ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
203/08.0TTSNT.P1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/16/2011
SECÇÃO 4ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO CONCEDIDA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR PEREIRA RODRIGUES

DESCRITORES ABUSO DO DIREITO
TRABALHO SUBORDINADO
EMPRESÁRIO EM NOME INDIVIDUAL
RETRIBUIÇÃO VARIÁVEL

SUMÁRIO
I. Actua com abuso do direito, nos termos do artigo 334.º do CC, aquele que, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, apodicticamente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado.

II. Como figura integradora de comportamento típico de abuso do direito a doutrina costuma mencionar, entre outras, a do “venire contra factum proprium”, que na sua estrutura pressupõe duas condutas da mesma pessoa, ambas lícitas, mas assumidas em momentos distintos e distanciadas no tempo, em que a primeira (o “factum proprium”) é contraditada pela segunda (o “venire”), de modo que essa relação de oposição entre as duas justifique a invocação do princípio do abuso do direito.

III. Actua com abuso do direito o trabalhador que propõe, contra a entidade empregadora, acção judicial invocando despedimento ilícito, por esta o ter dispensado do serviço por mera comunicação escrita, quando desde há cerca de 21 anos, para efeitos fiscais e de Segurança Social, havia acordado em deixar de exercer as suas funções para aquela como trabalhador dependente e passando a fazê-lo como empresário em nome individual, com a actividade de «angariador/comissionista» e tendo, desde então, o valor da sua remuneração deixado de ser estabelecido com referência ao mês e passando a sê-lo com referência à hora, recebendo aquele, mensalmente, quantias variáveis.



DECISÃO TEXTO INTEGRAL         

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A SOLUCIONAR.

No Tribunal do Trabalho de Sintra, AA, casado, residente no cruzamento da Av. da …, lote .., ...º Dto., .., Pêro Pinheiro, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra BB - …, LDA., com sede na Estrada …, Km …, Sintra, alegando que:

- O A. foi admitido, em Junho de 1978, mediante contrato de trabalho sem termo ao serviço de CC - ..., Lda., para exercer as funções de empregado de escritório;

- Cerca de 1982, foi constituída a ora R., para quem foram transferidos os trabalhadores da CC com as regalias que tinham;

- O A. auferia ultimamente a quantia mensal de € 1.248;

- Em 19 de Abril de 2007, o gerente da R. comunicou ao A. que o contrato cessaria todos os seus efeitos em 30 de Abril de 2007;

- O A. tem 57 anos e trabalhava para a R. desde os 29 anos, não tendo conseguido arranjar outro emprego, ficando a família com dificuldades financeiras, o que deixou o A. psicologicamente abalado e em estado depressivo que o fez recorrer a apoio médico e medicamentoso.

Termina, pedindo se declare a ilicitude do despedimento e se condene a R. a pagar ao A.: a) Indemnização de antiguidade (€ 1.248 x 29): € 36.192; b) Salários vencidos desde 30 dias antes da propositura da acção: € 1.248; c) Proporcionais de férias e subsídio de férias do ano da cessação (€ 1.248 : € 162,50 x 4/12): € 460,80; d) Proporcionais de subsídio de natal do ano da cessação (€ 1.248 : 30 : 10): € 416; e) Indemnização por danos morais: € 15.000; f)  Juros vencidos e demais encargos legais.

A R. contestou, alegando, em síntese, que:

- A R. apenas foi constituída em 1981;

- O A. era angariador/comissionista e não tinha retribuição mensal fixa, auferindo € 7,68 por hora, sem horário obrigatório;

- Foi o A. que, em 1986, propôs à R. passar o seu estatuto de funcionário para angariador/comissionista, como empresário em nome individual, actividade que prestou à R. como profissional independente durante mais de 20 anos;

- Tendo a R. vendido todos os seus equipamentos e deixando de ter necessidade do desempenho das tarefas atribuídas ao A., comunicou-lhe que cessava a prestação de serviços em finais de Abril de 2007, o que ele aceitou;

- O A. litiga com má fé.

Termina, pedindo a absolvição do pedido e a condenação do A., como litigante de má fé, no pagamento das despesas originadas pela acção, designadamente honorários do mandatário da R..

O A. veio apresentar resposta à contestação, que foi atendida apenas em parte, nos termos do despacho de fls. 180.

Prosseguindo os autos os seus trâmites, foi proferido despacho saneador, especificada a matéria assente e elaborada a base instrutória e, por fim, procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, sendo depois proferida sentença a julgar a acção improcedente.

Inconformado, o Autor recorreu da sentença, tendo o Tribunal da Relação acordado em julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenando a Ré a pagar ao Autor prestações nos seguintes termos:

«a) A indemnização por antiguidade cujo valor se fixa em 20 dias de retribuição base por cada ano completo ou fracção de antiguidade, contando-se esta desde Junho de 1978.

b) As retribuições vencidas desde 30 dias antes da propositura da presente acção, instaurada em 31.03.2008, devidas até ao trânsito em julgado da sentença, devendo nessa importância apurada ser descontados os montantes a que aludem os n° 2 e 3 do art. 437° do CT, se existirem.

c)  O valor das férias vencidas em 1.1.2007, correspondentes a 22 dias úteis, bem como os proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal correspondentes aos quatro meses de vigência do contrato no ano da sua cessação.

d) Relega-se para o incidente de liquidação de sentença o apuramento quer da indemnização quer dos restantes créditos em que a Ré foi condenada, uma vez que sendo o valor da retribuição variável mensalmente por ser calculada à hora, há que apurar o valor médio mensal auferido pelo A. nos doze meses anteriores à cessação do contrato, para com base nesse valor se efectuarem os cálculos da condenação.

e) Sobre as quantias apuradas serão devidos juros de mora à taxa legal, devidos desde o vencimento de cada prestação, excepto no que se refere à indemnização que serão devidos apenas desde a data do seu cálculo final. As custas da acção e do recurso serão a cargo do A. e da Ré, na proporção do respectivo decaimento, sendo fixadas a final».

Inconformada agora a Ré, interpôs recurso de Revista da decisão do Tribunal da Relação para este STJ, apresentando alegações, com as seguintes CONCLUSÕES:
«A - A fundamentação do douto Acórdão recorrido, assente na expressão "a nosso ver'' é:
- Legalmente inadmissível, vide art° 664° do CPC e demais aplicáveis;
- Doutrinariamente uma ofensa aos mais lídimos princípios de apreciação dos comportamentos e factos constantes dos autos;
- Jurisprudencialmente a negação do decidido por este Supremo Tribunal quando decide que "Na operação de apreciação e qualificação dos factos-índice é essencial averiguar qual a vontade das partes revelada quando procederam à definição dos termos do contrato".
- Socialmente seria o lançamento de um alarme quanto à validade dos contratos outorgados e em vigor.
B - Ao fundamentar a decisão em meras suposições, opiniões ou preconceitos, absolutamente alheios à prova produzida, o douto Acórdão ofendeu irremediavelmente o vertido nos art°s 158°, 664° e alínea b), n° 1, art° 712° (a contrario) do Cod. do Processo Civil
C - O teor do Acórdão em crise, tendo como base insustentadas opiniões "a nosso ver" ofende a liberdade contratual dos cidadãos e empresas, (fonte de direitos e obrigações), liberdade consagrada nos art°s 405° e sgts do Código Civil.
D - A decisão de não reconhecimento do contrato de prestação de serviços e dos consequentes direitos e obrigações que perduraram por cerca de 21 anos, sem qualquer fundamento, salvo o "a nosso ver", outorgado entre as partes e assumido como válido por ambas, ofende o legalmente estatuído sobre o referido tipo de contrato, designadamente o estatuído no art° 1154° do Código Civil. O Contrato de Prestação de Serviços não foi declarado nulo ou anulado.
E - Está comprovado que o A. conforme confessa nos autos, efectuava o "controle das horas de funcionamento das gruas", a "inscrição e renovação das licenças de circulação das gruas na DGV, o "controle dos seguros automóveis", a "facturação de clientes", não sendo claramente tais funções, próprias de um escriturário como não é ser "responsável pela área de recursos humanos".
F - Contrariamente ao Tribunal da Relação de Lisboa, o Tribunal de Trabalho de Sintra, decidiu em consonância com a prova produzida, com o conhecimento concreto da realidade social, apreendendo a vivência entre A. e Ré, concluindo sabiamente, ou seja, aplicando o direito a uma realidade concreta.
G - Para elaboração da sentença, o juiz só poderá servir-se dos factos articulados pelas partes, conforme estatui o art° 664° do CPC. Ora, nem o A., nem a Ré alegaram qualquer facto ou comportamentos que indiciassem sequer que na vigência do contrato em vigor entre as parte, "não está em condições de afrontar a sua entidade empregadora, nomeadamente reivindicando junto da mesma quantias a que se acha com direito".
H - O STJ, por Ac  de 30 de Março de 2006 afirma com clareza: "E necessário que a conduta anterior tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que com base nessa situação de confiança a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe surgirão danos irreversíveis, isto é, que tenha investido nessa situação de confiança e que esse investimento não possa ser desfeito sem prejuízos inadmissíveis".
I - A actual Gerência, "herdou" já da anterior, o contrato de prestação de serviços com o A. e sempre deu cumprimento ao contratualmente acordado, recebendo o A., líquido, quantitativo superior ao que recebiam os restantes trabalhadores da empresa.
J - Concorda-se com Menezes Cordeiro quando identifica o abuso do direito como o "exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente», durante cerca de 21 anos consecutivos;
L - Termos em que, nos termos do disposto nas alíneas c) e d) do n° 1, art° 668 do Cod. Proc. Civil e demais aplicáveis, deve o Acórdão recorrido ser revogado, mantendo-se, na íntegra a sentença produzida pelo Tribunal de Trabalho de Sintra, fazendo-se assim a melhor JUSTIÇA.»

O A contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida e concluindo:
«1º- O recorrido instaurou acção de impugnação de despedimento, invocando a ilicitude do despedimento, por não ter sido alvo de processo disciplinar, nem invocada justa causa de despedimento, tendo, após a realização da audiência de discussão e julgamento ficado provados os seguintes factos:
[…]
2º - A recorrente não recorreu da sentença que considerou provada a existência de um contrato de trabalho, tendo assim a sentença transitado em julgado sendo por isso vedada a apreciação pelo douto tribunal ad quem por não ser possível a sua alteração, por se ter formado caso julgado nos termos do artigo 672° do CPC.
3º - Ficou provado à exaustão que o recorrido desempenhava as suas funções sob a ordem, direcção e fiscalização da entidade patronal, ao abrigo de um contrato de trabalho, desde pelo menos Junho de 1978, sendo a única entidade para quem trabalhava.
4º - Ficou provado que o recorrido foi despedido sem que tivesse sido instaurado processo disciplinar ou invocada justa causa de despedimento.
5º - O recorrido instaurou providência cautelar de suspensão de despedimento, sendo que, se o tribunal tivesse dado provimento à providência, o recorrido teria sido reintegrado, e não seria a Ré condenada a pagar nada, tendo também a recorrente tido oportunidade de reintegrar o recorrido, pois que no prazo de 5 dias após a cessação do contrato de trabalho soube que o recorrido não aceitou o despedimento.
6º - Sabendo pois a recorrente que o recorrido não aceitava a decisão de despedimento.
7º - Vale por isto dizer que não foi por culpa do recorrido que a recorrente não observou os formalismos legais. Aliás, não foi provado que a recorrente estava convencida de que o recorrido não iria reclamar o pagamento dos direitos que lhe eram devidos pela cessação do contrato de trabalho.
8º - Mais, teve a recorrente a oportunidade de reintegrar no devido tempo o recorrido, e, com organização, ter feito um processo adequado à cessação do contrato.
9º - Aquando da mudança da situação fiscal, o recorrido não recebeu qualquer indemnização pela cessação do anterior contrato de trabalho, o que significa que a recorrente nunca pretendeu por termo ao contrato de trabalho inicial, bem sabendo assim, até porque tinha sido acordada a inalterabilidade da situação laboral, que tinha de aplicar na cessação do contrato as regras do contrato de trabalho que aplicara ao longo da execução.
10° - O que evidencia que tinha plena consciência de que, havendo uma cessação do contrato de trabalho em qualquer altura, teria de indemnizar o recorrido e observara as regras para a sua cessação.
11° - Acresce que não se compreende como a falta de reclamação na pendência de um contrato, que nunca foi violado por nenhuma das partes, possa penalizar o recorrido, a porque a recorrente nunca sequer invocou não saber que o trabalhador queria que lhe fossem aplicadas as regras do contrato de trabalho, não podendo o tribunal tirar qualquer ilação de factos que não foram invocados nem provados.
12° - Seria o mesmo que dizer que um trabalhador que realizou horas extraordinárias ao longo de 5 anos e nunca reclamou o seu pagamento na vigência do contrato, estava impossibilitado de reclamar tal pagamento após a cessação do contrato, pois que nessa altura a entidade patronal já não estava à espera que o trabalhador quisesse receber o pagamento das horas extraordinárias.
13° - Na verdade, o recorrido iria reclamar do quê durante a pendência do contrato? O salário era-lhe pago, conforme acordado; ele trabalhava para a recorrente nos termos em que o vinha fazendo desde a sua admissão, cumprindo a sua parte do contrato de trabalho. Se tudo corria bem, de que iria reclamar, tanto mais que a entidade patronal lhe disse que nada se alterava, apenas assim poupava os descontos que tinha de fazer para a Segurança Social, só ela tendo vantagens em semelhante contrato.
14° - Conforme resulta do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no Processo n° 4119/04.0TTLSB, de 15/9/2010, www.dgsi.pt que “V - A distinção entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviços assenta em dois elementos essenciais: o objecto do contrato (prestação de actividade ou obtenção de um resultado); e o relacionamento entre as partes (subordinação ou autonomia). VI - O contrato de trabalho tem como objecto a prestação de uma actividade e, como elemento típico e distintivo, a subordinação jurídica do trabalhador, traduzida no poder do empregador conformar, através de ordens, directivas e instruções, a prestação a que o trabalhador se obrigou; diversamente, no contrato de prestação de serviço, o prestador obriga-se à obtenção de um resultado, que efectiva por si, com autonomia, sem subordinação à direcção da outra parte."
15° - Semelhante entendimento é perfilhado pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no Proc. n° 295/07.9TTPRT, in www.dgsi.pt também no recurso do STJ, no processo n° 200811260023084 de 26/11/2008, in www.dgsi.pt segundo o qual: "I - A Constituição Portuguesa não consagra um princípio fundamental quanto à liberdade contratual, seja de forma expressa, seja através da decorrência de outras normas ou princípios constitucionais.
II- Se um ramo do direito contiver normação imperativa reguladora de uma dada situação da qual resulta uma fonte obrigacional, não poderá, em nome da faculdade estabelecida no n.° 1 do artigo 405° do Código Civil - antes pelo contrário, atenta a ressalva decorrente da limitação que se extrai da primeira asserção nele contida -, argumentar-se no sentido de àquela normação se não dever atender, por ser ou poder tornar-se conflituante com a aludida faculdade.
III- Ainda que os outorgantes de um negócio jurídico o venham a apelidar de determinado modo, se o mesmo não revestir as características atinentes ao nomen que por eles lhe foi conferido, nem por isso poderá ele, de um ponto de vista jurídico, ser como tal qualificado.
IV- O contrato de trabalho e o contrato de prestação de serviço diferenciam-se, essencialmente, pelo respectivo objecto, qual seja o da prestação de uma actividade (no caso do contrato de trabalho) ou da obtenção de um resultado (no caso do contrato de prestação de serviço), e pelo relacionamento entre as partes, isto é, a existência de uma relação de subordinação (quanto ao primeiro) ou de autonomia (quanto ao segundo).
V- O método analítico que servirá para a qualificação do acordo negocial deverá passar pela verificação do condicionalismo concreto em que se desenvolveu a relação contratual - devendo equacionar a totalidade do relacionamento, a fim de se proceder ao balanceamento de todos os indícios - para, dessa sorte, se almejar a verificação, ou não, da característica da subordinação jurídica, típica do contrato de trabalho.
VI- A subordinação jurídica, típica do relacionamento do contrato de trabalho, pode não implicar subordinação económica, assim como não se confunde com a dependência técnica, pois que, em alguns ramos de actividade, torna-se evidente a salvaguarda da autonomia técnica do prestador da actividade.
VII- Deve ser qualificada como de trabalho subordinado, a relação que vigorou entre as partes, nos termos da qual a Autora (professora), prestou a actividade para a Ré (que se dedica ao ensino profissional de imagem, som, design e comunicação), nas instalações desta e com instrumentos de trabalho por ela fornecidos, sendo responsável pelos formadores e assistentes da sua área perante a hierarquia, respondendo perante o director pedagógico e a directora-geral da Ré, podendo representar esta em assuntos da sua responsabilidade, constatando-se, ainda, que a Autora gozava férias anuais, participava em reuniões cuja realização seria determinada pela direcção da Escola da Ré - direcção a quem competia a política pedagógica de tal Escola - cumpria, usualmente, um horário de trabalho, e as horas de aulas eram marcadas pela Ré."
16° - Ora, tendo os factos provados, concluído pela existência de um contrato de trabalho entre recorrente e recorrido, devem ser aplicadas, quer na execução, quer na cessação, as regras inerentes ao mesmo contrato, pelo que ao recorrente deveriam de ter sido aplicadas as normas referentes à cessação do contrato de trabalho, sendo absurdo que as mesmas possam ser afastadas porque tal iria onerar demasiado a entidade patronal, porque esta não pensava que o trabalhador pretendia que tais normas fossem aplicadas à cessação do contrato.
17° - O recorrido alegou e provou sem margem para dúvidas a existência de um contrato de trabalho, quer através das suas testemunhas, quer através das testemunhas da entidade patronal, o que a recorrente aceitou já que não recorreu da sentença proferida em primeira instância.
18° - Provou-o também à exaustão através dos documentos de justificação de faltas, da comunicação do início das férias, da justificação das entradas atrasadas, do desconto das horas ou dias em que faltava ao trabalho, tinha um horário de trabalho fixo de 2.ª a 6.ª feira; tinha um salário certo, horário fixado pela entidade patronal que lhe transmitia as ordens que ele cumpria, os instrumentos de trabalho eram propriedade da entidade patronal, tinha um local de trabalho na sede da empresa, tal como os restantes colegas do escritório que sempre trabalharam consigo, era única entidade para quem trabalhava em exclusivo.
19° - A recorrente em sede de contestação à petição no tribunal de primeira instância invocou que o recorrido exercia as suas funções ao abrigo de um contrato de prestação de serviços, contudo, não conseguiu provar a existência de um contrato de tal natureza, ao invés do recorrido que provou a existência de um contrato de trabalho.
20° - Por outro lado, não tendo sido gravada a prova, não pode também vir agora impugnar a matéria dada como provada, pois que o douto tribunal ad quem não pode modificar a matéria de facto dada como provada pela primeira instância, sendo certo que, como se disse, transitou em julgado a sentença quanto à consideração de que o contrato era efectivamente de trabalho.
21° - Ora, se a recorrente aceitou que se estava perante um contrato de trabalho, pois que não recorreu nem contra alegou, como pode vir agora insistir que se tratava de um contrato de prestação de serviços, quando nenhuma prova conseguiu fazer como lhe competia de que se estava perante um contrato de prestação de serviços, tendo a sentença já transitado em julgado quanto à qualificação jurídica do contrato com base nos factos dados como provados, pelo que, perante os factos dados como provados, apenas há que fazer a sua integração de direito.
22° - Sendo certo que a empresa não tinha um mero carácter familiar, já que a sua facturação anual excedia os 2.500.0006 e alturas houve em que teve 55 trabalhadores, tendo vendido o parque das suas gruas por mais de 726.000 €, tendo comprado carros de alta cilindrada em nome da recorrente mas que são para uso do sócio, mulher e filhos, o que significa que a empresa ficou com dinheiro.
23° - Como alega a recorrente, havia uma relação de confiança entre recorrente e recorrido, tendo sido este facto que levou a que nem o recorrido, nem os demais colegas que a recorrente obrigou a inscrever-se nas finanças e na segurança social como independentes, reclamassem durante a execução do contrato, pois que tudo se manteve inalterado quer quanto à retribuição, quer quanto ao local de trabalho, horário, propriedade dos instrumentos de trabalho, assiduidade, direcção e fiscalização da entidade patronal, o dever de cumprir as ordens dimanadas pela entidade patronal, o dever de justificar ausências ao trabalho, etc., não tendo existido qualquer corte nem temporal, nem espacial na execução do contrato e no cumprimentos dos deveres do trabalhador ou obrigações da entidade patronal.
24° - Confiança essa de que a recorrente se aproveitou, despedindo sem dó nem piedade quem lhe dedicou quase 30 anos da sua vida, sem direito a subsídio de desemprego.
25° - Foi o actual gerente da recorrente quem obrigou vários dos seus trabalhadores a fazer descontos como independentes, sendo falso que tenha herdado a situação da anterior gerência.
26° - O presente recurso é uma mera manobra dilatória, como eventual preparação da recorrente para requerer a sua insolvência para nada pagar ao recorrido, tanto mais que não prestou caução, deixando o mesmo desprotegido mais uma vez.
27° - A recorrente pode pedir um empréstimo bancário ou prestar uma garantia bancária para pagar ao recorrido, sem ficar em risco, pois que continua a laborar.
28° - Se o legislador quisesse que o trabalhador reclamasse apenas na pendência do contrato, não lhe deixaria o prazo de 60 dias ou de um ano, consoante as situações, para reclamar judicialmente o pagamento dos seus créditos, sendo vem clara a este respeito a douta sentença recorrida.
29° - A decisão a tomar pelo douto tribunal ad quem tem de ser a da condenação da recorrente, confirmando assim o douto acórdão recorrido, sob pena de ir contra a jurisprudência por si ditada em processos semelhantes, designadamente os acórdãos acima indicados.
30° - Não pode nunca colher a hipótese sustentada pela primeira instância, pois que seria desvirtuar todo o processo de trabalho e renegar todo e qualquer direito laboral que assiste ao trabalhador.
31° - Aliás, mesmo que se estivesse perante um contrato de prestação de serviços, o que não se admite como é óbvio, até a sua cessação está sujeita a um pré aviso razoável, quando não tenha sido acordado pelas partes, pelo que nunca poderia cessar com uma comunicação feita pouco mais de uma semana antes de o trabalhador ser despedido, e ninguém acredita que um contrato de prestação de serviços dure 30 anos, já que está sujeito a um carácter de irregularidade na prestação dos serviços, na sua diversificação e com temporalidade definida, o que não acontece com o contrato de trabalho, que te, prestações contínuas, regulares e indeterminadas no tempo.
Deve assim ser mantido o douto acórdão recorrido que fez plena aplicação do Direito aos factos dados como provados, estando devidamente fundamentado tendo, os Meritíssimos Juízes transcrito para a sentença qual a sua convicção e entendimento, de forma clara e precisa, com verdadeiro conhecimento da realidade laboral e do que se passa no campo das relações laborais, daí que sejam utilizadas expressões como " a nosso ver", tendo concluído da única forma possível, atendendo a que toda a prova é no sentido da existência de um contrato de trabalho, sendo indiferente a denominação dada pelas partes, que aliás não celebraram qualquer contrato de prestação de serviços, nem formalmente, nem de Direito, já que ambos sabiam continuar a tratar-se do contrato de trabalho celebrado em 1978 e que nunca cessou, já que o recorrido não recebeu qualquer indemnização pela sua cessação, não tendo sido sequer invocado pela recorrente que o recorrido havia renunciado aos direitos que lhe eram devidos pela cessação do contrato de trabalho, tanto mais que se está no domínio dos direitos irrenunciáveis, pelo que, só mantendo o douto acórdão recorrido e condenando a recorrente será feita a devida JUSTIÇA!
Mais requer que seja a recorrente notificada para em 10 dias prestar caução por depósito em dinheiro ou através de garantia bancária, pois que da conduta da mesma resulta inequívoca a sua intenção de nada pagar e de poder inclusive arranjar forma de ser considerada insolvente apenas para não pagar ao recorrido, o que o deixaria bastante penalizado.»

O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto parecer no sentido da negação da Revista.

Foram colhidos os legais vistos, pelo que cumpre enunciar as questões que se colocam à apreciação, que se passam a discriminar, pela ordem em que abaixo se conhecerão, e que são as relativas:

a) às nulidades do Acórdão recorrido;

b) à natureza do vínculo contratual;

c) ao abuso do direito.

II.   FUNDAMENTOS DE FACTO.

Os factos considerados provados nas instâncias são os seguintes:

1. O A. trabalhou por conta e sob as ordens, direcção e fiscalização da sociedade CC - ..., Lda., como empregado de escritório, mediante contrato de trabalho sem termo, desde pelo menos Junho de 1978 (Does. de fls. 99 e 100).

2. No início de 1982, o A. transitou com a mesma categoria, antiguidade e demais regalias para a ora R. (Does. de fls. 101 e 102), constituída pouco antes pelos mesmos sócios que a antes referida e ainda pelo Sr. DD.

3. A R. tem como principal actividade o aluguer de gruas.

4. O A. auferia ultimamente a retribuição de € 7,68 por hora de trabalho (Docs. de fls. 105 destes autos e 102 e 105 do apenso).

5. O A. trabalhava de 2.ª a 6.ª Feira, das 9HOO às 13HOO e das 14HOO às 17H30.

6. O A. exercia as suas funções de acordo com as ordens transmitidas pelos gerentes da R., designadamente o Sr. DD, que lhe distribuíam o trabalho a realizar, fiscalizavam a sua execução e controlavam a sua assiduidade (Docs. de fls. 103, 104 e 105 destes autos e 102, 104 e 105 do apenso).

7. Ao A. competiam tarefas na área dos recursos humanos, designadamente processamento de salários, descontos e declarações a enviar para a Segurança Social e IRS, e ainda facturação dos clientes, conferência de cartões de ponto com os discos de tacógrafos dos operadores das gruas, controle dos seguros automóveis, de trabalho, de responsabilidade civil, contacto com os mediadores, arquivo da facturação dos clientes e fornecedores, inscrição e renovação das licenças de circulação das gruas na DGV, controle das horas de funcionamento das gruas para efeitos de manutenção e envio de documentação dos trabalhadores para as obras.

8. Fazia-o no escritório das instalações onde a R. laborava, com instrumentos de trabalho a esta pertencentes.

9. A R. comunicou ao A. que prescindia dos seus serviços a partir de 1 de Maio de 2007, em virtude de ter sido vendido o parque de máquinas daquela, entregando-lhe a "Declaração" de fls. 106, […].

10. Ao A. não foi instaurado qualquer processo disciplinar, com invocação de justa causa, nem lhe foi paga qualquer indemnização de antiguidade.

11. O A. sempre executou as suas funções na R. com zelo, pontualidade e observância das ordens dadas por aquela.

12. O A. não conseguiu encontrar trabalho desde que deixou de o fazer para a R., apesar de o procurar.

13. O A. e seu agregado familiar ficaram com dificuldades económicas em virtude de aquele ter ficado sem auferir qualquer rendimento proveniente do trabalho ou subsídio de desemprego.

14. O A. ficou abalado psicologicamente e teve que recorrer a apoio médico e medicamentoso.

15. A partir de Janeiro de 1986, para efeitos fiscais e de Segurança Social, o A. deixou de exercer as suas funções para a R. como trabalhador dependente e passou a fazê-lo como empresário em nome individual, com a actividade de "Angariador/Comissionista" (Docs. de fls. 54 a 65 do apenso).

16. Desde então, o valor da retribuição do A. deixou de ser estabelecido com referência ao mês e passou a sê-lo com referência à hora.

17. Desde então, por essa razão e em virtude ainda do provado sob o ponto 5., o A. recebia mensalmente da R. quantias variáveis (Docs. de fls. 54 a 65 do apenso).

18. A mencionada alteração da situação do A. resultou de proposta da R., que aquele aceitou.

19. Idêntica proposta foi feita a outros trabalhadores da R., tendo a mesma sido aceite por uns e recusada por outros, sem represálias.

20. O A. manteve-se na aludida nova situação, até ser dispensado pela R., sem fazer qualquer reclamação ou proposta de alteração.

III.  FUNDAMENTOS DE DIREITO.

a) Quanto às nulidades do Acórdão recorrido.

Conforme estabelece, de forma singela, o artigo 77.º/1, do Código de Processo do Trabalho, a arguição de nulidade da sentença em processo laboral, deve ser feita, expressa e separadamente, no requerimento de interposição do recurso, sendo entendimento pacífico da jurisprudência que esta norma é também aplicável à arguição de nulidade da decisão da Relação, por força das disposições conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, alínea a), deste Código e 716.º/1, do Código de Processo Civil.

Daí decorrendo, como também tem sido, reiteradamente, decidido por este Supremo Tribunal de Justiça, que essa arguição, quando feita unicamente no âmbito das alegações do recurso (para a Relação ou para o Supremo) é inatendível, devendo ser rejeitada.

O procedimento é, pois, distinto do regime do processo civil comum, em que as nulidades da sentença ou do acórdão (com ressalva das respeitantes à falta de assinatura do juiz ou da omissão quanto a custas) devem ser arguidas nas próprias alegações de recurso (art. 668.º/4 do CPC).

Na verdade, o legislador, desde o CPT de 1981, optou, decididamente, por um regime distinto para a arguição das nulidades em processo laboral, ao que se tem entendido, com o desiderato de uma maior celeridade e economia processual, ao permitir ao juiz recorrido a possibilidade de suprir qualquer nulidade antes de o recurso subir ao tribunal superior. Assim se prevendo e justificando que a arguição das nulidades seja feita no próprio requerimento de interposição de recurso dirigido ao juiz que proferiu a decisão e não em sede das alegações dirigidas ao tribunal de recurso.

Mas, independentemente da justificação para este regime especial ser satisfatória, ou porventura discutível, o certo é que se tem de conviver com a opção do legislador, que adoptou um trato processivo que tem mantido ao longo de décadas, apesar das inovações na disciplina processual do direito do trabalho.

Ora, no caso “sub specie” a Recorrente alega, na parte que interessa, que, ao fundamentar a decisão em meras suposições, opiniões ou preconceitos, absolutamente alheios à prova produzida, o Acórdão recorrido ofendeu irremediavelmente o vertido nos art°s 158°, 664° e alínea b), n° 1, art° 712° (a contrario) do Cod. do Processo Civil, pelo que nos termos do disposto nas alíneas c) e d) do n° 1, art° 668 do mesmo código e demais aplicáveis, deve o Acórdão recorrido ser revogado.

Invoca, assim, a Recorrente a nulidade do Acórdão recorrido ao abrigo das citadas disposições legais.

Sucede que no requerimento de interposição do recurso a Recorrente nada invocou quanto a esta matéria, pelo que lhe estava vetado vir a fazê-lo nas alegações de recurso.

Assim, não se pode conhecer da alegada nulidade do Acórdão recorrido.

b) Quanto à natureza do vínculo contratual.

Como decorre dos arts. 676º/1 e 684º/3 do CPC, os recursos constituem os meios de impugnação de decisões proferidas pelos tribunais inferiores, pelo que o seu âmbito, por regra, está objectivamente delimitado pelas questões já colocadas ao tribunal de que se recorre.

É neste sentido que a jurisprudência se tem manifestado, ou seja, de que com os recursos se visa a modificação de decisões impugnadas e não a produção de decisões sobre matéria nova, não sendo lícito, por isso, invocar nos recursos questões diferentes das que tenham sido objecto de apreciação nas decisões recorridas, nem devendo neles conhecer-se de questões que as partes não hajam suscitado no tribunal recorrido. A finalidade do recurso é essencialmente o reestudo por parte do tribunal superior de questões já vistas e apreciadas pelo tribunal inferior e não a pronúncia do tribunal superior sobre questões suscitadas de novo[1].

Obviamente que as “questões” a que nos reportamos são, essencialmente, as questões que se prendem com o mérito das pretensões formuladas pelas partes e que estas tiveram oportunidade de ter suscitado perante o tribunal recorrido, pois que, para além destas, outras há que podem ser apenas suscitadas ou conhecidas no tribunal superior, tais como as que são de conhecimento oficioso e aquelas que são inerentes a vícios, sobretudo de natureza processual, da sentença recorrida.

A questão da natureza do vínculo laboral foi tratada na sentença proferida pela 1.ª instância, nela se concluindo pela existência de um contrato de trabalho subordinado entre as partes em litígio.

Sucede que a ora Recorrente não sindicou então a decisão da 1.ª instância, pois que dela não recorreu para a Relação.

Assim, atento o disposto no art. 671.º/1 do CPC, este segmento da decisão transitou em julgado, sendo que a autoridade do caso julgado tem o efeito positivo de impor a primeira decisão como pressuposto indiscutível de embargo de uma segunda decisão de mérito.

Esta força obrigatória que é conferida à decisão transitada em julgado tem por finalidade precaver a segurança na aplicação do direito, conferindo-se certeza ao termo da relação material controvertida e preservando-se o prestígio na administração da justiça, sobretudo com vista a evitar-se que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (art. 497º/2 do CPC).

Daí que a Recorrente suscita não só uma questão nova, como também uma questão sobre a qual já existe decisão transitada em julgado pelo que dela se não conhece.

c) Quanto ao abuso do direito.

Nos termos do art. 334º CC "é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito".

Perante o preceituado neste artigo, o exercício do direito não deve exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, por a todos se impor uma conduta de acordo com os padrões da diligência, da honestidade e da lealdade exigíveis no comércio jurídico.

Assim, os sujeitos de determinada relação jurídica devem actuar como pessoas de bem, com correcção e probidade, de modo a contribuir, de acordo com o critério normativo do comportamento, para a realização dos interesses legítimos que se pretendam atingir com a mesma relação jurídica.

Os limites impostos pela boa fé são excedidos, designadamente, quando alguém pretenda fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior, quando tal conduta objectivamente interpretada, de harmonia com a lei, justificava a convicção de que se não faria valer o mesmo direito.

O mesmo se diga dos limites impostos pelos bons costumes, ou seja, pelo conjunto de regras éticas de que costumam usar as pessoas sérias, honestas e de boa conduta na sociedade onde se inserem.

Por outro lado, os direitos devem ser exercidos de acordo com o fim social e económico para que a lei os concebeu. Se forem exercidos para fins diferentes daqueles para que a lei os consagrou, ainda que tal exercício seja útil ao seu autor, poderá haver abuso do direito, se tal exercício ofender claramente a consciência social dominante.

Para Manuel de Andrade “há abuso do direito quando o direito, legitimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante; e a consequência é a de o titular do direito ser tratado como se não tivesse tal direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito extracontratual”[2].

De outro ponto de vista, o acto abusivo é, em regra, no pensamento de Vaz Serra, o acto de exercício de um direito que, intencionalmente, causa danos a outrem, por forma contrária à consciência jurídica dominante na colectividade social. Só excepcionalmente se prescindindo da intenção de prejudicar terceiros quando a contraditoriedade àquela consciência, isto é, à boa fé e aos bons costumes, for clamorosa ou quando o direito for exercido para fim diverso daquele para que a lei o concede[3].

Noutra perspectiva, para A. Varela, "para que haja lugar ao abuso do direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito”[4].

Daí que o exercício de um direito só poderá haver-se por abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou seja, quando esse direito seja exercido em termos gritantemente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante[5].

Na sequência do ensinamento dos ilustres mestres, poder-se-á dizer, em síntese, que existirá abuso do direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, apodicticamente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado.

Como figura integradora de comportamento típico de abuso do direito poderá mencionar-se, entre outras que aqui não importa considerar, a do “venire contra factum proprium”.

Na sua estrutura, o “venire” pressupõe duas condutas da mesma pessoa, ambas lícitas, mas assumidas em momentos distintos e distanciadas no tempo, em que a primeira (o “factum proprium”) é contraditada pela segunda (o “venire”), de modo que essa relação de oposição entre as duas justifique a invocação do princípio do abuso do direito.

O “venire” tem a sua razão de ser no princípio da confiança enquanto exigência de que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido conduzidas a acreditar na manutenção de determinados comportamentos da comunidade humana, que se encontra organizada na base de relacionamentos estáveis, em que cada um deve ser congruente, não mudando, constante e arbitrariamente, de condutas, mormente que sejam prejudiciais para outrem.

A questão que se coloca no caso vertente é a de saber se o Autor ao propor a presente acção contra a Ré actuou com abuso do direito.

Vem provado que A. trabalhou por conta e sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré como empregado de escritório, auferindo ultimamente a retribuição de € 7,68 por hora de trabalho, trabalhando de 2.ª a 6.ª feira, das 9HOO às 13HOO e das 14HOO às 17H30, exercendo as suas funções, na área dos recursos humanos, no escritório das instalações onde a R. laborava, com instrumentos de trabalho a esta pertencentes e de acordo com as ordens transmitidas pelos gerentes da R., que lhe distribuíam o trabalho a realizar, fiscalizavam a sua execução e controlavam a sua assiduidade.

Sucede que a partir de Janeiro de 1986, para efeitos fiscais e de Segurança Social, o A. deixou de exercer as suas funções para a R. como trabalhador dependente e passou a fazê-lo como empresário em nome individual, com a actividade de "Angariador/Comissionista" e, desde então, o valor da retribuição do A. deixou de ser estabelecido com referência ao mês e passou a sê-lo com referência à hora, recebendo mensalmente da R. quantias variáveis.

A mencionada alteração da situação do A. resultou de proposta da R., que aquele aceitou e o A. manteve-se na aludida nova situação, até ser dispensado pela R., sem fazer qualquer reclamação ou proposta de alteração, sendo que idêntica proposta foi feita a outros trabalhadores da R., tendo a mesma sido aceite por uns e recusada por outros, sem represálias.

Na sentença proferida na 1.ª instância entendeu-se, perante a facticidade descrita, que o Autor ao propor a presente acção actuou com abuso do direito e em consequência absolveu-se a Ré do pedido, aduzindo-se para o efeito, entre o mais, o seguinte:
«(…) o A., ao longo de 21 anos, trabalhou para a R. recebendo dela como contrapartida do seu trabalho apenas o que ficara acordado entre ambos, como se entre eles existisse de facto um contrato de prestação de serviços, tal e qual como o haviam denominado, e não o contrato de trabalho que substancialmente existia; ao longo de 21 anos, ele próprio praticou actos formalmente conformes ao regime jurídico do contrato inexistente, nomeadamente em matéria fiscal e de segurança social, e omitiu os inerentes ao contrato existente; e o A. aceitou a proposta da R. no sentido de o seu estatuto profissional ser formalmente alterado e ao longo de 21 anos nunca reclamou ou propôs a reversão à situação anterior, sendo certo que não são de relevar as habituais razões decorrentes da relação de sujeição inerente ao contrato de trabalho, pois se provou claramente que idêntica proposta foi feita pela R. a outros trabalhadores e uns aceitaram e outros não, sem represálias.
Em vista da aceitação da proposta da R., pelo A., e da não reclamação durante 21 anos de nada que ali não tivesse sido acordado, era razoável que a R. se convencesse que ele nunca o faria e que não era necessário observar o procedimento legal para a cessação do contrato de trabalho por extinção do posto de trabalho, pelo que o exercício pelo A. dos seus direitos em momento posterior viria importar para a R. uma oneração superior à que para ela resultaria do exercício no momento devido, de modo a poder precaver-se com o cumprimento das formalidades legais, e frustrando as suas expectativas.
Em suma, o A., ao intentar a presente acção, está a agir em manifesto abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, pelo que deve o tribunal obstar ao seu exercício, o que se decide».

Porém, entendimento diferente foi seguido pelo Tribunal da Relação, com a seguinte fundamentação:
«Mas estes factos demonstram que a partir de 1986 apenas se alterou a forma externa de configurar a situação jurídica do A. que "para efeitos fiscais e de Segurança Social, deixou de exercer as suas funções para a R. como trabalhador dependente e passou a fazê-lo como empresário em nome individual, passando a receber a retribuição com referência à hora, variando as importâncias auferidas mensalmente". Contudo, não chegam para caracterizar que a vinculação entre as partes passou a ser de prestação de serviços, porquanto do ponto de vista substancial o A, continuou a agir subordinado à Ré e seus representantes.
Assim, o facto de o A. ter aceite aquela proposta da Ré e de durante cerca de 21 anos dela não reclamar, não significa, a nosso ver, que tal pudesse gerar na contraparte a convicção justificada que a levasse a pensar que o A. jamais iria reclamar os seus direitos laborais decorrentes do contrato de trabalho existente entre as partes.
É que a relação laboral não é idêntica a uma relação jurídica puramente civilista.
(…)
Por isso, face a este regime jurídico específico do direito laboral, não se pode afirmar que quando o trabalhador decide — ainda que após um período de silêncio que se estende por toda ou praticamente toda a vigência do contrato — intentar acção para reivindicar os seus direitos laborais, aja em abuso do direito, dado que, manifestamente, não excede os limites sociais e económicos do seu direito subjectivo, nem os limites da boa fé e dos bons costumes.
Aliás, são muito frequentes os casos que todos os dias passam pelos tribunais em que trabalhadores reivindicam créditos vencidos e que durante muitos anos na vigência do contrato de trabalho nunca reclamaram.
Assim, apesar do Apelante se ter mantido durante um largo período de tempo em silêncio, sem reivindicar os seus direitos, não se pode afirmar que essa sua conduta possa ter gerado na contraparte a justificada convicção de que o A. jamais iria reclamar os seus créditos laborais. Nem essa reivindicação ultrapassa de forma clamorosa o fim social ou económico dos direitos reclamados, nem excede manifestamente a boa fé e os bons costumes.
A reclamação efectuada pelo A. através desta acção não configura, a nosso ver, abuso do direito, sendo por isso legítimo o exercício dos seus direitos, ao invés do que foi decidido na sentença recorrida.
Deste modo, temos de convir que a comunicação a que aludem os n° 9 e 10 da matéria de facto, constitui um despedimento ilícito, por não ter sido precedido de processo disciplinar nem justa causa, nos termos do art. 429° do Código do Trabalho de 2003, com as consequências previstas nos art. 436° e 437° do mesmo Código».

Ora, não está em discussão saber se o contrato pelo qual o Autor esteve ligado à Ré deve ser caracterizado como de trabalho ou se como de prestação de serviço, pois que essa questão foi decidida na primeira instância no sentido de se considerar como de trabalho subordinado, sendo que a Ré não recorreu da sentença, pelo que se considera transitado em julgado que o contrato dos autos é de tal natureza.

Também não é objecto de discussão saber se houve, ou não, despedimento.

Assim sendo, igualmente não está em causa ter o Autor direito a impugnar o despedimento e de reclamar quantias com tal fundamento.

O que está em discussão é saber se o Autor, ao intentar a acção, actuou com abuso do direito, tomando em consideração o modo como se desenvolveu a relação de trabalho nos últimos 21 anos da sua existência, em que as partes, por mútuo acordo lhe deram a aparência de um contrato de prestação de serviço, trabalhando o Autor como empresário em nome individual, com a actividade de "Angariador/Comissionista" e sendo remunerado em função do número de horas disponibilizadas.

Sabendo-se ainda que perante as entidades fiscais e a Segurança Social o contrato foi configurado como contrato de prestação de serviço, o que foi feito de comum acordo e, certamente, no interesse de ambas as partes, designadamente do Autor, pois que, de contrário, não teria anuído à proposta de alteração do regime laboral do seu contrato, sendo que teve liberdade para a aceitar, visto que outros trabalhadores recusaram proposta idêntica e não foram objecto de qualquer represália.

Ao aceitar a mudança que se operou no seu estatuto laboral, com os inerentes benefícios, não podia o Autor deixar de aceitar as respectivas inconveniências, entre elas a de ver o seu contrato moldado por um contrato de prestação de serviços, no âmbito do qual poderia vir a ser dispensado, sem o cumprimento das legais formalidades do despedimento.

É certo que o contrato, apesar de tudo, se continuou a desenvolver dentro de certos parâmetros, próprios de um contrato de trabalho, designadamente da fiscalização e orientação do trabalho, mas tal não é bastante para afastar o tipo de contrato que as partes não podiam deixar de considerar celebrado a partir do momento em que resolveram proceder à alteração acima referida.

Quer dizer: o Autor ao aceitar passar a trabalhar para a Ré como empresário em nome individual e a ser remunerado em função das horas de trabalho prestadas e de dentro deste modelo se relacionar com as entidades fiscais e da Segurança Social, não podia deixar de aceitar a eventualidade de ver cessado o seu contrato sem poder usufruir das garantias inerentes a um inequívoco contrato de trabalho subordinado, nomeadamente de só poder ser dispensado mediante justa causa e o formalismo do processo disciplinar.

Por sua vez a entidade empregadora, que teve a iniciativa de propor a alteração dos termos do contrato, poderá ter ficado no aceitável convencimento de que, a ter de fazer cessar o contrato do Autor, não necessitava de cumprir o formalismo próprio do despedimento.

E tendo-se mantido, por cerca de 21 anos, a nova situação da relação de trabalho, sem reparo por parte do Autor, mais se deveria ter cimentado entre as partes o modelo da nova relação.

Assim, tem de se concluir que o Autor, ao vir, através da presente acção, a invocar um despedimento ilícito, por não ter sido precedido de processo disciplinar, veio assumir uma conduta contrária àquela que teve ao aceitar a alteração do seu contrato com a Ré, por então ter aceitado consequências que agora pretende rejeitar.

Ou seja, ao propor a presente acção, o Autor actuou com abuso do direito nos termos do artigo 334.º do CC, como bem se entendeu na decisão proferida em 1.ª instância, porque sendo embora detentor do direito à presente demanda, exercita-o, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, claramente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente por criar uma desproporção objectiva entre a utilidade que pretende alcançar e as consequências a suportar pela Ré contra a qual é invocado.

Procedem, por isso, no essencial, as conclusões do recurso, sendo de revogar a decisão recorrida.

IV.  DECISÃO:

Em conformidade com os fundamentos expostos, concede-se a Revista, revoga-se a decisão recorrida e repristina-se a decisão da 1.ª instância.

Custas neste Supremo Tribunal e nas instâncias pelo Autor.

[Anexa-se o sumário elaborado nos termos do artigo 713, n.º 6, do CPC]

Lisboa,  16 de Novembro de 2011. 

       

Pereira Rodrigues (Relator)

Pinto Hespanhol

Fernandes da Silva

_______________________
[1] Cf. Acs do STJ de 2.4.92, in BMJ 416/485; de 7.1.93, in BMJ 423/539 e de 25.2.93, in CJ, ACSTJ, 1993, I, 150.
[2] Teoria Geral das Obrigações, 3.ª ed., pg. 63-64.
[3]"Abuso do Direito", in BMJ nº 85, pág. 253, também citado por F. A. Cunha de Sá in Abuso do Direito, pg. 127.
[4] Das Obrigações em Geral, vol. I, 6ª ed., pág. 516.
[5] Pires de Lima e Antunes Varela, in "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, pág. 299.