ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
2049/06.0TBVCT.G1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 12/15/2011
SECÇÃO 7ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO NEGADA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR SILVA GONÇALVES

DESCRITORES CONTRATO-PROMESSA
CONTRATO-PROMESSA DE PARTILHA
PRINCÍPIO DA METADE NA COMUNHÃO    

SUMÁRIO 1.Está ferida de invalidade a estipulação contratual que os cônjuges subscrevam em desrespeito pela regra da metade do seu património comum no casamento.

     2. Porque é profanada a regra da metade consagrada no art.º 1730º, n.º1, do C. Civil, é nulo o contrato-promessa de partilha negociado entre ambos os cônjuges no qual, na divisão acordada, se atribui a um dos cônjuges prestações “manifestamente desproporcionais”.



DECISÃO TEXTO INTEGRAL

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA, residente na Rua ..., n.º …, Meadela, concelho de Viana do Castelo, intentou a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra BB, residente na Rua …, n.º …, 1º esquerdo, Viana do Castelo, pedindo que seja:

a) Declarado válido o contrato-promessa de partilhas celebrado entre A. E R., em 25 de Agosto de 2005, e identificado na petição e declarado o seu incumprimento culposo pela R. 

b) A ré condenada no seu cumprimento específico e, em substituição da vontade dela, seja declarada efectivada a adjudicação ao A. do imóvel casa de cave, rés-do-chão e andar, sita na Rua ..., n° …, Lugar da Igreja, freguesia de Meadela, concelho de Viana do Castelo, descrita na Conservatória sob o n° …, e inscrita na matriz predial sob o art.º urbano n° 2393”, bem como dos diversos móveis, nomeadamente mobílias de quartos, sala de jantar, sala de estar, cozinha, electrodomésticos e aparelhos de Hi-Fi, rádio e televisão.  

c) Autorizada a feitura dos respectivos registos prediais, nomeadamente o registo de aquisição a favor do A. em consequência de adjudicação em partilha; 

d) A ré condenada no pagamento ao A. da quantia mensal de 500 euros, desde o dia 25/11/2005, data da designação da escritura pública (ou, pelo menos, desde a data de 04/04/2006, data aprazada para a segunda marcação da escritura), valor esse que nesta data atinge os 3.000 euros (6 meses x 500), sem prejuízo do valor que entretanto se for ainda vencendo. 

Subsidiariamente, para a hipótese de assim não ser entendido, seja a ré condenada a: 

e) Pagar ao A. a quantia de 25.000 euros, nos termos da Cláusula 9ª do contrato promessa em causa; 

f) Restituir ao A. o dobro do que este entregou ou seja, 15.000 euros (7.500x2), nos termos do disposto nos arts. 440°,442° e 473°, todos do CC; 

g) Reconhecer que ao A. assiste o direito de retenção sobre o prédio urbano supra identificado e que se vem aludindo nos autos, como garantia dos créditos e indemnizações que tem sobre ela e, assim; 

h) A ver o A. mantido na posse sobre o mesmo prédio, como garantia dos créditos e indemnizações supra referidas e enquanto não for ressarcido e pago; 

j) Em qualquer caso ou circunstância que venha a ser entendido pelo Tribunal, às referidas quantias devem acrescer os juros moratórios à taxa legal e até integral pagamento.

Alegou, para tanto e em síntese, que, para produzir efeitos após a dissolução do casamento por divórcio e subordinado à condição suspensiva do decretamento do divórcio entre ambos, A. e R. assinaram, em 25 de Agosto de 2005, o documento que titularam de CONTRATO-PROMESSA DE PARTILHA, em que estes se comprometeram partilhar o património do casal da forma que aí deixaram expressa, e que não obstante ter sido previamente avisada do dia e hora marcados para a celebração da escritura do contrato prometido, a ré não compareceu nas datas marcadas nem apresentou qualquer justificação válida para a sua conduta omissiva.  

Citada a R. contestou, excepcionando a anulabilidade do contrato celebrado, nos termos dos arts. 255º, nºs 1 e 2, 256º e 282º, do C.C., atenta, quer a coacção moral que o autor exerceu sobre ela, ameaçando-a com a divulgação de factos relativos a uma troca de mensagens de índole amorosa com um colega, quer o facto de o autor a ter colocado num estado de grande temor e numa situação de necessidade.

Mais invocou a nulidade deste contrato nos termos das disposições conjugadas dos arts. 280º, nº 1 e 410º, do C.C. e com fundamento no facto do mesmo ter sido celebrado na constância do matrimónio sem que os cônjuges estivessem separados de facto.

 E invocou ainda a nulidade do dito contrato por violação da regra da metade prevista no art. 1730º, nº 1, do C.C. e por ofensa do princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime consagrado no art. 1714º do C.C.

Concluiu pela procedência das excepções deduzidas, com a sua consequente absolvição do pedido.      

  O autor replicou, impugnando a matéria de excepção alegada pela ré, concluindo como na petição inicial. 

Proferido despacho saneador, foram elaborados os factos assentes e a base instrutória.

Procedeu-se a julgamento, com observância do formalismo legal, decidindo-se a matéria de facto pela forma constante de fls. 609 a 614.


A final, foi proferida sentença que julgou totalmente procedente, por provada, a excepção deduzida pela ré BB na sua contestação e improcedente a acção instaurada pelo autor AA, em consequência do que:

 a) Declarou a nulidade do contrato-promessa de partilhas celebrado entre o autor AA e a ré BB, no dia 25 de Agosto de 2005, com todas as consequências legais inerentes a essa declaração, designadamente os efeitos previstos nos arts. 289º e segs. do Código Civil. 

b) Absolveu a ré dos pedidos formulados pelo autor.

c) Condenou autor e ré no pagamento das custas do processo, na proporção de 2/3 e 1/3, respectivamente, por ambos terem contribuído, em percentagem idêntica, para a instauração da presente acção.

Não se conformando com esta decisão, dela apelou o autor par a Relação de Guimarães que, por Acórdão de 7 de Junho de 2011 (cfr. fls. 741 a 760), ainda que com base em fundamentos não inteiramente coincidentes, julgou a apelação improcedente e, consequentemente, confirmou a sentença recorrida.

Novamente inconformado, o autor AA recorreu para este Supremo Tribunal, apresentando as seguintes conclusões:

1 - O art.º 1730.° do CC apenas impõe a "regra da metade" quanto à participação dos cônjuges no activo e no passivo da comunhão, isto é, no património comum.

2 - O termo participação é aqui usado tal como no art.° 1405.° do CC, quando define os poderes e deveres de cada comproprietário.

3 - A "regra da metade" consagrada no artigo 1730.° é uma norma que impede que se alterem as regras da liquidação do património, que se devem fazer por metade, mas já não pode impedir que os cônjuges procedam à partilha do que sobrar contentando-se um deles com menos de metade.

4 - Admitida como foi a validade ou a legalidade do contrato-promessa em causa, e julgá-lo depois nulo por ofensa da regra da meação, nos termos do citado artigo do Código Civil, é incoerente, contraditório e sem apoio na lei.

5 - A falta de prova de um facto não pode ser suprida com recurso a presunções judiciais, se um facto concreto é submetido a discussão probatória e o julgador não o dá como provado, pelo que é contraditório tê-lo como provado com base em simples presunção.

6 - É pacifico que houve negociações entre os outorgantes do contrato-promessa, sobre os termos do acordo e as posições que vinham sendo assumidas pelas partes, posições essa que foram ponderadas, com avanços e recuos.

7 - Verificada e aceite a legalidade do contrato-promessa celebrado, tal contrato só poderia ser posto em causa por qualquer uma das circunstâncias referidas na lei civil, nomeadamente por simulação, falta de consciência da declaração, erro na declaração, sobre os motivos, sobre o objecto, coação, dolo, incapacidade, a que se referem os artigos 240.°, 244.°, 246.°, 251.°, 252.°, 253.° e 257.°, todos do Código Civil.

8 - Se alguém se vem "queixar" da nulidade do contrato por ofensa da regra da meação, é porque entendeu ou fez mal as contas. A isto chama-se ERRO (sobre a declaração, sobre os motivos, sobre o objecto...), isto é, um dos vícios da vontade que demonstradamente o Tribunal não considerou.

9 - O Tribunal não pode substituir-se à vontade das partes num contrato como aquele que está em causa, já que nada existe a manchá-lo e ainda porque o disposto no art.° 1730°, n° l do CC apenas permite aquela interpretação e solução desde que se demonstre que a regra da metade está inquinada por um dos vícios na formação da vontade. Ora,

10 - A protecção dos cônjuges dos "perigos especiais" a que estão expostos um perante o outro não pode ser tal que reclame de imediato a intervenção o Estado nas relações privadas, como se fosse um "polícia" dos casais desavindos como se estes fossem formados por pessoas indigentes. Portanto,

11 - Essa protecção só faz sentido quando existe, em concreto, algo que retire a possibilidade de determinação a um deles, seja por algum ascendente psicológico, seja por quaisquer um dos demais vícios que atrofiam a vontade.

12 - Sustentar a nulidade do contrato-promessa de partilha celebrado entre A. e R. com o fundamento de que ele viola o disposto no artigo 1730° do C. Civil é um erro que se não pode aceitar, face aos factos provados, à instabilidade e à versatilidade dos valores em jogo.

13 - Aquele dispositivo legal - igualação das meações dos cônjuges - apenas pode ser entendido num sentido abstracto.

14 - A equivalência ou o equilíbrio das meações dos valores que as compõem, como é do conhecimento geral, depende de muitas variáveis (inflação, oferta/procura, localização, urbanismo, oportunidades, projetos de PDM, estado dos bens, etc.), pelo que nunca se pode dizer ou afirmar, qual o valor exacto das meações, a não ser em abstracto.

15 - No âmbito de um contrato-promessa - e até no domínio de um contrato definitivo -, apenas se pode dizer que, não havendo qualquer vício da vontade ou outra circunstância que determine a sua invalidade, o valor das meações dos cônjuges, é aquele que estes aceitaram como correcto aquando ou no momento da celebração ou no momento da outorga do contrato em causa.

16 - Se meses ou uns anos depois, alguém chega à conclusão de que os valores duma das meações, são inferiores aos da outra, isso deve-se aos riscos próprios de qualquer negócio, que em determinado momento nos pareceu vantajoso, mas que posteriormente, por virtude dos factores que levam a oscilações valorativas, se vê que não foi tão vantajoso como se pensou e aceitou.

17 - Os valores de bens materiais, dependem a cada momento, de factores imprevisíveis, mas que não podem levar à invalidação dos respectivos negócios, sob pena de gerar o caos no mundo negocial, pondo seriamente em causa o principio da estabilidade e segurança jurídicas - "rebus sic stantibus e pacta sunt servanda”, que são valores primordiais de qualquer ordenamento jurídico. Ou seja,

18 - O valor das coisas ou dos bens é aquele que alguém aceita em dado momento, que pode muito bem não coincidir com o valor de mercado, quer para mais, quer para menos, obviamente.

19 - A recorrida aceitou os termos do contrato promessa com os valores lá especificados, aceitou-o livre e ponderadamente, na sequência de negociações havidas com o A., fê-lo livre de qualquer vício da vontade, nomeadamente de coacção, erro sobre os motivos ou objecto do negócio, simulação, dolo, incapacidade ou inconsciência ou erro da declaração. Portanto,

20 - No âmbito de aplicação daquela norma (igualação das meações, entendida de modo abstracto), nenhuma relevância merece agora, saber-se qual o valor dos bens em causa, na partilha a efectuar entre A. e R. uma vez que na altura do contrato, a R. aceitou de plena consciência, sabendo o que estava a fazer, quais as implicações que daí advinham na sua vida económica e livre de qualquer vício da vontade, e nessa altura as meações dum e doutro eram equivalentes.

     21 - A regra da metade consagrada no artigo 1730° é uma norma que impede que se alterem as regras da liquidação do património, que se devem fazer por metade, mas já não pode impedir que os cônjuges procedam à partilha do que sobrar contentando-se um deles com menos de metade (negrito nosso).

     22 - A ninguém pode ser imposto um benefício contra a sua vontade. A regra da metade, na verdade, delimita o círculo dos valores atribuíveis a cada um dos cônjuges, mas perante uma atribuição concreta nada impede que um dos cônjuges possa a ela renunciar. É o princípio basilar da 'liberdade contratual" consignado no art.º 405° do CC.

     23 - A vingar o entendimento perfilhado pelo Tribunal da Relação no Acórdão em crise, não há contrato-promessa de partilhas de bens do casal que resista ou que sobreviva.

     24 - Pelas apontadas razões, a decisão em crise não pode manter-se.

25 - Mostram-se violados, para além do mais, os preceitos dos art°s 659° do CPC e ainda o art.º 1730° do CC.

Termina pedindo que seja revogado o Acórdão recorrido e que a acção seja julgada procedente e provada.

Contra-alegou a recorrida BB pedindo a manutenção do julgado.

     Corridos os vistos legais cumpre decidir.


         As instâncias consideraram provados os factos seguintes:

1º- A. e R. casaram no dia 8 de Dezembro de 1989, sem qualquer  convenção antenupcial. – A)

2º- Para produzir efeitos após a dissolução do casamento por divórcio, e subordinado à condição suspensiva do decretamento do divórcio entre ambos, A. e R., como promitentes, outorgaram e assinaram em 25 de Agosto de 2005, o documento que intitularam de CONTRATO PROMESSA DE PARTILHAS, de fls. 30 a 32, que aqui se dá por reproduzido. - B) 

3º-Através desse contrato, A. e R. acordam em requerer junto da Conservatória do Registo Civil de Viana do Castelo o seu divórcio por mútuo consentimento, pelo que em vista da partilha subsequente, prometem outorgá-la, de forma expressa e voluntária, nos seguintes termos: 

1. O património comum do casal é composto pelos seguintes bens e haveres:

a) Casa de cave, rés-do-chão e andar, sita na Rua ..., nº …, Lugar da Igreja, freguesia de Meadela, concelho de Viana do Castelo, descrita na Conservatória sob o nº …, e inscrita na matriz predial sob o art. urbano nº …, à qual é atribuído o valor de 100.000 euros; 

b) Diversos móveis, nomeadamente mobílias de quartos, sala de jantar, sala de estar, cozinha, electrodomésticos e aparelhos de Hi-Fi, rádio e televisão, a que atribuem valor de 500 euros; 

c) Veículo automóvel de matrícula NE, marca Opel Astra, a que atribuem o valor de 7.500 euros;

2. Os bens acima descritos, deduzidos dos montantes em dívida pelo casal na presente data, especialmente o financiamento junto da CGD, somam o valor total de 30.434,23 euros, cabendo a cada cônjuge um quinhão no valor de 15.217,12 euros, correspondente à respectiva meação. 

3. Pelo presente contrato-promessa os outorgantes convencionam e obrigam-se mutuamente a proceder à partilha dos referidos bens nos seguintes termos: 

a) O prédio urbano, que igualmente constitui a casa de morada de família, fica adjudicado ao primeiro outorgante, assim como os bens indicados em b) móveis da cláusula primeira; 

b) À segunda outorgante é adjudicado o bem indicado em c) – veículo automóvel – da mesma cláusula primeira; 

c) Pela diferença das meações, o cônjuge marido entrega à cônjuge mulher, a título de tornas, a quantia de 7.177,12 euros, no acto da assinatura do presente contrato, das quais a segunda outorgante dá quitação.

4. O primeiro outorgante – o A. – fica com a obrigação de pagar junto da Caixa Geral de Depósitos o valor do empréstimo devido pelo casal para custear a construção da casa de habitação, que ascende nesta data ao montante de 77.565,77 euros, desobrigando nesta data e com a assinatura deste contrato o cônjuge mulher desse encargo, sendo que para o efeito àquele são igualmente adjudicados os valores das contas bancárias do casal, designadamente na CGD, no Millenium BCP e no Montepio Geral. 

5. Igualmente ficam a cargo do primeiro outorgante marido o pagamento de quaisquer despesas ou dívidas do casal existentes até esta data e que respeitem ao referido imóvel e ao estabelecimento comercial, sito na estrada nacional, lugar da Igreja, Meadela, Viana do Castelo, com a contribuição dos valores das contas referidas na cláusula anterior, estabelecimento esse que é bem próprio apenas do cônjuge marido, que como tal também lhe será adjudicado.  

6. A partir desta data – data da assinatura do contrato - qualquer um dos cônjuges fica desobrigado de dívidas contraídas em relação ao outro. 

 4º- A. e R. acordaram ainda nas questões base, referentes à regulação do poder paternal dos dois filhos menores, cuja especificação faria parte dos acordos a acompanhar o pedido de divórcio, nos termos da lei, nomeadamente que:

a) Os filhos ficarão à guarda e ao cuidado da segunda outorgante, cônjuge mulher; 

b) O pai, cônjuge marido, contribuirá, para cada um dos filhos e a título de alimentos, com a quantia mensal nua mensal de 175 euros, acrescida de 50 euros no Natal e na Páscoa, a depositar na conta nº … da Caixa Geral de Depósitos, ou outra a designar até ao dia dez do mês a que respeita; 

c) O pai poderá ter os filhos na sua companhia aos fins-de-semana e em metade do período das férias escolares, nos termos concretamente a acordar no referido requerimento. – D)

 5º- A. e R. estabeleceram também que “a escritura pública ou a formalização deste contrato prometido efectuar-se-á obrigatoriamente no prazo  de sessenta dias após o trânsito em julgado da sentença que decretar o divórcio”. – E)

6º- Mais estabeleceram que “o incumprimento deste contrato ou de qualquer destas cláusulas implica que o outorgante faltoso pague ao outro uma quantia que as partes acordam em fixar no montante de 25.000 euros, a título de cláusula penal, sem prejuízo de poder optar, em alternativa, pela execução específica do mesmo” e que “o incumprimento culposo do prazo referido na cláusula oitava implica o pagamento do faltoso da quantia mensal de 500 euros, a título de cláusula penal”. – F)

7º- A. e R. declararam ainda que “por estar de boa fé e mutuamente de acordo, reciprocamente se vinculam, pelo que vão assinar’, como efectivamente  assinaram. - G) 

8º- Por decisão proferida pela Senhora Conservadora do Registo Civil de Viana do Castelo, no dia 28 de Outubro de 2005, pelas razões e fundamentos produzidos na mesma, foi decretado o divórcio entre o A. e o R.- H) 

9º- A R. intentou acção de inventário para partilha dos bens comuns do casal, que corre termos neste Juízo, com o nº 942/06. – I)

10º- Após a celebração do contrato-promessa supra referido, o A. passou a habitar, a usar e a fruir, de modo exclusivo, a casa acima identificada. – J)

11º- Fazem parte do recheio da casa de morada de família: uma mobília completa de sala de jantar (composta por uma mesa, seis cadeiras, dois aparadores e uma cristaleira); diversas peças em faiança de Viana do Castelo; uma mobília completa de sala de estar (composta por dois sofás em pele, uma mesa de centro e uma estante); uma mobília de escritório (composta por uma secretária, um sofá em pele e uma estante); quatro mobílias de quarto completas; três tapetes de Arraiolos; duas carpetes; diversos candeeiros; cortinados; um órgão; um computador, uma impressora; dois televisores; uma aparelhagem; enciclopédia Luso Brasileira completa; um serviço de jantar; um serviço de copos; um faqueiro; um cortador de relva; um ferro de engomar; um grelhador; uma panela de fondue; uma panela de pressão; um trem de cozinha; uma picadora; uma máquina de sumos; um moinho de café; um fogão; um frigorífico; um forno; um microondas; uma máquina de lavar roupa, uma máquina de secar roupa; uma máquina de lavar louça; uma batedeira eléctrica; uma máquina de café; uma caldeira de aquecimento; uma mesa de pingue-pongue; vinte concertinas; três bicicletas. - K)   

 12º- “Tendo junto com o requerimento do divórcio, nos termos da lei, os acordos quanto ao exercício do poder paternal (incluindo a quantia mensal acordada referente aos alimentos aos filhos), quanto ao regime de visitas, quanto aos alimentos aos filhos, destino da casa de morada de família e relação dos bens comuns”.- L) 

13º- A R. foi avisada para comparecer no Cartório Notarial de Viana do Castelo no dia 04/0412006, pela 15,30 horas, mas não compareceu. - M) 

14º- O A. pagou à R. a quantia de 7.500,00 euros a título de tornas, através do cheque no …, sacado sobre o Banco Millenium BCP. Agência de Viana do Castelo, quantia que a R. recebeu e fez sua. -Quesito 1º

15º- O A. entregou à R. o veículo automóvel de matrícula NE, marca Opel Astra, que o recebeu. -Quesito 2º

16º- O A. tem pago na Caixa Geral de Depósitos, com o seu exclusivo dinheiro, o valor do empréstimo devido pelo casal para custear a construção da casa, que na data da celebração do contrato-promessa ascendia a 77.565,77 euros. -Quesito 3º

17º- Provado apenas, o que consta do ponto 5 da alínea C) da matéria assente, e da resposta ao quesito anterior. -Quesito 4º

18º- A R. quando saiu de casa levou o referido veículo e alguns bens móveis, -Quesito 5º

19º- O A. solicitou a marcação da escritura pública de partilha para o dia 25/11/2005, e entregou os documentos necessários no então Primeiro Cartório Notarial de Viana do Castelo, comunicando essa data e a hora à R. -Quesito 6º;  

20º- Na manhã do próprio dia designado para a celebração da escritura, a R. não compareceu, ficando o acto sem efeito. -Quesito 7º

21º- O A. diligenciou para que a escritura do contrato prometido fosse novamente marcada, tendo sido fixado o dia 4 de Abril, pelas 15,30 horas no Cartório Notarial de Viana do Castelo, a cargo do Sr. Dr. DD, sito na Rua …, nº …, em Viana do Castelo. -Quesito 8º

22º- A R. foi previamente avisada do dia e da hora mas não compareceu. -Quesito 9º

23º- À data da celebração do contrato-promessa, autor e ré ainda habitavam na casa de morada de família. -Quesito 10º 

24º- A ré tomou a iniciativa de terminar a relação conjugal, manifestando ao autor a sua decisão de se divorciar, e este tentou demovê-la dessa posição, procurando manter o casamento. -Quesito 11º

25º- A ré correspondia-se via e-mail com um colega de profissão, trocando mensagens de índole amorosa, e que o autor tomou conhecimento dessa situação e do conteúdo das mensagens juntas a fls. 603 a 605 dos autos, que copiou e imprimiu -Quesito 12º

26º- A ré é uma pessoa educada, reservada e goza de boa reputação no meio social em que vive e trabalha. -Quesito 15º

27º- Provado apenas o que consta da al. C) - 1b, da matéria assente. - Quesito 20º

28º- O recheio da casa de morada de família era constituído pelos bens móveis indicados no quesito, com excepção do trecho “vinte concertinas”, e dos valores indicados. -Quesito 21º

29º- À data do casamento, o autor era um dos sócios de uma sociedade que se dedicava à exploração de um estabelecimento comercial de compra e venda de automóveis. -Quesito 25º

30º- Entretanto, já na pendência do casamento, o autor adquiriu a totalidade do capital social dessa sociedade. Para tanto, contraiu empréstimos, designadamente junto de irmãs da ré. -Quesitos 26º e 27º

31º-A casa de morada de família tem o valor de € 202.000,00 e com o esclarecimento de que este valor é reportado a 04/01/2008. -Quesito 29º

A questão essencial posta no recurso, também criteriosamente abordada pela Relação, é a de saber se o que está estatuído no n.º 1 do art.º 1730.º do C. Civil obsta a que os cônjuges possam validamente subscrever delineado contrato-promessa de partilha de bens comuns do casal em que a um deles seja atribuído menos de metade do seu valor.

    I. Dispõe assim o artigo 1730.º do Código Civil (participação dos cônjuges no património comum):

     1. Os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, sendo nula qualquer estipulação em sentido diverso.

     2. A regra da metade não impede que cada um dos cônjuges faça em favor de terceiro doações ou deixas por conta da sua meação nos bens comuns, nos termos permitidos por lei.

Interpretar a lei é tarefa que tem por objectivo a descoberta do seu exacto e preciso sentido, partindo-se do elemento literal para se ajuizar da "mens legislatoris" e tendo-se sempre em conta que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art.º 9.º n.º 3 do C.Civil): a letra não é só o ponto de partida, é também um elemento irremovível de toda a interpretação.

     O texto funciona também como limite de busca do espírito.[1]

Pode, porém, acontecer que o intérprete se aperceba de que o legislador foi infeliz no modo como se exprimiu, que o seu pensamento foi atraiçoado pelos termos utilizados na redacção da lei, dizendo menos do que pretendia. Quando tal ocorrência acontecer ter-se-á de alargar o seu conteúdo até onde o legislador desejava ter querido chegar.

O intérprete concluirá assim fazendo recurso aos elementos racional ou lógico e teleológico (ratio legis - a razão de ser da norma).

O elemento filológico de interpretação tirado do sentido das palavras que integram o texto do preceituado no n.º 1 do artigo 1730.º do C.Civil., leva o intérprete a concluir que está ferida de invalidade a estipulação contratual que os cônjuges subscrevam em desrespeito pela regra da metade do seu património comum no casamento.

Igualmente, a "ratio" que superintendeu na descrição daquele normativo aponta com a mesma força e pontualidade para este mesmo preciso entendimento: nele se tem especialmente em vista fixar a quota-parte a que cada um deles terá direito no momento da dissolução da partilha do património comum. [2]

Lembremos ainda a este propósito que, conforme se descreve no n.º 1 do art.º 1764.º do C.Civil, as doações entre cônjuges só são legalmente consentidas no caso de terem por objeto bens próprios do doador.

Quer tudo isto dizer que, através do disposto no n.º 1 do art.º 1730.º do C.Civil, estão proibidas todas as estipulações ou cláusulas contrárias à regra da metade, quer as estipulações entre os próprios cônjuges, quer as que constem de liberalidades a terceiros.[3]

II. Através do contrato-promessa as partes que o subscreveram obrigam-se a, dentro de determinado prazo ou logo que certos pressupostos se verifiquem, celebrar determinado contrato, mais precisamente comprometem-se a emitir declaração de vontade correspondente ao contrato cuja realização projectaram ajustar (contrato prometido).

Com o contrato-promessa as partes não se obrigam simplesmente a prosseguir as negociações antes encetadas e com vista a definir pontos de vistas que ainda não obtiveram consenso e sem prejuízo de se manterem definitivos os acordos já alcançados, mas obrigam-se, sem mais, a concluir um contrato com um certo conteúdo (Enzo Roppo; O contrato; pág. 102).

"O contrato-promessa é um acordo preliminar que gera uma obrigação de prestação de facto consistente na emissão de uma declaração negocial (Prof. Galvão Teles; Obrigações; pág. 76).

Ora, tendo na devida conta que a divisão acordada no contrato-promessa de partilha atribui ao autor e à ré prestações “manifestamente desproporcionais”, como bem anotaram as instâncias, segue-se que, porque foi claramente profanada a regra da metade consagrada no art.º 1730.º, n.º1, do C. Civil, é nulo o contrato-promessa de partilha negociado entre ambos os cônjuges.

III. Argumenta o recorrente em seu benefício que a legalidade do contrato-promessa celebrado só poderia ser posto em causa por qualquer uma das circunstâncias referidas na lei civil (por simulação, falta de consciência da declaração, erro na declaração, sobre os motivos, sobre o objecto, coação, dolo, incapacidade) e que a regra da metade consagrada no artigo 1730.° do C.Civil não pode impedir que os cônjuges procedam à partilha do que sobrar contentando-se um deles com menos de metade.

     Não lhe assiste, porém, razão.

    Está conferido aos cônjuges o direito de poderem celebrar entre si detalhado contrato-promessa em que se ponderem especificadamente as circunstâncias particulares de cada um deles; e, não se lhe detetando ocorrências que o invalidem, ele estará sujeito à execução específica tal e qual se prevê no art.º 830.º do C. Civil.

Neste contexto jurídico-substantivo podemos dizer que, se é certo que o contrato-promessa assim congeminado é inválido se ficarem demonstrados os requisitos propostos para simulação, falta de consciência da declaração, erro na declaração, sobre os motivos, sobre o objecto, coação, dolo, incapacidade, a que se referem os artigos 240.°, 244.°, 246.°, 251.°, 252.°, 253.° e 257.°, todos do Código Civil, também é verdade que é nulo o contrato-promessa pactuado pelos cônjuges em contradição com o princípio da metade na comunhão prescrito  no art.º 1730.º, n.º 1, do C. Civil.  

     Recordemos que é neste sentido a doutrina dominante - ao impor a regra da metade a ambos os cônjuges, o legislador deve ter querido evitar que um deles tentasse obter do outro um acordo injusto de uma partilha desigual, usando algum ascendente psicológico sobre o outro [4]; e a determinação da participação de cada um dos cônjuges na comunhão tem especialmente em vista o momento da dissolução e partilha do património comum e não a fixação do objeto do direito de cada um deles na vigência da sociedade conjugal. [5]

     Também é esta a jurisprudência unânime deste Supremo Tribunal - sendo válido o contrato-promessa de partilha, em tese geral, o mesmo estará sujeito à execução específica, no condicionalismo do art. 830.º do C. Civil; só assim não será se for violada a regra da metade prevista no art. 1730.º, 1 do C.Civil pois, se assim acontecer ocorrerá a nulidade prevista nessa norma.[6]

     Concluindo: 

 1. Está ferida de invalidade a estipulação contratual que os cônjuges subscrevam em desrespeito pela regra da metade do seu património comum no casamento.

 2. Tendo na devida conta que a divisão acordada no contrato-promessa de partilha atribui ao autor e à ré prestações “manifestamente desproporcionais”, como bem anotaram as instâncias, segue-se que, porque foi claramente profanada a regra da metade consagrada no art.º 1730.º, n.º1, do C. Civil, é nulo o contrato-promessa de partilha negociado entre ambos os cônjuges.

     3. Se é certo que o contrato-promessa é inválido se ficarem demonstrados os requisitos propostos para simulação, falta de consciência da declaração, erro na declaração, sobre os motivos, sobre o objecto, coação, dolo, incapacidade, a que se referem os artigos 240.°, 244.°, 246.°, 251.°, 252.°, 253.° e 257.°, todos do Código Civil, também é verdade que é nulo o contrato-promessa celebrado pelos cônjuges em contradição com o princípio da metade na comunhão prescrito  no art.º 1730.º, n.º1, do C. Civil.

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

                  Custas pelo recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 15 de Dezembro de 2011.

Silva Gonçalves (Relator)

Pires da Rosa

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

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[1] Oliveira Ascensão; O Direito, Introdução e Teoria Geral; pág. 350.
[2] Messineo; La natura giuridica della comunione conjugale dei beni, 1920, citado por Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil Anotado; Volume IV; pág. 397.
[3] Abílio Neto; Código Civil Anotado (art.º 1730.º; nota 1).

[4] Guilherme Oliveira; RLJ, Ano 129, pág. 286.

[5] A.Varela; Família, 1987;, pág. 443.
[6] Acórdão do STJ de 22.2.2007; www.dgsi.pt.