ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
53/04.2IDAVR.P1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 12/15/2011
SECÇÃO 5ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL RECLAMAÇÃO
DECISÃO INDEFERIDA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR MANUEL BRAZ

DESCRITORES APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
CONSTITUCIONALIDADE
DECISÃO SUMÁRIA
DUPLA CONFORME
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
PRINCÍPIO DA ADESÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
RESPONSABILIDADE CIVIL EMERGENTE DE CRIME

SUMÁRIO

I - A norma do n.º 3 do art. 721.º do CPC (“Não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.”) é subsidiariamente aplicável aos pedidos de indemnização civil julgados em processo penal, por força do disposto no art. 4.º do CPP. No mesmo sentido decidiu o STJ nos Acs. de 22-06-2011, Proc. n.º 444/06.4TASEI, e de 29-09-2010, Proc. n.º 343/05.7TAVFN.
II -Em regra, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, como estabelece o art. 71.º do CPP, que consagra o denominado processo de adesão. Nestes casos, no mesmo processo em sentido material, coexistem duas acções, uma penal e outra cível, autónomas entre si. O processo penal inicia-se com um acto do MP, em regra, a abertura do inquérito. Já o processo ou acção cível tem início com a dedução do pedido de indemnização civil. O equivalente à petição inicial do processo civil não está na notícia do crime, na participação ou na queixa, figuras alheias à acção civil, mas sim no requerimento em que é deduzido o pedido de indemnização.
III - A acção cível iniciou-se com a dedução do pedido em 31-10-2008. Deste modo, como não estava ainda pendente na data da entrada em vigor da nova versão do n.º 3 do art. 721.º do CPC, este preceito aplica-se-lhe, em face do disposto no art. 11.º, n.º 1, do DL 303/2007 (“(…) as disposições do presente decreto-lei não se aplicam aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor”).
IV - Como decidiu o TC no Ac. n.º 39/88, “o princípio da igualdade não proíbe (…) que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais.”.
V - A consideração da data da apresentação do pedido de indemnização civil enxertado no processo penal como o início do processo em matéria cível, em si, não coloca qualquer questão de desigualdade. Está no mesmo plano que a consideração da petição inicial como o início do comum processo civil.
VI -Acresce que a limitação das possibilidades de recurso em matéria civil, obedecendo a um critério racional e objectivo, não tem sido considerada pelo TC violadora do princípio da igualdade, como no caso de alteração do valor das alçadas (cf. v.g. Ac. n.º 239/97).




DECISÃO TEXTO INTEGRAL

                        Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

            Em 27/10/2011, ao abrigo do disposto no artº 417º, nº 6, alínea b), do CPP, foi proferida neste processo pelo relator a seguinte

 

Decisão sumária:

            «No 2º juízo do Tribunal Judicial da comarca de Vila Nova de Famalicão, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, foi proferido acórdão decidindo, além do mais que aqui não importa:

“Condenar os demandados AA e a demandada Indústria Têxtil..., Ldª, no pagamento solidário ao demandante [O Instituto de Segurança Social] de indemnização no valor de 25 8912,89 euros;

D) Condenar estes mesmos demandados no pagamento de juros de mora, à taxa legal acima mencionada, desde o 16º dia do mês posterior àquele a que respeitam as contribuições em causa (desde as declaradas em Agosto de 1998, até às declaradas em Agosto de 2002) até efectivo e integral pagamento;

E) Condenar o demandado BB no pagamento solidário à mesma demandante de 215 427,83 euros do montante referido em C) desta decisão;

F) Condenar este mesmo demandado no pagamento solidário de juros de mora, à taxa legal acima mencionada, desde o 16º dia do mês posterior àquele a que respeitam as contribuições referidas em E) (as declaradas em Outubro de 1998 até às de Março de 2002) até efectivo e integral pagamento”.

Dessa decisão recorreram os arguidos/demandados AA e BB para a Relação do Porto, que, por acórdão de 27/04/2011, julgou ambos os recursos improcedentes, confirmando a decisão recorrida.

Ainda inconformados, interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo assim a sua motivação:

O primeiro:

            “1. Do Acórdão recorrido consta que, face à matéria dada como provada, estão verificados todos os pressupostos da responsabilidade civil previstos no art° 483° do Cód. Civil, a saber: facto ilícito, culpa e nexo de causalidade.

2. Tendo em conta a matéria dada como provada, designadamente nos pontos 17. e 20. (P. Apenso), o demandado AA deveria ter sido integralmente absolvido do pedido de indemnização civil contra si deduzido.

3. Inexistem in casu alguns dos pressupostos exigidos pelo art° 483° do Código Civil, nomeadamente a culpa.

4. Foi dado como provado que os montantes não entregues à Segurança Social foram integrados no património da sociedade e afectados à satisfação de outros compromissos sociais prementes.

5. Foi ainda dado com provado que as quantias retidas o foram com o propósito de satisfazer outros compromissos financeiros, propósito esse claramente impulsionado, renovado e mantido pelo contexto de dificuldades financeiras que aquela empresa atravessava.

6. O ora recorrente não se apropriou de qualquer montante para proveito próprio, tendo antes as quantias retidas sido aplicadas no pagamento de despesas prementes e necessárias, mormente pagamento de salários aos trabalhadores da sociedade, para evitar o encerramento desta.

7. A conduta do recorrente não merece qualquer censura, já que o mesmo agiu com a diligência de um bom pai de família, tendo em conta as circunstâncias do caso.

8. Nos termos do disposto no n° 1 do art° 487° do Cód. Civil, é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão. O que não aconteceu.

9. Nos termos do n° 2 do mesmo normativo, a culpa deve ser apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.

10. Inexiste pois, pelo menos, in casu um dos pressupostos da responsabilidade civil previstos no art° 483° daquele Código – a culpa.

11. A demandada “Indústria Têxtil..., Lda” foi declarada falida, por sentença transitada em julgado em 18 de Agosto de 2003.

12. Tal processo encontra-se ainda em fase de liquidação, sendo certo que existe activo substancial apreendido a favor da massa falida.

13. Uma vez que tal liquidação ainda não se encontra concluída, desconhece-se legitimamente se o crédito reclamado naquele processo pelo Instituto de Segurança Social (e peticionado também nos presentes autos) irá ou não ser satisfeito parcialmente ou mesmo na totalidade.

14. Apesar de, no douto Acórdão recorrido, se concluir pela solidariedade entre o aqui recorrente e a “Indústria Têxtil..., Lda”, no pagamento da indemnização à demandante, entendemos que a eventual condenação do demandado AA deveria ter sido declarada como subsidiária à da demandada “Indústria Têxtil ..., Lda”.

15. Apenas deste modo se obteria, em primeira mão, o pagamento do principal obrigado – a sociedade – e, caso da massa falida não se obtenha o integral pagamento, então o remanescente seria pago pelos eventuais responsáveis subsidiários – os restantes demandados.

16. Não foram cumpridos os requisitos formais para responsabilizar pessoalmente o recorrente, designadamente o necessário processo de reversão.

17. Na hipótese, que apenas por mero exercício de raciocínio se admite, de o recorrente ter de indemnizar o demandante Instituto de Segurança Social pelos danos eventualmente causados, nos termos do art° 483° do mesmo Código, seria responsável pelas cotizações não entregues desde Agosto de 1998 (vencidas em Setembro desse ano) até às declaradas em Agosto de 2002 (vencidas em Setembro de 2002).

18. Da conjugação das normas dos art°s 498°, n° 3, do Código Civil e dos art°s 15° do RJIFNA e 21°, n° 1, do RGIT, resulta que o prazo de prescrição do crédito reclamado pela demandante é de 5 anos.

19. Do Acórdão consta “que a notícia (...) que deu origem ao processo crime ocorreu em 19/11/2002, data em que interrompeu-se o prazo prescricional, nos termos do art° 323°, n°s 1 e 4, do C. Civil, não recomeçando o mesmo a correr enquanto se encontrar pendente o processo penal impeditivo da propositura da acção cível em separado como decorre do disposto no art° 306° n° 1, do C. Civil.”

20. Nos termos do disposto no n° 1 do art° 306° do Cód. Civil, o prazo da prescrição apenas começa a correr quando o direito puder ser exercido.

21. Contudo, olvida a decisão recorrida que o processo penal pendente não era impeditivo da propositura da acção cível, por parte da Segurança Social.

22. Já que, nos termos do disposto na al. a) do n° 1 do art° 72° do Cód. Proc. Penal, o pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado quando o processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo.

23. A notícia do crime ocorreu em 19/11/2002 e a acusação foi deduzida no ano de 2008.

24. Pelo que, entre as duas datas decorreram mais de oito meses.

25. O crime em causa não depende de queixa ou de acusação particular, pelo que sempre o demandante poderia e deveria ter exercido o direito de propor a acção cível em separado, sem que daí lhe adviesse qualquer prejuízo (conf. o n° 2 do art° 72° do Cód. Proc. Penal).

26. Mesmo admitindo que a interrupção do prazo prescricional ocorreu em 19/11/2002, sempre se reiniciaria novo prazo (de cinco anos) a partir desta data, consabido que é que a interrupção inutiliza o tempo entretanto decorrido e determina nova contagem de prazo.

27. Pelo que não colhe a afirmação de que o prazo prescricional não corre enquanto se encontrar pendente o processo penal.

28. Esta afirmação apenas é válida após a notificação do pedido cível ao recorrente, nos termos do n° 1 do art° 327° do Cód. Civil.

29. De acordo com o disposto nos n°s 1 e 4 do art° 323° do Código Civil, a prescrição interrompe-se com a citação ou notificação judicial de qualquer acto que exprima, directa ou indirectamente, a intenção de exercer o direito, sendo equiparado à citação ou notificação, para efeitos deste artigo qualquer outro meio judicial pelo qual se dê conhecimento do acto àquele contra quem o direito pode ser exercido.

30. O douto Acórdão recorrido fundamenta-se erradamente nos nºs 1 e 4 do art° 323° do Cód. Civil.

31. Na verdade, e de acordo com este normativo, a prescrição apenas se interrompe pela citação ou notificação judicial de qualquer acto.

32. Pelo que não se pode entender que a notícia do crime e a autuação de serviço como processo de inquérito por parte do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, que deu origem ao processo-crime e que ocorreu em 19/11/2002, interrompeu o prazo prescricional.

33. O recorrente apenas foi notificado da acusação no ano de 2008.

34. A fundamentação constante no douto Acórdão recorrido, no n° 1 do art° 306° do Cód. Civil, mostra-se errada e não suporta as conclusões que dela se retiram.

35. Os créditos reclamados pelo demandante referem-se a cotizações não entregues, sendo que a última cotização foi declarada em Agosto de 2002 e se venceu no dia 15 de Setembro desse mesmo ano.

36. O demandante Instituto de Segurança Social deduziu pedido de indemnização cível em 31 de Outubro de 2008, tendo o ora recorrente sido notificado apenas em 27 de Maio de 2009 (conf. fls. 572 e seguintes dos autos).

37. Dúvidas não restam que também decorreu prazo superior a 5 anos entre as datas de vencimento das cotizações peticionadas e a notificação operante do pedido de indemnização cível ao recorrente.

38. Os créditos reclamados pelo demandante encontram-se prescritos, prescrição que, relativamente à última cotização (declarada em Agosto de 2002 e vencida no dia 15 de Setembro desse mesmo ano), ocorreu em 16 de Setembro de 2007.

39. Prescrição essa que aqui se invoca para todos os efeitos legais.

40. De acordo com as normas legais já referidas e ainda da al. d) do art° 310° do Código Civil também os juros peticionados se encontram prescritos pelo decurso de prazo de 5 anos.

41. A contagem dos juros peticionados sempre cessaria com a declaração de falência da demandada “Indústria Têxtil..., Lda.” – 9 de Julho de 2003 – conf. fls. 25 a 27 dos autos – e nos termos do disposto no n° 2 do art° 151° do CPEREF (aplicável à data da declaração da referida falência).

42. Os demandados, pessoa singulares, apenas poderão eventualmente ser condenados na medida em que o for a demandada sociedade, (e só nessa mesma medida) não restam dúvidas pois que a cessação de contagem de juros aplicável à sociedade (data da respectiva declaração de falência) aplicar-se-á necessariamente àqueles demandados.

43. Não é pelo facto da génese da responsabilidade civil nestes autos assentar na prática de factos ilícitos, conforme vem referido no douto Acórdão em crise, que são afastadas as normas do C.P.E.R.E.F., uma vez que uma das demandadas (a sociedade) foi já declarada falida ao abrigo deste mesmo Código.

44. A decisão de que se recorre conclui que as obrigações do falido que se vencem imediatamente com a declaração de falência são apenas as obrigações em sentido estrito derivadas de factos voluntários lícitos, e já não derivadas da responsabilidade civil por factos ilícitos.

45. Atenta a redacção do art° 151° do C.P.E.R.E.F. não se pode retirar tal conclusão.

46. Já que, nos termos do disposto no n° 1 do art° 90° do Cód. Civil, há que ter em conta que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico.

47. Unidade esta que é abalada pelo facto do n° 2 do art° 151° do C.P.E.R.E.F. ser aplicável à demandada sociedade (obrigada principal) e já não ao ora recorrente (responsável subsidiário).

48. Ou que este normativo seja aplicável a um demandado (sociedade) e já não aos outros demandados (pessoas singulares), uma vez que todos eles foram condenados em regime de solidariedade.

49. No caso de não proceder a supra invocada prescrição, nunca serão devidos quaisquer montantes a título de juros a partir de 9 de Julho de 2003.

50. Encontram-se pois prescritos os créditos peticionados pelo Instituto de Segurança Social, quer a título de capital quer a título de juros.

51. Ao não ter efectuado uma correcta aplicação, violou o douto Acórdão recorrido as normas constantes nos art°s 306°, n° 1, 323°, n°s 1 e 4, 327°, n° 1, 483°, 498°, n° 3, do Cód. Civil, art° 15° do RJIFNA e 21°, n° 1, do RGIT e art° 151°, n° 2, do CPEREF.

52. O mesmo Acórdão ora em crise não aplicou, e devia ter aplicado, as normas constantes nos art°s 90°, n° 1, 487°, ambos do Cód. Civil, e art° 72°, n°s 1, al. a), e 2, do Cód. Proc. Penal.

Termos em que deve conceder-se integral provimento ao presente recurso, revogando-se o douto Acórdão recorrido e absolver-se o recorrente do pedido de indemnização civil”.

                                                                                                          O segundo:

“I- À semelhança da prescrição judicialmente declarada quanto ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, salvo o devido respeito, assim também devia ter sido declarada e julgada extinta, por prescrição, a obrigação de pagamento das cotizações a que os autos se reportam, quanto ora Recorrente (sem prejuízo, claro, das consequências que aproveitem aos co-demandados).

lI- Na verdade, a fundamentação da douta decisão judicial, quanto ao aspecto criminal da questão, terá sido – e bem – o decurso do prazo de cinco anos, “antes da data de constituição como arguidos de todos os acusados”.

III- Então, à luz da lei aplicável à prescrição da cobrança coerciva de cotizações e contribuições devidas à segurança social, no caso sujeito, seria (será) também de cinco anos, prazo que, salvo erro ou omissão, já estava esgotado quando o Recorrente foi constituído arguido e notificado da dívida (17.12.2007).

IV- Com efeito, os factos imputáveis ao ora Recorrente terão ocorrido “entre 15.10.98 e Maio de 2002”. (Data da renúncia à gerência).

“Estarão em causa as prestações declaradas em Outubro de 1998 até às vencidas em Abril de 2002” (lê-se na douta decisão da 1ª instância).

Tendo em conta que a lei reguladora do regime de prescrição da dívida tributária é a que vigora à data da sua constituição, os factos em causa terão ocorrido no domínio dos art°s 53°, n° 2, da Lei n° 28/84, de 14 de Agosto e/ou art° 34° do Código de Procedimento Tributário e ainda art° 63° da Lei n° 17/2000, cuja entrada em vigor ocorreu em 04.02.2001.

V- Este último preceito legal (art° 63°, Lei n° 17/2000), por aplicação do disposto no art° 297° do Código Civil (CC), decorridos que fossem, na sua vigência, cinco anos, veio sujeitar a respectiva prescrição ao prazo de cinco anos, sendo que este mesmo prazo, à data da notificação da(s) dívida(s), já se havia completado (04.02.2001 e 17.12.2007, respectivamente).

VI- Por isso, quando o ora Recorrente foi notificado da dívida, esta já havia prescrito [sendo que a prescrição, no caso sujeito, salvo melhor opinião, até será do conhecimento oficioso (art°s 175°, CPPT e 493°, n° 3, e 496°, CPC)].

Prescrição que, por isso – salvo sempre erro ou omissão – terá ocorrido e ter-se-á consumado antes da competente notificação da dívida, o que, assim sendo, inviabilizaria, até, o recurso ao disposto no art° 483°, CC.

VII- Todavia, admitindo como hipótese – mas sem conceder – a aplicação ao caso do disposto no predito art° 483°, CC, (e consequentemente, do art° 498°, n° 3, do mesmo diploma legal), dir-se-á que, o evento invocado como interruptivo da prescrição então em curso (“notícia que deu azo ao processo crime”, acto natural e razoavelmente alheio ao ora Recorrente, sendo que a sua constituição de arguido só se terá verificado em 17.12.2007), terá ocorrido, nos termos judicialmente referidos, em 19.11.2002.

VIII- Sem prejuízo de, salvo erro ou omissão, este “evento” não constar expressamente do disposto no art° 121° do Código Penal (CP) nem do art° 63°, n° 3, da lei n° 17/2000, e, portanto, não ter o condão de, por si, interromper a prescrição, o certo é que, nos termos do disposto no art° 326°, n° 1, CC, sempre se teria começado a contar, desde então, novo prazo.

IX- Ora, se o acto interruptivo invocado houvesse de ter alguma relevância – o que só por hipótese e comodidade de raciocínio se admite – então, desde a sua ocorrência (19.11.2002) até à data em que o ora Recorrente foi constituído arguido/notificado da dívida (17.12.2007) sempre teria decorrido o prazo de cinco anos e vinte e oito dias, superior, pois, ao prazo de prescrição previsto nos art°s 63° da lei n° 17/2000 e 498°, n° 3, do Código Civil, o que tudo se invoca.

X- Decidindo como decidiu, o douto acórdão recorrido violou, além de outras disposições legais, os artigos expressamente referidos nas presentes conclusões, os quais deveriam ter sido aplicados ao caso sujeito e interpretados no sentido de conduzir, sempre e necessariamente, à declaração da prescrição da(s) dívida(s) aqui em discussão.

A invocada prescrição deveria, por isso, ter sido julgada procedente”.

Cumpre decidir.

Questão prévia:

O tribunal de 1ª instância condenou os recorrentes a pagarem ao demandante Instituto de Segurança Social os valores referidos.

A Relação, sem qualquer voto de vencido, confirmou essa decisão de 1ª instância.

Nos termos do artº 721º, nº 1, referido ao artº 691º, nº 1, do CPC, na versão resultante do DL nº 303/2007, de 24 de Agosto, cabe recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação que tenha incidido sobre uma decisão de 1ª instância que tenha posto termo ao processo. Mas, de acordo com a norma do nº 3 do primeiro destes preceitos, «não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte». É o sistema da chamada “dupla conforme”.

Esta norma é subsidiariamente aplicável aos pedidos de indemnização civil julgados no processo penal, por força do disposto no artº 4º do CPP, conclusão a que se chega pelas razões que seguem.

No domínio da versão do CPP anterior à resultante da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, o Supremo Tribunal de Justiça, através do acórdão nº 1/2002, fixou a seguinte jurisprudência: “No regime do Código de Processo Penal vigente – nº 2 do artigo 400º, na versão da lei nº 59/98, de 25 de Agosto – não cabe recurso ordinário da decisão final do tribunal da Relação, relativa à indemnização civil, se for irrecorrível a correspondente acção penal”. Negava, pois, esta jurisprudência que o critério de admissibilidade de recurso dos acórdãos proferidos em recurso pelas relações relativamente à acção civil de indemnização instaurada no processo penal fosse o mesmo que vigorava no processo civil: valor do pedido superior à alçada da Relação e valor da sucumbência superior a metade dessa alçada.

A Lei nº 48/2007 acrescentou um nº 3 ao artº 400º do CPP, com o seguinte texto: “Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil”. Com esta norma quis-se claramente afirmar solução oposta àquela a que chegou o referido acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, estabelecendo-se sem margem para dúvidas, ao que se julga, que as possibilidades de recurso relativamente ao pedido de indemnização são as mesmas, seja o pedido deduzido no processo penal ou em processo civil, sendo inequívoca a afirmação com que na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 109/X se justificou a disposição: «Para garantir o respeito pela igualdade, admite-se a interposição de recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil mesmo nas situações em que não caiba recurso da matéria penal».

Se o legislador do CPP quis consagrar a solução de serem as mesmas as possibilidades de recurso, quanto à indemnização civil, no processo penal e em processo civil, há que daí tirar as devidas consequências, concluindo-se que uma norma processual civil, como a do nº 3 do artº 721º do CPC, que condiciona, nesta matéria, o recurso dos acórdãos da Relação, nada se dizendo sobre o assunto no CPP, é aplicável ao processo penal, havendo neste, em relação a ela, caso omisso. Até porque o legislador do CPP, na versão da Lei nº 48/2007, afirmou a igualdade de oportunidades de recurso em processo civil e em processo penal, no que se refere ao pedido de indemnização, numa altura em que já conhecia a norma do nº 3 do artº 721º do CPC (a publicação do DL nº 303/2007 é anterior à da Lei nº 48/2007).

Por outro lado, a aplicação do nº 3 do artº 721º do CPC ao pedido de indemnização civil deduzido no processo penal não cria qualquer desarmonia.

Não existe, efectivamente, qualquer razão para que em relação a duas acções civis idênticas haja diferentes graus de recurso apenas em função da natureza civil ou penal do processo usado, quando é certo que neste último caso a acção civil conserva a sua autonomia. Pode mesmo dizer-se que outro entendimento que não o aqui defendido conduziria ao inquinamento da decisão a tomar pelo lesado nos casos em que a lei lhe permite deduzir em separado, perante os tribunais civis, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime. Pense-se, por exemplo, no caso de danos ocasionados pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência da previsão do artº 148º, nº 3, do CP, em que o pedido de indemnização tanto pode ser formulado em processo civil como no processo penal, nos termos do artº 72º nº 1, alínea c), do CPP. A opção pelo processo civil estaria clara e injustificadamente condicionada, se a norma limitativa do nº 3 do artº 721º do CPC não se aplicasse ao pedido deduzido no processo penal.

Este sistema da “dupla conforme” entrou em vigor em 01/01/2008, aplicando-se apenas aos processos iniciados após essa data, como se prevê nos artºs 11º, nº 1, e 12º, nº 1, do referido DL nº 303/2007.

O presente pedido de indemnização civil foi apresentado em 31/10/2008. Devendo considerar-se essa a data do seu início, o processo em matéria civil não estava pendente no momento da entrada em vigor do referido diploma, aplicando-se-lhe por isso a lei nova.

Assim, e porque não está em causa a aplicação do regime excepcional do artº 721º-A do CPC, o recurso não é admissível, e por isso não deveria ter sido admitido, em face do disposto no artº 414º, nº 2, do CPP.

Tendo sido admitido, e porque essa decisão não vincula este tribunal superior, nos termos do nº 3 daquele artº 414º, deve agora ser rejeitado, de acordo com o disposto no artº 420º, nº 1, alínea b), deste último código.

(…).

Em face do exposto, decide-se rejeitar o recurso.

As custas são da responsabilidade dos recorrentes. Cada um destes pagará ainda a soma de 3 UC, ao abrigo do nº 3 daquele artº 420º».

Reclamação para a conferência:

Dessa decisão sumária, os recorrentes, ao abrigo do referido artº 417º, nº 8, reclamaram para a conferência, nos termos seguintes:

                                                                       BB:

            “1. Vem a presente reclamação para a conferência por via de o arguido BB, com os restantes sinais dos autos, não poder conformar-se com a douta decisão sumário proferida pelo Venerando Conselheiro Relator, no dia 27-10-2011, através da qual viu o seu recurso rejeitado de acordo com o disposto no art° 420°, n° 1, aI. b), do CPP (“Dupla Conforme”).

2. Embora admita a aplicação subsidiária das regras do processo civil ao processo penal, as razões da inconformação do ora Reclamante, no essencial, radicarão na não aplicação, ao caso sujeito, do disposto no art° 721°, n° 3, do Código de Processo Civil, já que, no seu entendimento, à data da sua entrada em vigor, o presente processo já se mostrava pendente (art° 11°, n° 1, Dec-Lei n° 303/2007, de 24 de Agosto).

3. Na verdade, o citado art° 11°, n° 1, do Dec-Lei n° 303/2007, de 24 de Agosto, dispõe que “sem prejuízo do disposto no número seguinte, as disposições do presente decreto-lei não se aplicam aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor”.

Como se refere na douta decisão sumária ora sob reclamação, o sistema da “dupla conforme” entrou em vigor no dia 01 de Janeiro de 2008 (“Este sistema da dupla conforme’ entrou em vigor em 01/01/2008, aplicando-se apenas aos processos iniciados após essa data, como se prevê nos art°s 11°, n° 1, e 12°, n° 1, do referido DL n° 303/2007”).

O ora Reclamante, assim como concorda com a aplicação subsidiária das normas do direito processual civil ao processo penal também concorda que o regime da “dupla conforme” se aplicará apenas aos processos que se iniciem depois de 01 .01.2008.

Na chamada “Reforma do Regime dos Recursos em Processo Civil”, publicada pelo Ministério da Justiça, a propósito, págs. 9, lê-se: “Em resumo... (aplicação da lei no tempo e regime dos recursos em legislação extravagante): 1- O DL 303/2007 entrou em vigor a 1 de Janeiro de 2008; 2- O diploma não se aplica aos recursos pendentes nem aos processos já entrados na 1ª instância antes de 1 de Janeiro de 2008”.

4. A discrepância, consistirá, no caso sujeito, no facto de ter sido julgado que o presente processo não estaria pendente à data da entrada em vigor do regime da “dupla conforme”.

O ora Reclamante entende, salvo o devido respeito, que sim.

O Venerando Conselheiro Relator terá entendido que não quando, doutamente, escreve: “O presente pedido de indemnização civil foi apresentado em 31/10/2008. Devendo considerar-se essa a data do seu início, o processo em matéria civil não estava pendente no momento da entrada em vigor do referido diploma, aplicando-se-lhe por isso a nova lei”.

Este entendimento, salvo o devido respeito, redundaria, incontornavelmente, em prejuízo manifesto do Reclamante, sem justificação razoável. Os sujeitos processuais não podem ser culpados, ou lesados, com a burocracia ou morosidade do respectivo processo, sendo que o apelo ao pedido cível para, a partir dele, se entender que, aí sim, há um processo pendente, traduzirá algo penalizante para o ora Reclamante.

5. Antes de mais, dir-se-á que, no caso sujeito, tratar-se-á de um pedido cível enxertado no processo-crime. Que, não obstante, este (processo-crime), não deixará de ser um processo, no sentido corrente e técnico do termo.

Tanto quanto pensa o ora Reclamante, a lei, salvo erro ou omissão, não falará na dedução do pedido cível, nem em instância cível; referir-se-á, isso sim, a processos pendentes, à data da sua entrada em vigor. A lei não distinguirá, para efeitos da qualificação de pendências, entre petição inicial, e notícia do crime, participação ou queixa. Para o efeito, parecerá razoável que os dois actos sejam considerados equivalentes. A lei, como se referiu já, não os distinguirá. E, salvo sempre o devido respeito, “ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus”.

Será, mais ou menos, linear e simples definir quando é que um processo cível teve o seu início. Todavia, essa linearidade não será tão simples quando se está em presença de um processo-crime. Pelo menos, não parece razoável entender-se que o processo-crime só passou a estar pendente – para efeitos de aplicação do regime da “dupla conforme” – com a dedução do pedido de indemnização civil. Então, se não houver dedução do pedido cível, não houve também processo pendente?

E será razoável que se ignore toda a tramitação processual e diligências realizadas antes da dedução do pedido cível? Então, para se enxertar este pedido não é necessário que haja um processo-crime pendente?

6. O art° 40°, n° 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT) prescreve que “Adquirida a noticia de um crime tributário procede-se a inquérito, sob o a direcção do Ministério Público…”.

Aos órgãos ... da administração da segurança social cabem, durante o inquérito, os poderes e os funções que o Código de Processo Penal atribui aos órgãos de polícia criminal ...“ (n° 2).

A instauração de inquérito pelo órgãos da administração ... da segurança social ao abrigo da competência delegada deve ser de imediato comunicada ao Ministério Público”.

No caso sujeito, dos autos consta que a “notícia de crime” terá ocorrido em 19.11.2002.

No dia 27.11.2007 – cinco anos depois daquela notícia – proveniente da segurança social, terá dado entrada, no Ministério Público, um ofício a informar que havia indício da prática de crime.

Aliás, como se vê, também, do relatório do acórdão da 1ª instância, a notícia que deu azo ao processo-crime respectivo ocorreu em 19.11.2002 (como se referiu já supra), sendo que o ora Reclamante foi, no respectivo processo, constituído arguido, logo na data de 07.12.2007 (fls. 23 e ss. dos autos).

O ora Reclamante foi notificado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b), do n° 4° do art° 105° do RGIT em Outubro de 2007, no âmbito de um processo pendente.

Não será despiciendo para o caso presente o que escrito se acha a fls. 1181 dos autos que, aqui (cf. tb., fls. 1192) e com a devida vénia, se respiga: “Decorre de fls. 80 que a notícia do crime e a autuação de serviço como processo de inquérito por parte do instituto de Gestão Financeiro da Segurança Social a quem são atribuídas por lei competências delegadas nos termos do art° 43°, n°s 1 e 2, e art° 51° do RGIFNA, actualmente 40°, n°s 1 e 3, do RGIT, que deu origem ao processo crime ocorreu em 19/11/2002 ...“.

Do mesmo modo, a valoração que a Relação do Porto deu ao facto da constituição de arguido do ora Reclamante, a fls. 1186: “Porém como resulta dos autos e bem assinala o Exm° Sr. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação, o arguido BB recorrente foi constituído como tal no dia 17 de Outubro de 2005 cfr. fls. 176, ocorrência processual que ...“; raciocínio que valerá também para a constituição do arguido no processo apenso, ocorrida em 07.12.2007, como se refere no douto acórdão da primeira instância.

Ocorrência processual, porque realizada no âmbito de um processo, sendo certo que a constituição de arguido terá ocorrido após a prestação de declarações do ora Reclamante, perante a entidade (e a pessoa) competente para o efeito.

7. O ora Reclamante, na sua defesa, suscitou e invocou o instituto da prescrição. Da economia dos autos resulta que os Tribunais que apreciaram e decidiram o assunto trouxeram à colação factos determinantes anteriores a 01 de Janeiro de 2008, constantes do processo.

Ainda na esteira da decisão da 1ª instância, dir-se-á que esta, também no âmbito da prescrição, cita um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22.01.2004, que contém um segmento que, com a devida vénia, se irá aqui respigar: “O pedido de indemnização civil fundado na prática de crime é deduzido no processo penal respectivo (princípio da adesão)”.

E, loc. cit., “Tendo sido instaurado processo crime contra o lesante pela alegada prática de um crime semi-público, mediante a apresentação oportuna da competente queixa por parte do lesado, deve entender-se que o lesado manifestou, ainda que de forma indirecta, a sua intenção de exercer o direito a ser indemnizado pelos danos que lhe foram causados pelo arguido/lesante”;

A pendência do processo crime (inquérito) como que representa ...“ (ibidem).

8. Doutrinalmente, diz-se que a informação de que foi praticado um crime (notícia do crime) é essencial para se iniciar o processo penal sendo que o inquérito constitui a primeira fase do processo penal.

Ora, no caso sujeito, antes de 01 de Janeiro de 2008, ocorreram – além de outras diligências – a notícia do crime, a comunicação do facto ao Ministério Público, a instauração do competente inquérito, a constituição de arguido e a notificação deste para os efeitos da alínea b), do n° 4 do art° 105° do RGIT.

Salvo o devido respeito, não parece razoável que se entendam irrelevantes estes factos, praticados no âmbito de um processo-crime (legal e juridicamente correcto), anos antes da entrada em vigor da chamada “dupla conforme”.

Considerar a pendência só após a dedução do pedido cível não será curial.

O processo terá de ser visto e encarado como um todo, não podendo cindir-se partes processuais desse mesmo todo.

Assim e em jeito de conclusão quanto a este aspecto: aplique-se a norma do art° 721°, n° 3, CPC, ao processo penal, mas não se aplique ao caso sujeito, visto que, à data da sua entrada em vigor, o presente processo já estava pendente há muito. Pelo menos desde 2002, pois que, em 19 de Novembro desse ano, nos dizeres do acórdão da 1ª instância, foi praticado o acto que “deu azo ao processo-crime”. E, se processo é processo, então, este à data de 01.01.2008 estava pendente.

9. A questão do pagamento das prestações à Segurança Social tem a data de vencimento devidamente fixada.

Se os sujeitos passivos, deixarem de honrar esse pagamento, a entidade credora – a Segurança Social no caso – poderá desencadear procedimentos judiciais vários: processo executivo e/ou processo crime, no que diz respeito às cotizações.

A Segurança Social, no caso sujeito, terá optado por reclamar tudo no pedido cível que deduziu em 31.10.2008.

Não irá discutir-se, aqui e agora, a questão da prescrição. O que se dirá, isso sim, é que se a Segurança Social tivesse adoptado a via executiva – o que terá feito já em muitos casos – se calhar, tê-lo-ia, obrigatoriamente, feito mais cedo (refª àquela data de 31.10.2008) e, então, a pendência, em Janeiro de 2008, seria flagrante.

Mas os sujeitos passivos (no caso de obrigações tributárias ou paratributárias) não poderão estar sujeitos às opções dos respectivos credores, da inércia ou celeridade destes no desencadeamento do processo adequado e na realização das respectivas diligências, do regime processual decorrente do enxerto do pedido de indemnização no processo crime, designadamente, sob pena de poder gerar-se, com isso, desigualdades incontornáveis, sendo que todos os cidadãos serão iguais perante a lei (art° 13°, n° 1, da Constituição da República Portuguesa – CRP).

A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos (art° 266°, n° 1, CRP).

Salvo o devido respeito, se a Segurança Social, no caso sujeito, agiu tardiamente e/ou o próprio Ministério Público com lentidão, tal não pode ser lesivo dos direitos do ora Reclamante.

Isto para significar que a interpretação ora dada à norma processual em causa, na questão da pendência poderá ir contra os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da Justiça consagrados no art° 266°, n° 2, CRP, o que se suscita.

Equivalerá isto a dizer – EM CONCLUSÃO – que o ora Reclamante se acha, aqui e agora, a pugnar pela obtenção de uma “decisão colectiva – por inaplicabilidade, ao caso, da norma do n° 3 do art° 721°, CPC – que lhe permita ver o conhecimento do seu recurso, quanto ao mérito, e para que, assim, em comparação com os demais, se cumpram os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da justiça. E a realização do direito”.

                                                                       AA:

“1. O aqui reclamante interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, que o condenou ao pagamento da indemnização civil ao Instituto da Segurança Social, no montante de € 258.913,89.

2. O recurso interposto, apesar de oportunamente admitido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, não o foi por este Tribunal.

3. Decisão com a qual não se concorda e da qual se reclama.

4. O recurso interposto é legalmente admissível à luz do princípio geral consagrado no art° 400°, n° 3, do Cód. Proc. Penal, tal como foi decidido por este Tribunal em 24.04.2008 (Proc. n° 08P907), porquanto tem por objecto apenas a matéria civil (correspondente à condenação no pagamento no valor de € 258.913,89), conforme também é entendimento da doutrina expressa nos “Comentários e Notas Práticas”, Código de Processo Penal, da autoria dos Magistrados do Ministério Público, do Distrito Judicial do Porto, Coimbra Editora, pag. 1024.

5. O recurso é admissível perante o Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que se trata de uma decisão do Tribunal da Relação, em matéria civil, cujo valor é superior à alçada deste Tribunal (conf. a al. b) do art° 432° e n° 3 do art° 400°, ambos do Cód. Proc. Penal).

6. Ao recurso com esta natureza, aplica-se o regime regra dos recursos das decisões proferidas em matéria penal (v.g. o regime previsto no art° 427° do Cód. Proc. Penal).

7. E não podem ser convocadas normas de ordenamento jurídico diverso, por não serem aplicáveis a título subsidiário, por carência de previsão legal e a lei processual penal não necessitar de qualquer integração neste domínio, pois não se verifica caso omisso que justifique o recurso à solução prevista no art° 4° do Cód. Proc. Penal.

8. Porém, mesmo que se admita a aplicação subsidiária das regras do processo civil no processo penal, não deverá in casu ser aplicado o disposto no n° 3 do art° 721° do Cód. Proc. Civil, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n° 303/2007, de 24/8.

9. Com efeito, o n° 1 do art° 11° do citado Decreto-Lei dispõe que o mesmo diploma legal não se aplica aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor (1/1/2008).

10. Ora, dúvidas não restam que os presentes autos já se encontravam pendentes antes de 1/1/2008: as “notícias do crime” ocorreram em 19/11/2002 e 19/3/2003 e a comunicação por parte da Segurança Social ao Ministério Público a informar a existência de indícios da prática de crime data de 27/11/2007.

11. Sendo irrelevante, salvo o devido respeito por melhor opinião, o momento da dedução do pedido de indemnização civil enxertado no processo-crime pendente àquela data (1/1/2008).

12. É que, a entender-se de outra maneira, poder-se-ia tratar de forma desigual factos ocorridos na mesma ocasião: pense-se na hipótese das omissões das entregas das contribuições à Segurança Social datarem da mesma altura (daquela dos autos) e em que o pedido de indemnização civil tenha sido deduzido em momento anterior a 1/1/2008 (caso em que se encontraria assegurado o recurso para o Supremo Tribunal).

13. A situações iguais terá de ser dado tratamento igual, não podendo o ora reclamante ser prejudicado no seu direito, de recurso, pela maior ou menor celeridade que a lesada imprimiu na dedução do seu pedido de indemnização cível.

14. Só a admissão do recurso em causa permitirá a observância cabal do princípio da igualdade e o acesso ao Direito e tutela jurisdicional efectiva, previstos nos art°s 13° e 20° da Constituição da República Portuguesa”.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Fundamentos:

1. A decisão reclamada assenta no entendimento de que a norma do artº 721º, nº 3, do CPC é subsidiariamente aplicável aos pedidos de indemnização civil julgados no processo penal, por força do disposto no artº 4º do CPP.

Só o reclamante AA discorda, dizendo não haver caso omisso no processo penal que legitime o recurso às normas do processo civil. A decisão reclamada afirma o caso omisso e expõe as razões que sustentam essa afirmação. O reclamante não rebate essa argumentação, ignorando-a por completo. Não sendo postas em causa pelo reclamante as razões que levaram a concluir na decisão reclamada pela aplicação subsidiária daquela disposição do processo civil aos pedidos de indemnização civil julgados no processo penal e considerando-se essas razões válidas, nada mais resta que reafirmá-las aqui, acrescentando apenas que sobre este ponto decidiu no mesmo sentido este Supremo Tribunal em acórdãos de 22/06/2011, proferido no proc. 444/06.4TASEI, e de 29/09/2010, proferido no proc. 343/05.7TAVFN, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

2. A segunda questão colocada refere-se ao momento em que deve ter-se como iniciado o processo, residindo a sua relevância no facto de a norma do nº 3 do artº 721º do CPC, introduzida pelo DL nº 303/2007, só se aplicar aos processos iniciados após a entrada em vigor deste diploma, ocorrida em 01/01/2008.

Respeitando o recurso somente à parte do acórdão recorrido relativa à indemnização civil, a decisão reclamada considerou que «o processo em matéria civil» se iniciou apenas com a dedução do pedido de indemnização, a qual teve lugar em 31/10/2008, quando já vigorava aquela norma do processo civil, que por isso tinha aplicação no caso.

Os reclamantes discordam, dizendo que o processo é só um e se iniciou com a notícia do crime ou com a instauração do inquérito pelo MP, o que ocorreu muito antes da entrada em vigor do DL nº 303/2007.

Não têm razão.

Em regra, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, como estabelece o artº 71º do CPP, que consagra o denominado processo de adesão. Quando isso acontece, há, na verdade, um só processo em sentido material, ou seja, enquanto conjunto de autos e outros documentos, mas dois processos em sentido jurídico, isto é, considerando o processo como procedimento ou acção. Nesses casos, no mesmo processo em sentido material, coexistem duas acções, uma penal e outra cível, autónomas entre si, de tal sorte que, além do mais, uma pode terminar com decisão de absolvição e a outra com decisão condenatória. O processo ou procedimento penal inicia-se com um acto do MP, em regra, a abertura de inquérito; o processo ou acção cível tem início com a dedução do pedido de indemnização civil. Toda a actividade processual anterior a esse momento nada tem que ver com a acção cível. Ao contrário do que diz o reclamante BB (nº 5 da sua reclamação), havendo dedução de pedido de indemnização civil em processo penal, o equivalente da petição inicial do processo civil não está na notícia do crime, na participação ou na queixa, figuras alheias à acção civil, mas sim no requerimento em que é deduzido o pedido de indemnização.

Deste modo, o processo ou acção cível, tendo-se iniciado com a dedução do respectivo pedido, em 31/10/2008, não estava pendente na data da entrada em vigor da nova versão do nº 3 do artº 721º do CPC, que por isso se lhe aplica, em face do disposto no artº 11º, nº 1, do DL nº 303/2007 [«(…) as disposições do presente decreto-lei não se aplicam aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor»].

3. Dizem os reclamantes, em terceiro lugar, que a consideração da data da dedução do pedido de indemnização civil como a do início do processo em termos cíveis conduzirá a dar tratamento desigual a factos ocorridos na mesma altura, com o que sairá violado o princípio da igualdade, consagrado no artº 13º da Constituição. O reclamante BB invoca ainda a violação dos princípios da proporcionalidade e da justiça, que terão assento no artº 266º, nº 2, e o reclamante AA a violação do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva, garantidos pelo artº 20º, estes também da Constituição.

Como decidiu o Tribunal Constitucional no acórdão nº 39/88, publicado no DR, I série, de 03/03/1988, “o princípio da igualdade não proíbe (…) que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no nº 2 do artigo 13º”.

A consideração da data da apresentação do pedido de indemnização civil enxertado no processo penal como o início do processo em matéria cível, em si, não coloca qualquer questão de desigualdade. Está no mesmo plano que a consideração da petição inicial como o início do comum processo civil. O que poderia colocar uma tal questão seria a norma do artº 11º, nº 1, do DL nº 303/2007, que manda aplicar a nova redacção do nº 3 do artº 721º do CPC aos processos iniciados a partir da entrada em vigor daquele diploma.

E os reclamantes não dizem isso, sendo que até concordam que a nova redacção desse artº 721º, nº 3, se aplique aos processos iniciados a partir da sua entrada em vigor, pretendendo, porém, que o presente processo em matéria civil se iniciou antes da vigência desta nova disposição.

E, se fosse aceite que o presente processo em matéria civil se iniciou antes da entrada em vigor da nova redacção do artº 721º, nº 3, já os reclamantes não viam qualquer problema em que factos ocorridos na mesma altura tivessem diferente tratamento processual.

De qualquer modo, a data da prática dos factos nunca foi ou não tem sido utilizada como critério de aplicação da lei processual civil no tempo, que, em regra, na ausência de normas transitórias, é de aplicação imediata. No caso, consagrou-se disposição transitória no nº 1 do artº 11º do falado DL nº 303/2007, segundo a qual a nova lei só se aplica aos processos iniciados a partir da sua vigência. E este critério não é arbitrário, encontrando fundamento material bastante no propósito de evitar quebras na harmonia processual, sendo de notar que, se tivesse sido adoptado o critério preterido da aplicação imediata da lei nova, a situação processual dos reclamantes seria a mesma.

Acrescente-se que a limitação das possibilidades de recurso em matéria civil, obedecendo a um critério racional e objectivo, não tem sido considerada pelo Tribunal Constitucional violadora do princípio da igualdade, como no caso de alteração do valor das alçadas, citando-se, a título de exemplo, o acórdão nº 239/97, onde se pode ler:

“A existência de limitações de recorribilidade, designadamente através do estabelecimento de alçadas (de limites de valor até ao qual um determinado tribunal decide sem recurso), funciona como mecanismo de racionalização do sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática, posto em causa pelo colapso do sistema, decorrente da chegada de todas (ou da esmagadora maioria) das acções aos diversos ‘patamares’ de recurso.

(…).

Ora, sendo certo que as alçadas, bem como todos os mecanismos de ‘filtragem’ de recursos, originam desigualdades (partes há que podem recorrer e outras não), estas não se configuram como discriminatórias, já que todas as acções contidas no espaço de determinada alçada são, em matéria de recurso, tratadas da mesma forma”.

E é nesses termos que a presente limitação de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos da Relação se encontra justificada no preâmbulo do DL nº 303/2007:

“Por último, é feita uma opção determinada pela racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, procurando dar resposta à notória tendência de crescimento de recursos cíveis entrados neste Tribunal, onde o número de recursos entrados em 2004 é superior em mais de 90 % ao valor verificado em 1990, assim criando condições para um melhor exercício da sua função de orientação e uniformização da jurisprudência.

Subsumem-se claramente nesse desígnio de racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça a revisão do valor da alçada da Relação para (euro) 30 000, que é acompanhada da introdução da regra de fixação obrigatória do valor da causa pelo juiz e da regra da «dupla conforme», pela qual se consagra a inadmissibilidade de recurso do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1ª instância. Esta regra da «dupla conforme» comporta três excepções, ao abrigo das quais se admite o recurso do acórdão da relação que se encontre nas situações descritas: i) quando esteja em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, ii) quando relevem interesses de particular relevância social ou, iii) quando o acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito. Neste último caso, ressalva-se sempre a hipótese de já ter sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme, caso em que retoma aplicação a regra da inadmissibilidade do recurso”.

O reclamante BB não diz concretamente onde vê a violação dos princípios da proporcionalidade e da justiça, e este Supremo Tribunal não a descortina, se o critério legal, na interpretação aqui feita, é justificado, e da utilização daquele que podia ser alternativa nenhuma alteração resultaria na situação processual do reclamante.

Também não se vê de que modo foi impedido ao reclamante AA o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, garantidos no artº 20º da Constituição, se esteve representado em juízo por advogado e pôde interpor recurso para a Relação da sentença do tribunal de 1ª instância, não estando de modo nenhum garantido constitucionalmente um triplo grau de jurisdição, como é por todos aceite.

Decisão:

Em face do exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir ambas as reclamações.

Custas do incidente pelos reclamantes, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça a pagar por cada um.

                                                Lisboa, 15 de Dezembro de 2011

 
Manuel Braz (relator)
Santos Carvalho