ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
4119/04.0TTLSB.S1
DATA DO ACÓRDÃO 09/15/2010
SECÇÃO 4.ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO NEGADA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR VASQUES DINIS

DESCRITORES MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO
ÁREA TEMÁTICA DIREITO DO TRABALHO - CONTRATO DE TRABALHO
LEGISLAÇÃO NACIONAL CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 342.º, N.º1, 352.º, 355.º, N.ºS 1 E 2, 356.º, N.º 1, 358.º, N.º 1 E 393.º, N.º 2, 494.º, 496.º, N.ºS1 E 3, 1152.º, 1154.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 490.º, N.ºS 1 E 2, 646.º, N.º 4.
LCT (REGIME JURÍDICO DO CONTRATO INDIVIDUAL DE TRABALHO APROVADO PELO DECRETO-LEI N.º 49 408, DE 24 DE NOVEMBRO DE 1969) : - ARTIGO 1.º .
JURISPRUDÊNCIA NACIONAL ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
- DE 21 DE MARÇO DE 2001 (PROCESSO N.º 3918/00 - 4.ª SECÇÃO), SUMARIADO EM WWW.STJ.PT, JURISPRUDÊNCIA/SUMÁRIOS DE ACÓRDÃOS;
- DE 23 DE FEVEREIRO DE 2005 (DOCUMENTO N.º SJ200502230022684, EM WWW.DGSI.PT );
- DE 24 DE SETEMBRO DE 2008 (DOCUMENTO N.º SJ20080924037934, EM WWW.DGSI.PT);
- DE 23 DE SETEMBRO DE 2009, PUBLICADO EM WWW.DGSI.PT (PROCESSO N.º 38/06.7TTBGR. S1).


SUMÁRIO I - O disposto no n.º 4 do artigo 646.º do Código de Processo Civil tem subjacente a distinção entre matéria de facto e matéria de direito, que se reflecte no julgamento separado – quer do ponto de vista do momento lógico quer no tocante aos poderes de cognição do julgador – das questões de facto e de direito, sendo consensual que, para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei.
II - No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto à normas legais aplicáveis, sendo indiferente que o respectivo conhecimento se atinja directamente pelos sentidos ou se alcance através das regras da experiência.
III - No mesmo âmbito da matéria de facto, se incluem os juízos qualificativos de fenómenos naturais ou provocados por pessoas, desde que, envolvendo embora uma apreciação segundo as regras da experiência, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio.
IV - O referido n.º 4 do artigo 646.º tem o seu campo de aplicação alargado às asserções de natureza conclusiva, de modo que as expressões que traduzam afirmações de natureza conclusiva que, por si só, determinem o sentido da solução do litígio devem ser excluídas da base instrutória e, quando isso não suceda e o tribunal sobre elas emita veredicto, deve este ter-se por não escrito.
V - A distinção entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviço assenta em dois elementos essenciais: o objecto do contrato (prestação de actividade ou obtenção de um resultado); e o relacionamento entre as partes (subordinação ou autonomia).
VI - O contrato de trabalho tem como objecto a prestação de uma actividade e, como elemento típico e distintivo, a subordinação jurídica do trabalhador, traduzida no poder do empregador conformar, através de ordens, directivas e instruções, a prestação a que o trabalhador se obrigou; diversamente, no contrato de prestação de serviço, o prestador obriga-se à obtenção de um resultado, que efectiva por si, com autonomia, sem subordinação à direcção da outra parte.
VII - A subordinação jurídica, característica basilar do vínculo laboral e elemento diferenciador do contrato de trabalho, implica uma posição de supremacia do credor da prestação de trabalho e a correlativa posição de sujeição do trabalhador, cuja conduta pessoal, na execução do contrato, está necessariamente dependente das ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do contrato e das normas que o regem.
VIII - A determinação da existência de subordinação jurídica e dos seus contornos consegue-se mediante a análise do comportamento das partes e da situação de facto, através de um método de aproximação tipológica.
IX - A subordinação apenas exige a mera possibilidade de ordens e direcção e pode até não transparecer em cada momento da prática de certa relação de trabalho, havendo, muitas vezes, a aparência da autonomia do trabalhador que não recebe ordens directas e sistemáticas da entidade patronal, o que sucede sobretudo em actividades cuja natureza implica a salvaguarda da autonomia técnica e científica do trabalhador.
X - Nas situações que se situam em zonas de fronteira entre o contrato de trabalho e outras espécies contratuais, para além do critério do relacionamento entre as partes, torna-se necessário proceder à análise da conduta dos contraentes na execução do contrato, recolhendo do circunstancialismo que o envolveu indícios que reproduzem elementos do modelo típico do trabalho subordinado ou de outro, por modo a poder-se concluir, ou não, pela coexistência no caso concreto dos elementos definidores do contrato de trabalho.
XI - É de qualificar como contrato de trabalho o vínculo estabelecido entre uma atleta de alta competição e um clube desportivo quando da factualidade provada resulta que as partes quiseram e actuaram efectivamente um relacionamento em que sempre esteve presente a possibilidade de o clube orientar e dirigir a actividade laboral da atleta, ainda que indirectamente, através de um treinador por ele remunerado ou de técnicos de medicina desportiva por ele designados, com sujeição a normas contidas em regulamento disciplinar do próprio clube, tudo tendo em vista a prossecução dos fins a alcançar com a referida actividade da atleta, por ele, clube, definidos.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. No Tribunal do Trabalho do Lisboa, em acção com processo comum, intentada em 11 de Outubro de 2004, AA demandou BB-S... Clube de Portugal e CC-S... Clube de Portugal – Futebol SAD, alegando, em breve síntese, ter celebrado com o primeiro Réu, sob a denominação de “contrato de prestação de serviços”, um verdadeiro contrato de trabalho desportivo, para vigorar desde 1 de Outubro de 2000 até 30 de Setembro de 2004, que, mediante comunicação datada de 13 de Outubro de 2003, aquele Réu fez cessar, o que configura um despedimento ilícito, em resultado do qual a demandante sofreu forte abalo psicológico, séria degradação da sua imagem de atleta junto de colegas e público em geral e outros danos não patrimoniais.

Pediu que, declarado ilícito o despedimento, fossem os Réus solidariamente condenados a pagar-lhe, com juros de mora: a) a quantia de € 34.716,36, a título de indemnização por danos patrimoniais, correspondente aos salários devidos desde Outubro de 2003 até 30 de Setembro de 2004; b) a importância de € 19.852,12, a título de créditos salariais vencidos e não pagos (subsídios de férias e de Natal) referentes às três primeiras épocas desportivas e ainda os subsídios de férias e de Natal relativos à última época do contrato; c) a indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 20.000,00.

Na contestação que apresentaram, os Réus invocaram a ilegitimidade da 2.ª Ré e impugnaram a natureza laboral do contrato e, bem assim, o alegado na petição para sustentar o pedido de indemnização por danos não patrimoniais, em função do que concluíram pela improcedência da acção, tendo, outrossim, pedido a condenação da Autora como litigante de má fé.

Houve resposta na qual a Autora concluiu pela improcedência da excepção invocada.

No despacho saneador, foi julgada improcedente a excepção e a 2.ª Ré declarada parte legítima.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, com registo fonomagnético das provas, foi proferida sentença em que se decidiu qualificar a relação jurídica que vigorou entre as partes como contrato de trabalho, e, julgando a acção parcialmente procedente, declarar ilícito o despedimento da Autora e condenar o Réu, BB-S... Clube de Portugal, a pagar-lhe: a) a importância correspondente ao valor das retribuições que ela deixou de auferir desde Outubro de 2003 até Setembro de 2004, no montante de € 34.716,36; b) a quantia de € 15.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, desde a citação e até integral pagamento; c) a quantia de € 19.852,16 referente aos subsídios de férias e de Natal não pagos, e juros de mora desde a citação até integral pagamento. Decidiu-se, outrossim, absolver a 2.ª Ré do pedido e indeferir o pedido de condenação da Autora por litigância de má fé.

2. No recurso de apelação que interpôs, o Réu, impugnando a decisão proferida sobre a matéria de facto, manifestou a sua discordância quanto ao veredicto atinente a alguma da factualidade nela declarada provada, bem como relativamente a alguns pontos de facto articulados na contestação que, devendo, em seu entendimento, ser tidos como provados o não foram, para sustentar, com base na impetrada alteração da matéria de facto, a qualificação do contrato como contrato de prestação de serviço e, consequentemente, a total improcedência da acção, sem embargo do que impugnou o valor fixado a título de indemnização por danos não patrimoniais, reputando-o de excessivo.

O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 16 de Janeiro de 2008 (fls. 379/422), conquanto tenha alterado alguns pontos da decisão de facto, negou provimento ao recurso, excepto no tocante à sentenciada indemnização por danos não patrimoniais, cujo valor reduziu para € 10.000,00.

Interposto, pelo Réu, recurso de revista, veio este Supremo Tribunal, por acórdão de 3 de Dezembro de 2008 (fls. 532/551), a decretar a anulação do acórdão recorrido e a remessa do processo à Relação, a fim de ser apreciada matéria de facto alegada na contestação, concretamente nos artigos 21.º, 22.º, 23.º, 30.º, 31.º, 69.º, 70.º, 71.º e 72.º da contestação.

Cumprindo o determinado pelo Supremo, o Tribunal da Relação julgou novamente o recurso e proferiu, em 24 de Junho de 2009 (fls. 562/608), acórdão com dispositivo igual ao do anteriormente prolatado, o que levou o Réu a interpor o presente recurso revista, cuja alegação termina com as conclusões que, a seguir, se reproduzem:

«1. Ante os factos considerados provados em 2.ª instância, deve ser outra a decisão sobre o fundo do presente pleito.

2. A relação material controvertida era de prestação de serviços desportivos, pelo que foram violados os artigos 1154.º e seguintes do Código Civil.

3. Há um erro na fixação de factos provados.

4. O então réu tomou posição e contradisse o facto provado n.º 8, alegando na sua contestação que o R. custeava as despesas efectuadas pela A. inerentes à execução do Contrato de Prestação de Serviços, e apenas essas.

5. Pelo que o acórdão a quo é nulo por violação do artigo 490.º, n.º 1 e n.º 2 do CPC.

6. O facto provado n.º 25 - cujo texto é: “a sua prestação desportiva foi afectada” é conclusivo.

7. Entre a matéria de facto provada constam outras expressões conclusivas ou de carácter jurídico, em concreto no facto provado n.º 4 e relativamente aos vocábulos “ordens”, “instruções” e “estrutura desportiva”.

8. A expressão “estrutura desportiva” não pode ter outro entendimento senão o de que fazer parte do rol de atletas que compete no SCP.

9. É público e notório que o Recorrente dispõe de um enorme número de associados, dos quais alguns milhares fazem parte da estrutura desportiva do clube, uma vez que aí praticam desporto nas mais diversas modalidades.

10. As partes celebraram contrato que designaram como de prestação de serviços para vigorar entre Outubro de 2000 e Setembro de 2004, tendo a autora obrigando-se [sic]a prestar-lhe serviços de atletismo, entrando em todas as competições determinadas pelo Recorrente, na modalidade de lançamento do disco e peso.

11. A Recorrida representava desportivamente o clube, na modalidade que tinha por profissão.

12. A Recorrida não trabalhava com treinador dos quadros do clube.

13. A recorrida tinha de efectuar aquilo para que fora contratada, isto é, competir nas provas desportivas que a recorrente lhe indicasse.

14. O Recorrente não dispunha de poderes de autoridade ou direcção sobre a Recorrida.

15. Não se confunda a exigência do cumprimento do contrato com “ordens” stricto sensu.

16. À Recorrida eram dadas dois géneros de indicações: “para se apresentar no clube sempre que fosse necessário bem como nas competições internacionais em que teria de participar.”

17. Inexiste nos autos qualquer prova de que a Recorrida esteve permanentemente sujeita a ordens e autoridade do Recorrente.

18. Não está esclarecido quem definia o conceito de “necessário”, se alguma das partes ou se essa necessidade advinha do calendário de provas em que a Recorrente iria representar o Recorrente, a nível nacional.

19. Quando a Recorrida competia ao serviço do S..., era este quem lhe custeava as despesas em sua representação.

20. Quando a Recorrida entrava em provas ao serviço da FPA, esta entidade assumia os custos com as despesas de deslocação, estadia e alimentação.

21. Noutras eventuais competições, a recorrida suportaria os seus encargos.

22. O local de treino diário da atleta era estranho ao SCP, a saber, em Aveiro na Pista Universitária ou na lota de pesca da Gafanha da Nazaré.

23. Desta matéria resulta que o dia-a-dia da Recorrida não tinha lugar nas instalações do Recorrente, mas antes na zona da residência da Recorrida.

24. A Recorrente não determinou qualquer horário de trabalho para a recorrida, simplesmente porque não tinha essa faculdade.

25. A Recorrida dispõe do seu treinador pessoal, a quem o Recorrente pagou enquanto vigorou o contrato entre as partes litigantes.

26. Este treinador nunca fez parte dos quadros do Recorrente, não tendo tido o SCP o poder de lhe dar ordens enquanto vigorou o contrato.

27. A Recorrida apenas envergava equipamento fornecido pelo Recorrente nas provas em que o representava.

28. Quando se encontrava ao serviço da FPA, a Recorrida vestia os equipamentos desta associação.

29. Quando competia noutras provas, nomeadamente em meetings privados, a Recorrida equipava como muito bem entendesse.

30. Durante o treino diário, a Recorrida podia vestir as roupas que bem entendesse, tanto as fornecidas pela federação, como as do SCP, como ainda outras que fossem suas.

31. É público e notório que a sede do SCP se situa em Lisboa ao pa[ss]o que, conforme consta do intróito da petição inicial que originou esta acção, a Recorrida tem domicílio na Gafanha da Nazaré, distrito de Aveiro.

32. Ficou provado que não existia exclusividade (excepto, claro está, quando entrava em provas representando o SCP, tratando-se de exclusividade por natureza e não por imposição de qualquer das partes).

33. Em suma, o Recorrente não podia dizer onde treinar, quando treinar, como treinar, com que utensílios treinar.

34. O montante contratado entre a Recorrida e o Recorrente foi pré-estabelecido, e que a Recorrida - que se tenha apurado - não obtinha proveitos apenas do Recorrente, pois era subsidiada pela FPA e cada vez que era convocada por esta entidade recebia outras contrapartidas financeiras, cujo montante está por apurar.

35. Os factos provados apontam para que a prestação desportiva da Recorrida não tenha sido minimamente prejudicada com o termo do contrato antecipado em um ano.

36. Em 2002 e 2003 a Recorrida teve prestações desportivas de qualidade inferior às que obteve em 2004.

37. Em 2004 a Recorrida foi campeã de Portugal contra o Sporting, Benfica e Jorna, pelo que não só foi irrelevante (ou falso) ter-se inscrito na Federação por uma equipa da II divisão, como a sua imagem não ficou danificada juntos dos adeptos, colegas e demais pessoas ligadas à modalidade.

38. Não houve qualquer oscilação, para pior, em termos de resultados desportivos da atleta, no ano em que mediou a data de rescisão e o termo aposto no contrato celebrado.

39. No Campeonato do Mundo de 2001 a Recorrida fez marca similar à obtida nos Jogos Olímpicos de 2004.

40. Em meetings internacionais no ano de 2004 (Qatar e Turquia), a Recorrida alcançou distâncias superiores às obtidas nas principais provas internacionais em que competiu durante a vigência do contrato (Munique 2002, Paris 2003).

41. Nos dias seguintes ao da rescisão do contrato, a Recorrida encontrou facilmente um clube por onde se inscrever, pelo que é falso terem acabado a sua carreira no atletismo em virtude da rescisão.

42. Nessa mesma época, a Recorrida venceu os campeonatos de Portugal, vencendo o Sporting.

43. O nomem iuris do contrato redigido e celebrado é "Contrato de Prestação de Serviços" pois foi essa a vontade de ambas as partes, sendo uma das melhores, senão a melhor, atleta de Portugal nessa modalidade.

44. Pelo facto de a Recorrida ter encontrado, imediatamente após a rescisão, novo clube onde se inscrever; pelo facto de a sua prestação internacional não ter sido minimamente afectada durante a época rescindida; pelo facto de ter sido campeã nacional na época rescindida; pelo facto de não ter terminado a carreira de atleta; a quantia arbitrada a título de danos morais é excessiva, sem prejuízo de a mesma não ser devida em virtude da inexistência de contrato laboral.

45. O Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, ao decidir como decidiu, violou entre outros os seguintes preceitos, aplicáveis directamente ou por analogia: arts. 1154, 1156, 1162 e 1207 do CC; 490.1, 490.2, 668.1.d) 690-A.1.a).b), e 721, todos do CPC.»

Contra-alegou a Autora para defender a confirmação do julgado.

Neste Supremo Tribunal, a Exma. Magistrada do Ministério Público emitiu parecer — que veio a merecer resposta discordante do Réu — no sentido de ser negada a revista.

5. As questões suscitadas nas conclusões do recurso prendem-se com:

— A fixação da matéria de facto (conclusões 3 a 9);

— A qualificação da relação jurídica que vigorou entre as partes (conclusões 1, 2, 10 a 34 e 43);

— A indemnização por danos não patrimoniais (conclusões 35 a 42 e 44).

Corridos os vistos, cumpre decidir.

II

1. Na 1.ª instância, os factos materiais da causa foram fixados nos seguintes termos:

«1 - Entre a autora e a 1.ª ré foi celebrado um contrato que as partes designaram como sendo de prestação de serviços, em 15/11/00, com início em Outubro de 2000 e termo em Setembro de 2004;

2 - A autora obrigou-se a prestar-lhe os serviços dele objecto, na modalidade desportiva de atletismo até à rescisão unilateral do mesmo pela ré;

3 - A autora vivia da remuneração auferida pela sua actividade de atleta de Atletismo ao serviço do S... Clube de Portugal;

4 - Encontrava-se integrada na estrutura desportiva da 1.ª ré, recebendo ordens e instruções, designadamente para se apresentar no Clube sempre que necessário bem como nas competições internacionais em que teria que participar, do Sr. DD, responsável pela secção de atletismo;

5 - Realizava diariamente treinos na Pista de atletismo da Universidade de Aveiro e Lota de Pesca da Gafanha da Nazaré;

6 - Realizava treinos sob a orientação e supervisão do seu treinador,EE, remunerado pela 1.ª ré;

7 - Entrava em todas as competições determinadas pela 1.ª ré e em sua única e exclusiva representação;

8 - Nas competições nacionais e internacionais por Clubes as despesas de viagem, estadia e alimentação eram pagas pela 1.ª ré, como igualmente esta custeava todas as deslocações da autora a Lisboa;

9 - Todo o seu equipamento desportivo era-lhe fornecido pela 1.ª ré, ficando a autora obrigada a utilizá-lo;

10 - O equipamento utilizado pela autora era da marca com quem a 1.ª ré tinha um contrato de publicidade (R...), não tendo, por esse facto, a autora contrato com nenhuma marca de equipamento desportivo, estando mesmo impossibilitada de o celebrar;

11 - Por carta datada de 13/10/03, dirigida à autora, a ré declarou que decidiu proceder a significativa redução no orçamento desportivo; que a quase totalidade dos técnicos e atletas contactados aceitaram contribuir para a diminuição do deficit; que as condições propostas pelo S... a autora não aceitou, e que dispensa a autora para a próxima época desportiva de 2003/2004;

12 - Nos termos do n.º 1 da cl.ª 1.ª do contrato, o mesmo foi celebrado para vigorar durante as épocas de 2000/2001 a 2003/2004;

13 - Nos termos do n.º 2 da mesma cl.ª, as épocas têm início em 1 de Outubro e concluem-se em 30 de Setembro;

14 - Nos termos da cl.ª 4ª foi convencionado que o SCP, ora 1.ª ré, pagaria à autora uma prestação mensal ilíquida de 430.000$00 (2.144,83 euros) 12 vezes por cada época desportiva;

15 - O salário da autora foi sendo actualizado anualmente, sendo no mês anterior à data da rescisão de 530.000$00 (2.643,63 euros), e passaria a ser na última época desportiva a que o contrato respeitava no montante de 580.000$00 (2.893,03 euros);

16 - Para exercer a sua actividade desportiva na modalidade de atletismo, a autora teria de inscrever-se no correspondente Organismo Oficial até ao dia 15 de Outubro, ao serviço de um Clube que exercesse a modalidade de atletismo, mais propriamente na modalidade de atletismo, mais propriamente na modalidade que a autora exercia que era lançadora de disco;

17 - A 1.ª ré não lhe pagou a remuneração mensal acordada durante os meses de Outubro de 2003 a Setembro de 2004, inclusive;

18 - Durante a vigência do contrato nunca foram pagos à autora os respectivos subsídios de férias e de Natal;

19 - As remunerações mensais devidas à autora eram do seguinte valor:

- Época 2000/2001 – 430.000$00 (2.144,83 euros)

- Época 2001/2002 – 450.000$00 (2.244,59 euros)

- Época 2002/2003 – 530.000$00 (2.643,63 euros)

- Época 2003/2004 – 580.000$00 (2.893,03 euros);

20 - A autora é uma atleta de alta competição, na modalidade de lançamento do disco, tendo representado a 1.ª ré desde 1987;

21 - Toda a sua vida desportiva foi efectuada no S... tendo ali todos os seus colegas e amigos, vendo os atletas e toda a secção de atletismo como parte da sua família;

22 - É campeã nacional de atletismo há 17 anos pertencendo-lhe o recorde nacional (65,40 m);

23 - Por virtude da rescisão do contrato, a autora sentiu revolta pela forma como acabaram os seus 17 anos de atletismo, sentiu um abalo psicológico, sentiu vontade de desistir da modalidade que praticara ao serviço do réu e sentiu que a sua imagem como atleta de competição ficou afectada perante colegas, amantes da modalidade e público em geral;

24 - Para além disso, a autora contava, para fazer face às suas necessidades, com a retribuição que havia acordado com a 1.ª ré e que deixou de receber;

25 - A sua prestação desportiva foi afectada;

26 - Anteriormente à rescisão do contrato, entre outras exibições, a autora havia conseguido os seguintes resultados:

- Final do Campeonato da Europa de 2002, em Munique, onde obteve uma 7.ª posição;

- Final do Campeonato do Mundo de 2001, em Edmonton, em que obteve uma 10.ª posição;

- Campeonato do Mundo em 2003, em Paris, onde obteve uma 11.ª posição;

- Fase final dos Jogos Olímpicos em Atlanta e Sidney, em que obteve uma 10.ª posição;

27 – Na última época não conseguiu atingir a fase final dos Jogos Olímpicos da Grécia, tendo-se classificado em 22.º lugar com uma marca de 58,47 metros;

28 - Nos meetings em que participou este ano, teve 61 m no Quatar e 61,19 m na Turquia;

29 - A autora viu a sua imagem afectada entre os colegas de profissão, amantes desta modalidade e público em geral;

30 - A autora, na qualidade de campeã mundial, viu-se obrigada, atenta a rescisão do contrato e a data em que foi efectuada, a inscrever-se por um Clube da II Divisão (Clube Desportivo O... dos A...), para poder competir;

31 - A autora representou o 1.º réu, na modalidade desportiva de Atletismo, desde 15/11/2000 até 13/10/03;

32 - A autora exercia as suas funções de atleta na modalidade de lançamento do disco e peso, no âmbito de uma relação de prestação de serviços, situação esta que não sofreu qualquer alteração durante a vigência do contrato;

33 - Teor do documento de fls. 14 a 19, sendo que a autora dava quitação das prestações recebidas através de recibo verde;

34 - O réu, a pedido da autora, recorreu aos préstimos do treinador EE, a quem pagava através de recibos verdes;

35 - Por este motivo o réu prescindiu dos serviços do treinador EE a partir do momento que cessou a prestação de serviços entre e a autora;

36 - O referido treinador EE continua a treinar a autora;

37 - A autora efectuava os treinos, em regra, nos locais referidos no art.º 6.º da p. i.;

38 - Além da remuneração paga pelo réu, a autora recebia outros subsídios atribuídos pela Federação Portuguesa de Atletismo;

39 - A autora, nas provas em que representava a FPA, envergava os equipamentos desta;

40 - O réu custeava as despesas efectuadas pela autora em representação do réu;

41 - A autora, para poder participar em provas de atletismo, necessita de efectuar inscrição na FPA através de um qualquer clube;

42 - Também existem meetings de índole privada, nos quais os atletas de alta competição podem participar;

43 - A autora, quando convocada pela FPA, recebia contrapartidas financeiras;

44 - A época de atletismo tem início em Novembro de cada ano;

45 - Na modalidade em que participa a autora as provas só têm início a partir do final de Fevereiro;

46 - A autora encontrou clube para representar na época de 2003/2004: o Clube O... Desportivo (COD);

47 - O contrato entre a autora e o COD previa o pagamento de quantias pecuniárias à autora.»

2. No recurso de apelação, o Réu impugnou a decisão proferida sobre a matéria de facto, especificamente, quanto aos factos constantes dos n.os 4, 7, 8 a 10, 23, 25 a 27, 30 e 32 do elenco que se deixou reproduzido, e, bem assim, relativamente aos factos que, tendo sido vertidos nos artigos 21.º-a), 22.º, 23.º, 30.º, 31.º, 69.º, 70.º, 71.º e 72.º da contestação que, na 1.ª instância, foram declarados não provados.

O acórdão recorrido, na procedência parcial da impugnação, decidiu modificar o teor dos pontos 9, 10, 23, 26, 30 e 32, por forma a que deles ficasse a constar o seguinte:

«9 - À excepção do equipamento de treino, todo o seu equipamento desportivo era-lhe fornecido pela 1.ª ré, ficado a autora obrigada a utilizá-lo.

10 - O equipamento utilizado pela autora, quando em competição pela 1.ª ré, era da marca com quem esta tinha um contrato de publicidade (R...) e, quando em representação da FPA, era da marca com quem esta tivesse o contrato, não podendo a autora contratar com outra marca para utilização em competição.

23 - Por virtude da rescisão do contrato, a autora sentiu revolta pela forma como acabaram os seus 17 anos de atletismo, sentiu um abalo psicológico, sentiu vontade de desistir da modalidade que praticara ao serviço do réu e sentiu que a sua imagem como atleta de competição ficou afectada perante colegas, amantes da modalidade e público em geral.

26 - Anteriormente à rescisão do contrato, entre outras exibições, a autora havia conseguido os seguintes resultados:

- Final do Campeonato da Europa de 2002, em Munique, onde obteve uma 7.ª posição, com a marca de 60,41 m;

- Final do Campeonato do Mundo de 2001, em Edmonton, em que obteve uma 10.ª posição;

- Campeonato do Mundo em 2003, em Paris, onde obteve uma 11.ª posição, com a marca de 59,46 m ;

- Fase final dos Jogos Olímpicos em Atlanta e Sidney, em que obteve uma 10.ª posição.

30 - A autora, na qualidade de campeã nacional, viu-se obrigada, atenta a rescisão do contrato e a data em que foi efectuada, a inscrever-se por um Clube II Divisão (Clube Desportivo O... dos A...), para poder competir.

32 - A autora exercia as suas funções de atleta na modalidade de lançamento do disco e peso, no âmbito de uma relação [que] não sofreu qualquer alteração durante a vigência do contrato.»

E ao elenco dos factos provados o acórdão recorrido aditou os seguintes itens:

«48 - Em Julho de 2004, a autora, em representação do Clube Desportivo O... dos A..., venceu os campeonatos de Portugal (disco) com a marca de 59,04 m, ficando à frente de atletas do Sporting, do Benfica e do Jorna.

49 - Em 7 de Julho de 2004, a autora venceu o Encontro Internacional de Lançamentos, realizado em Lisboa, com marca de 59,34 m.».

3. Da fixação da matéria de facto:

3. 1. O Réu imputa ao acórdão recorrido a violação do disposto no artigo 490.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil, violação que, na perspectiva do recorrente, consistiu em o Tribunal da Relação ter considerado que a matéria contida no n.º 8 do elenco dos factos provados, por não ter sido impugnada na contestação, foi admitida por acordo nos articulados, e, com base em tal juízo, ter mantido, nessa parte, a decisão do tribunal de 1.ª instância.

Consta do referido n.º 8: «Nas competições nacionais e internacionais por Clubes as despesas de viagem, estadia e alimentação eram pagas pela 1.ª ré, como igualmente esta custeava todas as deslocações da autora a Lisboa».

No recurso de apelação, o Réu sustentou que devia ser dado como não provado o que consta da parte final daquele n.º 8, alegando que «[n]ão está provado nem foi afirmado que o Recorrente custeasse todas as deslocações da Autora a Lisboa», e argumentou que aquilo que, a propósito da matéria, tinha sido afirmado por uma testemunha da Autora, que identificou e cujo depoimento transcreveu parcialmente, era insuficiente para alicerçar a decisão no sentido em que foi proferida.

O Tribunal da Relação considerou que «o facto» constante do n.º 8, alegado no artigo 9.º da petição inicial, não foi impugnado na contestação e desse modo foi admitido por acordo nos articulados, não consentindo, por isso, prova testemunhal em contrário.

Diz o recorrente que o alegado no artigo 38.º da contestação está em clara oposição com o que foi considerado provado.

Nesse ponto do articulado de defesa lê-se: «Naturalmente, o R. custeava as despesas efectuadas pela A. inerentes à execução do Contrato de Prestação de Serviços, e apenas essas».

Interpretando os termos em que a Autora se exprimiu no artigo 9.º da petição inicial, no contexto de todo o articulado, há-de convir-se que as despesas ali referidas não podem deixar de ser apenas aquelas que se compreendem no âmbito da execução do contrato, aí se incluindo as decorrentes de deslocações a Lisboa efectuadas para cumprir as obrigações dele emergentes, visto que, segundo alegou, residia no Distrito de Aveiro, onde realizava habitualmente os seus treinos.

Ora, dizendo o Réu, no articulado de defesa, que apenas custeava as despesas efectuadas pela Autora inerentes à execução do contrato, sem pôr em causa a existência de despesas por deslocações a Lisboa, no âmbito daquela execução, aquilo que disse é perfeitamente compaginável com o alegado na petição inicial.

Com efeito, os termos em que se exprimiu, aludindo genericamente a despesas inerentes à execução do contrato, sem as particularizar, não contêm, em si, qualquer divergência ou oposição relativamente ao alegado na petição, onde as despesas reportadas à execução do contrato se mostram melhor especificadas pela referência a viagens, estadia e alimentação inerentes à participação em competições nacionais e internacionais por Clubes e a todas as deslocações da Autora a Lisboa, sublinha-se, compreendidas na execução do contrato.

Em tal quadro dialéctico, é de considerar que o Réu tomou posição definida quanto à natureza das despesas que custeava, e, caracterizando-as como inerentes à execução do contrato, aceitou o que, a propósito, com alguma particularização, fora alegado pela Autora, não tendo a expressão «e apenas essas», que se lê na parte final do artigo 38.º da contestação, virtualidade para traduzir a expressão de uma realidade diferente ou oposta ao afirmado no artigo 9.º da petição inicial, pois, como se disse, as despesas neste referidas não podem ser outras que não as inerentes à execução do contrato celebrado entre as partes, independentemente da qualificação do mesmo.

Nesta perspectiva, afigura-se que o Réu, manifestando-se de acordo com o alegado pela Autora no artigo 9.º da petição, expressou o reconhecimento dos factos nele alegados pela Autora, e não se vislumbra que tais factos, na expressão particularizada do articulado inicial, se encontrem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, o que tudo significa, atento o disposto nos artigos 352.º, 355.º, n.os 1 e 2, 356.º, n.º 1, do Código Civil, e 490.º, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil, que devem ter-se por confessados, do que decorre, face ao consignado nos artigos 358.º, n.º 1 e 393.º, n.º 2, do Código Civil, não poder sobre eles incidir prova testemunhal.

Correcto se mostra, por conseguinte, o juízo do Tribunal da Relação.

3. 2. Pretende o recorrente que a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos pontos 4 e 25 contém expressões conclusivas ou de carácter jurídico, que, em seu entender, devem ser retiradas da matéria de facto considerada provada.

No ponto 4 deu-se como provado que a Autora «[e]ncontrava-se integrada na estrutura desportiva da 1.ª ré, recebendo ordens e instruções, designadamente para se apresentar no Clube sempre que necessário bem como nas competições internacionais em que teria que participar, do Sr.DD , responsável pela secção de atletismo».

Reportando-se a este texto, afirma o recorrente, no corpo da alegação, que «a inserção na estrutura da empresa, bem como o recebimento de ordens são elementos legais que se terão de retirar de acontecimentos concretos» e que «o Tribunal a quo deu como provada matéria de direito, que, com tal não deveria surgir no corpo da factualidade da Sentença, sob pena de desvirtuar por completo a decisão deste pleito».

De acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 646.º do Código de Processo Civil, que incide sobre o julgamento da matéria de facto, devem ter-se por não escritas as respostas dadas pelo tribunal aos quesitos da base instrutória sobre questões de direito.

Tem esta norma subjacente a distinção entre matéria de facto e matéria de direito, que se reflecte no julgamento separado — quer do ponto de vista do momento lógico quer no tocante aos poderes de cognição do julgador — das questões de facto e de direito.

Nem sempre é fácil distinguir entre o que é matéria de facto e matéria de direito, mas é consensual, na doutrina e na jurisprudência, que, para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei.

No âmbito da matéria de facto, processualmente relevante, inserem-se todos os acontecimentos concretos da vida, reais ou hipotéticos, que sirvam de pressuposto às normas legais aplicáveis: os acontecimentos externos (realidades do mundo exterior) e os acontecimentos internos (realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo), sendo indiferente que o respectivo conhecimento se atinja directamente pelos sentidos ou se alcance através das regras da experiência (juízos empíricos) — neste sentido, Manuel A. Domingues Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1963, pp. 180/181, e Artur Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, Coimbra, 1982, p. 268; na jurisprudência, entre outros, o Acórdão deste Supremo de 24 de Setembro de 2008 (Documento n.º SJ20080924037934, em www.dgsi.pt).

No mesmo âmbito da matéria de facto, como realidades susceptíveis de averiguação e demonstração, se incluem os juízos qualificativos de fenómenos naturais ou provocados por pessoas, desde que, envolvendo embora uma apreciação segundo as regras da experiência, não decorram da interpretação e aplicação de regras de direito e não contenham, em si, uma valoração jurídica que, de algum modo, represente o sentido da solução final do litígio. que contempla o julgamento da matéria de facto.

Atendendo a que só os factos concretos — não os juízos de valor que sejam resultado de operações de raciocínio conducentes ao preenchimento de conceitos, que, de algum modo, possam representar, directamente, o sentido da decisão final do litígio — podem ser objecto de prova, tem-se considerado que o n.º 4 do artigo 646.º tem o seu campo de aplicação alargado às asserções de natureza conclusiva, «[n]ão porque tal preceito, expressamente, contemple a situação de sancionar como não escrito um facto conclusivo, mas, como tem sido sustentado pela jurisprudência, porque, analogicamente, aquela disposição é de aplicar a situações em que em causa esteja um facto conclusivo, as quais, em rectas contas, se reconduzem à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum» — Acórdão desde Supremo de 23 de Setembro de 2009, publicado em www.dgsi.pt (Processo n.º 238/06.7TTBGR. S1).

Assim, ainda que a formulação de tais juízos não envolva a interpretação e aplicação de normas jurídicas, devem as expressões que traduzam afirmações de natureza conclusiva que, por si só, determinem o sentido da solução do litígio, ser excluídas da base instrutória e, quando isso não suceda e o tribunal sobre elas emita veredicto, deve este ter-se por não escrito.

Na proposição em exame, afirma-se uma realidade que corresponde a uma situação da vida real (a integração da Autora na estrutura desportiva do Réu) cujo conhecimento pode ser atingido através de um juízo que, dispensando o recurso a qualquer critério de valoração jurídico-normativa, se baseie na aplicação de regras da experiência a acontecimentos concretos efectivamente ocorridos, no caso, também, descritos na dita proposição (o recebimento de ordens e instruções, emitidas pelo responsável da secção de atletismo, para se apresentar no clube sempre que necessário bem como nas competições internacionais em que teria de participar).

A concretização dos actos a praticar na sequência das ordens recebidas afasta a possibilidade de se conferir ao vocábulo ordens a índole jurídico-conclusiva que assume no contexto da expressão trabalhar sob as ordens e direcção que o recorrente traz à colação para sustentar que o recebimento de ordens integra matéria de direito.

Nesta conformidade, porque as expressões em causa não encerram qualquer valoração, baseada na interpretação da lei ou em conceitos por esta definidos, determinante da qualificação da relação jurídica em causa, pois que traduzem apenas realidades factuais — perceptíveis directamente pelos sentidos ou alcançáveis através de juízos empíricos —, a apreciar, em conjunto com outros factos, à luz do regime jurídico aplicável, deve manter-se o teor da proposição em análise, que não contende com o disposto no citado artigo 646.º, n.º 4.

Relativamente ao teor do ponto 25 da decisão da matéria de facto, o recorrente proclama que a expressão «a sua prestação desportiva foi afectada» tem carácter conclusivo.

Tal asserção vertida na petição inicial, entre os fundamentos do pedido de indemnização por danos não patrimoniais, apresenta-se no contexto desse articulado acompanhada da especificação de resultados desportivos atingidos pela Autora antes e depois da cessação do contrato que vinculou as partes, representando a expressão da existência de um nexo de causal entre a cessação ocorrida por vontade do Réu e a alegada diminuição de rendimento patenteada pela comparação entre as marcas e classificações alegadamente conseguidas, em competições, enquanto durou o vínculo contratual e as obtidas posteriormente.

Na decisão da matéria de facto, o sentido útil da expressão em causa é, mais do que revelar a diminuição de rendimento desportivo — juízo de facto resultante da comparação entre as marcas e classificações, alcançável sem necessidade de elaboração sobre conceitos de ordem jurídico-normativa —, o de estabelecer como causa dessa diminuição a desvinculação operada unilateralmente pelo Réu.

Nessa medida, trata-se da expressão de uma ocorrência da vida real, cuja afirmação decorre da observação de registos de acontecimentos concretos conjugada com as regras da experiência, situando-se, por conseguinte, no mundo dos factos.

Não se vê, assim, motivo para ter como não escrita a asserção segundo a qual a prestação desportiva da Autora foi afectada em consequência da cessação do contrato.

4. A qualificação do contrato:

4. 1. Decorre da matéria de facto apurada que o convénio, reduzido a escrito, foi celebrado pelas partes em 15 de Novembro de 2000, para vigorar nas épocas desportivas de 2000/2001 a 2003/2004, mas que apenas subsistiu até meados de Outubro de 2003, visto que o Réu, por carta datada de 13 desse mês comunicou à Autora a dispensa dos serviços desta para a época de 2003/2004.

Estamos, assim, perante uma relação jurídica que se constituiu e cessou antes de 1 de Dezembro de 2003, data da entrada em vigor do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto.

Nos termos do artigo 8.º, n.º 1, parte final, da referida Lei, o regime do Código não se aplica aos efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente, daí que para resolver a questão da qualificação de tal relação jurídica haja de atender-se à disciplina da LCT (Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de Novembro de 1969).

O artigo 1.º da LCT, reproduzindo o texto do artigo 1152.º do Código Civil, definia contrato de trabalho como «aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta».

«Contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a prestar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição» — reza o artigo 1154.º do Código Civil.

A distinção entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviço, definidos, nos termos que se indicaram, assenta, como se observou no Acórdão deste Supremo de 23 de Fevereiro de 2005 (Documento n.º SJ200502230022684, em www.dgsi.pt), em dois elementos essenciais: o objecto do contrato (prestação de actividade ou obtenção de um resultado); e o relacionamento entre as partes (subordinação ou autonomia).

Assim, o contrato de trabalho tem como objecto a prestação de uma actividade e, como elemento típico e distintivo, a subordinação jurídica do trabalhador, traduzida no poder do empregador de conformar, através de ordens, directivas e instruções, a prestação a que o trabalhador se obrigou.

Diversamente, no contrato de prestação de serviço, o prestador obriga-se à obtenção de um resultado, que efectiva por si, com autonomia, sem subordinação à direcção da outra parte.

Nem sempre, através do critério do objecto do contrato, surge, com nitidez, a distinção entre as duas figuras, já que, frequentemente, não se consegue determinar se a obrigação assumida foi a de “prestar uma actividade intelectual ou manual”, própria do contrato de trabalho (artigo 1152.º do Código Civil), ou se a obrigação consiste em “proporcionar certo resultado do trabalho intelectual ou manual”, própria do contrato de prestação de serviço (artigo 1154.º do Código Civil), pois que todo o trabalho visa a obtenção de um resultado e este não existe sem aquele.

Por isso, em última análise, é o relacionamento entre as partes – a subordinação ou autonomia — que permite atingir aquela distinção.

Tratando-se, em qualquer caso, de um negócio consensual, é fundamental, para determinar a natureza e o conteúdo das relações estabelecidas entre as partes, averiguar qual a vontade por elas revelada, quer quando procederam à qualificação do contrato, quer quando definiram as condições em que se exerceria a actividade — ou seja, quando definiram a estrutura da relação jurídica em causa — e proceder à análise do condicionalismo factual em que, em concreto, se desenvolveu o exercício da actividade no âmbito da relação jurídica emergente do acordo negocial.

A subordinação jurídica, característica basilar do vínculo laboral e elemento diferenciador do contrato de trabalho, implica uma posição de supremacia do credor da prestação de trabalho e a correlativa posição de sujeição do trabalhador, cuja conduta pessoal, na execução do contrato, está necessariamente dependente das ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do contrato e das normas que o regem.

A cargo da entidade patronal estão os poderes determinativo da função e conformativo da prestação de trabalho, ou seja, o poder de dar um destino concreto à força de trabalho que o trabalhador põe à sua disposição, quer atribuindo uma função geral ao trabalhador na sua organização empresarial, quer determinando-lhe singulares operações executivas, traduzindo-se a supremacia da entidade patronal, ainda, nos poderes regulamentar e disciplinar.

A determinação da existência de subordinação jurídica e dos seus contornos consegue-se mediante a análise do comportamento das partes e da situação de facto, através de um método de aproximação tipológica, única via a percorrer, na ausência de comportamentos declarativos expressos definidores das condições do exercício da actividade contratada, situação frequente quando se trata de convénios informais.

A subordinação “traduz-se na possibilidade de a entidade patronal orientar e dirigir a actividade laboral em si mesma e ou dar instruções ao próprio trabalhador com vista à prossecução dos fins a atingir com a actividade deste, e deduz-se de factos indiciários, todos a apreciar em concreto e na sua interdependência, sendo os mais significativos: a sujeição do trabalhador a um horário de trabalho; o local de trabalho situar-se nas instalações do empregador ou onde ele determinar; existência de controlo do modo da prestação do trabalho; obediência às ordens e sujeição à disciplina imposta pelo empregador; propriedade dos instrumentos de trabalho por parte do empregador; retribuição certa, à hora, ao dia, à semana ou ao mês; exclusividade de prestação do trabalho a uma única entidade” e “pode comportar diversos graus, não sendo incompatível com a verificação de alguma margem de autonomia do trabalhador, quer no que se refere à forma de produção do trabalho, quer à sua orientação, desde que não colida com os fins últimos prosseguidos pelo empregador” – Acórdão deste Supremo Tribunal, de 21 de Março de 2001 (Processo n.º 3918/00 - 4.ª Secção), sumariado em www.stj.pt, Jurisprudência/Sumários de Acórdãos.

A subordinação apenas exige a mera possibilidade de ordens e direcção e pode até não transparecer em cada momento da prática de certa relação de trabalho, havendo, muitas vezes, a aparência da autonomia do trabalhador que não recebe ordens directas e sistemáticas da entidade patronal, o que sucede sobretudo em actividades cuja natureza implica a salvaguarda da autonomia técnica e científica do trabalhador.

As dificuldades na formulação do juízo qualificativo, através do critério do relacionamento entre as partes, acentuam-se perante situações que contêm elementos enquadráveis em diferentes figuras contratuais por se situarem em zonas de fronteira entre o contrato de trabalho e outras espécies de contratos, para cuja execução é necessária a prestação da actividade intelectual ou manual de alguém, sobretudo nos casos de maior autonomia técnica, em que é mais difícil clarificar os espaços de auto e heterodeterminação e, assim, descortinar qual o tipo de relacionamento entre as partes (subordinação ou autonomia).

Torna-se, assim, necessário, para alcançar a identificação da relação laboral, proceder à análise da conduta dos contraentes na execução do contrato, recolhendo do circunstancialismo que o envolveu indícios que reproduzem elementos do modelo típico do trabalho subordinado ou de outro (v. g. da prestação de serviço), por modo a poder-se concluir, ou não, pela coexistência no caso concreto dos elementos definidores do contrato de trabalho.

De acordo com o regime geral da repartição do ónus da prova, incumbe ao trabalhador demonstrar os factos reveladores da existência do contrato de trabalho, ou seja demonstrar que presta uma actividade remunerada para outrem, sob a autoridade e direcção do beneficiário (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).

4. 2. As instâncias, não se dispensando de tecer considerações genéricas ilustradas com pertinentes referências doutrinárias e jurisprudenciais — no essencial, coincidentes com as que deixaram explanadas —, convergiram no sentido de conferir natureza laboral à relação que vigorou entre as partes.

Considerou-se na sentença:

«No caso presente, a autora foi admitida ao serviço da 1.ª ré em Outubro de 2000, desde então tendo prestado sob as ordens e orientações transmitidas pelo responsável pela secção de atletismo, Sr.DD , as funções de atleta desportiva, na modalidade de lançamento do disco, entrando em todas as competições determinadas pela 1.ª ré e em sua única e exclusiva representação, realizando diariamente treinos sob a orientação e supervisão do seu treinador,EE, remunerado pela 1.ª ré, utilizando o equipamento pela mesma indicado e disponibilizado, e auferindo uma prestação mensal pecuniária em contrapartida dessa actividade (cfr. matéria de facto vertida em 1, 2, 5 a 10, e 14, supra).

Ora, parece-nos evidente que o conteúdo do contrato celebrado, inferido da factualidade enunciada, se coaduna com os aludidos elementos caracterizadores do contrato de trabalho subordinado: a autora pôs à disposição do réu o exercício da sua actividade como atleta de lançamento do disco, e não apenas o resultado do trabalho efectuado no âmbito de uma mera colaboração eventual; auferia em contrapartida uma retribuição calculada em função da duração dessa disponibilidade; e, sobretudo, exercia essa sua actividade profissional não com independência e autonomia mas em obediência à direcção e orientação recebidas das responsáveis nomeadas pelo réu, plenamente enquadrado numa estrutura e numa organização criada e controlada pelo mesmo.

E se considerarmos que o que releva é o conteúdo do contrato e não o nome que um dos contraentes pretendeu atribuir-lhe, mais não nos parece ser necessário acrescentar para concluir que o vínculo jurídico estabelecido entre a autora e a 1.ª ré se deve qualificar como contrato de trabalho.»

E o acórdão recorrido observou:

«Dos factos provados retiramos que a autora obrigou-se a prestar à ré serviços da modalidade desportiva de atletismo (lançamento do disco), vivendo da remuneração auferida pela sua actividade ao serviço do S... Clube de Portugal, paga mensalmente 12 vezes cada época desportiva e actualizada anualmente. Estava integrada na estrutura desportiva da 1.ª ré, recebendo ordens e instruções, designadamente para se apresentar no Clube sempre que necessário bem como nas competições internacionais em que teria que participar, do Sr.DD , responsável pela secção de atletismo. Realizava diariamente treinos na Pista de atletismo da Universidade de Aveiro e Lota de Pesca da Gafanha da Nazaré sob a orientação e supervisão do seu treinador, EE, remunerado pela 1.ª ré e entrava em todas as competições determinadas pela 1.ª ré e em sua única e exclusiva representação. Nas competições nacionais e internacionais por Clubes as despesas de viagem, estadia e alimentação eram pagas pela 1.ª ré, como igualmente esta custeava todas as deslocações da autora a Lisboa e as despesas efectuadas pela autora em representação do réu. À excepção do equipamento de treino todo o seu equipamento desportivo era-lhe fornecido pela 1.ª ré, ficando a autora obrigada a utilizá-lo nas competições definidas pelo S.... O equipamento utilizado pela autora, quando competia pela 1.ª ré, era da marca com quem a 1.ª ré tinha um contrato de publicidade (R...), e quando em representação da FPA era da marca com quem esta tivesse o contrato, não podendo a autora contratar com outra marca para utilização em competição. A autora dava quitação das prestações recebidas através de recibo verde. O réu, a pedido da autora, recorreu aos préstimos do treinador EE, a quem pagava através de recibos verdes (factos n.ºs 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 14, 15, 32, 33, 34, 37 e 40).

Estas circunstâncias, na sua globalidade, constituem, indícios da existência de subordinação jurídica e, portanto, de que autora e ré estavam vinculados por um contrato de trabalho.

Efectivamente, verifica-se a integração na estrutura e organização desportiva da ré, recebendo ordens e instruções, quer directamente quer através do seu treinador que era pago para o efeito pela apelante; quando se apresentava nas competições indicadas pela apelante, esta suportava todas as despesas e a autora utilizava os equipamentos fornecidos pela apelante; a forma de remuneração fixa, não em função de um qualquer resultado atingido, sendo o recebimento da mesma de periodicidade mensal.

De sentido contrário, porém, a emissão por parte da autora de recibos verdes, mas que pode não significar mais do que mera adequação ao nome do contrato celebrado, sendo que como já acima se salientou são irrelevantes as denominações ou qualificações escolhidas pelas partes intervenientes para qualificar o acordo. Aliás, as referências que a apelante faz à obra de Mendes Baptista, “Direito Laboral Desportivo-Estudos”, com alusões a atletas dotados de elevado poder negocial apoiados por empresários experientes, assentam bem quando se está a falar de modalidades como o futebol, com remunerações milionárias, mas não de praticantes de atletismo como a autora em que, apesar de se cotar entre a elite mundial, auferiu mensalmente quantias entre os 430.000$00 e os 530.000$00 (factos n.ºs 15 e 19).

E a alusão a Leal Amado, “Vinculação versus Liberdade”, quando se refere às modalidades individuais por contra-ponto às colectivas adequa-se, por exemplo, ao ténis e ao golfe, mas pode já não ser apropriada para a natação ou o atletismo em que as individualidades são integradas em equipas que procuram resultados colectivos, esperando-se benefícios para o colectivo vindos dos desempenhos individuais. E isso é particularmente deste modo no atletismo e no caso da autora em que, como é do conhecimento público e notório, a equipa de atletismo do S... tem frequentemente disputado a Taça dos Clubes Campeões Europeus. Isto para já não falar que, internamente, em Portugal, como também é notório, os campeonatos de atletismo são disputados a nível de equipas, de clubes que até são integrados em Divisões (1.ª, 2.ª…) - ver facto n.º 30.

Ressalta, pois, dos autos uma plena integração da autora na estrutura e organização do réu.

E não afasta a conclusão a que se chega a circunstância de no dia-a-dia a ré não dar ordens directas à autora quanto ao modo de realização das suas tarefas, mas tal prende-se com a natureza destas, que requer autonomia técnica, bastando para o seu desempenho que a ré se limite a coordenar o trabalho da autora, tal como sucedia através do treinador daquela que era pago pela apelante para tal desiderato. Contudo, isso não implica a negação da subordinação jurídica que transparece neste vínculo contratual.

Como refere Monteiro Fernandes, na obra citada, págs. 133 e134, “a subordinação pode não transparecer em cada momento da prática de certa relação de trabalho ... muitas vezes, a aparência é de autonomia do trabalhador, que não recebe ordens directas e sistemáticas da entidade patronal, e, no entanto, deve concluir-se que existe, na verdade, subordinação jurídica. Antes do mais, porque é suficiente um estado de dependência potencial (conexo à disponibilidade que o patrão obteve pelo contrato) ... Depois, porque a subordinação jurídica comporta graus, nomeadamente em função das aptidões profissionais do trabalhador e da tecnicidade das próprias tarefas”. E, acrescenta, citando um acórdão do STA: “existe a subordinação jurídica do trabalhador para com um patrão logo que este tenha o direito de lhe dar ordens ou de dirigir ou fiscalizar o seu serviço, não se exigindo que de facto e permanentemente o faça”.

O decidido quanto à qualificação contratual é assim de confirmar.»

5. Na revista, o Réu, para sustentar caracterização da relação em causa como contrato de prestação de serviço, aduz, em síntese, que:

- Não dispunha de poderes de autoridade e direcção sobre a Autora, que esta não estava permanentemente sujeita a ordens, e apenas lhe eram dadas indicações para se apresentar no clube sempre que necessário, bem como nas competições internacionais em que teria de participar;
-Apenas custeava as despesas, quando a Autora competia ao serviço do Réu, mas não quando ele participava em provas ao serviço da Federação Portuguesa de Atletismo e ela só envergava o equipamento fornecido pelo clube quando competia em representação deste;
-O local de treino diário não era em instalações do Réu e este não podia dizer quando, onde, como e com que utensílios, treinar, nem determinar qualquer horário de trabalho;
-O treinador não pertencia aos quadros do Réu, não estando sujeito a ordens do Réu, embora fosse pago por este.

6. Mais do que ao nome que as partes deram ao contrato, para sua qualificação, importa atender-se à forma como, desde logo à partida, ficou estipulado o negócio, havendo, por conseguinte de atentar-se no que, no escrito que corporizou o encontro de vontades, ficou consignado.

A vontade das partes encontra-se, no tocante aos direitos e obrigações emergentes da relação que pretenderam estabelecer, expressa nas cláusulas do escrito intitulado “Contrato de Prestação de Serviços”.

Do respectivo texto, retira-se que a Autora se comprometeu a representar o Réu, na modalidade desportiva de atletismo (cláusula 1.ª, n.º 1), fazendo parte da equipa de atletismo e nessa qualidade participando em todas as competições nacionais ou internacionais em que fosse solicitada a sua participação, sempre com o objectivo principal da obtenção das melhores classificações possíveis (cláusula 2.ª, n.º 1); obrigou-se a “respeitar as indicações dos técnicos encarregados de assegurar a sua preparação física e assistência médico-desportiva devendo, designadamente, comparecer à hora e local marcados, em todas as competições nacionais e internacionais” e a “observar, dentro e fora das instalações desportivas, uma conduta social e desportiva exemplar, em defesa do bom nome, imagem e interesses do SCP” (cláusula 2.ª, n.os 2 e 3); comprometeu-se a “assinar todos os documentos necessários” para a inscrição na “Federação Portuguesa de Atletismo como praticante de atletismo do SCP”, bem como “a não se inscrever como praticante de outra entidade” durante a vigência do contrato (cláusula 5.ª, n.º 1); obrigou-se “a utilizar, exclusivamente, em competições os equipamentos que lhe forem fornecidos pelo SCP, qualquer que seja a marca comercial ou outra neles aposta com fins publicitários, deixando-se fotografar ou filmar com os referidos equipamentos sempre que para isso for solicitado” e “a acatar e respeitar o regulamento disciplinar em vigor para os atletas do SCP” (cláusula 6.ª, n.os 2 e 3).

Por seu lado, o Réu comprometeu-se, com vista a contribuir para a prossecução do referido objectivo principal, a facultar à Autora preparação técnica e física ministrada por técnicos devidamente habilitados, assistência médico-desportiva, no que se refere exclusivamente à prática de atletismo, equipamento desportivo para competição em representação do clube, por este definido no início da época, e alimentação e alojamento “sempre que o atleta se desloque para para efeitos de participação em competições, sempre que o Departamento convocar” (cláusula 3.ª, n.º 1); e comprometeu-se a pagar à Autora uma prestação mensal ilíquida de Esc.: 430.000$00, a ser paga 12 vezes por época desportiva.

Surpreendem-se, no texto do aludido escrito, inequívocos sinais de que, apesar do nome que deram ao contrato, foi vontade das partes estabelecerem um relacionamento em que o exercício da actividade a prestar pela Autora, haveria de ser levado a cabo sob a autoridade e direcção do Réu.

Nesse sentido, apontam as obrigações de respeitar as indicações e intruções de técnicos encarregados de assegurar a preparação física e a assistência médico-desportiva, que o Réu se comprometeu a facultar, de integrar a equipa de atletismo e, com particular relevo no âmbito da autoridade, a sujeição ao regulamento disciplinar em vigor no Réu.

O modo como, na prática, veio a desenvolver-se a execução da relação jurídica que as partes assim estabeleceram não apresenta, atenta a matéria de facto que resultou provada, desvios de substância no tocante aos deveres nucleares assumidos pela Autora, perante o Réu, referidos directamente ao exercício da sua actividade profissional.

Com efeito, provou-se que, no âmbito da execução da actividade contratada, a Autora realizava treinos diários, sob a orientação e supervisão de um treinador remunerado pelo Réu, recebia ordens e intruções do responsável pela secção de atletismo para se apresentar no clube sempre que necessário, bem como nas competições internacionais que teria de participar, sendo que entrava em todas as competições determinadas por ele e em sua única e exclusiva representação.

Deste modo, pode afirmar-se que as partes quiseram e actuaram efectivamente um relacionamento em que sempre esteve presente a possibilidade de o Réu orientar e dirigir a actividade laboral da Autora, ainda que indirectamente, através de um treinador por ele remunerado ou de técnicos de medicina desportiva por ele designados, com sujeição a normas contidas em regulamento disciplinar do próprio Réu, tudo tendo em vista a prossecução dos fins a alcançar com a referida actividade da Autora, por ele, Réu, definidos.

Tanto basta para se concluir pela presença na relação em causa, tal como foi convencionada e veio a ser actuada, da subordinação jurídica que, como se referiu, constitui elemento característico do contrato de trabalho, que o diferencia do contrato de prestação de serviço.

Encontrado, assim, o elemento fundamental que presidiu ao dito relacionamento, carecem de valor para a qualificação do contrato as circunstâncias invocadas pelo Réu para fazer vingar o seu ponto de vista.

Assim, atenta a natureza da actividade contratada, é manifestamente irrelevante para afastar a subordinação jurídica, o facto de a organização dos tempos de treino não ser definida, directamente, pelo empregador, visto que, para o efeito remunerava o treinador, que orientava e dirigia essa actividade, estando a Autora vinculada a obedecer às suas intruções e indicações, dever este que, tendo sido contratualmente assumido, não deixava de impender sobre a Autora pelo facto de as sessões de treinos serem agendadas por acordo entre ambos.

Por idêntica ordem de razões, também não releva a circunstância de os treinos se realizarem em instalações não pertencentes ao Réu, já que, no local dos treinos, estava presente o referido treinador, com poderes para controlar e dirigir os mesmos, nessa medida, representando o Réu que, para o efeito, o remunerava.

Os demais aspectos, tidos, na perspectiva do Réu, como índices de uma relação de trabalho autónomo, que se prendem com a propriedade dos equipamentos utilizados pela Autora, nos treinos e em competições em que representava a Federação Portuguesa de Atletismo, e com o facto de esta lhe atribuir subsídios e suportar as despesas, nessas competições, apresentam-se, na óptica deste Supremo, atendendo ao quadro de obrigações assumidas no contrato, como aspectos marginais, na ponderação a efectuar sobre a existência de subordinação jurídica.

Também não pode atribuir-se ao facto de não ter sido convencionado o gozo de férias, o pagamento do respectivo subsídio, nem do subsídio de Natal, o efeito de abalar a existência de subordinação jurídica no relacionamento que o acordo de vontades instituiu e veio a concretizar-se, pois, ainda que a Autora se tivesse conformado, com a preterição daqueles efeitos típicos da relação de trabalho subordinado, de produção imperativa e prefixada por lei, essa preterição não tem virtualidade para conferir à relação jurídica desejada, e efectivamente actuada, natureza diferente da do contrato de trabalho (cfr. Júlio Manuel Vieira Gomes, Direito do Trabalho, Volume I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 138).

O mesmo se pode dizer a propósito dos aspectos formais, atinentes à quitação da remuneração e à observância dos regimes fiscal e de segurança social.

Nesta conformidade, é de concluir, corroborando, no essencial, as considerações vertidas no acórdão impugnado, que o contrato celebrado entre a Autora e o Réu deve ser qualificado como contrato de trabalho subordinado, improcedendo o que, a tal respeito, vem alegado na revista.

7. Da indemnização por danos não patrimoniais:

7. 1. Como acima se referiu, a sentença da 1.ª instância, tendo qualificado a relação jurídica que vigorou entre as partes como contrato de trabalho, julgou a acção parcialmente procedente e decidiu declarar ilícito o despedimento da Autora e condenar o Réu, S... Clube de Portugal, a pagar-lhe, além do mais, a quantia de € 15.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ao ano, desde a citação e até integral pagamento.

No recurso de apelação, o Réu sustentou, na conclusão 49.ª, que, «[p]elo facto de a Recorrida ter encontrado, imediatamente após a rescisão, novo clube onde se inscrever; pelo facto de a sua prestação internacional não ter sido minimamente afectada durante a época rescindida; pelo facto de ter sido campeã nacional na época rescindida; pelo facto de não ter terminado a carreira de atleta; a quantia arbitrada a título de danos morais é excessiva, sem prejuízo de a mesma não ser devida em virtude da não existência de contrato laboral.»

O Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão em revista, decidiu reduzir o valor daquela indemnização e fixá-lo em € 10.000,00, pronunciando-se nos seguintes termos:

«Com interesse ficou provado que a autora é uma atleta de alta competição, na modalidade de lançamento do disco, tendo representado o S... desde 1987, onde efectuou toda a sua vida desportiva ali tendo todos os seus colegas e amigos, vendo os atletas e toda a secção de atletismo como parte da sua família. É campeã nacional de atletismo há 17 anos pertencendo-lhe o recorde nacional (65,40 m) (factos provados n.ºs 20, 21 e 22).

Por virtude da rescisão do contrato, a autora sentiu revolta pela forma como acabaram os seus 17 anos de atletismo no S..., sentiu um abalo psicológico, sentiu vontade de desistir da modalidade que praticara ao serviço do réu e sentiu que a sua imagem como atleta de competição ficou afectada perante colegas, amantes da modalidade e público em geral, para além de que a autora contava, para fazer face às suas necessidades, com a retribuição que havia acordado com a 1.ª ré e que deixou de receber (factos provados n.ºs 23 e 24).

A prestação desportiva da autora foi afectada, não conseguindo atingir a fase final dos Jogos Olímpicos da Grécia, como afectada ficou a sua imagem entre colegas de profissão, amantes da modalidade e público em geral. E na qualidade de campeã nacional, viu-se obrigada, atenta a rescisão do contrato e a data em que foi efectuada, a inscrever-se por um Clube da II Divisão (Clube Desportivo O... dos A...), para poder competir (factos provados n.ºs 25, 26, 27, 28, 29 e 30).

Excepto no caso de não se reconhecer a existência de uma relação laboral subordinada, [a] apelante não põe em causa o preenchimento dos requisitos legais. E assim é.

Ora nos termos do art. 496.º-1 do CC deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, como é o caso.

Como é sabido, os danos não patrimoniais, não consubstanciam uma verdadeira indemnização nem podem ser avaliados em medida certa. Há antes uma atribuição de certa soma pecuniária que se julga adequada a compensar e a apoucar dores e sofrimentos através do proporcionar de um certo números de alegrias e satisfação que os minorem ou façam esquecer. Ao contrário da indemnização propriamente dita, cujo fim é preencher um espaço verificado no património do lesado, a compensação dos danos não patrimoniais tem por fim acrescer um património intacto para que o lesado, com tal acréscimo alcance lenitivo para as suas amarguras.

O n.º 3 do art. 496.º do CC, no respeitante ao montante da indemnização manda atender sempre a um critério de equidade, devendo fazer-se nas circunstâncias expressas no art. 494.º do CC, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica do responsável e a do lesado e as circunstâncias concretas do caso.

Como ensina o Prof. A. Varela, Das Obrigações em Geral, 2.ª ed., I Vol., pág. 486 e nota 3, e ainda pág. 438, o seu montante deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta, na sua fixação ponderada, todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades.

Tal reparação reveste uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa compensar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pelo lesado; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico, com os meios adequados do direito privado, a conduta do agente.

Importa realçar que a ligação desportiva da autora à apelante estava a 1 ano de terminar (factos provados n.ºs 1 e 11) pelo que a revolta sentida pelo termo da ligação de 17 anos ao S... tem a dimensão relevante da antecipação de 1 ano em relação ao previsto, nada se tendo alegado ou provado que o contrato seria renovado para além de 2004, ou que a autora, sequer, teria a fundada e legítima expectativa de que tal renovação viesse a suceder.

Face ao exposto e tendo em conta toda a matéria provada, designadamente de que se tratava da campeã e recordista nacional da especialidade de lançamento do disco, razoável e ajustado se nos afigura que seja [a autora] compensad[a] com indemnização relativa aos danos não patrimoniais no montante de € 10.000,00.»

7. 2. Na conclusão 44 da presente revista, o Réu transcreve, ipsis verbis, o que havia alegado no recurso de apelação e, no corpo da alegação, aduz, para ver substancialmente reduzida a indemnização, argumentos centrados, fundamentalmente, na discordância quanto à relevância a conferir à comparação entre as marcas obtidas em competições, antes e depois da cessação do contrato, para contrariar a asserção de que a prestação desportiva da Autora foi afectada com reflexos na sua imagem enquanto atleta.

Ora, não decorre do acórdão recorrido que o Tribunal da Relação tenha atribuído particular importância a tal asserção que, nos fundamentos que explanou para arbitrar a indemnização, surge, ilustrada pelo facto de não ter a Autora sido apurada para a fase final dos Jogos Olímpicos, a par de outros factos que, na perspectiva deste Supremo Tribunal, revelam danos psicológicos de gravidade maior, como os que se apresentam referidos no seguinte passo do acórdão: «a autora sentiu revolta pela forma como acabaram os seus 17 anos de atletismo no S..., sentiu um abalo psicológico, sentiu vontade de desistir da modalidade que praticara ao serviço do réu e sentiu que a sua imagem como atleta de competição ficou afectada perante colegas, amantes da modalidade e público em geral, para além de que a autora contava, para fazer face às suas necessidades, com a retribuição que havia acordado com a 1.ª ré e que deixou de receber».

Quer-se, com isto, significar que, mesmo sem atribuir especial relevância à diminuição de rendimento da Autora, na sua prestação desportiva, não se afigura excessivo o valor fixado pela Relação para compensar os danos não patrimoniais sofridos pela Autora, atendendo aos critérios sublinhados no acórdão recorrido, que, assim, também neste particular, não merece censura.

III

Em face do exposto, nega-se a revista.

Custas a cargo do recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça,

Lisboa, 15 de Setembro de de 2010.

Vasques Dinis ( Relator)

Mário Pereira

Sousa Peixoto