ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
1986/09. 5TBCSC.L1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 10/14/2011
SECÇÃO REVISTA EXCEPCIONAL

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA EXCEPCIONAL
DECISÃO NÃO ADMITIDA A REVISTA EXCEPCIONAL
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR SEBASTIÃO PÓVOAS

DESCRITORES RELEVÂNCIA SOCIAL
DESPEJO
REVISTA EXCEPCIONAL

SUMÁRIO

a) O requisito da alínea b) do n.° 1 do artigo 721-A do Código de Processo Civil — estar em causa interesse de particular relevância social — tem de ser alegado e motivado pelo recorrente que procurará convencer o Tribunal da sua indiciação.

b) Tratando-se de conceito muito indeterminado a sua densificação será feita casuisticamente, na ponderação de um enquadramento conceptual exemplificativo para o qual, além do mais, releva a repercussão (em situação limite, o alarme) a larga controvérsia, por conexão com inquietantes valores sócio culturais, perturbadoras implicações politicas ou outras situações que questionem a eficácia ou credibilidade do direito.

c) Na verificação do requisito há que ter em conta o pedido, a causa de pedir da lide e a matéria de facto assente pelas instâncias.

d) Tratando-se de acção de reivindicação em que o Réu é condenado a entregar a fracção de habitação que ocupa, o facto de alegar ter muita idade, ser doente, que ali reside há anos e tem precária situação económica, não basta para que se considere estar em causa questão de particular relevância social pois, ainda que a provar-se a factualidade descrita, trata-se de caso que ocorre com alguma frequência e onde apenas está em causa uma situação subjectiva do recorrente, sem impacto social ou mesmo comunitário.



DECISÃO TEXTO INTEGRAL

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça, os Juízes que constituem o Colectivo a que se refere o n.º 3 do artigo 721-A do Código de Processo Civil.

AA intentou acção, com processo ordinário, contra BB pedindo que:
- seja reconhecida como única proprietária do prédio urbano sito na Rua ...;
- seja decretada a caducidade do arrendamento referente a esse local, com efeitos a partir de 9 de Novembro de 2007;
- a condenação do Réu a entregar-lhe imediatamente o mencionado imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens;
- a condenação do Réu, caso não proceda à entrega, no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de montante diário não inferior ao valor actual da renda que cifra em €68,31.

Na 1.ª Instância, a acção foi julgada parcialmente procedente e, em consequência, a Autora declarada proprietária do prédio urbano sito na Rua ..., descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n.° 9775, da freguesia de Cascais, e inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia sob o artigo n.° 5905; julgada verificada a caducidade, com efeitos a partir de 9 de Novembro de 2007, do contrato de arrendamento em apreço nos presentes autos, descrito sob o ponto 3; e, consequentemente, o réu BB condenado a entregar à autora, no prazo máximo de três meses, o referido imóvel, livre e devoluto de pessoas e bens; absolver o réu do demais peticionado.

Inconformada, apelou para a Relação de Lisboa que, por unanimidade, confirmou o julgado.

Vem, agora, pedir revista excepcional invocando a alínea b) do n.º 1 do artigo 721-A do Código de Processo Civil.

No essencial, e para motivar esse requisito, como lhe impõe a alínea b) do n.º 2 do mesmo preceito refere que:
“No caso em apreço, não persistem dúvidas acerca da existência de um interesse de particular relevância social, uma vez que o que está em causa, é em primeira linha, a defesa da célula fundamental da sociedade – a família, bem como a tão amplamente protegida casa de morada de família. É fundamental ter presente que ‘a família continua a ser, pela sua importância social, matéria digna de tratamento do Direito.’ A consequência da decisão proferida pelo tribunal ‘a quo’ será necessariamente a destruição desse núcleo essencial sobre o qual se erige a sociedade, o que provocará forçosamente efeitos co-laterais nocivos quer para o Réu e para a sua mulher que com ele habita, quer para os demais entes sociais, mormente, para o Estado em sentido lato. Por outro lado, convém recordar que o direito à habitação se consubstancia num Direito Fundamental constitucionalmente reconhecido e que, como tal, pressupõe que se possa ou deva dar ao arrendatário o tratamento mais favorável em situações de dúvida ou incerteza. No caso em análise, a condenação do ora Recorrente, agora com 78 anos de idade, que sofre da doença de Parkinson, a entregar à Recorrida a casa onde habita com a sua mulher CC, com 68 anos de idade, há já mais de 30 anos consubstancia uma conjuntura que faz perigar valores sócio-culturais, colocando-se em causa, a eficácia e a credibilidade do direito mas, sobretudo, a tão aspirada justiça material. Note-se que o Réu é reformado, padece da doença de Parkinson e de cardiopatia isquémica auferindo a título de pensão da Segurança Social, a quantia mensal de €332,07 enquanto a sua mulher CC, também reformada, aufere mensalmente a quantia de €413,99. Em bom rigor, o agregado familiar aufere mensalmente €746,06, quantia essa, manifestamente insuficiente, para fazer face aos custos inerentes às doenças crónicas de que padece o Réu e ainda para obter novo locado tendo em conta os valores actualmente praticados no mercado do arrendamento. Não se entende assim como se poderá afastar do locado, aqueles que, ao longo de 35 anos, promoveram a sua manutenção, garantindo e zelando sempre pela sua conservação. Não se compreende, como poderá o locado vir a ser entregue à ora Recorrida, depois de esta ter, durante mais de trinta anos, consentido na sua ocupação pelo ora recorrente, oferecendo-lhe deste modo, ilusórias expectativas sobre a sua futura permanência na sua casa. Essa anuência é de tal forma manifesta, que foi dado como provado, na douta sentença proferida pelo tribunal de 1.ª instância, no artigo 12.° dos factos provados, que ‘Desde 1979 que a Autora tem conhecimento de que o Réu reside no imóvel (...) com a sua família.’ Mais, é preciso não esquecer que o Recorrente sempre habitou o locado convencido de que seria o seu legítimo arrendatário, como se comprova aliás, pelo seu comportamento irrepreensível ao longo dos últimos 35 anos. Note-se, que tal como ficou provado artigo 10.º da matéria assente, desde 1979 que o Réu paga as rendas, deslocando-se para o efeito, a estabelecimento comercial sito em Lisboa, propriedade dos pais da ora recorrida. Rendas essas que sempre foram recebidas sem qualquer dissensão, quer por parte do primitivo Senhorio, como por parte da sua filha, ora Recorrida. Na verdade, face ao circunstancialismo acima descrito, o ora Recorrente foi já obrigado a endossar ao Presidente da Câmara Municipal de Cascais, a 8 de Outubro de 2010, uma carta requerendo habitação social tendo obtido resposta negativa. Em suma, a manutenção da decisão proferida pelo tribunal ‘a quo’ implica graves custos sociais, uma vez que serão despejados do seu locado, dois idosos, um deles, vítima de duas doenças crónicas, sem quaisquer meios de subsistência que não sejam os resultantes das suas parcas pensões, sem quaisquer perspectivas de subsistência condigna e despojados da tutela das suas legítimas expectativas.”

De seguida produz alegações quanto ao mérito do julgado.

Antes do mais dir-se-á que alguns dos factos acima elencados pelo recorrente – v.g. idade, doença e rendimentos – não poderão ser considerados já que as instâncias não os deram por assentes.

Não foram produzidas contra alegações.

Sem precedência de vistos, cumpre conhecer.
1. Revista excepcional e relevância social.
2. Conclusões.

1 Revista excepcional e relevância social.

1.1 Perfilada, que surge, a dupla conformidade (acórdão recorrido a conter confirmação unânime e irrestrita do decidido pela 1.ª instância) a revista comum/regra só é de admitir se verificado algum dos requisitos do n.º 1 do artigo 721-A, “ex vi” do n.º 3 do artigo 721.º, ambos do Código de Processo Civil.

Então, o recorrente tem o ónus de alegar, e demonstrar, perante este Colectivo a presença desse(s) requisito(s) nos termos dos n.ºs 2 e 3 do primeiro preceito citado.

E foi o que o impetrante fez ao alegar, desde logo, o circunstancialismo da alínea b) do n.º 1.

1.2 Tal traduz-se em estarem em causa “interesses de particular relevância social”.

Quanto a este requisito, o Colectivo já afirmou ser necessário que estejam em causa valores sociais, culturais, éticos ou de conduta, com a virtualidade de poder ser posta em causa a eficácia do direito ou a sua aplicação casuística ou que tenham um impacto mediático susceptível de causar intranquilidade ou descredibilizar o funcionamento das instituições. (cfr. “inter alia”, os Acórdãos proferidos nos P.ºs 725/08 – 2TVLSB.L1.S1; 3401/08 – 2TBCSC.L1.S1 e 1195/08 0TBBRR.L1.S1; 111/09 – 7BMRA.E1.S1; 9630/08 – 1TBMAI.AP1 e 1282/08 – 5TVLSB.L1).

Como se escreveu no Acórdão desta Formação (P.° 216/09. 4TVLSB- A.L1.S1) será “uma situação em que possa haver uma colisão de uma decisão jurídica com valores sócio culturais dominantes que a devam orientar e cuja eventual ofensa possa suscitar alarme social determinante de profundos sentimentos de inquietação que minem a tranquilidade de uma generalidade de pessoas, situações em que, nomeadamente, fique em causa a eficácia do direito e a sua credibilidade, por se tratar de casos em que há um invulgar impacto na situação da vida que a norma, ou normas jurídicas, em apreço vise(m) regular, ou em que exista um interesse comunitário que, pela sua peculiar importância, pudesse levar, por si só, à admissão da revista por os interesses em jogo ultrapassarem significativamente os limites do caso concreto.”

1.3 Mas, além do exposto, e como acima referimos, o recorrente vem agora alegar factos que as instâncias não deram por assentes o que não podia fazer.

Para verificar o requisito que estamos a apreciar há que, na ponderação do pedido e da causa de pedir, atentar na matéria de facto definitivamente assente pelas instâncias, pois o que se busca é a admissão de um recurso de revista e o Supremo Tribunal de Justiça tem limitadíssimos, e excepcionais, poderes em sede de julgamento dos factos limitando-se, em regra, a aplicar o direito à materialidade fixada pelo juízo “a quo” - artigos 729.° e 722.° n.° da lei adjectiva.

Ora, não resulta da factualidade assente a idade da recorrente e, no mais, vê-se apenas que ocupa prédio destinado a habitação, há pelo menos 30 anos.

Parece evidente que tal não basta para considerar que, na questão “sub judice”, estejam em causa “interesses de particular relevância social”.

Como se disse, e agora se reitera, entende-se que, na densificação deste conceito deverá fazer-se apelo à “repercussão (até alarme, em caso limite), larga controvérsia, por conexão com valores sócio-culturais, inquietantes implicações politicas que minam a tranquilidade ou, enfim, situações que põem em causa a eficácia do direito e põem em dúvida a sua credibilidade, quer na formulação legal, quer na aplicação casuística.” (Acórdão deste Colectivo no P.° 725/08 — 2 TVLSB L1.S1; no mesmo sentido o Acórdão proferido no P.° 3401/08. 2TBCSC.L1.S1).

Também o Supremo Tribunal Administrativo considera inseríveis neste requisito os casos em que há um “invulgar impacto na situação da vida que a norma ou normas jurídicas em apreço visam regular” ou “um interesse comunitário que, pela sua peculiar importância pudesse levar, por si só, à admissão de revista por os interesses em jogo ultrapassarem significativamente os limites do caso concreto”.

Por isso é que o Dr. Armindo Ribeiro Mendes, considerando-o muito vago e flexível, deixa o seu preenchimento para a casuística pela dificuldade de estabelecer critérios para a sua delimitação. (in “A Reforma de 2007 dos recursos cíveis e o Supremo Tribunal de Justiça”, separata dos “Estudos Comemorativos dos 10 anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa”, II, 565).

Também o Prof. Vieira de Andrade, agora no âmbito do direito processual administrativo, considera os conceitos homólogos “fortemente indeterminados” (in “A Justiça Administrativa (Lições)”, 2006, p. 449 e, no mesmo sentido, o Prof. Sérvulo Correia — “Direito do Contencioso Administrativo”, 2005, 1, 697).

O conceito de meros “interesses de particular relevância social” que foi consagrado na lei triunfou sobre o projectado pela Comissão presidida pelo Dr. Miguel Galvão Telles (acolhido na Proposta de Lei n.° 124/2006) que se referia a questão que versasse sobre “interesses imateriais de particular relevância social”.

O Prof. Lebre de Freitas e o Dr. A. Ribeiro Mendes admitem poder ser ponderada a “importância mediática” (in “Código de Processo Civil Anotado”, 2. ed., 3.° Tomo 1, 155) o que, só por si, é inaceitável sob pena de deixar ao critério dos “media”, ou ao seu mais fácil acesso pelas partes, a natureza de socialmente relevante de uma questão.

Continuamos, pois, e como acima deixámos dito, a aceitar um enquadramento conceptual exemplificativo de situações geradoras de atendível relevância social, para aferir da sua verificação no caso concreto.

1.4 Aqui chegados, lógico é, e como se disse, concluir pela sem razão do recorrente.

Muito embora se possa perfilar uma situação subjectivamente delicada por ser posta em causa a ocupação de uma fracção destinada à habitação, tal não basta para conferir relevância social alargada a este caso.

A assim não se entender, passaria a ser regra que todas as acções em que fosse decretado um despejo, ou determinada a restituição de um prédio reivindicado, estarem a ser apreciadas questões em que estivesse em causa um interesse de particular relevância social.

Ademais, o legislador já acautelou, genericamente, algumas dessas situações (n.° 3, alínea a) do artigo 678.° do Código de Processo Civil), garantindo-lhes sempre um duplo grau de jurisdição.

Mas as mesmas, só por si, não justificam a revista excepcional por não serem, sem mais, inseríveis na situação da alínea b) do n.° 1 do artigo 721-A.

2 - Conclusões

Pode agora concluir-se que:

a) O requisito da alínea b) do n.° 1 do artigo 721-A do Código de Processo Civil — estar em causa interesse de particular relevância social — tem de ser alegado e motivado pelo recorrente que procurará convencer o Tribunal da sua indiciação.

b) Tratando-se de conceito muito indeterminado a sua densificação será feita casuisticamente, na ponderação de um enquadramento conceptual exemplificativo para o qual, além do mais, releva a repercussão (em situação limite, o alarme) a larga controvérsia, por conexão com inquietantes valores sócio culturais, perturbadoras implicações politicas ou outras situações que questionem a eficácia ou credibilidade do direito.

c) Na verificação do requisito há que ter em conta o pedido, a causa de pedir da lide e a matéria de facto assente pelas instâncias.

d) Tratando-se de acção de reivindicação em que o Réu é condenado a entregar a fracção de habitação que ocupa, o facto de alegar ter muita idade, ser doente, que ali reside há anos e tem precária situação económica, não basta para que se considere estar em causa questão de particular relevância social pois, ainda que a provar-se a factualidade descrita, trata-se de caso que ocorre com alguma frequência e onde apenas está em causa uma situação subjectiva do recorrente, sem impacto social ou mesmo comunitário.

Do exposto, resulta que acordem não admitir a revista excepcional.

Custas pelo recorrente, com 3 UC de taxa de justiça, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Supremo Tribunal de Justiça,

Sebastião Póvoas (Relator)

Pires da Rosa

Silva Salazar