ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
319/10.2PGALM.L1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 10/26/2011
SECÇÃO 3ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL RECURSO PENAL
DECISÃO NEGADO PROVIMENTO
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR OLIVEIRA MENDES

DESCRITORES HOMICÍDIO
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
UNIÃO DE FACTO
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
CULPA
ILICITUDE
PREVENÇÃO ESPECIAL
ARREPENDIMENTO
REFORMATIO IN PEJUS
MEDIDA CONCRETA DA PENA

SUMÁRIO

I - O instituto da atenuação especial da pena tem em vista casos especiais expressamente previstos na lei, bem como, em geral, situações em que ocorrem circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores ao crime que diminuem de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade de pena – art. 72.º, n.º 1, do CP.
II - Pressuposto material da atenuação especial da pena é, pois, a ocorrência de acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção, sendo certo que tal só se deve ter por verificado quando a imagem global do facto, resultante das circunstâncias atenuantes, se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo. Por isso, a atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar.
III - Trata-se, assim, de uma válvula de segurança, só aplicável a situações que, pela sua excepcionalidade, não se enquadram nos limites da moldura penal aplicável ao respectivo crime, ou seja, a situações em que se mostra quebrada a relação/equivalência entre o facto cometido e a pena para o mesmo estabelecida, consabido que entre o crime e a pena há (deve haver) uma equivalência.
IV - Do factualismo apurado resulta que ao crime de homicídio cometido está subjacente o inconformismo da arguida que, após um relacionamento análogo ao dos cônjuges com a vítima, durante 8 anos, não aceitou que este dela se separasse e iniciasse novo relacionamento com outra mulher, o que a afectou emocionalmente, conduzindo-a a um estado deprimido.
V - O contexto em que a arguida se determinou e dispôs a cometer aquele facto delituoso nada tem de excepcional, consabido que a separação conjugal, conquanto constitua evento perturbador na vida dos casais, faz parte do nosso quotidiano. Não deve nem pode, pois, considerar-se acentuadamente diminuída a culpa da arguida, nem a ilicitude do facto ou a necessidade da pena, tanto mais que a vítima, quer antes quer depois da separação, nenhum comportamento ou atitude assumiu susceptíveis de minimizar o comportamento delituoso daquela e de mitigar a sua responsabilidade.
VI - O mesmo se dirá das demais circunstâncias invocadas, primariedade, assunção do crime, apresentação à autoridade e arrependimento sincero, circunstâncias que, embora mitiguem a culpa da arguida e diminuam a necessidade da pena, não justificam, de modo algum, a utilização do instituto da atenuação especial. A verdade é que a imagem global do facto, pese embora a ocorrência de todas aquelas circunstâncias, apresenta-se com uma elevada gravidade, merecendo da comunidade frontal reprovação e forte censura.
VII - A omissão na decisão de facto proferida em 1.ª instância do arrependimento manifestado pela arguida em nada a prejudicou, já que em sede de determinação da medida da pena foi naquela instância expressamente considerada tal circunstância, tendo sido a mesma incluída no elenco das circunstâncias que a seu favor militam.
VIII - Deste modo, tendo ambas as instâncias (1ª e Relação), nas respectivas decisões, considerado aquele concreto facto relativo ao arrependimento manifestado pela arguida, muito embora na 1.ª instância não haja sido incluído na decisão de facto proferida, é evidente que, independentemente da posição que se tome a propósito da interpretação e alcance do princípio da proibição de reformatio in pejus previsto no n.º 1 do art. 409.º do CPP, não pode o mesmo princípio, in casu, considerar-se violado.
IX - A moldura penal aplicável ao crime de homicídio, por efeito da agravação prevista no art. 86.º, n.º 3, da Lei 17/09, de 06-05, situa-se entre 10 anos e 8 meses de prisão e 21 e 4 meses de prisão.
X - Culpa e prevenção constituem o binómio que o julgador terá de utilizar na determinação da medida da pena, a qual visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – arts. 71.º, n.º 1, e 40.º, n.º 1, do CP.
XI - A culpa como expressão da responsabilidade individual do agente pelo facto e como realidade da consciência social e moral, fundada na existência de liberdade de decisão do ser humano e na vinculação da pessoa aos valores juridicamente protegidos (dever de observância da norma jurídica), é o fundamento ético da pena e, como tal, seu limite inultrapassável – art. 40.º, n.º 2, do CP.
XII - Dentro deste limite a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, pelo que dentro da moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.
XIII - Tendo as instâncias fixado em 12 anos de prisão a pena aplicada ao crime de homicídio, não nos merece a mesma qualquer censura ou reparo, visto que se situa dentro das sub-molduras referidas, encontrando-se muito próxima, aliás, do mínimo legal aplicável.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL

                                         

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

No âmbito do processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 319/10.2PGALM, do 3º Juízo Criminal de Almada, AA, com os sinais dos autos, foi condenada como autora material, em concurso real, de um crime de homicídio, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 131º, n.º 1, do Código Penal e 86º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 17/09, de 6 de Maio, e de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punível pelo artigo 86º, n.º 1, alínea c), da Lei n.º 5/06, de 23 de Fevereiro, na redacção dada pela Lei n.º 17/09, de 6 de Maio, na pena conjunta de 12 anos e 6 meses de prisão[1].

O Tribunal da relação de Lisboa, na sequência de recurso interposto pela arguida, aditou um facto à decisão proferida sobre a matéria de facto, no mais mantendo a decisão recorrida.

A arguida interpõe agora recurso para este Supremo Tribunal.

É do seguinte teor o segmento conclusivo da motivação apresentada:

A recorrente não se pode conformar com a decisão recorrida na medida em que o Tribunal “a quo” considerou que a recorrente não deveria beneficiar de nenhuma causa de atenuação especial da pena.

A decisão recorrida considerou, com relevo para esta questão concreta, como provados os factos com os números 1, 2, 3, 4, 6, 14, 25, 26, 29 e 30.

Da factualidade dada como provada pelo Tribunal recorrido, dúvidas não restam quanto ao excepcional relevo das condições atenuantes da culpabilidade da arguida, bem como à sua personalidade e ausência de antecedentes criminais nesta matéria.

Dizer-se que a única coisa que a vítima fez foi repelir verbalmente a arguida é manifestamente desajustado e fica bastante aquém da realidade dos factos plasmada no acervo que consta como provado.

A atitude do ofendido tem de ser considerada e avaliada no contexto geral plasmado na factualidade dada como provada.

Do mesmo modo que a atitude da arguida tem, igualmente, que ser avaliada, ponderada e sopesada tomando em linha de conta todos os factos anteriores ao momento fatídico; todos os factos que levaram ao momento fatídico.

Ressalta com evidente clareza do acervo da factualidade dada como provada que a recorrente praticou actos demonstrativos de arrependimento sincero – alínea c) do n.º 2 do artigo 72º do C.P..

Desvalorizar a conduta da recorrente do modo como fez a decisão recorrida faria presumir que todos os arguidos se entregam às autoridades depois de cometerem crimes, que todos os arguidos confessam desde a primeira hora os factos delituosos e que todos os arguidos entram em depressão profunda após o cometimento dos factos.

A conduta da recorrente, desde o momento imediatamente posterior à deflagração dos projécteis, é impressivamente denotadora do arrependimento que desde logo a acometeu.

Todos os factos considerados como assentes no caso sub judice também são de molde a concluir-se que o arrependimento sentido pela recorrente é de tal modo profundo e marcado que justifica se conclua pela diminuição sensível da sua culpa e, logo, pela aplicação da atenuação especial da pena do recorrente.

Ainda que assim não se considere, sempre se dirá que a decisão recorrida ignorou por completo a alegação da recorrente de que as circunstâncias anteriores e contemporâneas ao crime são de molde a atenuar de forma acentuada a “ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena” – cf. n.º 1 do artigo 72º do CP..

Nem uma linha do acórdão recorrido foi dedicada à apreciação desta alegação da recorrente nem aos factos que emergem da factualidade dada como provada de que indubitavelmente resulta que a recorrente se encontrava numa situação de sofrimento intenso e profundíssimo.

Face ao exposto, quanto às circunstâncias anteriores, posteriores e contemporâneas o crime, as mesmas consubstanciam um quadro de tal relevância atenuativa que crê a recorrente estarem preenchidos, neste caso concreto, os requisitos da atenuação especial da pena.

Ao não ter determinado a atenuação especial da pena que aplicou à ora recorrente, o Tribunal recorrido violou o disposto no artigo 72º, do CP..

O Tribunal recorrido condenou a ora recorrente numa pena de prisão de 12 anos pela prática do crime de homicídio simples p. e p. pelo n.º 1 do artigo 131º do CP com a agravação prevista nos n.ºs 3 e 4 do artigo 86º da Lei n.º 17/06, de 6 de Maio.

Tendo em conta os imperativos constantes do n.º 2 do artigo 40º e do n.º 1 do artigo 70º do CPP, a pena a aplicar deve ser encontrada em função da culpa do agente (que constitui o seu limite inultrapassável) e as exigências de prevenção (geral e especial) que se façam sentir in casu.

Pelo que em sede de prevenção especial, não podia o Tribunal “a quo” ter desvalorizado a possibilidade de reintegração da recorrente.

O que conjugado com as circunstâncias relativas ao grau de ilicitude e de culpa da recorrente, bem como de execução do crime já anteriormente referidas, determinavam que à recorrente tivesse sido aplicada uma pena substancialmente inferior.

O grau de ilicitude do facto e da culpa da arguida não são, como pretende o Tribunal “a quo”, elevados; toda a sequência fáctica dos acontecimentos é bem demonstrativa do inverso.

Se é verdade que as exigências de prevenção geral no que toca aos crimes de homicídio se revelam elevadas é verdade também que, neste caso, não se trata de qualquer homicídio que engrossa as estatísticas nacionais sobre criminalidade violenta, pelo que qualquer consideração acerca do aumento da criminalidade violente no nosso país está, do nosso ponto de vista, deslocada nesta sede.

Não poderia ter sido ignorada a especial fragilidade em que se encontrava a recorrente no momento da prática dos factos – fragilidade psicológica e física.

Do mesmo passo, as exigências de prevenção especial são especialmente diminutas neste caso, reclamando a aplicação à arguida de uma pena que permita a continuidade da vivência social e familiar – é absolutamente seguro afirmar que o risco de a recorrente voltar a praticar factos a estes semelhantes é nulo.

A recorrente dispõe comprovadamente de capacidades pessoais que permitem aventar uma futura sã integração no tecido social até porque conduziu sempre a sua vida de um modo exemplar, sem qualquer tipo de antecedente criminal.

A singularidade do comportamento da recorrente num percurso de vida totalmente submetido ao cumprimento dos imperativos ético-legais que sobre si impendem merece consideração especial.

A recorrente não ignora que tem ainda um longo caminho a trilhar no que concerne à sua, dentro do possível, reabilitação psíquica.

Mas também o trilhar deste caminho, elemento nodular de uma saudável reinserção social, apenas será bem sucedido com a aplicação à recorrente de uma pena de prisão substancialmente inferior à que lhe foi aplicada.

Pelo que, face a todos os elementos que se encontram reflectidos na decisão recorrida, a pena aplicada à recorrente deve ser substancialmente inferior, situando-se no limite mínimo legalmente previsto.

Ao não o ter feito a decisão recorrida violou o disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 40º e no artigo 71º, ambos do Código Penal.

A decisão recorrida decidiu conceder parcial provimento ao recurso interposto pela arguida tendo decidido que deveria incluir-se no acervo da factualidade dada como provada que:

31. A arguida manifestou arrependimento”.

Porém, de tal circunstância não retirou o Tribunal recorrido qualquer consequência ao nível da medida concreta da pena que aplicou à recorrente pelo que, embora a factualidade dada como assente integre agora um facto novo, altamente favorável à arguida, a pena que lhe foi aplicada não sofreu qualquer modificação.

Dispõe o artigo 409º do CPP que o tribunal não pode alterar, em prejuízo do arguido, a espécie ou a medida da sanção constante da decisão recorrida quando dela apenas tenha interposto recurso o arguido e/ou o Ministério Público no exclusivo interesse do arguido.

Ora, para além da situação que expressamente se encontra descrita no normativo em causa, tem sido entendido – e bem, considera a recorrente, que é ainda uma decorrência do princípio da proibição da reformatio in pejus a proibição de manutenção da mesma pena quando se verifica uma desagravação da ilicitude, da culpa ou do próprio crime em sede de recurso.

E é nesta medida que a decisão recorrida viola o princípio da reformatio in pejus: por via da decisão recorrida procedeu-se à alteração da factualidade dada como provada em sentido claramente mais favorável para a arguida, ora recorrente, mas manteve inalterada a pena que lhe foi aplicada.

Assim, na realidade, a manutenção da medida da pena aplicada à recorrente redunda num agravamento do tratamento penal que lhe havia sido dado em 1ª instância.

Ao decidir neste sentido o Tribunal recorrido violou o disposto no artigo 409º do CPP.

Na contra-motivação o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:

1. A decisão recorrida atendeu a todas as circunstâncias relevantes para a determinação da medida da pena e observou os critérios definidos nos artigos 70º e 71º, do Código Penal;

2. As circunstâncias atenuativas que se verificam no caso não têm a virtualidade de diminuir por forma acentuada a ilicitude do facto, nem a culpa da arguida ou a necessidade da pena, não configurando uma situação excepcional que possa/deva ser reconduzida ao instituto de atenuação especial da pena previsto no artigo 72º, do Código Penal.

Nesta instância a Exma. Procuradora-Geral Adjunta limitou-se a apor o seu visto, por o recorrente haver requerido a realização de audiência.

Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre agora decidir.

                                          *

Começando por delimitar o objecto do recurso verifica-se que a arguida submeteu à apreciação deste Supremo Tribunal as seguintes questões:

- Atenuação especial da pena;

- Medida concreta da pena aplicada ao crime de homicídio e violação do princípio da proibição de reformatio in pejus.

As instâncias consideraram provados os seguintes factos[2]:

«1- A arguida AA viveu em condições análogas às dos cônjuges com BB durante cerca de 8 anos, dedicando-se ambos ao comércio de têxteis, tendo, para o efeito, um armazém, em ....

2- Desde que iniciou a relação amorosa com BB, a arguida cortou o contacto com a sua família, com excepção do filho, em virtude de esta não aprovar tal relacionamento.

3- Em Janeiro de 2010, o casal – arguida e BB – separou-se, por iniciativa deste último, que abandonou o lar conjugal, sem dar qualquer explicação à arguida acerca dos motivos da separação.

3- A arguida AA, porém, nunca se conformou com a separação e telefonou insistentemente para BB, para obter do mesmo uma explicação sobre o motivo da separação, tendo este, no dia seguinte à sua saída de casa, no decurso de um contacto telefónico, dito à arguida que não a queria mais e que não regressava para casa.

4- Em data não concretamente apurada, mas ainda no mês de Janeiro de 2010, a arguida teve conhecimento, através dos seus fornecedores de artigos têxteis, que BB havia aberto um armazém, sito na Rua ..., dedicando-se ao mesmo ramo de actividade de comercialização de artigos têxteis.

5- A partir dessa altura, a arguida diariamente deslocava-se até ao armazém de BB, onde também o mesmo pernoitava, quase sempre antes das 09h30m, procurando falar com ele, com a intenção de saber o porquê da separação, alturas em que BB, ao vê-la, ou ignorava a arguida e fechava a porta do armazém, ou mandava a arguida embora, tendo-se envolvido ambos, algumas vezes, em discussão verbal.

6- No dia 31 de Janeiro de 2010, a arguida procurou BB no armazém deste, no ... e, após breve discussão, arremessou uma pedra em direcção da montra do armazém, partindo o vidro da mesma.

7- No dia seguinte, a arguida procurou novamente BB no armazém deste, no ..., e este, ao vê-la, disse-lhe para se ir embora e fazer a vida dela que ele faria o mesmo.

8- Entretanto, BB, em data não concretamente apurada, mas situada em Fevereiro de 2010, iniciou um relacionamento amoroso com CC, escriturária de uma empresa de artigos têxteis, sedeada no Norte do País, fornecedora, à data, da arguida e de BB.

9- No dia 22 de Março de 2010, a arguida deslocou-se ao Norte do País, juntamente com o seu filho, para abastecer-se de artigos têxteis junto dos seus fornecedores.

10- Por razões não concretamente apuradas, a arguida disse ao seu filho para sair do interior da viatura automóvel na qual se haviam feito transportar, e, conduzindo-a, deslocou-se para o seu armazém, em ..., deixando o seu filho apeado.

11- Nessa noite, a arguida muniu-se de um revólver de marca Amadeo Rossi, calibre .32 com número rasurado, que BB havia deixado no armazém quando ainda vivia maritalmente com a arguida.

12- No dia 23 de Março de 2010, pelas 09h00m, a arguida AA dirigiu-se ao armazém de artigos têxteis, de BB, sito na Rua ..., nº 12, no ..., em ..., munida do referido revólver que se encontrava municiado com seis munições de calibre .32 S&W.

13- Uma vez aí chegada a arguida estacionou o veículo automóvel no qual se fez transportar até ao local e, com a arma na mão, deslocou-se ao referido armazém, onde sabia encontrar-se BB.

14- Nesse instante, a arguida entrou pela porta do armazém e encontrou BB ao cimo das escadas de acesso ao interior do referido armazém, o qual a terá repelido verbalmente.

15- De imediato a arguida Isaura, que empunhava na mão o revólver, apontou o mesmo na direcção de BB e desferiu, com recurso a esta arma, três disparos.

16- Um dos projécteis atingiu BB na face anterior do hemitorax esquerdo, tendo entrado no corpo daquele abaixo da 10ª costela, feito laceração dos lobos esquerdo e direito do fígado e perfuração do pulmão esquerdo e saiu da cavidade torácica pelo 10º espaço intercostal direito, tendo-se alojado no músculo a face posterior esquerda do hemitorax.

17- A arguida apercebeu-se que tinha atingido BB com a arma por si utilizada e, de imediato, deixou a referida arma no chão e ausentou-se apeada do local.

18- De seguida, após manter contacto telefónico com o seu filho, a quem contou o sucedido, este veio ao seu encontro, tendo-se, posteriormente, apresentado nas instalações da Polícia Judiciária.

19- As agressões perpetradas em BB causaram-lhe directa e necessariamente: infiltração hemorrágica dos músculos da parede anterior do hemitórax esquerdo; laceração da face inferior do lobo esquerdo e direito do fígado; ferida da veia porta; ferida transfixiva do hemi diafragma direito; ferida transfixiva do lobo inferior do pulmão direito; atalectasia do pulmão direito; laceração do 10º espaço intercostal direito; infiltração hemorrágica dos músculos da parede torácica posterior e sofusões hemorrágicas sub endocárdicas.

20- As lesões traumáticas torácicas descritas em 19 dos factos provados  foram causa directa, necessária e adequada da morte de BB.

21- Ao apontar na direcção do corpo de BB e disparar, por três vezes o revólver contra BB, a arguida AA previu e quis que os projécteis disparados atingissem a vítima em órgãos vitais que provocassem a sua morte.

22- A arguida conhecia as características, uso e modo de funcionamento da arma de fogo e das respectivas munições e não era titular de licença de uso e porte de arma.

23- Sabia a arguida que, nas condições descritas em 22 dos factos provados não lhe era permitida a detenção do respectivo revólver.

24- A arguida agiu, em todas as descritas circunstâncias, de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que as suas respectivas condutas são proibidas e punidas por lei.

25- A arguida, desde que BB terminou o relacionamento com a mesma, ausentando-se do lar conjugal, e por não se conformar com a separação do casal, ficou deprimida, deixou de se alimentar convenientemente, tendo perdido cerca de 20 kg de peso até ao momento da prática dos factos.

26- Após o falecimento de BB, a arguida começou a ser acompanhada por médico psiquiatra apresentando sintomas depressivos graves, tais como incapacidade de lidar com situações da vida, perda de interesse pela vida e ideação suicida.

27- A arguida é divorciada e tem um filho com 24 anos de idade, com ela residente.

28- É comerciante de artigos têxteis mas, presentemente, não se dedica a tal actividade por força da medida de coacção a que se encontra sujeita.

29- A arguida é considerada, por quem com ela se relaciona, como uma pessoa séria e honesta.

30- Não são conhecidos antecedentes criminais à arguida.

31- A arguida manifestou arrependimento.»

                                         *

Atenuação especial da pena

Alega a arguida que as circunstâncias atenuantes de que beneficia, anteriores, contemporâneas e posteriores ao crime, com destaque para o contexto em que os factos delituosos foram perpetrados, reveladores da situação de intenso e profundo sofrimento em que se encontrava, a sua personalidade, reflectida na assunção do crime, apresentação à autoridade e arrependimento sincero, bem como na profunda depressão em que entrou, a que acresce a sua primariedade, justificam a utilização do instituto da atenuação especial da pena, visto que diminuem de forma acentuada a ilicitude do facto, a sua culpa e a necessidade da pena.

O instituto da atenuação especial da pena, como o próprio denominativo sugere, tem em vista casos especiais expressamente previstos na lei, bem como, em geral, situações em que ocorrem circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores ao crime que diminuem de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade de pena – artigo 72º, n.º1, do Código Penal[3].

Pressuposto material da atenuação especial da pena é, pois, a ocorrência de acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção, sendo certo que tal só se deve ter por verificado quando a imagem global do facto, resultante das circunstâncias atenuantes, se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo[4].

Por isso, como defende aquele insigne penalista, a atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excepcionais pode ter lugar.

Trata-se assim de uma válvula de segurança, só aplicável a situações que, pela sua excepcionalidade, não se enquadram nos limites da moldura penal aplicável ao respectivo crime, ou seja, a situações em que se mostra quebrada a relação/equivalência entre o facto cometido e a pena para o mesmo estabelecida, consabido que entre o crime e a pena há (deve haver) uma equivalência[5].

Do factualismo apurado resulta que ao crime de homicídio cometido está subjacente o inconformismo da arguida AA que, após um relacionamento análogo ao dos cônjuges com a vítima BB durante oito anos, não aceitou que este dela se separasse e iniciasse novo relacionamento com outra mulher, o que a afectou emocionalmente, conduzindo-a a um estado deprimido.

O contexto em que a arguida se determinou e dispôs a cometer aquele facto delituoso, ao contrário do alegado, nada tem de excepcional, consabido que a separação conjugal, conquanto constitua evento perturbador na vida dos casais, faz parte do nosso quotidiano.

Não deve nem pode, pois, considerar-se acentuadamente diminuída a culpa da arguida AA, nem a ilicitude do facto ou a necessidade da pena, tanto mais que a vítima, quer antes quer depois da separação, nenhum comportamento ou atitude assumiu susceptíveis de minimizar o comportamento delituoso daquela e de mitigar a sua responsabilidade.

O mesmo se dirá das demais circunstâncias invocadas, primariedade, assunção do crime, apresentação à autoridade e arrependimento sincero, circunstâncias que, conquanto mitiguem a culpa da arguida AA e diminuam a necessidade da pena, não justificam, de modo algum, a utilização do instituto da atenuação especial.

A verdade é que a imagem global do facto, pese embora a ocorrência de todas aquelas circunstâncias, apresenta-se com uma elevada gravidade, merecendo da comunidade frontal reprovação e forte censura.

                                        

Medida concreta da pena aplicada ao crime de homicídio e violação do princípio da proibição de reformatio in pejus

Alega a arguida que o Tribunal da Relação não retirou qualquer consequência, ao nível da medida concreta da pena, da circunstância de haver alterado a decisão de facto proferida em 1ª instância, aditando a esta o facto de a recorrente haver manifestado arrependimento, o que constitui violação do princípio da proibição de reformatio in pejus, uma vez que aquele novo facto ao desagravar a culpa, a ilicitude e o próprio crime, deveria ter conduzido a um desagravamento da pena, sem o qual se terá de considerar agravado o tratamento penal de que foi objecto em 1ª instância.

Mais alega que todas as circunstâncias ocorrentes, com destaque para as circunstâncias atenuantes de que beneficia, as quais diminuem o seu grau de culpa, a ilicitude do facto e a necessidade da pena, evidenciando nulas exigências de prevenção especial e fazendo antever uma rápida reintegração social, impõem a aplicação, ao crime de homicídio, de uma pena próxima do limite mínimo da respectiva moldura penal.

Começando por apreciar a questão atinente à eventual violação do princípio da proibição de reformatio in pejus, dir-se-á que, conforme expressamente consta da decisão recorrida, a omissão na decisão de facto proferida em 1ª instância do arrependimento manifestado pela arguida AA em nada a prejudicou, já que em sede de determinação da medida da pena foi naquela instância expressamente considerada tal circunstância, tendo sido a mesma incluída no elenco das circunstâncias que a seu favor militam.

Deste modo, tendo ambas as instâncias nas respectivas decisões considerado aquele concreto facto relativo ao arrependimento manifestado pela arguida AA, muito embora na 1ª instância não haja sido incluído na decisão de facto proferida, é evidente que, independentemente da posição que se tome a propósito da interpretação e alcance do princípio da proibição de reformatio in pejus previsto no n.º 1 do artigo 409º do Código de Processo Penal, não pode o mesmo princípio, in casu, considerar-se violado.

Passando à medida concreta da pena aplicada ao crime de homicídio, começar-se-á por assinalar que a moldura penal aplicável, por efeito da agravação prevista no artigo 86º, n.º 3, da Lei n.º 17/09, de 6 de Maio, situa-se entre 10 anos e 8 meses e 21 anos e 4 meses de prisão.

Como é sabido, culpa e prevenção constituem o binómio que o julgador terá de utilizar na determinação da medida da pena, a qual visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artigos 71º, n.º 1 e 40º, n.º 1, do Código Penal.

A culpa como expressão da responsabilidade individual do agente pelo facto e como realidade da consciência social e moral, fundada na existência de liberdade de decisão do ser humano e na vinculação da pessoa aos valores juridicamente protegidos (dever de observância da norma jurídica), é o fundamento ético da pena e, como tal, seu limite inultrapassável – artigo 40º, n.º 2, do Código Penal[6].

Dentro deste limite a pena é determinada dentro de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, só então entrando considerações de prevenção especial, pelo que dentro da moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.

É este o critério da lei fundamental – artigo 18º, n.º 2 – e foi assumido pelo legislador penal de 1995[7], ao eleger como finalidades da punição a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, e ao impor como limite da pena a culpa.

Ora, tendo as instâncias fixado em 12 anos de prisão a pena aplicada ao crime de homicídio, não nos merece a mesma qualquer censura ou reparo, visto que se situa dentro das sub-molduras atrás referidas, encontrando-se muito próxima, aliás, do mínimo legal aplicável.

                                          *

Termos em que se acorda negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente, fixando-se em 7 UC a taxa de justiça.

                                         *

Supremo Tribunal de Justiça, 26 de Outubro de 2011

Oliveira Mendes (Relator)                                    

Maia Costa

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[1] - Foram cominadas à arguida as seguintes penas parcelares:
- crime de homicídio: 12 anos de prisão;
- crime de detenção de arma proibida: 1 ano de prisão.
[2] - O texto que a seguir se transcreve corresponde ao do acórdão de 1ª instância, com aditamento do facto que o Tribunal da Relação decidiu dar por provado, o qual consta do nº 31.
[3] - É do seguinte teor o n.º 1 do artigo 72º do Código Penal:
«O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
[4] - Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 306/307.

[5] - Sobre a equivalência entre o crime e a pena veja-se Francesco Carnelutti, El Problema de La Pena, 32/36.
[6] - A pena da culpa, ou seja, a pena adequada à culpabilidade do agente, deve corresponder à sanção que o agente do crime merece, isto é, deve corresponder à gravidade do crime. Só assim se consegue a finalidade político-social de restabelecimento da paz jurídica perturbada pelo crime e o fortalecimento da consciência jurídica da comunidade – Cf. Claus Roxin, Culpabilidad Y Prevención En Derecho Penal (tradução de Muñoz Conde – 1981), 96/98.

[7] - Vide Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – 3º Tema – Fundamento Sentido e Finalidade da Pena Criminal (2001), 104/111. Na esteira desta doutrina, entre muitos outros, o acórdão deste Supremo Tribunal de 04.10.21, na CJ (STJ), XII, III, 192.