ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
29/04.0JDLSB.L1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 10/26/2011
SECÇÃO 3ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL RECURSO PENAL
DECISÃO ORDENADO A REMESSA À RELAÇÃO DE LISBOA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR RAUL BORGES

DESCRITORES REABERTURA DA AUDIÊNCIA
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL COLECTIVO
RECURSO PENAL
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
APLICAÇÃO DA LEI PENAL NO TEMPO
FALSIFICAÇÃO
BURLA QUALIFICADA
CONCURSO DE INFRACÇÕES
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DECISÃO QUE PÕE TERMO À CAUSA

SUMÁRIO
I - Os arguidos requereram a reabertura da audiência, pretendendo que fosse decidido que a actual redacção do n.º 1 do art. 256.º do CP lhes era mais favorável do que a redacção anterior, pois assim passaria a haver concurso aparente entre os crimes de falsificação de documentos e os crimes de burla por que ambos foram condenados. No acórdão recorrido foi indeferido o pedido e considerado ser de manter a tese de existência de concurso real entre os crimes de falsificação de documento e de burla qualificada, não havendo razões para afastar a doutrina do acórdão uniformizador n.º 8/2000, de 04-05-2000, publicado no DR n.º 119, Série I-A, de 23-05-2000, que os arguidos consideram ter perdido eficácia.

II - Do confronto das penas aplicadas aos arguidos resulta que a pena de prisão mais elevada é a de 3 anos e 6 meses no caso do recorrente A e de 1 ano e 9 meses no caso do recorrente B. Mas, em relação a todas e cada uma das penas, aplicadas em 1.ª instância, após confirmação total pela Relação, o STJ considerou o acórdão irrecorrível, no que respeitava às penas parcelares, em relação a todas elas, conhecendo dos recursos, tão só no que tangia às penas únicas.

III - Este acórdão do STJ foi proferido em tempo em que estava em vigor a anterior redacção do art. 432.º do CPP, que se reportava a penalidades e actualmente o regime é mais restritivo, referindo as penas aplicadas.

IV - O objectivo do presente recurso não é o conhecimento da pena única, que transitou em julgado; a pretensão de reabertura de audiência dirigiu-se aos crimes de falsificação de documento e de burla qualificada, e no caso do recorrente B ainda ao crime de posse ilegal de arma de defesa.

V - Do disposto no art. 432.º do CPP retira-se que a admissibilidade de recurso para o STJ depende da conjugação de quatro pressupostos:
1) a natureza e categoria do tribunal – tribunal colectivo ou do júri;
2) a natureza da decisão proferida – decisão final;
3) a aplicação (agravamento, manutenção ou redução) de uma concreta medida da pena;
4) a dimensão da pena efectivamente aplicada – superior a 5 anos.

VI - No caso dos autos, “decisão que pôs termo à causa” ou “decisão final”, foi o acórdão condenatório da 1.ª instância, que submetido a reapreciação de tribunal superior, mereceu a concordância total do Tribunal da Relação, e que no exercício de um duplo grau de recurso por parte dos arguidos, e terceira hipótese de apreciação do feito, veio a concitar o não provimento do recurso, pelo acórdão do STJ, de 21-06-2007, quanto à medida das penas únicas, e transitado em julgado em Julho de 2007, pois foi aí que se apreciou a “causa”, isto é, o objecto do processo definido pela acusação. E como essa decisão, após audiência, apreciou o mérito, entretanto, reavaliado e reconfirmado em dois graus de recurso, trata-se, também, de uma “decisão final”.

VII - Na presente situação, a decisão de que se pretende recorrer é um acórdão proferido por tribunal colectivo, que não conheceu do objecto do processo, apreciando a pretensão de aplicação de lei nova mais favorável, que indefere, pelo que se mantêm as penas aplicadas. O acórdão ora recorrido não aplicou nenhuma pena, apenas por desconsiderar a aplicação de lei mais favorável, indeferiu a pretensão dos recorrentes, o que conduziu à manutenção das penas aplicadas.

VIII - Quando o acórdão recorrido não é um acórdão condenatório, nem absolutório, nem conheceu, a final, do objecto do processo, nem lhe pôs termo, não admite recurso para o STJ. Não cabendo ao caso recurso directo para o STJ, segue-se a regra geral: de decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância recorre-se para a Relação – art. 427.º do CPP.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL

No âmbito do processo comum com intervenção de tribunal colectivo n.º 29/04.0JDLSB do 2.º Juízo de Competência Criminal de Oeiras, foram submetidos a julgamento os arguidos AA, BB, CC, DD e EE.

Por acórdão datado de 24-03-2006, constante de fls. 3881 a 3993, do 18.º volume, foi deliberado, para além do mais:

Condenar:

I - O arguido AA, pela prática, em co-autoria material e em concurso efectivo, dos crimes a seguir indicados, nas seguintes penas:

a) - um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art.° 299.°, n.°s 1, 2 e 3, do C. Penal, com a pena de 3 (três) anos de prisão;

b) - seis crimes de falsificação de documento, cada um deles na forma continuada (em relação às firmas ofendidas “FF”, “GG”, “HH”, “II”, “JJ” e “KK”), p. e p. pelos art.ºs 30.°, n.° 2, 79.° e 256.", n." 1, als. a) e c) e n.º 3, do C. Penal, com a pena de 15 (quinze) meses de prisão por cada um desses crimes;

c) - um crime de falsificação de documento, na forma continuada (em relação à firma ofendida “LL”), p. e p. pelos art.°s 30.º, n.º 2, 79.º e 256.°, n.° 1, als. a) e c), do C. Penal, com a pena de 9 (nove) meses de prisão;

d) - dois crimes de burla qualificada (em que são ofendidas as firmas “FF”, “GG”), p. e p. pelos art.ºs 217.º, n.º 1 e 218.º, n.° 2, al. a) do C. Penal, com referência ao art.º 202.º al. b) do mesmo Código, com a pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão por cada um desses crimes;

e) - dois crimes de burla qualificada (em que são ofendidas as firmas “II” e “LL”), p. e p. pelos art.ºs 217.º, n.º 1 e 218.º, n.° 2, al. a) do C. Penal, com referência ao art.º 202.º al. b) do mesmo Código, com a pena de 3 (três) anos de prisão por cada um desses crimes;

f) - um crime de burla qualificada (em que é ofendido o Banco “HH”), p. e p. pelos art.ºs 217.º, n.° 1 e 218.º, n.º 2, al. a) do C. Penal, com referência ao art.º 202.º al. b) do mesmo Código, com a pena de 2 (dois) anos e 9 (nove) meses de prisão;

g) - um crime de burla qualificada (em que é ofendido o “KK”), p. e p. pelo art.ºs 217.°, n.º 1 e 218.º, n.° 1 do C. Penal, com referência ao art.º 202.º al. a) do mesmo Código, com a pena de 18 (dezoito) meses de prisão;

h) - um crime de burla qualificada, na forma tentada (em que é ofendida a firma “JJ”), p. e p. pelos art.ºs 22.º, 23.º, 73.º, 217.°, n.° 1 e 218.º, n.° 2, al. a) do C. Penal, com referência ao art.º 202.º al. b) do mesmo Código, com a pena de 12 (doze) meses de prisão.

Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 9 anos e 6 meses de prisão.

II - O arguido BB, pela prática, em co-autoria material e em concurso efectivo, dos seguintes crimes, nas penas parcelares:

a) - um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art.º 299.°, n.°s 1 e 2 do C. Penal, com a pena de 2 anos de prisão;

b) - seis crimes de falsificação de documento, cada um deles na forma continuada (em relação às firmas ofendidas “FF”, “GG”, “HH”, “II”, “JJ” e "KK"), p. e p. pelos art.°s 30.°, n.° 2, 79.° e 256.º, n.º 1, als. a) e c) e n.º 3, do C. Penal, com a pena de 15 meses de prisão por cada um desses crimes;

c) - um crime de falsificação de documento, na forma continuada (em relação à firma ofendida “LL”), p. e p. pelos art.ºs 30.º, n.° 2, 79.º e 256.°, n.° 1, als. a) e c), do C. Penal, com a pena de 9 meses de prisão;

d) - dois crimes de burla qualificada (em que são ofendidas as firmas “FF”, “GG”), p. e p. pelos art.ºs 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, al. a) do C. Penal, com referência ao art.º 202.º al. b) do mesmo Código, com a pena de 3 anos e 6 meses de prisão por cada um desses crimes;

e) - dois crimes de burla qualificada (em que são ofendidas as firmas “II” e “LL”), p. e p. pelos art.ºs 217.°, n.º 1 e 218º, n.º 2, al. a) do C. Penal, com referência ao art.º 202.º al. b) do mesmo Código, com a pena de 3 anos de prisão por cada um desses crimes;

f) - um crime de burla qualificada (em que é ofendido o Banco “HH”), p. e p. pelos art.°s 217.º, n.º 1 e 218.º, n.° 2, al. a) do C. Penal, com referência ao art.º 202.° al. b) do mesmo Código, com a pena de 2 anos e 9 meses de prisão;

g) - um crime de burla qualificada (em que é ofendido o “KK”), p. e p. pelo art.°s 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1 do C. Penal, com referência ao art.º 202.º al. a) do mesmo Código, com a pena de 18 meses de prisão;

h) - um crime de burla qualificada, na forma tentada (em que é ofendida a firma “JJ”), p. e p. pelos art.ºs 22.°, 23.º, 73.º, 217º, n.° 1 e 218.º, n.º 2, al. a) do C. Penal, com referência ao art.º 202.º al. b) do mesmo Código, com a pena de 12 meses de prisão;

i) - pela prática, em autoria material, de um crime de detenção ilegal de arma de defesa, p. e p. pelo art.º 6.º da Lei n.º 22/97, de 27/6, com a pena de 7 meses de prisão.

Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 9 anos de prisão.

III - O arguido CC, pela prática, em co-autoria material e em concurso efectivo, dos seguintes crimes, nas seguintes penas parcelares:

a) - um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art.º 299.°, n.°s 1 e 2 do C. Penal, com a pena de 2 (dois) anos de prisão;

b) - seis crimes de falsificação de documento, cada um deles na forma continuada (em relação às firmas ofendidas “FF”, “GG”, “HH”, “II”, “JJ” e “KK”), p. e p. pelos art.°s 30°, n.° 2, 79.° e 256.º, n.º 1, als. a) e c) e n.º 3, do C. Penal, com a pena de 15 meses de prisão por cada um desses crimes;

c) - um crime de falsificação de documento, na forma continuada (em relação à firma ofendida “LL”), p. e p. pelos art.°s 30.°, n.° 2, 79.º e 256.°, n.° 1, als. a) e c), do C. Penal, com a pena de 9 (nove) meses de prisão;

d) - dois crimes de burla qualificada (em que são ofendidas as firmas “FF”, “GG”), p. e p. pelos art.ºs 217.°, n.º 1 e 218.º, n.° 2, al. a) do C. Penal, com referência ao art.º 202.º al. b) do mesmo Código, com a pena de 3 anos de prisão por cada um desses crimes;

e) - dois crimes de burla qualificada (em que são ofendidas as firmas “II” e “LL”), p. e p. pelos art.ºs 217.º, n.° 1 e 218.°, n.° 2, al. a) do C. Penal, com referência ao art.º 202.º al. b) do mesmo Código, com a pena de 2 anos e 9 meses de prisão por cada um desses crimes;

f) - um crime de burla qualificada (em que é ofendido o Banco “HH”), p. e p. pelos art.°s 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, al. a) do C. Penal, com referência ao art.º 202.º al. b) do mesmo Código, com a pena de 2 anos e 6 meses de prisão;

g) - um crime de burla qualificada (em que é ofendido o “KK”), p. e p. pelo art.°s 217.º, n.º 1 e 218.º, n.° 1 do C. Penal, com referência ao art.º 202.º al. a) do mesmo Código, com a pena de 15 meses de prisão;

h) - um crime de burla qualificada, na forma tentada (em que é ofendida a firma “JJ”), p. e p. pelos art.°s 22.º, 23.º, 73.°, 217°, n.° 1 e 218.º, n.° 2, al. a) do C. Penal, com referência ao art.º 202.º al. b) do mesmo Código, com a pena de 9 meses de prisão;

Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão.

Todos os arguidos interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que por acórdão de 19-12-2006, constante de fls. 4715 a 5024, do 21.º volume, negou provimento a todos os recursos interpostos, mantendo na íntegra o acórdão recorrido.

Inconformados com a confirmação total, interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça os arguidos AA, BB, CC e EE.

Apenas os arguidos AA e EE impugnaram as regras de formulação de cúmulo jurídico e as penas únicas.

Por se afigurar que eram inadmissíveis os recursos, nos termos do artigo 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), do CPP, com excepção das penas únicas, foram remetidos os autos a conferência.

Por acórdão datado de 03-05-2007, constante de fls. 5250 a 5258, do 23.º volume, foi deliberado rejeitar os recursos interpostos quanto às penas singulares aplicadas e demais questões colocadas, nos termos do artigo 400.º, n.º 1, alíneas e) e f) e artigo 420.º, n.º 1, do CPP, entendendo-se que a decisão recorrida apenas seria objecto de revista na parte relativa à medida das penas únicas aplicadas por todas elas ultrapassarem, no máximo aplicável, 8 anos de prisão.

       Os recursos prosseguiram para audiência para apreciação da questão da medida das penas únicas aplicadas.

       Por acórdão datado de 21-06-2007, constante de fls. 5293 a 5342, cujo objecto estava circunscrito à medida das penas únicas, foi negado provimento aos quatro recursos.    

Posteriormente, os arguidos BB, AA e CC vieram requerer reabertura da audiência nos termos do artigo 371.º- A, do CPP.

       O primeiro apresentando o requerimento de fls. 6076 a 6080.

       O segundo veio a fls. 6109 manifestar a sua adesão ao requerimento anterior, dizendo subscrevê-lo.

       O terceiro através de fls. 6117 a 6122.

       Realizada a audiência, foi proferido acórdão, constante de fls. 6243 a 6260, datado de 28-04-2011, lido em 02-05-2011 e depositado em 04-05-2011 (fls. 6263 e 6264 – cfr. fls. 6212), tendo sido deliberado “indeferir o pedido dos arguidos AA, BBe CC, mantendo-se, nos exactos termos, as suas condenações”.

       Inconformados com tal decisão, os arguidos BBe CC interpuseram recurso dirigido ao Tribunal da Relação de Lisboa.

       O primeiro apresentando a motivação de fls. 6277 a 6308, que remata com as seguintes conclusões:

«Da questão prévia da competência do Tribunal da Relação para conhecer do presente recurso

63° - Face ao exposto, e pelas razões supra expostas, visto o recurso do arguido ser subordinado só a matéria de direito e estando essas questões directamente relacionadas com os crimes em que o arguido foi condenado a penas de prisão inferiores a 5 anos, conforme a doutrina e a jurisprudência já citadas, entende o mesmo que o seu recurso deverá ser interposto directamente para o TRL, nos termos dos arts. 427° e 428° do CPP, por ser este o tribunal que tem a competência material para decidir do mesmo, o que para os devidos efeitos desde já se requer.

- Concurso Aparente

64° - Em conclusão, e pelas razões supra referidas sobre esta matéria, as quais aqui damos por reproduzidas, para efeitos do art. 412°, n° 2, als. a) e b), do CPP, podemos afirmar que o douto acórdão recorrido violou os arts. 256°, 217° e 218° quando conjugados com os arts. 30° e 77°, todos eles do CP, com a interpretação que fez destes normativos no sentido de que há concurso real e efectivo entre os crimes de falsificação de documento e de burla, ainda que o 1° tenha sido cometido única e exclusivamente com a intenção de preparar, executar, encobrir ou facilitar o segundo, dado que ambos os crimes protegem bens jurídicos distintos, quando na realidade se o crime de falsificação de documento for cometido exclusivamente para as já aludidas intenções torna-se parte constitutiva (elemento) do próprio crime de burla, esgotando-se aí a sua danosidade social e ficando assim em concurso aparente com o crime fim (burla).

Ou seja, o concurso de crimes é aparente sempre que a prática desses crimes for dominada pelo mesmo e único sentido de ilicitude e haja unidade dos concretos ilícitos praticados, ainda que esses crimes em concurso possam proteger bens jurídicos distintos.

65° - Ainda para efeitos do art. 412°, n° 2, al) c, do CPP, podemos afirmar que nos casos em apreço há concurso aparente entre os crimes de burla qualificada (1 dos quais na forma tentada) e os respectivos crimes de falsificação de documentos que lhe estão subjacentes.

Assim sendo, nos termos dos arts. 256°, 217° e 218°, conjugados com os arts. 30° e 77°, todos eles do CP, deverá o arguido ser condenado apenas em 7 crimes de burla qualificada (um dos quais na forma tentada) devendo considerar-se nestes os ilícitos excedentes em termos de medida da pena, devendo assim o arguido ser absolvido de todos os crimes de falsificação de documento em que foi condenado.

66° - Ainda para efeitos do art. 412°, n° 2, als. a) e b), do CPP, podemos afirmar que o tribunal recorrido violou o art. 445°, n° 3, do CPP, com a interpretação que fez deste normativo; ao ignorar, na fundamentação do acórdão recorrido que desde que foi fixado o acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n° 8/2000 já houve uma alteração ao CP e também que o arguido juntou aos autos o acórdão do TRL de 29/6/210, processo 4395/03.6TDLSB LI-5, no qual se fundamenta a existência de 7 novos dados que impõem a ultrapassagem do aludido acórdão do STJ, dando-se assim cumprimento ao disposto no n° 3 do já aludido normativo. Assim sendo, deveria o tribunal recorrido ter considerado que o recorrente fundamentou a sua divergência, face ao aludido acórdão 8/2000 do STJ, que em face dessa divergência foram apontados 7 dados novos que contrariam esse acórdão, dados esses que caso o tribunal não aceitasse deveriam ter sido afastados por este de forma clara e devidamente fundamentada nos termos dos arts. 374, n° 2, do CPP e 205°, n° 1 da CRP, o que na prática nunca sucedeu limitando-se o tribunal a dizer que não há dados novos que permitam contrariar ou afastar o acórdão 8/2000 do STJ.

67° - Finalmente e ainda para efeitos do art. 412°, n° 2, als. a) e b) podemos afirmar que a divergência entre a decisão do acórdão recorrido e a decisão do acórdão do TRL supra referido provoca uma desigualdade perante a lei, já que pelo mesmo tipo de factos ilícitos num processo os arguidos acabam condenados em 2 crimes e no outro num só crime. São assim prejudicados os arguidos condenados nestes autos face aos arguidos condenados no douto acórdão do TRL supra referido o que para os devidos efeitos constitui uma desigualdade perante a lei e como tal viola o disposto no art. 13° da CRP e torna o acórdão recorrido inconstitucional por força do disposto no art. 204° da CRP, o que para os devidos efeitos desde já se refere com todas as legais consequências dai advenientes.

 Penas de multa

68° - Assim, e pelas razões supra referidas sobre esta matéria, as quais aqui damos por reproduzidas, para efeitos do art. 412°, n° 2, als. a) e b), do CPP, podemos dizer que o tribunal recorrido violou os arts. 43°, n° 1 e 77°, ambos do CP, com a interpretação que fez destas normas conjugadas, de que o disposto no art. 43°, n° 1 só se podia aplicar em momento posterior ao previsto no art. 77°, quando na prática tendo sido o arguido condenado nas penas parcelares de 1 ano de prisão por tentativa de burla e 7 meses de prisão por posse de arma de defesa ilegal, sendo esses crimes todos eles puníveis com penas alternativas de prisão ou multa, nada obsta a que tendo o arguido sido condenado em cada um desses crimes em pena de prisão o tribunal possa, nos termos do art. 43°, n° 1, substituir cada uma dessas penas por multa, tendo em vista as necessidades preventivas aplicáveis a cada 1 desses crimes em concreto e que após esse procedimento essas penas possam ser todas cumuladas com as restantes penas de prisão aplicadas no acórdão ao arguido, dando assim origem a 1 pena única de natureza diversa nos termos do art. 77° n° 3.

69° - Assim, ainda para efeitos do art. 412°, n° 2, al. c), do CPP, podemos dizer que, no nosso entendimento, face ao juízo de prognose favorável e pelas circunstâncias já aduzidas na nossa motivação, as penas parcelares de 1 ano por tentativa de burla e de 7 meses por posse de arma de defesa ilegal, aplicadas ao arguido deverão nos termos do art. 43°, n° 1, do CP, ser substituídas por multas e posteriormente cumuladas com as restantes penas de prisão nos termos do art. 77°, n° 3, do CP o que para os devidos efeitos desde já se requer.

70° - Cúmulo Jurídico/Nova Pena

Pelas razões supra expostas, nos números 52° a 62° da presente motivação, as quais aqui damos por inteiramente reproduzidas para todos os efeitos legais, deverá a nova pena única, a aplicar ao recorrente, quedar - se pelos 5 anos de prisão. Suspensa, contudo, na sua execução, ainda que sujeita a regime de prova.

O arguido CC apresentou a motivação de fls. 6316 a 6329, condensando as razões de discordância nas seguintes conclusões:

1º - Por factos ocorridos no último trimestre de 2003, foi o arguido, ora recorrente, julgado e condenado nos presentes autos, por acórdão de 24-03-2006, transitado em julgado, pela prática de 1 crime de associação criminosa na pena de 2 anos de prisão; 6 crimes de falsificação de documento agravado, cada um deles na forma continuada (artigo 256°, n°1, al.a) e c) e n°3 do CP) na pena de 15 meses de prisão por cada; 1 crime de falsificação de documento na forma continuada (artigo 256°, n°1, al.a) e c) do CP) na pena de 9 meses de prisão; 6 crimes de burla qualificada (artigo 217, n°1 e 218°, n°a, al.a) do CP) nas penas parcelares de 3 anos de prisão por dois dos crimes, 2 anos e 9 meses de prisão por dois dos crimes, 2 anos e 6 meses de prisão por um dos crimes e 15 meses de prisão por um dos crimes; 1 crime de burla qualificada na forma tentada (artigo 217°, n°1 e 218°, n°2 do CP) na pena de 9 meses de prisão, tendo sido condenado na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão.

2º - Encontrando-se o arguido preso e ainda em cumprimento de pena à ordem dos presentes autos, veio o arguido, ora recorrente, requerer abertura de audiência, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 371 °-A do CPP, com vista a que lhe fosse aplicado o regime penal mais favorável decorrente das alterações introduzidas pela Lei 59/07 de 04-09-2007, do qual resulta dever ser absolvido dos crimes de falsificação pelos quais foi condenado, por se mostrarem em concurso aparente com os crimes de burla pelos quais vinha acusado e que foi efectivamente condenado.

3º - Isto porque, existe jurisprudência e doutrina, actualmente mais fortalecida pela nova redacção do n°1, do artigo 256° do CP, em que se afirma que, no caso da conduta do agente preencher as previsões destes dois crimes (falsificação como crime-meio e burla como crime-fim) verifica-se um concurso aparente, consumindo o crime de burla, o crime de falsificação de documentos

4º - O arguido, ora recorrente, firmou a sua pretensão, no facto de face à nova redacção da lei penal, existir concurso aparente entre os crimes de falsificação de documento praticados pelo arguido e os crimes de burla por que foi igualmente condenado, já que os primeiros foram praticados com o único fim de burlar os ofendidos.

5º - No entanto, o acórdão do qual se recorre considera a fls.11 que o legislador na nova redacção do n°1 do artigo 256°, veio consagrar um alargamento de um dos pressupostos do tipo, atinente ao fim ou à motivação do agente, acrescentando que também pratica o crime de falsificação quem, lançando mão de uma das acções de falsificação previstas nas alíneas a) e f) do normativo, o faz com vista a preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.

6º - Entendendo o Colectivo de Juízes do Tribunal Judicial da Comarca de Oeiras, que a nova redacção do artigo 256°, n°1, não afasta directa ou indirectamente a jurisprudência firmada no acórdão de fixação de jurisprudência do STJ de 19-02-92 e Assento do STJ n° 8/2000, sendo que no seu entender, “(...) veio exactamente consagrar a posição firmada no aludido Assento, ao prever que pratica o crime de falsificação de documento quem falsificar ou usar documento falso com o único propósito de preparar, ou facilitar, ou executar ou encobrir outro crime, assim como pratica, em concurso real, o crime fim.”

7º - Na realidade, tanto a doutrina como a jurisprudência consideram que actualmente existem 7 novos dados que impõem a ultrapassagem da fixação de jurisprudência dos acórdãos do STJ quanto ao concurso de crimes de falsificação e de burla, quando aquele é utilizado exclusivamente para conseguir o crime de burla conforme se verifica pela leitura de vários acórdãos dos vários Tribunais da Relação, nomeadamente no acórdão da Relação de Lisboa de 28/06/2010, acórdão da Relação de Coimbra de 23/03/2011 e igualmente do Tribunal da Relação do Porto.

8º - Aliás, o próprio acórdão assim o refere, (que a falsificação foi apenas um crime-meio), de fls. 10 e 11, onde se pode ler: “(...) sabiam os arguidos também que a documentação que utilizaram (cópia do balancete mensal e do balancete mensal acumulado respeitante a Setembro de 2003, o modelo 22 de IRC e a declaração anual de informação contabilística e fiscal respeitante ao ano de exercício de 2002, reconhecimentos de assinaturas) não era verdadeira”.

9º - (...) que a finalidade dos contratos e demais documentação apresentada pelos arguidos às respectivas vendedoras e financiadoras, e concretamente as livranças e os cheques (...) era adequada a produzir um engano ou a induzir em erro aqueles a quem foram entregues, fazendo crer que tal documentação tinha sido subscrita pelos respectivos titulares(...)", a fls. 76 e 77.

10° - Acresce que no caso em que o arguido foi acusado de burla sem recurso à utilização de qualquer documentação falsificada, o mesmo veio a ser absolvido, por se entender que a sua conduta não preenchia nenhum tipo de ilícito criminal, tratando-se apenas de matéria de natureza estritamente civil, acórdão de 24-03-2006, fls. 81, 82, 83.

11° - Face aos factos dados como provados, os crimes de falsificação cometidos pelo arguido foram o meio com que cometeu o crime de burla. E apenas com o fim de cometer o crime de burla é que falsificou (e usou) os documentos, não tendo estes servido para mais nenhum efeito, o que vem de encontra ao pensamento da actual doutrina e jurisprudência.

12° - Ora, este crime meio, nestas circunstâncias, não deve ser punido em concurso efectivo com o crime fim.

13° - O crime meio deve servir apenas de factor de agravação da pena dentro da moldura com que deva ser punido o crime de burla, com o qual está em concurso aparente. A punição autónoma do crime de falsificação, representa uma dupla valoração dos factos, ora como factos integradores do crime de burla, ora como factos integradores do crime de falsificação, o que é constitucionalmente inadmissível.

14° - É bem verdade que os acórdãos de uniformização de jurisprudência, nomeadamente o Assento 8/2000 de 04-01-2000, referem que, no caso de concurso entre os crimes de burla e de falsificação de documento, verifica-se um concurso real, já que os bens jurídicos tutelados são diferentes.

15° - No entanto, existe jurisprudência e doutrina, actualmente mais fortalecida pela nova redacção do n°1, do artigo 256° do CP, em que se afirma que, no caso da conduta do agente preencher as previsões destes dois crimes, verifica-se um concurso aparente, e assim o crime de burla consome o crime de falsificação de documentos.

16° - A jurisprudência actual, bem como a doutrina entendem que no concurso aparente de infracções, o campo de aplicação assemelha-se a dois círculos concêntricos, de forma de forma que todos os elementos que cabem numa norma cabem também na outra, e os mesmos elementos de facto não podem ser apreciados duas vezes, sendo exactamente isto que acontece no caso em que a falsificação envolve com certeza o erro ou engano sobre os factos astuciosamente provocados a que alude o crime de burla, sendo assim, este resultado a consequência geral daquela actividade, como acontece no caso dos autos.

17° - Desta forma, ao punir o crime de burla já se está a contar com a actividade de falsificação, sendo de incluir no tipo legal de burla todos os meios usados pelo agente para cometer o ilícito, no sentido de utilização de erro ou engano.

18° - Assim, perante um crime de burla e falsificação de documentos verifica-se um concurso aparente de normas, pelo facto da falsificação constituir um meio, instrumento necessário para a prática do crime de burla, sendo o crime de falsificação um acto preparatório e executório do crime de burla. O acto de falsificar documentos para que, desta forma, uma terceira pessoa - o ofendido - acredite na veracidade dos mesmos consubstancia o conceito de astúcia em provocar engano sobre os factos, elemento essencial e típico do crime de burla.

19° - E é esta a posição actual de Figueiredo Dias, em que afirma que o concurso aparente (porventura ligado á figura da consunção e, em especial, do facto prévio não punível) não é de afastar naqueles casos em que a falsificação tenha esgotado o seu sentido - e o seu dano material - na sua estrita utilização como meio para praticar o crime de burla, como acontece no caso dos autos.

20° - Este autor expõe de forma nova e fundamentada, em publicação posterior à reforma penal operada em 2007, a sua adesão expressa à tese do concurso aparente entre burla e falsificação com a intenção de burlar exclusivamente uma determinada pessoa, porque há no comportamento global um sentido de ilicitude absolutamente dominante ou mesmo único que permite e sua recondução jurídico-penal à unidade do facto, que rebate a ideia, que está nas base dos acórdãos de uniformização de jurisprudência, de que, havendo mais do que um bem jurídico violado, há necessariamente sempre um concurso efectivo de crimes.

21° - Ou seja, Figueiredo Dias deixa hoje claro que o facto de o comportamento do agente preencher vários tipos legais, não significa que seja de afastar o concurso aparente de normas, pois existe casos, como ó dos autos, em que apesar de existir concurso de tipos legais efectivamente preenchidos pelo comportamento global do agente, se deve afirmar que aquele comportamento é dominado por um único sentido autónomo de ilicitude, que a ele corresponde uma preponderante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos-típicos praticados, situações em que estamos perante um concurso de normas aparente, impróprio ou impuro, devendo, nestes casos intervir uma punição encontrada na moldura penal cabida ao tipo legal que incorpora o sentido dominante do ilícito e na qual se considerará o ilícito excedente em termos de pena.

22° - Este critério defendido quer pela doutrina, quer pela actual jurisprudência abrange todos aqueles casos de relacionamento entre um ilícito puramente instrumental (crime-meio) e o crime-fim correspondente, ou seja, aqueles casos em que um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nessa realização esgota o seu sentido e os seus efeitos. Nestes casos parece claro que uma valoração autónoma e integral do crime-meio representa uma violação da proibição jurídico-constitucional da dupla valoração.

23° - Pela leitura do acórdão não restam dúvidas que o acto de falsificação foi levado a cabo unicamente no contexto situacional da realização do crime-fim e de nele esgotar a sua danosidade social, o que leva a que se afirme que a falsificação constitui já uma parte do ilícito da burla, pelo que a autonomização do conteúdo de ilícito daquele significaria uma dupla valoração do mesmo substrato de facto.

24° - Também Paulo Pinto de Albuquerque, chama a atenção para a nova redacção do n°1 do artigo 256°, introduzida pela Lei 59/2007, de 04/09, afirmando que: “ Há concurso aparente (consunção) entre o crime de falsificação de documento e o crime de burla ou qualquer outro crime que tenha sido preparado, facilitado, executado ou encoberto por intermédio de documento falso, tendo o legislador propositadamente afastado a jurisprudência dos acórdãos de fixação de jurisprudência do STJ de 19/02/1992 e 8/2000, cuja constitucionalidade foi testada pelo ac. do TC 303/2005 (a favor da jurisprudência fixada, Miguel Machado, 1998 a: 254, mas contra ela, Helena Moniz, 1993, 84 e 86, e 2000: 466). Com efeito, o legislador deixou claro, na revisão do CP de 2007, que a acção típica de falsificação pode ser querida exclusivamente com a intenção de preparar, facilitar, executar ou encobrir um crime, sendo este elemento subjectivo típico parte constitutiva do próprio ilícito subjectivo e não um facto de agravação (como sucede no crime de homicídio). Sendo assim, a punição nestes casos em concurso efectivo redundaria numa dupla punição do mesmo facto. A conclusão é inelutável, em face da opção política criminal do legislador: o concurso é meramente aparente, sendo a punição do crime-instrumento de falsificação subsidiária da punição do crime-fim (com conclusão idêntica em face da nova lei, mas com argumentação distinta, Sá Pereira e Alexandre Lafayette, 2008: 664)”.

25° - Assim, o arguido deve ser punido pelo concurso aparente dos crimes de burla qualificada e de falsificação (a burla consome a falsificação), dentro da moldura penal correspondente, no caso dos autos, ao crime com a moldura penal mais grave, tomando o outro crime como factor agravante da medida da pena.

26° - O arguido, ora recorrente, considera que a actual construção doutrinal mais completa refuta a concepção segundo a qual, havendo mais do que um bem jurídico violado, há necessariamente sempre um concurso efectivo de crimes.

27° - Apesar de os bens jurídicos violados serem diferentes, a danosidade social do crime de falsificação esgotou-se quando serviu para a prática do crime de burla, sendo esse o único objectivo do arguido.

28° - O crime de falsificação foi meramente instrumental, pois o comportamento global do arguido tinha um sentido dominante que era o de burlar determinada pessoa e querer punir autonomamente os dois crimes é punir o arguido duas vezes pelos mesmos factos, circunstância que é inadmissível constitucionalmente.

29° - O que está em causa é a resolução criminosa do arguido, ora recorrente, e essa, como bem diz o acórdão, do qual se recorre, é a de burlar, sendo a falsificação o meio enganoso utilizado pelo arguido para tal. O arguido só falsificou os vários documentos porque eram o meio adequado a produzir um engano ou a induzir em erro aqueles a quem foram entregues, para assim poder cometer o crime de burla.

30° - No caso em concreto, não existe uma desconexão temporal suficientemente extensa para que se possa falar em dupla resolução criminosa, autónoma e independente, pois desde o 1º momento que o arguido, quer praticar o crime de burla, sendo o uso de documentação falsificada um mero meio para atingir a consumação daquele ilícito verdadeiramente dominante.

31° - Deve pois, ser seguida, a teoria do sentido dominante do ilícito, resolvendo, pois, o concurso pelo lado do legal aparente, devendo o arguido, ora recorrente ser apenas punido pelo crime resultado porque mais grave e absorvente.

32° - No caso em apreço (falsificação de documento como meio para praticar o crime de burla), os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global do arguido entram em plena conexão, intercepcionando-se entre si, razão pelo qual se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social, verificando-se assim, um concurso aparente de crimes, ficando consumido o crime de falsificação pelo crime de burla - crime-fim.

33° - O douto acórdão refere erradamente a fls. 9, que o arguido foi condenado na pena de 6 anos de prisão, no âmbito do processo n° 811/06.3TDLSB da 8ª vara criminal de Lisboa, pela prática de crimes de falsificação de documentos, burlas e associação criminosa.

34° - No entanto, o arguido foi absolvido de todos os crimes pelos quais estava acusado.

No provimento do recurso pede que o acórdão recorrido seja revogado e substituído por outro que absolva o arguido da prática dos crimes de falsificação de documento pelos quais se encontra condenado, em virtude da existência de concurso aparente entre o crime de falsificação e burla.

O Ministério Público respondeu a ambos os recursos, conforme fls. 6335 a 6349 e de fls. 6343 a 6345, defendendo a improcedência total e a manutenção do decidido.

Os recursos foram admitidos por despacho de fls. 6360, sendo ordenada a remessa para o Tribunal da Relação de Lisboa.

Por despacho do Exmo. Desembargador Relator, de fls. 6379, foi considerado ser o Tribunal da Relação de Lisboa incompetente em razão da matéria para conhecer dos recursos e que o tribunal competente seria o Supremo Tribunal de Justiça, ordenando a remessa dos autos para este Supremo Tribunal de Justiça.

 

A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer a fls. 6395/7, dizendo:

“No entanto, o acórdão recorrido não é uma decisão final que tenha posto termo à causa, mas apenas uma decisão da 1ª instância, que não absolveu os arguidos BB e CC, por não considerar mais favorável a actual redacção do art.º 256º do C.P., mantendo as suas condenações por autoria dos crimes de falsificação, (art.º 371-A do C.P.P.).

Este incidente foi proferido posteriormente à decisão definitiva transitada, que havia condenado os arguidos e por isso não “se identificou com o objecto do processo” (neste sentido, a decisão sumária proferida pelo Exmo. Vice Presidente do Supremo Tribunal, em 5/5/2009, proc. 224/09.5FLSB).

O Tribunal da Relação de Lisboa será o competente para decidir o recurso interposto do incidente posterior ao Acórdão também proferido pelo Tribunal da comarca de Oeiras em 24/03/2006, já transitado em julgado.

(…)

O disposto no artigo 432º do C.P.P., que prevê quais os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça, não abrange, as decisões finais que não conheçam, a final, do objecto do processo (art.º 400º nº 1 al. c) pois o regime geral é a interposição de recursos para a relação das decisões proferidas por tribunal da 1ª instância, exceptuando-se os casos em que há recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça (art.º 427º do C.P.P.).

Assim e por tudo isto parece-nos que os autos deverão ser remetidos/devolvidos ao Tribunal da Relação de Lisboa para apreciar o recurso interposto pelos arguidos BBe CC, por não ser competente o Supremo Tribunal de Justiça (art.º 427º, 432º do C.P.P.)”.                      

Apreciando. 

Questão Prévia

Em causa a competência para conhecer dos recursos, impondo-se indagar da admissibilidade para este STJ de recursos visando a impugnação de acórdão proferido por tribunal colectivo em sede de pedido de reabertura de audiência, nos termos do artigo 371.º -A, do CPP.

O recorrente BB colocou a questão prévia de ser competente para conhecer o recurso o Tribunal da Relação de Lisboa, atendendo à medida das penas aplicadas.

O Tribunal da Relação de Lisboa entendeu ser competente o STJ, ordenando a remessa para este Supremo Tribunal, atendendo para tanto à medida das penas únicas.  

Há que ver o objecto da pretensão dos recorrentes no que concerne à obtenção de vantagens que resultariam para eles da aplicação da lei nova, alegadamente mais favorável.

Do conjunto de crimes por que foram condenados vejamos a que segmento respeita a presente pretensão recursiva.

A pretensão comum a ambos os recorrentes respeita ao lote dos crimes de falsificação de documento e burla qualificada por que foram condenados.

Por seu lado, o recorrente BB nas conclusões apresentadas sob os n.ºs 68 e 69, coloca ainda outra pretensão, que é a de as penas parcelares de prisão de 1 ano por tentativa de burla e de 7 meses por posse de arma de defesa ilegal, que lhe foram aplicadas deverem, nos termos do artigo 43.°, n.° 1, do Código Penal, ser substituídas por multa e posteriormente cumuladas com as restantes penas de prisão, nos termos do artigo 77.º, n.º 3, do Código Penal.

Os arguidos requereram reabertura de audiência, pretendendo que fosse decidido que a actual redacção do n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal, lhes era mais favorável do que a redacção anterior, pois assim passaria a haver concurso aparente entre os crimes de falsificação de documentos e os crimes de burla por que ambos foram condenados.

No acórdão recorrido foi inferido o pedido e considerado ser de manter a tese de existência de concurso real entre os crimes de falsificação de documento e de burla qualificada, não havendo razões para afastar a doutrina do acórdão uniformizador n.º 8/2000, o qual veio a confirmar a jurisprudência fixada pelo acórdão do plenário das secções criminais do STJ, de 19 de Fevereiro de 1992, publicado no Diário da República, Série I-A, de 9 de Abril de 1992.

Este acórdão n.º 8/2000, de 4 de Maio de 2000, publicado no Diário da República, n.º 119, Série I-A, de 23-05-2000, fixou jurisprudência no sentido de que: «No caso de a conduta do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256.º, n.º 1, alínea a), e do artigo 217.º, n.º 1, respectivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efectivo de crimes».

Defendem os recorrentes que após a nova redacção do n.º 1 do artigo 256.º do Código Penal dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, entrada em vigor em 15-09-2007, perdeu eficácia a doutrina fixada pelo acórdão n.º 8/2000.

Defendem a existência de concurso aparente, sendo o crime de falsificação de documento consumido pelo de burla e devendo ser absolvidos dos crimes de falsificação e punidos apenas pelos crimes de burla, o que conduziria a reformulação do cúmulo jurídico com atribuição de pena única reduzida.

Vejamos os crimes de falsificação de documento e de burla qualificada por que foram condenados os arguidos, ora recorrentes.

Falsificação de documento – 7 (6+1) – casos de “FF”, “GG”, “HH”, “II”, “JJ”, “LL” e “KK”)

Burlas qualificadas – 7

Consumadas – 6 (2+2+1+1)

Tentada - 1

Vejamos agora as penas parcelares aplicadas a cada um dos recorrentes.

Arguido BB

Pelos crimes de falsificação de documento

- 15 meses de prisão para seis desses crimes e 9 meses de prisão para um outro

Pelos crimes de burla qualificada:

- 3 anos e 6 meses de prisão, para 2 crimes (casos “FF” e “GG” )  

- 3 anos de prisão, para outros dois (casos  das firmas “II” e “LL”)

- 2 anos e 9 meses de prisão, para um (caso do HH)

- 18 meses de prisão, para um (caso do KK)

- 12 meses de prisão, para a burla qualificada, na forma tentada (caso de “JJ”).

Arguido CC

Pelos crimes de falsificação de documento

- 15 meses de prisão para 6 desses crimes e 9 meses de prisão para outro

Pelos crimes de burla qualificada:

- 3 anos de prisão, para 2 crimes (casos “FF” e “GG” ) 

- 2 anos e 9 meses de prisão, para outros dois (firmas “II” e “LL”)

- 2 anos e 6 meses de prisão, para um (caso do HH)

- 15 meses de prisão, para um (caso do KK)

- 9 meses de prisão, para a burla qualificada, na forma tentada (caso de “JJ”).

Do confronto destas penas resulta que a pena de prisão mais elevada é de 3 anos e 6 meses no caso do recorrente BB e de 3 anos no caso do recorrente CC.

            No que respeita à outra pretensão do recorrente BB em causa estão penas de 1 ano e de 9 meses de prisão.

 

Ora, todas e cada uma destas penas se configuravam como tal no acórdão condenatório do Colectivo de Oeiras e, como vimos, após confirmação total pela Relação, este Supremo Tribunal considerou o acórdão irrecorrível, no que respeitava a penas parcelares, em relação a todas elas, conhecendo dos recursos, tão só no que tangia às penas únicas.

Este acórdão do STJ foi proferido em tempo em que estava em vigor a anterior redacção do artigo 432.º do CPP, que se reportava a penalidades e actualmente o regime é mais restritivo, referindo as penas aplicadas.

O objectivo do presente recurso, como o não era o do pedido incidental, não é o conhecimento de pena única, que transitou em julgado; a pretensão de reabertura de audiência dirigiu-se aos crimes de falsificação de documento e de burla qualificada, e no caso do recorrente BB ainda ao crime de posse ilegal de arma de defesa.

A repartição da competência em razão da hierarquia está definida na regra-base sobre a recorribilidade para o STJ do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do CPP.

Definindo este princípio base, estabelece o artigo 432.º do CPP:

1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito.

Desta regra retira-se que a admissibilidade de recurso para o STJ depende da conjugação de quatro pressupostos.

1 – A natureza e categoria do tribunal – tribunal colectivo ou do júri;

2 – A natureza da decisão proferida – decisão final;

3 – A aplicação (agravamento, manutenção ou redução) de uma concreta medida da pena.

 4 – A dimensão da pena efectivamente aplicada – superior a 5 anos de prisão.

Dúvidas não há quanto à natureza e categoria do tribunal emissor da decisão ora recorrida.

Questionável já será a natureza da decisão ora recorrida.

Estaremos perante uma decisão final?

É abundante a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça a propósito da interpretação a dar à antiga expressão “por termo à causa” e à actual “decisão final”.

Como se pronunciou o acórdão de 08-07-2004, processo n.º 2238/04-5.ª “Decisão que põe termo à causa é a que tem como consequência o arquivamento ou encerramento do objecto do processo, mesmo que não se tenha conhecido do mérito. Tanto pode ser um despacho como uma sentença (ou acórdão). Nem sempre é uma “decisão final” (decisão que, após audiência e conhecendo do mérito, põe termo à causa) mas a “decisão final” é sempre uma “decisão que põe termo à causa”.

Segundo o acórdão de 26-01-2005, processo n.º 4438/04-3.ª: “A decisão que põe termo à causa é a decisão que faz terminar a causa de modo substancial, que julga e determina o direito do caso e decide o objecto do procedimento criminal, definindo a existência ou a inexistência de responsabilidade criminal, e, quando for o caso, a culpabilidade e a pena.

Não constitui, assim, decisão final aquela que se não refira, funcional e estruturalmente, à matéria da causa e ao objecto do processo, mas apenas a incidências estritamente processuais, próprias do desenvolvimento e da ordenação sequencial do processo, como são os despachos proferidos nos limites estritamente processuais da discussão sobre os pressupostos da admissibilidade de um recurso, como é o caso dos autos”.

No acórdão de 06-04-2006, processo n.º 805/06-5.ª, in CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 159, com citação de vários arestos, diz-se que por termo à causa significa que a questão substantiva, que é o objecto do processo, fica definitivamente decidida.

Como de forma certeira se diz no acórdão de 18-02-2009, processo n.º 109/09, desta secção “a decisão que conhece de contingências sobre a relação processual ou sobre uma questão avulsa, sobre incidências meramente processuais, próprias do desenvolvimento da relação processual, escapa ao conceito de decisão final e poderá, quando muito, constituir decisão que ponha termo ao processo”.

A propósito do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, que tem afinidades com a questão aqui tratada, por aí estar em causa a definição de decisão final, afirma o acórdão de 05-03-2008, processo n.º 220/08-3.ª, que a actual redacção do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, se aproxima do artigo 432.º, alínea c), do CPP, onde se faz menção à recorribilidade para o STJ de acórdãos finais do colectivo ou do tribunal do júri; nos acórdãos de 26-03-2008, processo n.º 820/08, de 18-12-2008, processo n.º 3065/08, de 25-11-2009, processo n.º 529/09.5YFLSB, e de 02-06-2010, processo n.º 1987/09.3TAFAR-A.E1.S1, todos da 3.ª secção e do mesmo relator, pondera-se:

«Decisão que não conheça, a final, do objecto do processo, é toda a decisão interlocutória, bem como a não interlocutória que não conheça do mérito da causa.

O texto legal ao aludir a decisão que não conheça, a final, abrange todas as decisões proferidas antes da decisão final;

Ao mencionar o objecto do processo refere-se, obviamente, aos factos imputados ao arguido, pelos quais o mesmo responde, ou seja, ao objecto da acusação (ou da pronúncia), visto que é esta que define e fixa, perante o tribunal, o objecto do processo, condicionando o se da investigação judicial, o seu como e o seu quantum, pelo que contempla todas as decisões que não conheçam do mérito da causa.

O traço distintivo entre a actual e a anterior redacção reside na circunstância de anteriormente serem susceptíveis de recurso todas as decisões que pusessem termo à causa, sendo que actualmente só são susceptíveis de recurso as decisões que põem termo à causa quando se pronunciem e conheçam do seu mérito”.

No caso dos autos, “decisão que pôs termo à causa”, ou “decisão final”, foi o acórdão condenatório do Colectivo de Oeiras, que submetido a reapreciação de tribunal superior, mereceu a concordância total do Tribunal da Relação de Lisboa, e que no exercício de um duplo grau de recurso por parte dos arguidos, e terceira hipótese de apreciação do feito, veio a concitar o não provimento do recurso, pelo acórdão do STJ, de 21-06-2007, quanto à medida das penas únicas (arredada que fora, entretanto, em prévia conferência, a hipótese de cognição quanto às penas parcelares e questões conexas às mesmas acopladas), e transitado em julgado em Julho de 2007, pois foi aí que se apreciou a “causa”, isto é, o objecto do processo definido pela acusação/pronúncia.

E como essa decisão, após audiência, apreciou o mérito, entretanto, reavaliado e reconfirmado em dois graus de recurso, trata-se, também, de uma “decisão final”.

Tratava-se, assim, de uma decisão condenatória transitada em julgado, por duas vezes submetida a escrutínio de tribunal superior, definitivamente consolidada, apenas “posta em desassossego”, num plano de direito intertemporal, pela possibilidade de aplicação de lei superveniente, eventualmente mais benéfica, surgida já após o trânsito em julgado da decisão condenatória.

Os recorrentes cumprem pena única imposta no processo, tendo inclusive o arguido CC requerido a fixação de jurisprudência em que o que está em causa é a questão de saber se o desconto de detenção, prisão preventiva ou a obrigação de permanência na habitação é de ordenar sem aguardar que no processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas, seja proferida decisão final ou que, tendo aí já sido proferida decisão final, a mesma se mostre transitada em julgado – processo de fixação de jurisprudência n.º 29/04.0JDLSB-O.S1, da 5.ª Secção, julgado na pretérita quinta feira, 20-10-2011.

  A decisão ora recorrida, indeferindo o pedido, denegando a aplicação de lei, alegadamente, mais favorável, não foi uma decisão que pôs termo à causa – finda estava ela e os arguidos condenados cumpriam pena de prisão transitada em julgado – mas uma decisão posterior ao termo da causa.

No presente caso, a decisão de que se pretende recorrer é um acórdão proferido por tribunal colectivo, que não conheceu do objecto do processo, apreciando a pretensão de aplicação de lei nova mais favorável, que indefere, pelo que se mantêm as penas aplicadas.

O acórdão ora recorrido não aplicou nenhuma pena, apenas por desconsiderar a aplicação de lei mais favorável, indeferiu a pretensão dos recorrentes, o que conduziu à manutenção das penas aplicadas. 

Como diz o acórdão de 13-01-2010, processo n.º 2569/01.3TBGMR-D.G1.S1-3.ª, quando o acórdão recorrido não é um acórdão condenatório, nem absolutório, nem conheceu, a final, do objecto do processo, nem lhe pôs termo, não admite recurso para o STJ.

Como bem refere a Exma. PGA no parecer emitido a decisão de remessa dos autos para este Supremo teve por base “fundamentos que não correspondem ao decidido no douto acórdão recorrido (fls. 6379) que foi proferido ao abrigo do disposto no art.º 371-A do CPP – indeferimento do pedido”, pois aqui e agora não está em causa a reapreciação de penas únicas.

Não cabendo ao caso recurso directo para o STJ, segue-se a regra geral: de decisão proferida por tribunal de primeira instância recorre-se para a relação - artigo 127.º do CPP.

Decisão

Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em declarar a incompetência em razão da hierarquia para conhecer dos recursos interpostos pelos arguidos BBe CC, sendo competente o Tribunal da Relação de Lisboa, para onde os autos serão remetidos.

Sem custas.

Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do CPP.

Lisboa, 26 de Outubro de 2011

Raul Borges (Relator)

Henriques Gaspar