o seu teor e contexto em que a mesma foi elaborada.

E considerou:

“A publicação da HACIP inseriu-se nas “Comemorações Nacionais dos 150 anos da Caricatura em Portugal”, para os quais o ora réu BB havia sido nomeado Comissário Nacional.

O fim dos livros foi, pois, a divulgação da caricatura de imprensa inserida nas comemorações nacionais. Na sua génese estão razões culturais e de divulgação pública de informação expressa nessa forma de criação artística (daí a concessão de subsídios pelo ICS), pois que, como é sabido, a caricatura oscila entre a arte e a notícia.

Apesar do próprio autor da HACIP reconhecer “os múltiplos defeitos desta obra”, ela pretende ser uma verdadeira compilação histórica, com descrição e análise crítica, por ordem cronológica, dos principais artistas da caricatura em Portugal, integrando-se a obra do autor Vasco Castro, enquanto caricaturista, nesse todo”.

“Visou-se ainda acompanhar a história da caricatura com elementos da história política.

Assim sendo, atentas as finalidades de crítica e de informação, era lícito ao réu BB reproduzir na referida obra algumas das caricaturas criadas pelo autor”.

E nessa medida, tanto o autor quanto o réu estão de acordo com este excerto do acórdão que reproduz, nesta parte, a sentença.

De facto, trata-se de uma análise lógica, adequada e correcta, tendo concluído que tal obra constitui uma pesquisa histórica sobre a criação dos diversos caricaturistas, evidenciando o carácter singular de cada um, os assuntos, temas e motivos representados, no contexto histórico, social, cultural e político em que as obras foram produzidas, projectando significados e sentidos, estando, por isso, na sua génese, razões culturais e de divulgação pública e de informação.

Porém, como se referiu, a citação apenas será considerada lícita se compreender a utilização pontual e breve de obras de um autor e já não uma utilização tão extensa que ultrapasse os limites impostos na lei, prejudicando o interesse pelas obras.

Assim, o Tribunal a quo procedeu, de seguida, a uma apreciação da questão pelo prisma da extensão dessa citação.

Pelo que, tendo em conta esse objectivo, procedeu à apreciação dos 40 desenhos da autoria do autor/recorrido, reproduzidos nessa obra, dispersos pelos volumes III, IV e V, tendo procedido à respectiva análise e concluído que a reprodução de 14 desses desenhos era lícita por serem estritamente necessários para evidenciarem o carácter singular desse criador e/ou para retratarem um contexto histórico marcante, cumprindo, por isso, a finalidade da obra em apreço, tendo, consequentemente, decidido que os restantes 26 desenhos não eram necessários para o fim intelectual prosseguido, sendo, por isso, excessiva a citação/publicação das mesmas, tendo tal prejudicado irrazoavelmente os legítimos interesses do titular do direito de autor.

Salvo o devido respeito, não se compreende, atendendo ao que se deixa exposto, como pode o recorrente invocar que não apreende o critério adoptado pelo Tribunal a quo para aceitar a inclusão de uns desenhos e não aceitação de outros, na publicação em causa, mais invocando que tal critério não tem qualquer fundamentação jurídica.

A fundamentação do acórdão recorrido é exaustiva e clara, remetendo-se, por isso, para a dissecação feita (fls. 28 a 30) e que merece a nossa concordância, cujos traços essenciais salientamos.

5.

O facto da obra incorporar caricaturas de outros autores, alguns em número superior, não obsta a tal conclusão, porquanto cada criador é livre de agir ou não judicialmente para defesa dos seus direitos.

O réu BB actuou, assim, de forma ilícita.

Tal actuação foi voluntária e dolosa, sendo merecedora de reprovação e a censura do direito.

Porque há um nexo de causalidade entre essa actuação e os danos, o réu constituiu-se na obrigação de indemnizar.

Porque o recorrente apenas questionou o dever de indemnizar e não o valor da indemnização devida, tal questão não integra o objecto do recurso.

6.

Invoca o recorrente que a parte final do acórdão recorrido consubstancia uma decisão surpresa por, no seu entender, enveredar por solução não escrutinada nem submetida a contraditório, nem se basear em factos trazidos aos autos pelas partes, nomeadamente por o recorrido não ter configurado o seu pedido como de apreciação casuística de cada um dos seus desenhos em causa nos presentes autos, o que, a verificar-se, faria que o acórdão recorrido enfermasse de nulidade.

Pronunciando-se sobre a necessidade do pedido e da contradição, estabelece-se no n.º 1 do artigo 3º do CPC que “o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe, sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição”.

Esta norma veio proibir a decisão surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes.

“Esta vertente do princípio tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado, pois as que estejam na disponibilidade exclusiva das partes, tal como as que sejam oficiosamente cognoscíveis mas na realidade tenham sido levantadas por uma das partes, são naturalmente objecto de discussão antes da decisão, sem que o facto de a parte que as tenha levantado não ter exercido o direito de resposta (desde que este lhe tenha sido facultado) implique falta de contraditoriedade[6]”.

Sendo o tribunal a quo chamado a pronunciar-se sobre a licitude da publicação pelo réu BB dos desenhos do autor, sem a necessária autorização deste, o acórdão recorrido, na análise da questão de direito, designadamente, na subsunção dos factos dados como provados aos artigos 75º, alínea g) e 76º, n.º 2 do CDADC e artigo 10º, n.º 1 da Convenção de Berna (citados), normas que prevêem a utilização lícita de obras alheias através da citação e respectivos limites, nomeadamente a extensão da citação na medida justificada pelo seu fim, procedeu, naturalmente, à apreciação da licitude da utilização feita pelo recorrente de cada desenho de autoria do recorrido, à luz dos referidos dispositivos legais.

Como ficou provado, entre outros factos, o réu BB, autor e editor da “HACIP”, fez publicar nela 40 desenhos do autor, insertos nos volumes III, IV e V, pelo que a apreciação que o Tribunal recorrido fez incidiu apenas e somente quanto aos factos alegados pelas partes.

O que o recorrente não concorda e entende, erradamente, constituir uma decisão surpresa, é a apreciação do Tribunal a quo relativa à questão de direito.

Ora, quanto a este aspecto, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito; mas só pode servir-se dos factos articulados pelas partes, sem prejuízo do disposto no artigo 264º (vide artigo 664º CPC).

Assim, encontrando-se fixados os factos articulados pelas partes, o tribunal pode proceder à livre apreciação das regras do direito aplicáveis aos referidos factos, não se encontrando sujeito às regras de direito que as partes alegaram e, portanto, relativamente às quais tiveram oportunidade de se pronunciar na respectiva sede, ou seja, nas alegações de direito, que foram produzidas por todas as partes processuais e nas alegações do recurso de apelação.

In casu, o Tribunal a quo apreciou a questão de direito em causa nos autos, ou seja a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos relativos a direito de autor, tendo, contudo, adoptado uma argumentação diferente da que foi adoptada pelo Tribunal de 1ª instância e pelo recorrente mas coincidente com a invocada pelo recorrido.

Com efeito, este invocou expressamente, no recurso de apelação, que não se encontra verificada a utilização livre prevista na alínea g) do artigo 75º do CDADC, por, em seu entender, a obra em causa não cumprir, em consequência, os fins legalmente previstos e ainda, por a reprodução dos 40 desenhos não poder ser integrada no conceito de citação, atentos os limites previstos no n.º 2 do artigo 76º do CDADC, tendo, contudo, entendido o tribunal recorrido que eram 26 dos 40 desenhos utilizados pelo recorrente, que não cumpriram os limites legais da citação.

O acórdão recorrido não consubstancia, assim, qualquer decisão surpresa, não padecendo, por isso, de qualquer vício, designadamente de nulidade.

Concluindo:

1 – A caricatura é um desenho, pintura ou outro meio de expressão que, através do traço, da escolha de detalhes, acentua ou revela certos aspectos mais desagradáveis ou ridículos de uma pessoa, objecto, situação, visando sobretudo efeitos artísticos ou cómicos, pelo que constitui, inequivocamente, uma criação intelectual exteriorizada e, por isso, objecto de protecção nos termos do Código do Direito de Autor e de Direitos Conexos.

2 – O direito de autor abrange direitos de carácter patrimonial e direitos de natureza pessoal, denominados direitos morais.

3 – Enquanto os direitos de natureza pessoal são inalienáveis, irrenunciáveis e imprescritíveis, por derivarem de carácter eminentemente pessoal da criação literária e artística, os direitos de natureza patrimonial, incluídos do direito de autor, são disponíveis, sendo permitido ao seu titular transmiti-los total ou parcialmente, temporária ou definitivamente.

4 – A autorização da obra por terceiro, uma das várias formas estabelecidas para a referida alienação, só pode ser concedida por documento escrito, contendo obrigatória e especificadamente a forma autorizada de divulgação, publicação e utilização, bem como as respectivas condições de tempo, lugar e preço, competindo ao utilizador desta provar ter sido concedida tal autorização.

5 – A utilização desta faculdade pelo autor não implica uma qualquer transmissão dos direitos sobre a obra mas apenas a concessão de uma autorização para a exploração da obra dentro dos limites definidos pela lei e pelo negócio jurídico em si próprio.

6 – Há, porém, situações excepcionais à regra geral enunciada, segundo as quais é possível a utilização de uma obra ou de parte dela, de modo lícito, independentemente do consentimento do autor e sem direito para aquele, nalguns casos, a qualquer remuneração, nomeadamente, a inserção de citações ou resumos de obras alheias, quaisquer que sejam o seu género e natureza, em apoio das próprias doutrinas ou com fins de crítica, discussão ou ensino e na medida justificada pelo objectivo a atingir.

7 – Porém, a citação apenas será lícita se compreender a utilização pontual e breve de obras de um autor e já não uma utilização tão extensa que ultrapasse os limites impostos pela lei, prejudicando o interesse pelas obras.

8 – Os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual encontram-se preenchidos, de acordo com a matéria de facto provada, impondo-se, por isso, o ressarcimento dos danos provocados pelo recorrente ao autor/recorrido, conforme decidido pelo tribunal a quo.

9 – Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 3º, n.º 3 e 664º, ambos do CPC, a regra da proibição das decisões – surpresa limita-se a referir que o juiz não deve tomar decisões no âmbito do processo, sem que as partes tenham a possibilidade de se pronunciarem sobre a matéria de facto que fundamenta essa decisão.

10 – Definida a matéria de facto com respeito das regras do contraditório, o juiz não está limitado à apreciação da questão de direito que as partes quiseram aceitar ou adoptar.

11 – O acórdão recorrido não consubstancia qualquer decisão – surpresa, uma vez que se limitou a apreciar a questão de direito aplicável aos factos alegados pelas partes e dados como provados, tendo-se, de resto, as partes pronunciado sobre a questão de direito em sede de alegações de direito e de recurso de apelação.

7.

DECISÃO:

Pelo exposto, negada a revista, confirma-se o douto acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 17 de Novembro de 2011-11

Granja da Fonseca

Silva Gonçalves

Pires da Rosa

___________________________

[1] Pires de Lima e Antunes Varela Código Civil Anotado, Volume I, 4ª edição, em anotação ao artigo 563º. Galvão Telles “Direito das Obrigações”, Coimbra Editora 6ª Edição, páginas 404 e seguintes Pereira Coelho “O Problema da Causa Virtual na Responsabilidade Civil” reimpressão colecção Teses páginas.

[2] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, página 623.

[3] Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Academia de Ciências de Lisboa, Volume II, 699.

[4] Oliveira Ascensão, Direito de Autor e Direitos Conexos, Coimbra Editora, páginas 216 a 219.

[5] Referências Bibliográficas e Citações – Como fazer? Lucília Paiva, Assessora de Biblioteca e Documentação – Faculdade de Farmácia da Universidade de Coimbra – Revista da Farmácia Clínica, n.º 2, Junho de 1996.

[6] Lebres de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, página 9.