PROCESSO |
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DATA DO ACÓRDÃO | 11/16/2011 | ||
SECÇÃO | 4ª SECÇÃO |
RE | |
MEIO PROCESSUAL | REVISTA |
DECISÃO | CONCEDIDA A REVISTA |
VOTAÇÃO | UNANIMIDADE |
RELATOR | PEREIRA RODRIGUES |
DESCRITORES | ABUSO DO DIREITO TRABALHO SUBORDINADO EMPRESÁRIO EM NOME INDIVIDUAL RETRIBUIÇÃO VARIÁVEL |
SUMÁRIO | I. Actua com abuso do direito, nos termos do artigo 334.º do CC, aquele que, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, apodicticamente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado. II. Como figura integradora de comportamento típico de abuso do direito a doutrina costuma mencionar, entre outras, a do “venire contra factum proprium”, que na sua estrutura pressupõe duas condutas da mesma pessoa, ambas lícitas, mas assumidas em momentos distintos e distanciadas no tempo, em que a primeira (o “factum proprium”) é contraditada pela segunda (o “venire”), de modo que essa relação de oposição entre as duas justifique a invocação do princípio do abuso do direito. III. Actua com abuso do direito o trabalhador que propõe, contra a entidade empregadora, acção judicial invocando despedimento ilícito, por esta o ter dispensado do serviço por mera comunicação escrita, quando desde há cerca de 21 anos, para efeitos fiscais e de Segurança Social, havia acordado em deixar de exercer as suas funções para aquela como trabalhador dependente e passando a fazê-lo como empresário em nome individual, com a actividade de «angariador/comissionista» e tendo, desde então, o valor da sua remuneração deixado de ser estabelecido com referência ao mês e passando a sê-lo com referência à hora, recebendo aquele, mensalmente, quantias variáveis. |
DECISÃO TEXTO INTEGRAL |
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
I. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A SOLUCIONAR. No Tribunal do Trabalho de Sintra, AA, casado, residente no cruzamento da Av. da …, lote .., ...º Dto., .., Pêro Pinheiro, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra BB - …, LDA., com sede na Estrada …, Km …, Sintra, alegando que: - O A. foi admitido, em Junho de 1978, mediante contrato de trabalho sem termo ao serviço de CC - ..., Lda., para exercer as funções de empregado de escritório; - Cerca de 1982, foi constituída a ora R., para quem foram transferidos os trabalhadores da CC com as regalias que tinham; - O A. auferia ultimamente a quantia mensal de € 1.248; - Em 19 de Abril de 2007, o gerente da R. comunicou ao A. que o contrato cessaria todos os seus efeitos em 30 de Abril de 2007; - O A. tem 57 anos e trabalhava para a R. desde os 29 anos, não tendo conseguido arranjar outro emprego, ficando a família com dificuldades financeiras, o que deixou o A. psicologicamente abalado e em estado depressivo que o fez recorrer a apoio médico e medicamentoso. Termina, pedindo se declare a ilicitude do despedimento e se condene a R. a pagar ao A.: a) Indemnização de antiguidade (€ 1.248 x 29): € 36.192; b) Salários vencidos desde 30 dias antes da propositura da acção: € 1.248; c) Proporcionais de férias e subsídio de férias do ano da cessação (€ 1.248 : € 162,50 x 4/12): € 460,80; d) Proporcionais de subsídio de natal do ano da cessação (€ 1.248 : 30 : 10): € 416; e) Indemnização por danos morais: € 15.000; f) Juros vencidos e demais encargos legais. A R. contestou, alegando, em síntese, que: - A R. apenas foi constituída em 1981; - O A. era angariador/comissionista e não tinha retribuição mensal fixa, auferindo € 7,68 por hora, sem horário obrigatório; - Foi o A. que, em 1986, propôs à R. passar o seu estatuto de funcionário para angariador/comissionista, como empresário em nome individual, actividade que prestou à R. como profissional independente durante mais de 20 anos; - Tendo a R. vendido todos os seus equipamentos e deixando de ter necessidade do desempenho das tarefas atribuídas ao A., comunicou-lhe que cessava a prestação de serviços em finais de Abril de 2007, o que ele aceitou; - O A. litiga com má fé. Termina, pedindo a absolvição do pedido e a condenação do A., como litigante de má fé, no pagamento das despesas originadas pela acção, designadamente honorários do mandatário da R.. O A. veio apresentar resposta à contestação, que foi atendida apenas em parte, nos termos do despacho de fls. 180. Prosseguindo os autos os seus trâmites, foi proferido despacho saneador, especificada a matéria assente e elaborada a base instrutória e, por fim, procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, sendo depois proferida sentença a julgar a acção improcedente. Inconformado, o Autor recorreu da sentença, tendo o Tribunal da Relação acordado em julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenando a Ré a pagar ao Autor prestações nos seguintes termos: «a) A indemnização por antiguidade cujo valor se fixa em 20 dias de retribuição base por cada ano completo ou fracção de antiguidade, contando-se esta desde Junho de 1978. b) As retribuições vencidas desde 30 dias antes da propositura da presente acção, instaurada em 31.03.2008, devidas até ao trânsito em julgado da sentença, devendo nessa importância apurada ser descontados os montantes a que aludem os n° 2 e 3 do art. 437° do CT, se existirem. c) O valor das férias vencidas em 1.1.2007, correspondentes a 22 dias úteis, bem como os proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal correspondentes aos quatro meses de vigência do contrato no ano da sua cessação. d) Relega-se para o incidente de liquidação de sentença o apuramento quer da indemnização quer dos restantes créditos em que a Ré foi condenada, uma vez que sendo o valor da retribuição variável mensalmente por ser calculada à hora, há que apurar o valor médio mensal auferido pelo A. nos doze meses anteriores à cessação do contrato, para com base nesse valor se efectuarem os cálculos da condenação. e) Sobre as quantias apuradas serão devidos juros de mora à taxa legal, devidos desde o vencimento de cada prestação, excepto no que se refere à indemnização que serão devidos apenas desde a data do seu cálculo final. As custas da acção e do recurso serão a cargo do A. e da Ré, na proporção do respectivo decaimento, sendo fixadas a final».
Inconformada agora a Ré, interpôs recurso de Revista da decisão do Tribunal da Relação para este STJ, apresentando alegações, com as seguintes CONCLUSÕES: O A contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida e concluindo:
O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto emitiu douto parecer no sentido da negação da Revista.
Foram colhidos os legais vistos, pelo que cumpre enunciar as questões que se colocam à apreciação, que se passam a discriminar, pela ordem em que abaixo se conhecerão, e que são as relativas: a) às nulidades do Acórdão recorrido; b) à natureza do vínculo contratual; c) ao abuso do direito.
II. FUNDAMENTOS DE FACTO. Os factos considerados provados nas instâncias são os seguintes: 1. O A. trabalhou por conta e sob as ordens, direcção e fiscalização da sociedade CC - ..., Lda., como empregado de escritório, mediante contrato de trabalho sem termo, desde pelo menos Junho de 1978 (Does. de fls. 99 e 100). 2. No início de 1982, o A. transitou com a mesma categoria, antiguidade e demais regalias para a ora R. (Does. de fls. 101 e 102), constituída pouco antes pelos mesmos sócios que a antes referida e ainda pelo Sr. DD. 3. A R. tem como principal actividade o aluguer de gruas. 4. O A. auferia ultimamente a retribuição de € 7,68 por hora de trabalho (Docs. de fls. 105 destes autos e 102 e 105 do apenso). 5. O A. trabalhava de 2.ª a 6.ª Feira, das 9HOO às 13HOO e das 14HOO às 17H30. 6. O A. exercia as suas funções de acordo com as ordens transmitidas pelos gerentes da R., designadamente o Sr. DD, que lhe distribuíam o trabalho a realizar, fiscalizavam a sua execução e controlavam a sua assiduidade (Docs. de fls. 103, 104 e 105 destes autos e 102, 104 e 105 do apenso). 7. Ao A. competiam tarefas na área dos recursos humanos, designadamente processamento de salários, descontos e declarações a enviar para a Segurança Social e IRS, e ainda facturação dos clientes, conferência de cartões de ponto com os discos de tacógrafos dos operadores das gruas, controle dos seguros automóveis, de trabalho, de responsabilidade civil, contacto com os mediadores, arquivo da facturação dos clientes e fornecedores, inscrição e renovação das licenças de circulação das gruas na DGV, controle das horas de funcionamento das gruas para efeitos de manutenção e envio de documentação dos trabalhadores para as obras. 8. Fazia-o no escritório das instalações onde a R. laborava, com instrumentos de trabalho a esta pertencentes. 9. A R. comunicou ao A. que prescindia dos seus serviços a partir de 1 de Maio de 2007, em virtude de ter sido vendido o parque de máquinas daquela, entregando-lhe a "Declaração" de fls. 106, […]. 10. Ao A. não foi instaurado qualquer processo disciplinar, com invocação de justa causa, nem lhe foi paga qualquer indemnização de antiguidade. 11. O A. sempre executou as suas funções na R. com zelo, pontualidade e observância das ordens dadas por aquela. 12. O A. não conseguiu encontrar trabalho desde que deixou de o fazer para a R., apesar de o procurar. 13. O A. e seu agregado familiar ficaram com dificuldades económicas em virtude de aquele ter ficado sem auferir qualquer rendimento proveniente do trabalho ou subsídio de desemprego. 14. O A. ficou abalado psicologicamente e teve que recorrer a apoio médico e medicamentoso. 15. A partir de Janeiro de 1986, para efeitos fiscais e de Segurança Social, o A. deixou de exercer as suas funções para a R. como trabalhador dependente e passou a fazê-lo como empresário em nome individual, com a actividade de "Angariador/Comissionista" (Docs. de fls. 54 a 65 do apenso). 16. Desde então, o valor da retribuição do A. deixou de ser estabelecido com referência ao mês e passou a sê-lo com referência à hora. 17. Desde então, por essa razão e em virtude ainda do provado sob o ponto 5., o A. recebia mensalmente da R. quantias variáveis (Docs. de fls. 54 a 65 do apenso). 18. A mencionada alteração da situação do A. resultou de proposta da R., que aquele aceitou. 19. Idêntica proposta foi feita a outros trabalhadores da R., tendo a mesma sido aceite por uns e recusada por outros, sem represálias. 20. O A. manteve-se na aludida nova situação, até ser dispensado pela R., sem fazer qualquer reclamação ou proposta de alteração.
III. FUNDAMENTOS DE DIREITO. a) Quanto às nulidades do Acórdão recorrido. Conforme estabelece, de forma singela, o artigo 77.º/1, do Código de Processo do Trabalho, a arguição de nulidade da sentença em processo laboral, deve ser feita, expressa e separadamente, no requerimento de interposição do recurso, sendo entendimento pacífico da jurisprudência que esta norma é também aplicável à arguição de nulidade da decisão da Relação, por força das disposições conjugadas dos artigos 1.º, n.º 2, alínea a), deste Código e 716.º/1, do Código de Processo Civil. Daí decorrendo, como também tem sido, reiteradamente, decidido por este Supremo Tribunal de Justiça, que essa arguição, quando feita unicamente no âmbito das alegações do recurso (para a Relação ou para o Supremo) é inatendível, devendo ser rejeitada. O procedimento é, pois, distinto do regime do processo civil comum, em que as nulidades da sentença ou do acórdão (com ressalva das respeitantes à falta de assinatura do juiz ou da omissão quanto a custas) devem ser arguidas nas próprias alegações de recurso (art. 668.º/4 do CPC). Na verdade, o legislador, desde o CPT de 1981, optou, decididamente, por um regime distinto para a arguição das nulidades em processo laboral, ao que se tem entendido, com o desiderato de uma maior celeridade e economia processual, ao permitir ao juiz recorrido a possibilidade de suprir qualquer nulidade antes de o recurso subir ao tribunal superior. Assim se prevendo e justificando que a arguição das nulidades seja feita no próprio requerimento de interposição de recurso dirigido ao juiz que proferiu a decisão e não em sede das alegações dirigidas ao tribunal de recurso. Mas, independentemente da justificação para este regime especial ser satisfatória, ou porventura discutível, o certo é que se tem de conviver com a opção do legislador, que adoptou um trato processivo que tem mantido ao longo de décadas, apesar das inovações na disciplina processual do direito do trabalho. Ora, no caso “sub specie” a Recorrente alega, na parte que interessa, que, ao fundamentar a decisão em meras suposições, opiniões ou preconceitos, absolutamente alheios à prova produzida, o Acórdão recorrido ofendeu irremediavelmente o vertido nos art°s 158°, 664° e alínea b), n° 1, art° 712° (a contrario) do Cod. do Processo Civil, pelo que nos termos do disposto nas alíneas c) e d) do n° 1, art° 668 do mesmo código e demais aplicáveis, deve o Acórdão recorrido ser revogado. Invoca, assim, a Recorrente a nulidade do Acórdão recorrido ao abrigo das citadas disposições legais. Sucede que no requerimento de interposição do recurso a Recorrente nada invocou quanto a esta matéria, pelo que lhe estava vetado vir a fazê-lo nas alegações de recurso. Assim, não se pode conhecer da alegada nulidade do Acórdão recorrido. b) Quanto à natureza do vínculo contratual. Como decorre dos arts. 676º/1 e 684º/3 do CPC, os recursos constituem os meios de impugnação de decisões proferidas pelos tribunais inferiores, pelo que o seu âmbito, por regra, está objectivamente delimitado pelas questões já colocadas ao tribunal de que se recorre. É neste sentido que a jurisprudência se tem manifestado, ou seja, de que com os recursos se visa a modificação de decisões impugnadas e não a produção de decisões sobre matéria nova, não sendo lícito, por isso, invocar nos recursos questões diferentes das que tenham sido objecto de apreciação nas decisões recorridas, nem devendo neles conhecer-se de questões que as partes não hajam suscitado no tribunal recorrido. A finalidade do recurso é essencialmente o reestudo por parte do tribunal superior de questões já vistas e apreciadas pelo tribunal inferior e não a pronúncia do tribunal superior sobre questões suscitadas de novo[1]. Obviamente que as “questões” a que nos reportamos são, essencialmente, as questões que se prendem com o mérito das pretensões formuladas pelas partes e que estas tiveram oportunidade de ter suscitado perante o tribunal recorrido, pois que, para além destas, outras há que podem ser apenas suscitadas ou conhecidas no tribunal superior, tais como as que são de conhecimento oficioso e aquelas que são inerentes a vícios, sobretudo de natureza processual, da sentença recorrida. A questão da natureza do vínculo laboral foi tratada na sentença proferida pela 1.ª instância, nela se concluindo pela existência de um contrato de trabalho subordinado entre as partes em litígio. Sucede que a ora Recorrente não sindicou então a decisão da 1.ª instância, pois que dela não recorreu para a Relação. Assim, atento o disposto no art. 671.º/1 do CPC, este segmento da decisão transitou em julgado, sendo que a autoridade do caso julgado tem o efeito positivo de impor a primeira decisão como pressuposto indiscutível de embargo de uma segunda decisão de mérito. Esta força obrigatória que é conferida à decisão transitada em julgado tem por finalidade precaver a segurança na aplicação do direito, conferindo-se certeza ao termo da relação material controvertida e preservando-se o prestígio na administração da justiça, sobretudo com vista a evitar-se que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (art. 497º/2 do CPC). Daí que a Recorrente suscita não só uma questão nova, como também uma questão sobre a qual já existe decisão transitada em julgado pelo que dela se não conhece. c) Quanto ao abuso do direito. Nos termos do art. 334º CC "é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito". Perante o preceituado neste artigo, o exercício do direito não deve exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé, por a todos se impor uma conduta de acordo com os padrões da diligência, da honestidade e da lealdade exigíveis no comércio jurídico. Assim, os sujeitos de determinada relação jurídica devem actuar como pessoas de bem, com correcção e probidade, de modo a contribuir, de acordo com o critério normativo do comportamento, para a realização dos interesses legítimos que se pretendam atingir com a mesma relação jurídica. Os limites impostos pela boa fé são excedidos, designadamente, quando alguém pretenda fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior, quando tal conduta objectivamente interpretada, de harmonia com a lei, justificava a convicção de que se não faria valer o mesmo direito. O mesmo se diga dos limites impostos pelos bons costumes, ou seja, pelo conjunto de regras éticas de que costumam usar as pessoas sérias, honestas e de boa conduta na sociedade onde se inserem. Por outro lado, os direitos devem ser exercidos de acordo com o fim social e económico para que a lei os concebeu. Se forem exercidos para fins diferentes daqueles para que a lei os consagrou, ainda que tal exercício seja útil ao seu autor, poderá haver abuso do direito, se tal exercício ofender claramente a consciência social dominante. Para Manuel de Andrade “há abuso do direito quando o direito, legitimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante; e a consequência é a de o titular do direito ser tratado como se não tivesse tal direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito extracontratual”[2]. De outro ponto de vista, o acto abusivo é, em regra, no pensamento de Vaz Serra, o acto de exercício de um direito que, intencionalmente, causa danos a outrem, por forma contrária à consciência jurídica dominante na colectividade social. Só excepcionalmente se prescindindo da intenção de prejudicar terceiros quando a contraditoriedade àquela consciência, isto é, à boa fé e aos bons costumes, for clamorosa ou quando o direito for exercido para fim diverso daquele para que a lei o concede[3]. Noutra perspectiva, para A. Varela, "para que haja lugar ao abuso do direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito”[4]. Daí que o exercício de um direito só poderá haver-se por abusivo quando exceda manifesta, clamorosa e intoleravelmente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito, ou seja, quando esse direito seja exercido em termos gritantemente ofensivos da justiça ou do sentimento jurídico socialmente dominante[5]. Na sequência do ensinamento dos ilustres mestres, poder-se-á dizer, em síntese, que existirá abuso do direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, apodicticamente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado. Como figura integradora de comportamento típico de abuso do direito poderá mencionar-se, entre outras que aqui não importa considerar, a do “venire contra factum proprium”. Na sua estrutura, o “venire” pressupõe duas condutas da mesma pessoa, ambas lícitas, mas assumidas em momentos distintos e distanciadas no tempo, em que a primeira (o “factum proprium”) é contraditada pela segunda (o “venire”), de modo que essa relação de oposição entre as duas justifique a invocação do princípio do abuso do direito. O “venire” tem a sua razão de ser no princípio da confiança enquanto exigência de que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido conduzidas a acreditar na manutenção de determinados comportamentos da comunidade humana, que se encontra organizada na base de relacionamentos estáveis, em que cada um deve ser congruente, não mudando, constante e arbitrariamente, de condutas, mormente que sejam prejudiciais para outrem. A questão que se coloca no caso vertente é a de saber se o Autor ao propor a presente acção contra a Ré actuou com abuso do direito. Vem provado que A. trabalhou por conta e sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré como empregado de escritório, auferindo ultimamente a retribuição de € 7,68 por hora de trabalho, trabalhando de 2.ª a 6.ª feira, das 9HOO às 13HOO e das 14HOO às 17H30, exercendo as suas funções, na área dos recursos humanos, no escritório das instalações onde a R. laborava, com instrumentos de trabalho a esta pertencentes e de acordo com as ordens transmitidas pelos gerentes da R., que lhe distribuíam o trabalho a realizar, fiscalizavam a sua execução e controlavam a sua assiduidade. Sucede que a partir de Janeiro de 1986, para efeitos fiscais e de Segurança Social, o A. deixou de exercer as suas funções para a R. como trabalhador dependente e passou a fazê-lo como empresário em nome individual, com a actividade de "Angariador/Comissionista" e, desde então, o valor da retribuição do A. deixou de ser estabelecido com referência ao mês e passou a sê-lo com referência à hora, recebendo mensalmente da R. quantias variáveis. A mencionada alteração da situação do A. resultou de proposta da R., que aquele aceitou e o A. manteve-se na aludida nova situação, até ser dispensado pela R., sem fazer qualquer reclamação ou proposta de alteração, sendo que idêntica proposta foi feita a outros trabalhadores da R., tendo a mesma sido aceite por uns e recusada por outros, sem represálias. Na sentença proferida na 1.ª instância entendeu-se, perante a facticidade descrita, que o Autor ao propor a presente acção actuou com abuso do direito e em consequência absolveu-se a Ré do pedido, aduzindo-se para o efeito, entre o mais, o seguinte: Porém, entendimento diferente foi seguido pelo Tribunal da Relação, com a seguinte fundamentação: Ora, não está em discussão saber se o contrato pelo qual o Autor esteve ligado à Ré deve ser caracterizado como de trabalho ou se como de prestação de serviço, pois que essa questão foi decidida na primeira instância no sentido de se considerar como de trabalho subordinado, sendo que a Ré não recorreu da sentença, pelo que se considera transitado em julgado que o contrato dos autos é de tal natureza. Também não é objecto de discussão saber se houve, ou não, despedimento. Assim sendo, igualmente não está em causa ter o Autor direito a impugnar o despedimento e de reclamar quantias com tal fundamento. O que está em discussão é saber se o Autor, ao intentar a acção, actuou com abuso do direito, tomando em consideração o modo como se desenvolveu a relação de trabalho nos últimos 21 anos da sua existência, em que as partes, por mútuo acordo lhe deram a aparência de um contrato de prestação de serviço, trabalhando o Autor como empresário em nome individual, com a actividade de "Angariador/Comissionista" e sendo remunerado em função do número de horas disponibilizadas. Sabendo-se ainda que perante as entidades fiscais e a Segurança Social o contrato foi configurado como contrato de prestação de serviço, o que foi feito de comum acordo e, certamente, no interesse de ambas as partes, designadamente do Autor, pois que, de contrário, não teria anuído à proposta de alteração do regime laboral do seu contrato, sendo que teve liberdade para a aceitar, visto que outros trabalhadores recusaram proposta idêntica e não foram objecto de qualquer represália. Ao aceitar a mudança que se operou no seu estatuto laboral, com os inerentes benefícios, não podia o Autor deixar de aceitar as respectivas inconveniências, entre elas a de ver o seu contrato moldado por um contrato de prestação de serviços, no âmbito do qual poderia vir a ser dispensado, sem o cumprimento das legais formalidades do despedimento. É certo que o contrato, apesar de tudo, se continuou a desenvolver dentro de certos parâmetros, próprios de um contrato de trabalho, designadamente da fiscalização e orientação do trabalho, mas tal não é bastante para afastar o tipo de contrato que as partes não podiam deixar de considerar celebrado a partir do momento em que resolveram proceder à alteração acima referida. Quer dizer: o Autor ao aceitar passar a trabalhar para a Ré como empresário em nome individual e a ser remunerado em função das horas de trabalho prestadas e de dentro deste modelo se relacionar com as entidades fiscais e da Segurança Social, não podia deixar de aceitar a eventualidade de ver cessado o seu contrato sem poder usufruir das garantias inerentes a um inequívoco contrato de trabalho subordinado, nomeadamente de só poder ser dispensado mediante justa causa e o formalismo do processo disciplinar. Por sua vez a entidade empregadora, que teve a iniciativa de propor a alteração dos termos do contrato, poderá ter ficado no aceitável convencimento de que, a ter de fazer cessar o contrato do Autor, não necessitava de cumprir o formalismo próprio do despedimento. E tendo-se mantido, por cerca de 21 anos, a nova situação da relação de trabalho, sem reparo por parte do Autor, mais se deveria ter cimentado entre as partes o modelo da nova relação. Assim, tem de se concluir que o Autor, ao vir, através da presente acção, a invocar um despedimento ilícito, por não ter sido precedido de processo disciplinar, veio assumir uma conduta contrária àquela que teve ao aceitar a alteração do seu contrato com a Ré, por então ter aceitado consequências que agora pretende rejeitar. Ou seja, ao propor a presente acção, o Autor actuou com abuso do direito nos termos do artigo 334.º do CC, como bem se entendeu na decisão proferida em 1.ª instância, porque sendo embora detentor do direito à presente demanda, exercita-o, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, claramente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente por criar uma desproporção objectiva entre a utilidade que pretende alcançar e as consequências a suportar pela Ré contra a qual é invocado. Procedem, por isso, no essencial, as conclusões do recurso, sendo de revogar a decisão recorrida. IV. DECISÃO: Em conformidade com os fundamentos expostos, concede-se a Revista, revoga-se a decisão recorrida e repristina-se a decisão da 1.ª instância.
Custas neste Supremo Tribunal e nas instâncias pelo Autor.
[Anexa-se o sumário elaborado nos termos do artigo 713, n.º 6, do CPC]
Lisboa, 16 de Novembro de 2011.
Pereira Rodrigues (Relator) Pinto Hespanhol Fernandes da Silva _______________________ |