ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
1468/10.2TBBRG.G1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 12/15/2011
SECÇÃO 2ª SESSÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO NEGADA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR JOÃO BERNARDO

DESCRITORES COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAMENTO (CE) 44/2001

SUMÁRIO
1 . São realidades diferentes, que podem não conduzir a situações coincidentes, a competência internacional dum tribunal e a determinação da lei interna a aplicar ao caso.

2 . No que diz respeito à competência internacional entre tribunais de países de Estados-Membros - não se questionando, quanto aos tribunais portugueses, a conformidade exigida pela parte final do artigo 8.º da CRP - deve aplicar-se o Regulamento (CE) n.º44/2001, do Conselho, de 22.12, em detrimento das Convenções de Bruxelas e de Lugano e, bem assim, das normas de origem interna, nomeadamente os artigos 61.º, 65.º, 65.º-A e 99.º do Código de Processo Civil.

3 . As competências especiais previstas no artigo 5.º, n.º1 do mesmo Regulamento não afastam a competência genérica, com base no domicílio dos demandados, prevista no n.º1 do artigo 2.º, determinando antes uma situação de competências alternativas.

4 . Havendo vários réus e verificando-se a conexão a que alude o artigo 6.º, n.º1, interpretada conforme o Acórdão do TJ, de 11.10.2007, proferido em recurso de reenvio prejudicial, apresentado por Högsta Domstolen (Suécia), basta que um deles tenha domicílio em Portugal para os tribunais portugueses serem internacionalmente competentes.



DECISÃO TEXTO INTEGRAL

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I –

No Tribunal Judicial de Braga, AA e mulher, BB, intentaram a presente acção declarativa, em processo comum, na forma ordinária, contra:

1) CC, e mulher, DD;

2) EE;

3) FF – Construções, Lda e

4) GG Constructions.

Alegaram, em síntese, que;

Contrataram com os réus a construção duma casa de habitação em França;

Os primeiro e segundo réus apresentaram-lhes um orçamento, datado de 20-10 -2006;

Referiram-lhes que, para fins exclusivamente fiscais, eram os sócios e titulares do capital da terceira ré e que, para adquirirem os materiais de construção necessários à projectada obra e cumprirem as demais obrigações previstas na legislação francesa iriam constituir uma sociedade, em França, tendo constituído a quarta ré de que são os únicos sócios;

Para a formalização de tal negócio, eles, autores, celebraram com os primeiro e segundo réus um contrato escrito intitulado “Contrato para a realização da construção de uma casa individual chaves na mão, situada em Morsang-Sur-Seine”, datado de 15 Março de 2007;

Nesse contrato, outorgaram como donos da obra, sendo a terceira ré a empreiteira, embora através da sua filial, a quarta ré;

Na verdade, embora figure no texto do contrato como outorgante a quarta ré, pelas razões que ficaram referidas, quem o subscreveu o foi o segundo réu, como representante da terceira ré, cujo carimbo foi aposto sobre a respectiva assinatura;

Acedendo a sucessivos pedidos de adiantamento de dinheiro, formulado pelos primeiro e segundo réus, pagaram-lhes e às sociedades rés, que os mesmos representam, a quase totalidade do preço ajustado, ou seja, a quantia 447.271,07 €;

Os primeiro e segundos réus pretenderam que lhes pagassem a parte restante do preço;

Como se recusaram a fazê-lo, os primeiro e segundos réus começaram a trabalhar com relutância, atrasando a execução da obra, de tal sorte que, na data prevista para a sua conclusão (04-12-2008), a mesma não estava concluída;

Por carta de 17-12-2008, assinada pelo seu ilustre mandatário, fixaram à terceira ré um prazo até ao final desse ano para a conclusão da obra;

 Nessa sequência, os réus abandonaram esta;

 Por carta de 04-02-2009, assinada pelo seu ilustre mandatário, dirigida à terceira ré, comunicaram-lhes que consideravam que o abandono da obra implicava o incumprimento definitivo do contrato de empreitada e que, por isso, o resolviam, com justa causa;

- Os trabalhos que os réus deixaram por executar importam em 218.450,00 €, podendo ser necessário um montante superior para concluírem a obra;

- Assim, uma vez que o preço era de 503.000,00 €, em face do montante que já lhes pagaram, os réus receberam a mais 160.421,00 €;

- Os primeiros réus são casados entre si, segundo o regime de comunhão geral de bens;

- O primeiro réu celebrou o contrato de empreitada, no exercício da sua actividade profissional de empreiteiro, a que se dedica com vista a obter lucros para prover ao sustento do seu agregado familiar;

- Os primeiro e segundo réus têm o centro da sua actividade em Portugal, onde residem, exercendo-a, quer em nome individual, quer através da terceira ré, ou, ainda, de ambos os modos, como sucedeu neste caso;

- Parte das facturas referentes aos pagamentos feitos foram emitidas em nome da terceira ré;

- A maior parte dos pagamentos foram efectuados a favor do primeiro réu, mediante transferência bancária e entrega de cheques, que eram depositados em contas tanto dele como da terceira ré;   

Pediram, em conformidade:

A condenação solidária dos réus a pagarem-lhes:

a) Uma indemnização pelo incumprimento definitivo e culposo do contrato de empreitada que com eles terão celebrado, correspondente ao excesso do preço que lhes pagaram em relação à obra realizada, acrescida de quantia igual à da diferença do preço convencionado para a conclusão da obra e o custo efectivo que a mesma vier a ter, esta a liquidar;

b) Uma compensação pelos danos não patrimoniais que, alegadamente, lhes causaram, a liquidar ulteriormente.

Os réus contestaram, invocando, na parte que agora interessa, a incompetência internacional do tribunal.

II –

Por despacho de fls. 342 a 348, foi declarada a incompetência internacional do Tribunal Judicial de Braga para conhecer do objecto da acção e, em consequência, foram os réus absolvidos da instância.

III –

Recorreram os autores e o Tribunal da Relação de Guimarães declarou o Tribunal Judicial de Braga competente.

IV –

Pedem revista agora os réus.

Concluem as alegações nos seguintes termos:

A) No caso, pela acção os autores pretendem ver reconhecido o incumprimento de um típico contrato de empreitada, consistindo a obrigação dos réus na construção, para os autores, de uma habitação, do tipo moradia unifamiliar, sita em Chemin des Basses Monteliévres, Morsang-Sur-Seine, França, sem vícios ou defeitos;

B) Os autores, maxime nos seus arts. 13.° e 14.° da petição inicial dizem que são os donos da obra e que as sociedades empreiteiras da sua moradia são a terceira e quarta rés, aquela com sede em Portugal, e esta última, com sede em França, sendo certo que o legal representante de ambas, o primeiro réu CC, a partir de 2007, passou a residir e a trabalhar neste pais e até aos dias de hoje;

C) A situação em referência é transnacional, pelo que se impõe analisar de acordo com as normas em vigor qual o Estado que irá exercer a função jurisdicional;

D) Os autores e os réus, nada estipularam, nem na data da celebração do contrato de empreitada, nem posteriormente, quanto ao foro aplicável para a resolução de eventuais litígios emergentes do mesmo;

E) O instrumento legal mais recente e em vigor nesta matéria, Regulamento (CE) 44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, preceitua, no artigo 5°, 1. a) "Em matéria contratual perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão; b) - no caso de prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados/,(sublinhado nosso);

F) Ou seja, o Regulamento (CE) 44/2001, estipula que em matéria contratual o Tribunal competente é o do lugar onde foi ou deve ser cumprida a prestação e, particularmente, no contrato de prestação de serviços, como in casu, o lugar onde os serviços foram prestados;

G) Saliente-se que, como refere Lima Pinheiro in "Direito Internacional Privado", relativamente a dois tipos contratuais da maior importância - a venda de bens e a prestação de serviços - o Regulamento veio introduzir uma dita "definição autónoma” do lugar do cumprimento das obrigações contratuais;

H) Estabelece que só releva, na venda de bens, o lugar de cumprimento da obrigação da entrega e, na prestação de serviços, o lugar de cumprimento da obrigação do prestador de serviços;

I) O local do cumprimento é, assim, e sem margem para dúvidas, o da execução da obra - França -, pelo que, o Tribunal internacionalmente competente para dirimir a questão do eventual incumprimento decorrente de um contrato de empreitada é o francês.

J) Já assim, sempre a conexão mais estreita de que fala a Convenção de Roma, ocorreria em França, designadamente porque é este o pais do lugar do cumprimento da obrigação - execução da obra -;

K) Acresce que, e não menos importante, o contrato de empreitada que vem sendo referido rege-se pela lei francesa, devendo ser apreciado pelos tribunais franceses, no que se refere à sua interpretação, execução e eventual incumprimento;

L) Uma vez que, insiste-se, foi celebrado naquele país, redigido em língua francesa, tem por objecto a realização de uma obra igualmente situada em França e teve por outorgantes uma sociedade de direito francês e cidadãos residentes naquele mesmo país.

M) Embora não se ignore que há normas de direito supraestadual em matéria de recolha de provas, é claro que a obtenção das mesmas, como sejam realização de perícia ao imóvel, inquirição de testemunhas (operários da construção civil em França), recolha de documentos junto das instituições bancárias francesas e de projectos de arquitectura e engenharia, será incomensuravelmente mais dispendioso e moroso para as partes, caso seja o Tribunal português a julgar a causa, para não falar da possibilidade de inspecção ao local que ficar arredada;

N) Sem prescindir, a atribuição de jurisdição a um Tribunal em função de uma certa área territorial tem em vista facilitar o exercício da sua actividade com o mínimo de custos materiais e humanos, sendo que o propósito das Convenções e Regulamentos Comunitários é, pois, o de tutelar o interesse do réu, eximindo-o ao ónus de superar dificuldades práticas à condução de uma lide em país estrangeiro;

O) Também por aqui, ressalta evidente, que caso o Tribunal Judicial de Braga viesse a ser o competente internacionalmente para dirimir esta questão _ o que não se concede -, os réus teriam grandes dificuldades na condução do processo, pois que o primeiro réu CC foi demandado porque outorgou contratualmente com os autores por si e, na qualidade de legal representante da terceira ré e da quarta ré, e este réu trabalha e reside em França e a quarta ré tem a sua sede em França;

P) Quanto aos restantes réus, a primeira ré mulher é demandada por estar casada com o primeiro réu e o segundo réu, filho destes, porque é sócio da terceira ré, ou seja, estes dois réus estão envolvidos no pleito colateralmente e, não têm capacidade para conduzir a lide em Portugal, por estarem completamente desfasados das eventuais negociações e/ou contratos celebrados com os autores, pelo seu marido e pai - primeiro réu;

Q) Assim, mesmo que viesse a ser entendido - o que não se concede - que in casu, era de aplicar a regra do Regulamento (CE) 44/2001 - do domicílio do réu - e, como há vários réus o Tribunal do maior número, pelas razões acabadas de mencionar, seria o Tribunal francês o internacionalmente competente para dirimir o presente pleito;

ORA,

R) O acórdão em crise atendeu apenas à regra de domicílio que - como é sabido - não é absoluta, por haver casos em que a acção deve ser instaurada em Tribunais de Estados-Membros diverso daquele onde o sujeito passivo tenha o seu domicílio ou sede;

S) Na determinação do foro deve ser sempre atendida a especialidade, em razão da especial conexão entre a jurisdição e o litígio, com vista a facilitar a administração da justiça;

T) Tendo em conta a natureza do caso em espécie entre as normais especiais releva a do disposto no art. 5.°, n.º 1 al. a) e 5.°, n.º1, al. b) do Regulamento que implicam o afastamento da aplicação das normas sobre a competência internacional dos Tribunais dos Estados Membros, nomeadamente as dos arts 65.° e 65.° -A e 74.°, todos do Código de Processo Civil;

U) Nesta conformidade, o Acórdão em crise, ao ter entendido que a regra do domicílio era absoluta, não teve em devida consideração haver casos em que a acção deve ser instaurada em Tribunal diverso do Tribunal do Estado-Membro onde o/s réus têm o seu domicílio, violando, assim, frontalmente as regras de cariz especial plasmadas no Regulamento (CE) n.º 44/2001, do Conselho de 22-12-2000, maxime os critérios especiais de competência legal na secção 2, do capítulo" - o citado n.º1, al. a), do art. 5.°.

Contra-alegaram os autores, concluindo que:

1. Encontra-se o douto Acórdão em crise, que revogou o julgado da primeira instância, elaborada na mais correcta apreciação dos factos trazidos aos autos e superior aplicação àqueles dos comandos legais respectivos;

2. Assim, não é passível de censura alguma, por respeitar os factos assentes e o direito respectivo;

3. Todavia e sem prescindir, conforme resulta do invocado na petição inicial, os primeiro e segundo Recorrentes têm o centro da sua actividade industrial sedeada em Portugal, onde residem, que exercem, quer em nome individual, quer através da terceira Recorrente, que tem a sua sede igualmente em Portugal.

4. A criação da quarta Recorrente deveu-se a motivos estratégicos, relacionados com a aquisição de materiais de construção em França, com vista à execução do contrato em apreço.

5. Os primeiro e segundo Recorrentes executaram a empreitada em causa, sem que para tal tivessem tido de criar qualquer estabelecimento em França, por causa do mesmo contrato.

6. Parte das facturas respeitante à descrita empreitada eram emitidas pela terceira Recorrente e os pagamentos eram feitos directamente pelos Recorridos, a maior parte das vezes, a favor do primeiro Recorrente, mediante transferência bancária e entrega de cheques, que eram depositados em contas bancárias, tanto do primeiro Recorrente como da terceira Recorrente, em Portugal.

7. Em suma e contrariamente ao expendido na douta sentença em crise, dos quatro demandados, a sociedade francesa é aquela que menos tem que ver com o negócio descrito nos autos.

8. Nada tendo sido estipulado no citado contrato de empreitada, nem posteriormente, relativamente ao foro aplicável para a resolução de litígios emergentes do mesmo, dúvidas não restam de que, segundo o critério geral de conexão estatuído no artigo 4°-1 e 2 da Convenção de Roma sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais de 1980, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 3/94, de 3 de Fevereiro, é o tribunal de Braga o competente para o conhecimento da questão em apreço.

9. Aliás e atendendo ao modo como a relação contratual em apreço se formou, conforme foi descrito na petição inicial, de acordo com os critérios de conexão e a demais legislação aplicável, a opção pelo foro do domicílio dos réus, feita pelos Recorridos, é absolutamente pertinente e o tribunal de Braga internacionalmente competente para apreciar esta acção.

10. Assim, o único desfecho possível traduz-se na confirmação do douto acórdão que, sem razão de qualquer espécie, se visa impugnar, uma vez que ao ser proferido, ter na devida conta a matéria de facto e haver procedido à aplicação do direito que a integra com o maior senso jurídico, exactidão, critério e justiça.

V –

A questão que de coloca no presente recurso cifra-se em saber se o Tribunal Judicial de Braga é competente ou incompetente internacionalmente para conhecer da presente causa.

VI –

A competência dos tribunais deve ser aferida tendo em conta os termos em que foi proposta a acção (cfr-se Manuel de Andrade, NEPC, 91 e Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, 1.º, 136). Nem a respeito deste ponto existe qualquer discussão entre as partes.

Assim, factualmente, há a ter em conta o que se referiu em I, que aqui, brevitatis causa, se dá como reproduzido.

Sendo certo que, conforme se refere na p.i., os primeiros três réus residem em morada situada na área de Braga, onde tem sede a primeira ré sociedade.

VII –

Logo à partida, há que distinguir entre:

Tribunal internacionalmente competente;

Lei interna aplicável na composição do litígio.

Dum lado, estão as regras de competência, previstas em leis de índole adjectiva e, no outro, as regras de direito internacional privado, basicamente constantes dos artigos 25.º e seguintes do Código Civil.

É certo que, habitualmente, existe coincidência. Os tribunais portugueses aplicam a lei portuguesa e os tribunais franceses a lei francesa.

Mas nada determina que assim seja necessariamente, podendo dar-se o caso de os tribunais dum país aplicarem leis estrangeiras, sem que isso interceda com a sua competência internacional. Basta, aliás, atentar-se no artigo 348.º do Código Civil, para não se poder concluir de outro modo.

Assim, a Convenção de Roma de 1980 Sobre a Lei aplicável às Obrigações Contratuais, reportando-se “in totum” à lei aplicável, não releva aqui.

Assim como não relevaria o Regulamento (CE) n.º593/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17.6.2008, se razões de direito intertemporal emergentes da conjugação entre a data do contrato aqui invocado e o disposto no artigo 28.º não o afastassem liminarmente.

VIII –

Quanto ao tribunal internacionalmente competente, existem vários diplomas e preceitos.

As Convenções de Bruxelas e de Lugano de cariz internacional, o Regulamento (CE) n.º 44/2001 do Conselho, de 22.12, de origem comunitária e os artigos 61.º, 65.º, 65.º-A e 99.º do Código de Processo Civil, de origem interna.

A Convenção de Bruxelas foi substituída, entre os Estados-Membros, pelo aludido Regulamento, nos termos do artigo 68.º, n.º1 deste. Não nos interessa, pois, aqui.

O Regulamento não substituiu a Convenção de Lugano, mas, sendo de aplicar aquele, não há que aplicar esta (Assim, Teixeira de Sousa, Estudos em Homenagem à Professora Magalhães Colaço, II, 685 e Dário Vicente, Sciencia Juridica, Tomo L1, Maio/Agosto de 2002, 377). No presente caso, quer Portugal, quer a França são Estados-Membros, neles tendo domicílio ou sede os demandados, pelo que, no plano das normas externas, é no diploma comunitário que temos que nos situar.

IX –

O artigo 8.º, n.º4 da Constituição da República Portuguesa determina que:

As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo Direito da União, com respeito pelos  princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático.

Esta referência aos “princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático” tem manifesta inspiração na posição assumida pelo Tribunal Constitucional Alemão no Acórdão de 29.5.1974 que constituiu e constitui um marco essencial na demarcação entre as normas de origem interna e de origem comunitária. Neste aresto o Tribunal considerou-se competente para declarar uma disposição de direito comunitário inaplicável pelas autoridades administrativas ou pelos órgãos jurisdicionais da República Federal da Alemanha desde que ela ofendesse um direito Fundamental garantido pela Constituição.

Temos, pois, em primeira linha, que olhar para eventual ofensa, no dizer da nossa Constituição, dos “princípios fundamentais do Estado de Direito Democrático”.

Um olhar – diga-se – com pouca relevância prática, porque estes “princípios fundamentais” coincidem, em grande parte, com a ideologia que subjaz à produção legislativa comunitária, não se gerando, por regra, conflitos.

E, no caso presente, é manifesto que o apontado Regulamento em nada belisca tais princípios.

 X –

Ultrapassada esta primeira fase, vem ao de cima o princípio da primazia do Direito Comunitário sobre as normas não constitucionais de origem interna.

O Acórdão Costa/Enel do Tribunal de Justiça, de 15.7.1964, constituiu também um marco importante nesse domínio, secundado por muitos outros.

Se não tivesse lugar a primazia, as normas de direito comunitário, em conflito com as de origem interna dos vários países, deixariam de ter aplicação prática uniforme e, consequentemente, razão de ser. Aliás, o referido n.º4 do artigo 8.º da CRP, com a ressalva que se apontou, alude aos “termos definidos pelo Direito da União”, fazendo cessar quaisquer dúvidas que pudessem existir sobre o valor, na ordem interna, da orientação jurisprudencial assumida por aquele Acórdão de 15.7.1964 e pelos muitos que se lhe seguiram em absoluta sintonia.

Com a mencionada ressalva, a primazia tem sido admitida pelo comum das autoridades internas dos vários Estados-Membros. Quanto a Portugal, vejam-se, muito exemplificativamente, os Acórdãos deste Tribunal de 22.4.2008, processo n.º 08B742 e 20.10.2010, processo n.º 346/1998.P1.S1, e, já especificamente quanto ao referido Regulamento (CE) n.º44/2001, de 4.3.2010, processo n.º 2425/07.1TBVCD.P1.S1 e 9.10.2008, processo n.º 0832633, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

XI -

Daqui resulta, para o nosso caso, o atentar nas normas do mesmo Regulamento, em detrimento das, supra referidas, do Código de Processo Civil.

Como critério base relativo à competência internacional dos tribunais dos vários Estados-Membros, temos o artigo 2.º, n.º1:

“Sem prejuízo do disposto no presente Regulamento, as pessoas domiciliadas no território dum Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado.”

Às “Disposições Gerais”, em que se insere esta norma, seguem-se as “Competências especiais”.  

 Um dos casos de competência especial reporta-se à matéria contratual. Uma pessoa com domicílio no território dum Estado-Membro pode ser demandada noutro Estado-Membro, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão.

E o artigo 5.º vai mais longe: Define, como lugar de cumprimento da obrigação, no caso de prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro, onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados.

“A obrigação relevante para a fixação da competência jurisdicional é, pois, no tocante aos tipos contratuais referidos, unicamente a obrigação característica do contrato…e não, por exemplo, a correspondente obrigação de pagamento de uma quantia em dinheiro.”(Dário Vicente, referido Estudo, página 363). Referindo Lima Pinheiro (Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Galvão Teles, V, 699) que “a obrigação relevante é sempre a obrigação primariamente gerada pelo contrato e não a obrigação secundária que nasça do seu incumprimento ou cumprimento defeituoso.”

No caso presente, a casa a construir situava-se em França e dúvidas não ficam de que a conexão leva à competência dos Tribunais franceses.

XII –

Mas, como já referimos, o artigo 5.º refere que uma pessoa pode ser demandada noutro Estado-Membro.

Aqui surgem dois entendimentos:

Ou se interpreta esta expressão à letra e a competência aqui estabelecida é meramente alternativa (repousando no princípio geral do domicílio do demandado a outra opção);

Ou se interpreta, para além da letra, entendendo-se a competência especial como única.

Para além da força que o próprio texto legal encerra, a opção pelo primeiro dos entendimentos é corroborada pelo considerando 12 do mesmo Regulamento:

“O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar a administração da justiça.”(sublinhado nosso).

E tanto assim é que no ponto 34 do Acórdão do Tribunal de Justiça de 11.10.2007, em pedido de decisão prejudicial apresentado pelo Högsta Domstolen (Suécia), se escreveu:

“A competência prevista no artigo 2.º do Regulamento n.º44/2001, a saber, a competência dos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro do domicílio do réu, constitui  o princípio geral e só por excepção a esse princípio é que o referido regulamento prevê normas de competência especial, em casos taxativamente enumerados, em que o réu pode ou deve, conforme o caso, ser demandado num órgão jurisdicional de outro Estado-Membro…”.

E, nos considerandos 22 e 23 do Acórdão do mesmo Tribunal de 3.5.2007 (Color Drack GmbH contra Lexx International Vertriebs GmbH), depois de referir que “a regra da competência  do tribunal do domicílio do réu é completada, no artigo 5.º, n.º1, do Regulamento n.º44/2001, com uma regra de competência especial em matéria contratual” escreveu-se que “nos termos da referida regra, o autor também pode demandar o réu no tribunal do lugar onde a obrigação que serve de fundamento ao pedido foi ou deve ser cumprida…” (sublinhados nossos).

Não se vêem, pois, razões, para não se interpretar a parte inicial do artigo 5.º, como estatuidora duma competência alternativa.

Situação diferente da “competência exclusiva” prevista no artigo 22.º. No n.º1 teve-se em consideração a localização do imóvel que, conforme se refere na douta decisão de 1.ª instância, traduz uma muito maior facilidade na apreciação das questões que importa resolver. Só que, a lei reporta-se a “matéria de direitos reais sobre imóveis e de arrendamento de imóveis”, realidades afastadas da temática do presente caso. Sendo certo que o TJ tem considerado “jurisprudência assente que as referidas normas sobre competências especiais são de interpretação estrita, não permitindo uma interpretação que vá além das hipóteses expressamente previstas no Regulamento…” (considerando 35 daquele Acórdão de 11.10.2007).

Assim, no presente caso, os autores podiam optar entre:

Demandar os réus no tribunal do Estado-membro onde estão domiciliados;

Demandá-los no tribunal do Estado-membro onde se situa a casa cuja construção foi objecto do contrato invocado nos autos.

XIII –

Demandaram-nos no Tribunal Judicial de Braga.

Os três primeiros réus e a 1.ª sociedade têm ou residência ou sede em Portugal.

A 2.ª sociedade ré não tem aqui a sua sede, antes a tendo em França.

Vale, então, o n.º1 do artigo 6.º: O autor pode optar pelo “tribunal do domicílio de qualquer deles, desde que os pedidos estejam ligados entre si por um nexo tão estreito que haja interesse em que sejam instruídos e julgados simultaneamente para evitar soluções que poderiam  ser inconciliáveis se as causas fossem julgadas separadamente.”

O TJ pronunciou-se no sobredito acórdão, de 11.10.2007,  proferido em reenvio prejudicial para efeitos interpretativos, sobre esta norma.

Declarou que:

1) O artigo 6.º, n.º1 do Regulamento n.º44/2001, do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, deve ser interpretado no sentido de que o facto de os pedidos deduzidos contra vários réus terem fundamentos jurídicos diferentes não obsta à aplicação dessa disposição.

2) O artigo 6.º, n.º1 do Regulamento n.º 44/2001 tem aplicação quando os pedidos deduzidos contra os vários réus têm uma conexão no momento da propositura, isto é, quando exista interesse em instruí-los e julgá-los em conjunto a fim de evitar soluções que pudessem ser inconciliáveis se as causas fossem julgadas separadamente, sem que seja também necessário demonstrar de outra forma que os pedidos não foram apresentados com o único fim de subtrair um dos réus aos tribunais do Estado-Membro do seu domicílio.”

 Como se escreveu no Acórdão deste STJ, de 22.4.2008, supra aludido:

“Esta vertente do reenvio prejudicial diz respeito a interpretação e, conforme as regras gerais, a interpretação duma norma integra-se nela. Vem, então, novamente ao de cima a primazia do direito comunitário, agora na sua vertente de integração interpretativa. As decisões, assim tomadas, pelo TJ, têm um alcance geral, de sorte que os tribunais nacionais são obrigados ao acatamento do sentido e alcance que elas conferiram à norma comunitária (neste sentido, Fausto de Quadros e Ana Maria Guerra Martins, Contencioso da União Europeia, 115, Caramelo Gomes, ob. cit., 60, João Mota de Campos e João Luiz Mota de Campos, Manual de Direito Comunitário, 438, Inês Quadros, A Função Subjectiva da Competência Prejudicial do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, 49, Vital Moreira e Gomes Canotilho, anotação XXIII ao artigo 8.º da Constituição e Moitinho de Almeida no “Estudo”, página 17, que se pode ver entrando no sítio do STJ, depois em “Documentação” e, seguidamente em “Estudos Jurídicos”).”

Visto o texto legal e, em reforço, esta interpretação, inexistem razões para, no caso presente, se afastar a competência derivada de os primeiros quatro réus (e bastava um) terem aqui o que a lei chama “domicílio”. Conforme a petição inicial, o “nexo estreito” a que alude o texto legal é patente.

Nem contra isso se diga que, na contestação, se excepciona a ilegitimidade dos réus aqui domiciliados. Já Manuel de Andrade referia, em posição que não foi abalada pelo decurso do tempo, que “A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes…”(ob. e loc. citados).

XIV –

Face a todo o exposto, nega-se a revista.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 15 de Dezembro de 2011

João Bernardo (Relator)

Oliveira Vasconcelos

Serra Baptista