ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
2/00.7TBSJM.P2.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/03/2011
SECÇÃO 5ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL RECLAMAÇÃO
DECISÃO INDEFERIDA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR ISABEL PAIS MARTINS

DESCRITORES CONFERÊNCIA
DECISÃO SUMÁRIA
DIREITO AO RECURSO
EXAME PRELIMINAR
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
RECLAMAÇÃO
RECURSO PENAL
REJEIÇÃO DE RECURSO

SUMÁRIO


I - A Lei 48/2007, de 29-09, atribuiu ao relator poderes de decisão sumária sobre o recurso, tendo-se já reconhecido que esta nova competência do relator é compatível com o direito ao recurso do arguido, o direito do ofendido de participação no processo e de acesso aos tribunais e os direitos das partes civis e dos outros participantes processuais de acesso aos tribunais, e designadamente de acesso aos tribunais de recurso, previstos nos arts. 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1 e 7, da CRP.
II - Os poderes do relator de decisão sumária incluem o conhecimento dos fundamentos de rejeição do recurso previstos no n.º 1 do art. 420.º do CPP, como decorre da al. b) do n.º 6 do art. 417.º do CPP, designadamente a sua rejeição por manifesta improcedência.
III - A manifesta improcedência do recurso significa que este, pelos termos em que se encontra motivado ou pelo objecto que o recorrente lhe define, se apresenta imediatamente insubsistente, sendo claro, patente e de primeira leitura que é manifestamente destituído de fundamento (cf. v.g. Ac. do STJ de 26-01-2005, Proc. n.º 3998/04 - 3.ª).
IV - Da decisão sumária do relator cabe reclamação para a conferência, conforme estabelece o n.º 8 do art. 417.º do CPP, sendo, então, o recurso julgado em conferência. Como destaca Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código de Processo Penal”, 4.ª Edição, pág. 1160) “o poder de cognição da conferência tem uma natureza originária e não derivada. Isto é, a conferência não está vinculada nem à decisão do relator nem à reclamação do sujeito ou participante afectado pela decisão do relator”.





DECISÃO TEXTO INTEGRAL



Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I

1. No processo comum, com intervenção do tribunal singular, n.º2/00.7TBSJM, do 2.º juízo do Tribunal Judicial de São João da Madeira, por sentença de 08/06/2010, foi decidido condenar o arguido/demandado civil AA, pela prática de um crime continuado de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 24.º, n.os  1 e 5 do RJIFNA e, actualmente, pelo artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, na pena de multa de 300 dias, à taxa diária de € 10,00, e, na parcial procedência do pedido cível contra ele deduzido, no pagamento ao Estado, a título de indemnização, da quantia de € 40.439,486, acrescida de juros de mora à taxa legal prevista no artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16 de Março, calculados desde a data em que cada uma das quantias parcelares de IVA for devida, até integral pagamento.
            2. O arguido interpôs recurso da sentença.
            3. Subiram os autos ao Tribunal da Relação do Porto para conhecimento do recurso da sentença e de um recurso interlocutório, interposto pelo arguido, antes da prolação da sentença.
            4. Por acórdão da relação, de 02/03/2011, foram julgados improcedentes, quer o recurso interlocutório, quer o recurso da sentença e esta integralmente confirmada.
            5. Veio, então, o arguido AA interpor recurso para este Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da relação.
            Formulou as seguintes conclusões:
«1º
«O Arguido suscitou, pertinentemente, no que respeita ao pedido de indemnização cível, a questão de o mesmo dever ser liminarmente rejeitado, porquanto a devedora principal - O...C..., S.A - ter sido alvo de Processo Especial de Recuperação de Empresas, no âmbito do precedente processo previsto no CPEREF, que culminou com a falência da mesma e consequente elaboração de mapa de rateio de créditos verificados e graduados.
    «De facto,
«2º
«Conforme resulta da certidão de fls. 520 e seguintes e dos documentos juntos com a contestação apresentada, o aqui demandante Estado, reclamou e viu o seu crédito verificado e graduado no lugar que lhe competia, no que respeita aos exactos factos tributários por que aqui deduz pretensão em sede de indemnização civil.
  «Em boa verdade,
«3º
«A responsabilidade criminal que aqui se julga deriva e é indissociável dos factos tributários em que radica a sua razão de ser o pedido deduzido nestes autos. De facto, tal traduz a lógica do princípio da adesão consagrado no artigo 71,° do CFP.
«Ora,
«4.º
«Da certidão junta, em virtude da questão prévia suscitada, revela que a mesma pretensão, ainda que se possa revelar ali apenas quanto à devedora principal, vem novamente a ser reclamada, subvertendo-se a disciplina legal em desfavor do Arguido, reclamando deste o que já haviam reclamado noutro processo.
         «Desta forma,
«5º
«E dado que este pedido influi no enquadramento da conduta criminal por que vem acusado o Arguido, sempre a reclamação em causa se revela ilegal e até inconstitucional, possibilitando-se ao demandante civil reclamar novamente o que já pressupunha caso julgado material e formal.
«6º
«Diga-se que, o facto de não ter efectivamente havido qualquer pagamento por banda do Administrador da Insolvência naqueloutro processo não pode onerar o aqui Arguido. De facto, ali o Reclamante Estado teve ao seu alcance todos os meios legais para reagir e que escolheu não fazer.
       «Assim,
«7º
«Permitir-se reclamar mais e até duplamente, constitui um atropelo dos mais elementares princípios do Estado de Direito, e da CRP, qual sejam o princípio da igualdade e da defesa.
          «Na verdade,
«8º
«Reclamar mais de € 97.000,00, condicionando a liberdade de um cidadão – ou podendo fazê-lo – ao seu pagamento e não reagir à falta de pagamento do rateio no processo de falência traduzem claramente a desproporcionalidade de armas entre as partes e o claro atropelo das traves mestras do nosso sistema jurídico. Coloca-nos mesmo a dúvida de como seria tratado um outro credor se o pretendesse fazer...?!
     «Sem prescindir,
«9º
«O Arguido foi notificado em 20/04/2010 para no prazo de 30 dias proceder ao pagamento da quantia de € 17.328,87 e de € 23.110,61, acrescida dos juros legais e sanção contra - ordenacional (cfr. parte final do despacho anexo à mencionada notificação).
«10º
«Na sequência de tal notificação, veio o Arguido suscitar a nulidade da notificação efectuada nos termos e para os efeitos da alínea b), do n.º 4 do artigo 105.° do RGIT, por razões de facto e de direito que a seguir se evidenciam.
«Com efeito,
«11º
«O Arguido foi notificado para os termos e efeitos da alínea b) do nº 4 do artigo 105.º do RGIT pelo Tribunal "a quo". Sucede que, quem tem legitimidade para tal é a Repartição de Finanças competente, conforme vem sendo uniformemente defendido pela nossa Jurisprudência. Pelo que, considera o Recorrente que a notificação em crise é ilegal, devendo considerar-se inexistente e sem qualquer efeito.
  «De facto,
«12º
«A notificação em causa é condição de punibilidade, pelo que se verifica uma insuficiência processual, nulidade prevista na alínea d) do nº 2 do artigo 120.º do CPP. Vício esse que influi na boa decisão da causa, enfermando todo o processado posterior.
  «Em boa verdade,
«13º
«Toda a prova documental, donde se destaca as certidões fiscais juntas aos autos, a notificação efectuada ao abrigo do nº 4 do artigo 105.º do RGIT e sobretudo os documentos extraídos dos autos de falência são absolutamente desconsiderados, sem qualquer fundamentação cabal para tal, devendo igualmente ser reexaminada.                            
    «De facto,
«14º
«Ainda que das declarações do Arguido (cooperante) se possa inferir da realidade de alguns factos (que não uma confissão), sempre se deve salientar alguns aspectos – relevantes – que não foram valorados na formação da convicção do Tribunal recorrido.
«15º
«Chamando à colação o Direito das Sociedades, a responsabilidade nas sociedades anónimas – como é o caso da O...C..., entretanto falida – pelas obrigações contraídas pela sociedade é garantida pelo seu próprio património.
«16º
«Não tendo liquidez para o fazer, o Arguido, usando de toda a sua boa fé, utilizou o seu património pessoal na tentativa de manter a sociedade activa, não tendo nenhuma obrigação legal de o fazer.
   «Pois que,
«17º
«Estando o utilizar recursos próprios para satisfazer algumas das obrigações que a sociedade não tinha solvência para liquidar, seria uma incongruência afirmar que se apropria de algo que efectivamente era seu e que nenhuma obrigação tinha de entregar à sociedade, como já se disse.
«18º
«A emissão dos respectivos recibos e facturas era feita pela contabilidade, como qualquer outra operação contabilística, embora nem sempre fossem liquidados na data do seu vencimento, como ficou provado até pelo depoimento das inspectoras tributárias.
«19º
«Não se preenchendo este pressuposto objectivo, sendo os pressupostos cumulativos para a verificação do preenchimento do tipo legal de crime, cai por terra a aplicação daquele normativo penal, visto que o substrato factual não se subsume ao tipo legai de crime por que vem acusado o Arguido.
        «Desta forma,
«20º
«Deveria o Arguido ter sido absolvido da prática de crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 24º do RJIFNA.
«21º
«Sem prescindir, e nesta linha de raciocínio, sempre não seria de se aplicar o regime que se lhe sucedeu no tempo: o artigo 105º do RGIT.
   «De facto,
«22º
«A aplicação de tal normativo legal consubstancia uma aplicação proibida por lei, pois que, a ser considerada traduzir-se-ia na criminalização da conduta do agente, conduta essa que, à luz das considerações atrás dispendidas, não preenche os requisitos objectivos do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal.
«23º
«Havendo a proibição de aplicação retroactiva da lei penal (artigo 2º do Código Penal), um comportamento, que à data da prática dos factos, não era criminalmente punido, não o poderá ser pelas vicissitudes de sucessão temporal de leis.
        «Pelo exposto,
«24º
«Salvo o devido respeito por opinião contrária, deveria o Arguido AA ter sido absolvido da prática do crime de abuso de confiança fiscal, por não se terem verificado os pressupostos objectivos de que depende o tipo legal e a consequente condenação.
          «Ainda que assim não se entenda o que se não concede,
«25º
«Ao contrário do que se evidencia na sentença ora recorrida, a qualidade de devedor subsidiário e sua responsabilidade criminal enquanto representante legal de uma sociedade, em sede de jurisdição penal, não pode dissociar-se da sua responsabilidade em sede tributária. Com efeito, aquela deriva desta e a ela deverá estar sempre ligada, sob pena de outra vez se falar em ilegalidade e inconstitucionalidade.      
    «De facto,
«26º
«Se assim não fosse, estar-se-ia a coarctar os direitos fundamentais que a tal indivíduo são garantidos de defesa em sede tributária, ultrapassando-se (leia-se, negando-se) a defesa constitucionalmente consagrada, seja qual for a jurisdição. Torna-se sim importante sindicar se o facto tributário que subjaz ao presente procedimento criminal é. in casu. sustentável, sob pena de se permitir contornar a inderrogável prescrição e seus efeitos sobre as obrigações e a inquestionável segurança jurídica.
«27º
«Descura, assim, o Tribunal a quo que são garantidos aos devedores subsidiários os direitos de audição prévia e impugnação da alegada dívida tributária, que constitui um alegado prejuízo para o Estado.
«28º
«Permite-se, desta forma, aquilo que não se permite a nenhum credor fazer tábua rasa das regras jurídicas próprias e aplicáveis à natureza da dívida e reclamar em sede criminal, sujeitando-se apenas a essas regras a apreciação da validade e pressupostos de legitimidade da sua pretensão!
«29º
«Como é evidente, se a Administração Tributária não foi diligente, não podemos premiá-la desta forma... Se tributariamente a dívida não existe, não pode a mesma ser aqui reclamada ao Arguido, doutra forma é um verdadeiro contra-senso, para não falar em abuso de direito. Equivale a fazer "renascer um morto"! Donde, todo o "arrazoado argumentativo do arguido em abono da sua defesa" tem todo a sua propriedade e razão de ser.
    «De facto,
«30º
«A responsabilidade criminal pode até nascer apenas com a prática do facto em causa (omissão do pagamento), mas a responsabilidade civil radica noutro pressuposto diverso, que não se esgota inteiramente naquele., Denegando-se a defesa nessa sede, sempre tal actuação deve ser tida como inconstitucional. O princípio da subsidiariedade deve aqui ser enquadrado não só na sede puramente criminal, mas sempre ligado ao facto tributário donde deriva. O que aqui foi, sumariamente, qualificado de descabido...
«31º
«Se na sede tributária não fez reverter a execução fiscal, nem reclamou na sede própria (processo de falência), não pode vir agora reclamar o que, na realidade, não é devido.
«32º
«Acresce a tudo isto que, face aos comprovados pagamentos ao Estado que existiram nestes períodos no que concerne a impostos em atraso, não logrou a Acusação provar com a necessária certeza que montantes em concreto foram omitidos, reportados à periodicidade a que, em cada sede de imposto, a sociedade estava obrigada.
          «Na verdade,
«33º
«Havia mesmo períodos em que as facturas não eram liquidadas pontualmente, os salários e comissões não eram igualmente liquidados com a periodicidade usual, tomando difícil determinar qual, em concreto, a omissão de pagamento em cada período para se aferir da conduta.
«Ora,
«34º
«Parece-nos que não pode também neste campo proceder a Acusação. Estabelece-se que, tendo sido a obrigação de declaração cumprida, é condição de punibilidade a realização da notificação em falta e seu não pagamento no prazo concedido.
        «Assim sendo,
«35º
«Quanto à notificação efectuada foi arguida a sua nulidade, sendo certo que, no que concerne ao Arguido, sempre a dívida estava prescrita e, portanto, era e é inexigível.
   «Pelo que,
«36º
«Não tendo ocorrido tal notificação antes da verificação da prescrição, sempre a mesma não pode ser exigível, sob pena de, mais uma vez, estarmos a derrogar incontornáveis pilares constitucionais.
     «Desta maneira,
«37º
«Crê-se que não estão preenchidas as condições de punibilidade do Arguido, sendo certo que, a punir-se tal conduta (omissão de pagamento), por que incerto o seu montantes, sempre a sede seria a contra ordenacional e não a criminal...
       «Assim,
«38º
«Outra solução não poderia existir que não a absolvição do Arguido da indemnização e, que foi condenado, porque inexigível nos termos legais e por falta de prova em concreto.
    «De facto,
«39º
«A considerar-se de diferente forma sempre se devem considerar violadas as mais elementares regras constitucionais, a saber: artigos 13.º, 29.º, 32.º e 104.º da CRP.
         «Aliás,
«40º
«Padece a douta decisão de que se recorre de tal vício que aqui expressamente se argui.»
Terminou a pedir que o recurso seja julgado procedente e acórdão recorrido substituído por outro, sem concretizar em que dimensão visa essa tal substituição.
            E indicou, como normas jurídicas violadas, o artigo 105.º do RGIT e os artigos 13.º, 29.º, 32.º e 104.º da Constituição.
            6. Ao recurso respondeu o Ministério Público, sustentando que não devia ser admitido, no tocante à parte penal, por a decisão ser irrecorrível para o Supremo Tribunal de Justiça, e que devia ser julgado improcedente, quanto à parte cível.
            7. Por despacho de 27/05/2011, não foi admitido o recurso, em relação à condenação penal, por inadmissibilidade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 400.º, n.º 1, alínea e), e 432.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal[1], mas foi o mesmo admitido em relação à indemnização civil.
            8. Nesta instância, o Ministério Público apôs o seu visto, no processo.
9. O recorrente não requereu a realização da audiência (artigo 411.º, n.º 5, do CPP).
10. No exame preliminar, a relatora, no entendimento de que o recurso devia ser rejeitado, por ser manifesta a sua improcedência, decidiu conhecer da questão, proferindo decisão sumária (artigos 417.º, n.º 6, alínea b), e 420.º, n.º 1, alínea a), do CPP).
            11. E, por decisão sumária de 15/09/2011, foi o recurso rejeitado, por ser manifestamente improcedente (alínea a) do n.º 1 do artigo 420.º do CPP).
            12. Na sequência, veio o recorrente, nos termos do artigo 417.º, n.º 8, do CPP, em requerimento dirigido, embora, ao Juiz Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, reclamar dessa decisão para a conferência, com os seguintes fundamentos:
«1. O Arguido acima identificado foi condenado nos presentes autos pela prática de crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. actualmente pelo artigo 105.º, n.º 1 do RGIT.
«Sucede que,
«2. interpôs o aqui Recorrente recurso da sentença proferida em 1ª Instância e, bem assim, do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, não se conformando, pois, com o desfecho dos autos.
«No entanto,
«3. Foi o mesmo sumariamente decidido, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 420.º do CPP.
«Ora,
«4. Não pode o Reclamante deixar de manifestar o seu desacordo com a situação vertente, porquanto a decisão de que recorreu recai sobre o objecto da causa.
«Em boa verdade,
«5. Constitui garantia fundamental do Arguido o recurso até ao Supremo Tribunal de Justiça, tendo respeitado em todo o momento as formalidades impostas para a sua admissão.
«Além do que,
«6. Não se encontra cabalmente fundamentado (porque não tem fundamento em nosso modesto entender) a questão relativa ao julgamento de questão sobre a responsabilidade do Recorrente,
«De facto,
«7. O conhecimento da Relação acerca da questão existiu, existindo até uma omissão de julgamento que sempre terá de ser conhecida cabalmente (cremos).
«Pelo que,
«8. Se entende dever ser acautelado o seu interesse, que fica seriamente coarctado com a decisão de que ora se reclama, com as inerentes e inelutáveis repercussões em sede de decisão da causa e descoberta da verdade.»
                Para concluir:
«Deve a presente Reclamação ser julgada procedente, por provada, e, por via dela, ser o despacho de indeferimento de que se reclama revogado e apreciado em conferência o Recurso interposto, com todas as legais consequências, seguindo a sua normal tramitação, como é de Justiça.»
                13. Colhidos os vistos, com projecto de acórdão, realizou-se a conferência, dela procedendo o presente acórdão.
II
            A – A Decisão sumária de rejeição do recurso interposto do acórdão da relação, por ser manifesta a sua improcedência (artigos 417.º, n.º 6, alínea b), e 420.º, n.º 1, alínea a), do CPP) assenta nos seguintes fundamentos, que se transcrevem ipsis verbis:
            «1. O recurso é restrito à acção civil pois, como já se viu, apenas, nesse âmbito, foi admitido.
            «A condenação do recorrente em indemnização civil decorre da prática do crime de abuso de confiança fiscal por que foi condenado.
            «Na verdade, o Ministério Público, em representação do Estado, deduziu contra o recorrente (e outro) pedido de indemnização civil, tendo como fundamento a prática de ilícito criminal. E foi na base da prova dos factos que integram a prática pelo recorrente de um crime continuado de abuso de confiança fiscal que ele foi condenado em indemnização civil.
            «O que, com evidência, resulta da fundamentação, na parte pertinente, da sentença da 1.ª instância: “(…) tendo ficado demonstrado que por actuação criminosa do mesmo [o recorrente] foi causado ao Estado o prejuízo correspondente às quantias não entregues a título de IVA, no montante global de € 40.439,48, impende sobre ele a obrigação de proceder ao seu ressarcimento nos termos legais da indemnização pela prática de facto ilícito”.
            «O recorrente, enquanto responsável pelo crime de abuso de confiança fiscal (artigo 7.º, n.º 3, do RGIT), foi condenado pelos danos causados com a prática do crime, nos termos da responsabilidade civil extracontratual (artigos 483.º e seguintes do Código Civil).
«2. Comete o crime de abuso de confiança fiscal, conforme artigo 105.º, n.º 1, do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, «quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar».
            «Nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, o facto só é punível se:
            «”a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
            «”b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.”
            «Assim, a obrigação em causa – de entrega à administração tributária de prestação tributária deduzida nos termos da lei – deriva da lei.
            «A prestação tributária é devida independentemente do crime e não é o crime o facto causador da dívida tributária. O que gera a dívida é a retenção da prestação tributária deduzida.
            «”Sucede, porém, que se o crime não é o facto gerador da dívida de imposto (da prestação tributária não paga) pode ser a causa do não pagamento e nessa medida é causa do dano para a administração tributária. A generalidade dos crimes tributários são susceptíveis de causar dano à administração tributária, frustrando o pagamento da prestação tributária em falta. Este prejuízo coincide quantitativamente com a prestação tributária em dívida, mas a sua causa é autónoma. A dívida tributária existe e o seu fundamento, a sua causa é autónoma do crime, mas o prejuízo resultante do não pagamento foi causado pela perpetração do crime. Por isso que os agentes do crime devem responder pelos prejuízos causados com o seu acto.”[2] 
            «Dispõe o artigo 3.º do RGIT que são aplicáveis subsidiariamente: “a) Quanto aos crimes e seu processamento, as disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal e respectiva legislação complementar.”
            «Também o artigo 8.º do Código Penal proclama que as disposições do Código Penal são aplicáveis aos factos puníveis pela legislação de carácter especial, salvo disposição em contrário.
            «Por isso, aos crimes tributários é aplicável a norma do artigo 129.º do Código Penal, segundo a qual, “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”.
            «Tanto mais quanto, o artigo 9.º do RGIT, dispondo que “o cumprimento da sanção aplicada não exonera do pagamento da prestação tributária devida e acréscimos legais”, tem o sentido evidente de consagrar a solução da subsistência da prestação tributária, “pois sendo a responsabilidade por tributos distinta da responsabilidade criminal e contra-ordenacional, a extinção destas não poderia extinguir aquela”[3]. Dele não se devendo extrair a conclusão de que da prática do crime, para além das consequências de natureza criminal, não emerge outro efeito que não seja a manutenção da dívida de imposto.
            «Como salienta Germano Marques da Silva[4]:
            “A unidade e coerência do sistema impõem que se distinga a responsabilidade pelo pagamento do imposto (responsabilidade tributária), sendo então aplicável a legislação tributária, nomeadamente, a Lei Geral Tributária, e a responsabilidade emergente do crime, consequência civil resultante da prática do ilícito criminal causador de dano à administração tributária ou à administração da segurança social.”
            «Por isso, o artigo 9.º do RGIT nada tem a ver com a responsabilidade pelos danos emergentes do crime. “Significa tão só que o crime tributário não implica novação objectiva ou subjectiva da dívida tributária. A dívida tributária existe e mantém-se independentemente do crime tributário, mas se o crime causar danos os seus agentes são responsáveis pela indemnização dos danos dele emergentes nos termos gerais.”[5]
            «Como resulta do exposto, pelos danos causados pelos crimes tributários respondem os agentes do crime nos termos da lei civil e não nos termos da Lei Geral Tributária.
            «O que é objecto do processo penal, por via do processo de adesão, é a responsabilidade civil emergente do crime tributário, ou seja, pelos danos causados com a prática do crime.
            «3. Nesta compreensão, o recurso para este Supremo Tribunal do acórdão da relação ter-se-ia de conter na impugnação da parte desse acórdão relativa à indemnização civil decorrente da prática do crime.
«Na sua impugnação do acórdão recorrido, o recorrente, muito embora comece por anunciar que lhe assiste o direito ao recurso em matéria cível, não se contém no âmbito desta matéria e, em parte substancial do seu recurso, visa, inequivocamente, a impugnação da sua condenação pelo crime de abuso de confiança fiscal.
            «Nas conclusões 9.ª a 13.ª, o recorrente impugna a validade da notificação que lhe foi feita, nos termos da alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT.
            «A matéria respeita, pois, à verificação de uma condição objectiva de punibilidade do crime por que foi condenado e, por ser assim, exclusivamente, à decisão proferida quanto à acção penal.
            «Nas conclusões 14.ª a 20.ª, o recorrente dirige a sua crítica ao acórdão por ter considerado preenchidos todos os pressupostos objectivos do crime, para sustentar que deveria ter sido absolvido da prática do crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 24.º do RJIFNA..
            «A matéria respeita, pois, à verificação dos elementos objectivos do crime e, por ser assim, exclusivamente, à decisão proferida quanto à acção penal.
            «Nas conclusões 21.º a 24.º, o recorrente reage à aplicação retroactiva de lei penal desfavorável – o artigo 105.º do RGIT –, para concluir que deveria ter sido absolvido da prática do crime de abuso de confiança fiscal.
            «A matéria respeita, pois, exclusivamente, à decisão proferida quanto à acção penal.
            «Não tendo o recurso sido admitido quanto à impugnação da decisão proferida sobre a acção penal – e bem, como é imposto pela norma da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP – é evidente que a tentativa do recorrente de, a pretexto do recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil (n.º 3 do artigo 400.º do CPP), introduzir, no recurso, questões com exclusiva conexão à decisão proferida sobre a acção penal, está condenada ao fracasso.
            «No âmbito das questões assinaladas – questões objecto das conclusões 9.ª a 24.ª – o recurso deve ser rejeitado, por estar em causa matéria penal e, nesse âmbito, o recurso não ter sido admitido (nem ser admissível).
            «Sem prejuízo, ainda se dirá que as questões da falta de preenchimento dos pressupostos objectivos do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal e da aplicação da lei no tempo, colocadas pelo recorrente no recurso que interpôs para a relação, não foram apreciadas, de mérito, no acórdão da relação de que recorre, por aí se ter decidido que, quanto a elas, havia caso julgado (cfr. p. 955, dos autos).
            «4. Nas conclusões 1.ª a 8.ª, o recorrente coloca a questão da rejeição liminar do pedido de indemnização cível por a devedora principal ter sido alvo de processo especial de recuperação de empresas que culminou com a falência da mesma e consequente elaboração de mapa de rateio de créditos verificados e graduados, tendo o Estado visto o seu crédito verificado e graduado no que respeita aos factos tributários por que foi deduzida pretensão em sede de indemnização civil.
            «Nesta questão, o recorrente confunde a responsabilidade pelo pagamento do imposto (responsabilidade tributária) e a responsabilidade emergente do crime.
            «Mas desconsidera, ainda, que tal questão não foi objecto da decisão da relação, a decisão de que interpõe recurso.
            «Com efeito, o recorrente suscitou, no recurso para a relação, a mesma questão da rejeição liminar do pedido cível precisamente com os mesmos fundamentos.
             «Sendo que as conclusões formuladas sob os n.os 1 a 8, no recurso interposto para este Tribunal, são a fiel reprodução das conclusões que formulou, sob os n.os 9 a 16, inclusive, no recurso interposto para a relação, as quais, aqui, para que não subsistam quaisquer dúvidas, se reproduzem:   
«”9.º
«”O Arguido suscitou, pertinentemente, no que respeita ao pedido de indemnização cível, a questão de o mesmo dever ser liminarmente rejeitado, porquanto a devedora principal - O...C..., S.A. - ter sido alvo de Processo Especial de Recuperação de Empresas, no âmbito do precedente processo previsto no CPEREF, que culminou com a falência da mesma e consequente elaboração de mapa de rateio de créditos verificados e graduados.
«”De facto
«”10°
«”Conforme resulta da certidão de fls. 520 e seguintes e dos documentos juntos com a contestação apresentada, o aqui demandante Estado, reclamou e viu o seu crédito verificado e graduado no lugar que lhe competia, no que respeita aos exactos factos tributários por que aqui deduz pretensão em sede de indemnização civil.
«”Em boa verdade,
«”11° A responsabilidade criminal que aqui se julga deriva e é indissociável dos factos tributários em que radica a sua razão de ser o pedido deduzido nestes autos. De facto, tal traduz a lógica do princípio da adesão consagrado no artigo 71° do CPP.
«”Ora
«”12°
«”Da certidão junta, em virtude da questão prévia suscitada, revela que a mesma pretensão, ainda que se possa revelar ali apenas quanto à devedora principal, vem novamente a ser reclamada, subvertendo-se a disciplina legal em desfavor do Arguido, reclamando deste o que já haviam reclamado noutro processo
«”Desta forma,
«”13°
«”E dado que este pedido influi no enquadramento da conduta criminal por que vem acusado o Arguido, sempre a reclamação em causa se revela ilegal e até inconstitucional, possibilitando-se ao demandante civil reclamar novamente o que já pressupunha caso julgado material e formal
«”Diga-se que,
«”14°
«”O facto de não ter efectivamente havido qualquer pagamento por banda do Administrador da Insolvência naqueloutro processo não pode onerar o aqui Arguido.
«”De facto, ali o Reclamante Estado teve ao seu alcance todos os meios legais para reagir e que escolheu não fazer.
«”15°
«”Permitir-se reclamar mais e até duplamente, constitui um atropelo dos mais elementares princípios do Estado de Direito e da CRP qual sejam o princípio da igualdade e da defesa.
«”Na verdade,
«”16°
«”Reclamar mais de € 97.000,00, condicionando a liberdade de um cidadão - ou podendo fazê-lo - ao seu pagamento e não reagir à falta de pagamento do rateio no processo de falência traduzem claramente a desproporcionalidade de armas entre as partes e o claro atropelo das traves mestras do nosso sistema jurídico. Coloca-nos mesmo a dúvida de como seria tratado um outro credor se o pretendesse fazer... ?!”»
            «E sobre a concreta questão suscitada no âmbito dessas conclusões do recurso, a decisão da relação foi a seguinte:
«”(…)                                                           
«”2.Quanto à Inadmissibilidade do pedido de indemnização civil deduzido nos autos, por traduzir duplicação da reclamação de créditos anteriormente efectuada em processo de falência (conclusões 9ª a 17ª);
«Invoca o recorrente a inadmissibilidade do pedido cível deduzido nos autos por traduzir duplicação da reclamação de créditos anteriormente efectuada em processo de falência. Ora, esta questão, agora denominada de "questão prévia" e trazida ao recurso da sentença, já havia sido suscitada como tal pelo arguido no início da audiência de discussão e julgamento, tendo obrigado a que esta fosse dada sem efeito, para prévia obtenção dos elementos necessários à decisão da questão suscitada. Sobre ela veio a recair a decisão de fls. 511 e ss., que a julgou improcedente, decisão devidamente notificada ao arguido na pessoa do seu mandatário judicial (notificação de 14/01/2009, que se tem por efectuada em 19/01/2009 - cfr. fls. 517), sem que dela tenha sido tempestivamente interposto recurso, pelo que se deverá considerar transitada em julgado. Além do mais sobre esta questão decidiu já, também o Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, constante dos autos a fls. 679 a 712, no sentido de sobre tal questão haver decisão com trânsito em julgado.
«”Pelo exposto, a matéria recursiva condensada nas conclusões 9ª a 17ª, no que concerne ao já decidido com trânsito em julgado, não poderá ser objecto de reapreciação.”»
«Verifica-se, assim, que a relação, no acórdão de que vem interposto o recurso, não decidiu a questão que, agora, o recorrente retoma nas conclusões 1.ª a 8.ª do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, não podendo, consequentemente, lograr êxito na sua pretensão de que este Tribunal a aprecie, pela simples razão de que não foi questão decidida no acórdão de que interpõe recurso.
«Nesse âmbito, poderia o recorrente impugnar a decisão da relação de não conhecer da questão na base do entendimento de que a não poderia apreciar por sobre ela já ter recaído decisão com trânsito em julgado.
«Mas não foi essa a via seguida pelo recorrente.
«A sua pretensão de levar este Tribunal a decidir questão já definitivamente decidida e que não foi apreciada pela relação no acórdão de que interpõe recurso não pode, pois, deixar de considerar-se manifestamente inviável, determinando a rejeição do recurso, também nessa parte.
                «5. Finalmente, as conclusões 25.ª em diante e até final são uma amálgama que, essencialmente, serve ao recorrente para retomar questões objecto das conclusões anteriores, repisando os seus argumentos, ainda que sob uma aparente nova formulação.
            «Mais uma vez a confusão entre a dívida tributária e a responsabilidade tributária e a responsabilidade civil emergente da prática do crime. Insistindo na sua qualidade de mero devedor subsidiário (conclusões 25.ª a 31.ª).
            «Nas conclusões 32.ª a 34.ª, o recorrente parece querer, essencialmente, impugnar a matéria de facto dada por provada (“não logrou a acusação provar com a necessária certeza que montantes em concreto foram omitidos”; “não pode neste campo proceder a acusação”), o que, sem prejuízo do mais, não se compagina com um recurso limitado a matéria de direito, como, necessariamente, é um recurso dirigido ao Supremo Tribunal de Justiça (artigo 434.º do CPP), e sempre, por isso, implicaria a sua rejeição.
             «Nas conclusões 35.º e 36.º, o recorrente retoma a questão da validade da notificação, já, antes, objecto desta decisão.
            «Na conclusão 37.º, o recorrente reafirma razões que determinariam a absolvição da prática do crime, matéria, pois, que não se compadece com a limitação do recurso à decisão sobre matéria cível, não podendo ser, aqui, atendida.
            «É interessante notar [que] as conclusões 25.ª a 37.ª, são, também elas, a fiel reprodução das conclusões formuladas no recurso que interpôs para a relação sob os n.os 49.º a 60.º, como facilmente se verifica pela respectiva transcrição, que segue:
«”49°
“Ao contrário do que se evidencia na sentença ora recorrida, a qualidade de devedor subsidiário e sua responsabilidade criminal enquanto representante legal de uma sociedade, em sede de jurisdição penal, não pode dissociar-se da sua responsabilidade em sede tributária. Com efeito, aquela deriva desta e a ela deverá estar sempre ligada sob pena de outra vez se falar em ilegalidade e inconstitucionalidade.
«”De facto,
«”50°
«”Se assim não fosse, estar-se-ia a coarctar os direitos fundamentais que a tal indivíduo são garantidos de defesa em sede tributária, ultrapassando-se (leia-se, negando-se) a defesa constitucionalmente consagrada, seja qual for a jurisdição Torna-se sim importante sindicar se o facto tributário que subjaz ao presente procedimento criminal é, in casu, sustentável, sob pena de se permitir contornar a inderrogável prescrição e seus efeitos sobre as obrigações e a inquestionável segurança jurídica
«”51°
«”Descura, assim, o Tribunal a quo que são garantidos aos devedores subsidiários os direitos de audição prévia e impugnação da alegada dívida tributária, que constitui um alegado prejuízo para o Estado. Permite-se, desta forma, aquilo que não se permite a nenhum credor: fazer tábua rasa das regras jurídicas próprias e aplicáveis à natureza da dívida e reclamar em sede criminal, sujeitando-se apenas a essas regras a apreciação da validade e pressupostos de legitimidade da sua pretensão!
«”52°
                «”Como é evidente, se a Administração Tributária não foi diligente, não podemos premiá-la desta forma ... Se tributariamente a dívida não existe, não pode a mesma ser aqui reclamada ao Arguido, doutra forma é um verdadeiro contra-senso, para não falar em abuso de direito. Equivale a fazer "renascer um morto"! Donde, todo o "arrazoado argumentativo do arguido em abono da sua defesa" tem todo a sua propriedade e razão de ser.
«”De facto,
«”53°
«”A responsabilidade criminal pode até nascer apenas com a prática do facto em causa (omissão do pagamento), mas a responsabilidade civil radica noutro pressuposto diverso, que não se esgota inteiramente naquele. Denegando-se a defesa nessa sede, sempre tal actuação deve ser tida como inconstitucional. O princípio da subsidiariedade deve aqui ser enquadrado não só na sede puramente criminal, mas sempre ligado ao facto tributário donde deriva. O que aqui foi, sumariamente, qualificado de descabido...
«”54°
«”Se na sede tributária não fez reverter a execução fiscal, nem reclamou na sede própria (processo de falência), não pode vir agora reclamar o que, na realidade não é devido.
«”55°
«”Acresce a tudo isto que, face aos comprovados pagamentos ao Estado que existiram nestes períodos no que concerne a impostos em atraso, não logrou a Acusação provar com a necessária certeza que montantes em concreto foram omitidos, reportados à periodicidade a que, em cada sede de imposto, a sociedade estava obrigada.
«”Na verdade.
«”56°
«”Havia mesmo períodos em que as facturas não eram liquidadas pontualmente, os salários e comissões não eram igualmente liquidados com a periodicidade usual, tornando difícil determinar qual, em concreto, a omissão de pagamento em cada período para se aferir da conduta
«”Ora,
«”57°
«”Parece-nos que não pode também neste campo proceder a Acusação. Estabelece-se que, tendo sido a obrigação de declaração cumprida, é condição de punibilidade a realização da notificação em falta e seu não pagamento no prazo concedido
«”58°
«”Ora, quanto à notificação efectuada foi arguida a sua nulidade, sendo certo que, no que concerne ao Arguido, sempre a dívida estava prescrita e, portanto, era e é inexigível
«”Pelo que,
«”59°
«”Não tendo ocorrido tal notificação antes da verificação da prescrição, sempre a mesma não pode ser exigível, sob pena de, mais uma vez, estarmos a derrogar incontornáveis pilares constitucionais.
«”Desta maneira,
«”60°
«”Crê-se que não estão preenchidas as condições de punibilidade do Arguido, sendo certo que, a punir-se tal conduta (omissão de pagamento), por que incerto o seu montante, sempre a sede seria a contra-ordenacional e não a criminal...”
«Importando, agora, destacar que sobre a questão de o recorrente ser mero devedor subsidiário da dívida tributária não houve pronúncia do acórdão da relação, como resulta do seguinte excerto (fls. 955, do processo, 37, do acórdão da relação):
«”Questão III - Falta de preenchimento dos pressupostos do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal (conclusões 39.ª a 44.ª).
«”Questão IV - Aplicação da lei no tempo (conclusões 45ª a 48ª).
«”Questão V - Devedor subsidiário (conclusões 49ª a 56ª).
«”Estas questões foram devidamente tratadas e julgadas no recurso anteriormente decidido Acórdão de fls. 679 a 712, concretamente de fls. 704 a fls. 707, pelo que em relação a estas questões, não havendo qualquer alteração posterior que conduzisse à necessidade de conhecimento actual, há, manifestamente, caso julgado, pelo que delas se não toma conhecimento.”»
«Portanto, também quanto à questão de o recorrente ser um mero devedor subsidiário, verifica-se que a relação, no acórdão de que vem interposto o recurso, não a decidiu. Por isso, como antes se disse, o recorrente não pode lograr êxito na sua pretensão de que este Tribunal a aprecie pela simples razão de que não foi questão decidida no acórdão de que interpõe recurso.
«Nesse âmbito, poderia o recorrente impugnar a decisão da relação de não conhecer da questão na base do entendimento de que a não poderia apreciar por sobre ela já ter por sido proferida decisão com trânsito em julgado.
«Mas não foi essa a via seguida pelo recorrente.
«A sua pretensão de levar este Tribunal a decidir questão já definitivamente decidida, e que não foi apreciada pela relação, no acórdão de que interpõe recurso, não pode, pois, deixar de considerar-se manifestamente inviável, determinando a rejeição do recurso, também nessa parte.
            «6. As conclusões 38.ª a 40.ª são a síntese conclusiva das anteriormente formuladas.
            «Não podendo deixar de observar-se que, formulando, no recurso para este Supremo Tribunal, conclusões que não se afastam de parte muito substancial das conclusões antes formuladas, no recurso interposto para a relação, a síntese delas, dirigida à relação, era no sentido da sua absolvição (conclusão 61.ª – “Outra solução não poderia existir que não a absolvição do arguido”) enquanto que a síntese delas, no recurso para este Supremo Tribunal, já é a da sua absolvição da indemnização (38.ª – “Outra solução não poderia existir que não a absolvição do Arguido da indemnização, (e) [a] que foi condenado, porque inexigível nos termos legais e por falta de prova em concreto”).
            «Parecendo, assim, e como decorre de tudo o já exposto, que, em tal singela “alteração”, se esgota a compreensão do recorrente da limitação do recurso que decorre do n.º 3 do artigo 400.º do CPP, com a incongruência ínsita do apelo à “falta de prova”.»
            B – A reclamação para a conferência
            1. A Lei n.º 48/2007, de 29 de Setembro, atribuiu ao relator poderes de decisão sumária sobre o recurso, tendo-se já reconhecido que esta nova competência do relator é compatível com o direito ao recurso do arguido, o direito do ofendido de participação no processo e de acesso aos tribunais e os direitos das partes civis e dos outros participantes processuais de acesso aos tribunais e, designadamente, de acesso aos tribunais de recurso previstos nos artigos 20.º, n.º 1, e 32.º, n.os 1 e 7, da Constituição[6].
            Os poderes do relator de decisão sumária sobre o recurso incluem o conhecimento dos fundamentos de rejeição do recurso, isto é, os previstos no artigo 420.º, n.º 1, do CPP, como decorre da alínea b) do n.º 6 do artigo 417.º do CPP.
            Entre eles, a manifesta improcedência do recurso (alínea a) do n.º 1 do artigo 420.º do CPP).
 A manifesta improcedência como fundamento de rejeição substancial significa que o recurso, pelos termos em que se encontra motivado ou pelo objecto que o recorrente lhe define, se apresenta imediatamente insubsistente, sendo claro, patente e de primeira leitura que é manifestamente destituído de fundamento[7].
            2. Da decisão sumária do relator cabe reclamação para a conferência, conforme estabelece o n.º 8 do artigo 417.º do CPP, sendo, então, o recurso julgado em conferência.
            Dispõe, com efeito, o n.º 3, alínea a), do artigo 419.º do CPP que o recurso é julgado em conferência quando tenha sido apresentada reclamação da decisão sumária prevista no n.º 6 do artigo 417.º
            Assim, como destaca Paulo Pinto de Albuquerque[8] «o poder de cognição da conferência tem uma natureza originária e não derivada. Isto é, a conferência não está vinculada nem à decisão do relator nem à reclamação do sujeito ou participante afectado pela decisão do relator».
            3. Na conferência acordou-se em reafirmar as razões explicitadas na decisão sumária que fundamentaram a rejeição do recurso.
            E, corroborando-as e dando-as por reproduzidas, por via delas, foi decidido, em conferência, confirmar a decisão sumária do relator de rejeição do recurso por manifesta improcedência (alínea a) do n.º 1 do artigo 420.º do CPP) e, consequentemente, indeferir a reclamação.

III
            Termos em que, se decide confirmar a decisão sumária proferida e, consequentemente, indeferir a reclamação.
            Nos termos do artigo 84.º do CCJ, o recorrente/reclamante é condenado em 3 UC de taxa de justiça.
                                                                                  

Supremo Tribunal de Justiça, 03/11/2011

Isabel Pais Martins (Relatora)

Manuel Braz

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[1] Daqui em diante abreviadamente designado pelas iniciais CPP.
«[2] Germano Marques da Silva, Responsabilidade Penal das Sociedades, e dos seus Administradores e Representantes, Editorial Verbo, 2009, pp. 453-454.»
«[3] Jorge Lopes De Sousa e Manuel Simas Santos, Regime Geral Das Infracções Tributárias Anotado, 2.ª edição, 2003, Áreas Editora, 99.»
«[4] Ob. cit., p. 455.»
«[5] Ibidem, p. 456.»
[6] Cfr., neste ponto, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4.ª edição, Universidade Católica Editora, anotação 17 ao artigo 417.º, p. 1157, e jurisprudência aí citada.
[7] Como tem sido repetidamente afirmado na jurisprudência, deste Tribunal, destacando-se, v.g., o acórdão de 26/01/2005 (processo n.º 3998/04-3.ª), sumariado por Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal Notas e Comentários, 2.ª edição, Coimbra Editora, entre outros no mesmo sentido, em anotação ao artigo 420.º do CPP.
[8] Ob. cit., em anotação (3.) ao artigo 419.º, p. 1160.