ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
16/09.1GBBRG-D.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/03/2011
SECÇÃO 5ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL HABEAS CORPUS
DECISÃO INDEFERIDO
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR RODRIGUES DA COSTA

DESCRITORES HABEAS CORPUS
EXCEPCIONAL COMPLEXIDADE
DESPACHO
INTERPRETAÇÃO
PRINCÍPIO DA LEALDADE PROCESSUAL

SUMÁRIO I -Após a prolação do acórdão condenatório o requerente da providência de habeas corpus solicitou a prorrogação do prazo para interposição de recurso, alegando «excepcional complexidade do processo, resultante não só da sua extensão e número de arguidos, mas também das questões jurídicas… e necessidade de analisar e estudar o douto acórdão, para além da necessidade de transcrever diversos depoimentos», ao mesmo tempo que invocou o art. 107.º, n.º 6, do CPP, o que foi deferido pelo titular do processo, reconhecendo que o tipo de crimes e as questões suscitadas podiam ser causa de atendível complexidade.
II - Daí para a frente os despachos de reexame da prisão preventiva passaram a referir o prazo de 3 anos e 4 meses como o tempo de duração daquela medida coactiva – despachos notificados ao arguido, sem reacção por parte deste.

III - Isto, até que já na iminência do esgotamento do prazo de 2 anos de prisão preventiva –, correspondente ao tempo de duração da medida sem a qualificação do processo como sendo de excepcional complexidade –, o arguido resolveu impugnar o prazo de 3 anos e 4 meses pedindo a aclaração de um despacho, pelo que o juiz do processo interpretou o despacho que prorrogava o prazo de interposição de recurso como contendo uma declaração de excepcional complexidade e explicitando o seu sentido à luz do art. 107.º, n.º 6, enquanto referido ao art. 215.º, n.º 3, ambos do CPP; o arguido interpôs recurso deste despacho e ao mesmo tempo requereu a presente providência.

IV -No caso sub judice ocorreu uma situação fora do comum, visto que foi o arguido que suscitou o problema da excepcional complexidade e atendendo aos factores por si enumerados e reconhecendo-os como causa de atendível complexidade, o juiz deferiu o requerido e, embora não o explicitasse, é certo que o deferimento foi concedido com base no quadro factual e legal alegado no requerimento.

V - O despacho corresponde a uma declaração de excepcional complexidade feita pelo tribunal, cabendo nos seus poderes de officio e como foi o próprio arguido a suscitá-la, não se impunha a sua audição prévia; por seu lado, a fundamentação não é, neste caso, tão exigente, já que o arguido requereu-a e indicou os motivos dela, motivos esses a que o tribunal aderiu, reconhecendo-os expressamente.

VI A atitude do requerente não se enquadra nos moldes exigidos pelos princípios da boa fé e da lealdade processuais: tendo suscitado a excepcional complexidade do processo e beneficiado da prorrogação do prazo, veio posteriormente pôr em causa a declaração dessa excepcionalidade. Este tipo de procedimento não deve, em face daqueles princípios, trazer um benefício suplementar a quem já se aproveitou do benefício da situação por ele reclamada.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL

            I. RELATÓRIO

            1. AA, identificado nos autos, veio, por intermédio de advogado, requerer ao presidente ao Supremo Tribunal de Justiça a providência de habeas corpus com os seguintes fundamentos:

            1°Ao aqui requerente, arguido nos autos de processo crime supra identificados, foi aplicada, em 27.10.2009, medida de coacção de prisão preventiva.

2º O arguido esteve continuamente sujeito a prisão preventiva desde essa data até ao presente momento, à ordem destes autos, tendo sido ouvido em primeiro interrogatório judicial, no referido dia 27 de Outubro de 2009, altura em que o Mmo. Juiz de Instrução validou a detenção e, após ponderação das razões de facto e de direito, ordenou que o aqui requerente continuasse a aguardar o desenrolar do processo detido em prisão preventiva.

3° Nos termos do n.º 1 e 2 do artigo 215° do Código Processo Penal, a prisão preventiva tem, no presente caso, de acordo com o tipo legal de crimes imputados ao requerente, e não tendo até ao presente momento havido condenação com trânsito em julgado, como prazo de duração máxima 2 (dois) anos.

4° Ora, estando o arguido detido em prisão preventiva desde a supra referida data até ao presente dia à ordem deste processo, a medida de coacção de prisão preventiva está actualmente extinta, uma vez que já decorreu o prazo de dois anos, verificando-se, em consequência, actualmente uma situação de_prisão ilegal, para a qual o arguido já alertou o Tribunal e este deliberadamente e invocando uma declaração judicial de especial comptexidade implícita que não tem qualquer suporte legal no nosso ordenamento jurídico português e que inclusivamente, admitindo-se para mero efeito de raciocínio que existiu, foi proferida já após a prolação do Acórdão, quando este já não tinha poder jurisdicional, e em violação manifesta e grave do disposto no n.° 4 do artigo 215° do Código Processo Penal.

5º Deste modo, encontra-se ultrapassado, desde o dia 27 de Outubro de 2011, o prazo legal máximo para a prisão preventiva, nos termos do art.º 215°, n.°1 e 2 do CPP, pelo que estamos perante unia prisão ilegal.

Termina requerendo que, nos termos do art. 222°, n.° 1 e 2, alinea e), lhe seja concedida a providência de habeas corpus, ordenando-se sua a imediata libertação.

2. O juiz do processo prestou a informação a que alude o art. 223.º, n.º 1 do CPP, nos seguintes termos:

Em cumprimento do preceituado no artigo 223° do Código de Processo Penal, informa-se que o petícionante se encontra preso preventivamente à ordem destes autos desde 27 de Outubro de 2009, por estar indiciado pela prática, em concurso real, de um crime de tráfico de estupefacientes e de um crime de tráfico de armas, o primeiro previsto e punível pelo artigo 21° do DL 15/93, de 22 de Janeiro, e o segundo previsto e punível pelo artigo 87°, n.º 1 da Lei 5/2006, de 23 de Dezembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei 17/2009, de 6 de Maio, com referência ao artigo 86°, n.° 1, alíneas c) e d), do mesmo diploma legal.

Os apontados ilícitos são puníveis, em abstracto, com pena de prisão superior a 8 anos.

Por acórdão proferido em 21 de Julho de 2010, o arguido foi condenado na pena única de 10 anos e 6 meses de prisão pela prática, em concurso real, de ambos os crimes pelos quais vinha acusado.

Por requerimento apresentado em 28 de Julho de 2010, o arguido veio requerer a prorrogação do prazo de recurso do acórdão condenatório; fundamentando tal pretensão na “excepcional complexidade do processo”.

Considerando pertinente o fundamento invocado, o Senhor Juiz titular, por despacho proferido no mesmo dia, considerou justificada a prorrogação e, tendo em conta a circunstância de se tratar de um processo com arguido preso, prorrogou o prazo de recurso por quinze dias.

E, efectivamente, a prorrogação só podia ser deferida se o processo fosse, como inequivocamente foi, considerado de excepcional complexidade, atento o preceituado nos artigos 215.º, n.° 3 e 107, n,° 6 do Código de Processo Pena, o último dos quais foi expressamente invocado pelo peticionante.

Em coerência com o então decidido, nos despachos de reexame dos pressupostos da prisão preventiva proferidos em 6 de Janeiro de 2011, 4 de Abril de 2011, 30 de Junho de 2011 e 29 de Setembro de 2011, este com a aclaração efectuada em 13 de Outubro de 2011, (cfr. fls. 230 a 232 do traslado), decidiu-se manter aquela medida de coação por se mostrarem inalterados os pressupostos de facto e de direito subjacentes à sua aplicação, constando de todos eles que os prazos de duração máxima da prisão preventiva eram de 3 anos e 4 meses e, na sequência da anulação pelo Tribunal da Relação de Guimarães do primeiro acórdão proferido nesta instância, de 2 anos e 6 meses (o que, com o devido respeito por opinião contrária, não implicava, a meu ver, a repristinação do prazo anterior, na medida em que o acórdão proferido, não obstante a anulação, não desapareceu do ordenamento jurídico, mantendo-se o alargamento do prazo decorrente do sua prolação), ou seja, os prazos aplicáveis quando o procedimento for por um dos crimes referidos no n.° 2 do artigo 215° do Código de Processo Penal (onde se incluem os crimes de tráfico de estupefacientes e de tráfico de armas, por força do preceituado no artigo 1°, alínea m), do mesmo diploma legal) e se revelar de excepcional complexidade.

Esses despachos, com excepção do último, de que foi interposto recurso nesta mesma data, foram devidamente notificados ao arguido, que com eles se conformou.

(…)

3. Foram juntos vários documentos certificados, entre os quais o auto de interrogatório de arguido e respectivo despacho a decretar a medida coactiva de prisão preventiva, a acusação deduzida pelo Ministério Público, o acórdão condenatório, o requerimento do requerente a pedir a prorrogação do prazo para apresentar a motivação de recurso e vários despachos de reexame da prisão preventiva.

4. Convocada a secção criminal e notificados o MP e o defensor, teve lugar a audiência - art.s 223.º, n.º 3, e 435.º do CPP.

Importa agora, tornar pública a respectiva deliberação e, sumariamente, a discussão que a precedeu.

II. FUNDAMENTAÇÃO

5. A providência de habeas corpus é uma providência excepcional, destinada a garantir a liberdade individual contra o abuso de autoridade, como doutrina CAVALEIRO DE FERREIRA, Curso de Processo Penal, 1986, p. 273, que a rotula de providência vocacionada a responder a situações de gravidade extrema ou excepcional, no mesmo sentido confluindo, entre outros, GERMANO MARQUES DA SILVA, para o qual a providência de habeas corpus é «uma providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo, em muito curto espaço de tempo, a uma situação de ilegal privação de liberdade», (Curso de Processo Penal, T. 2º, p. 260).  

Porque assim, a petição de habeas corpus, em caso de prisão ilegal, tem os seus fundamentos taxativamente previstos no n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal:

a) - Ter sido [a prisão] efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) - Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite;

c)- Manter-se para além dos prazos fixados por lei ou por decisão judicial.
Confrontamo-nos, pois, com situações de violação ostensiva da liberdade das pessoas, quer por incompetência da entidade que ordenou a prisão, quer por a lei não a permitir com o fundamento invocado ou não tendo sido invocado fundamento algum, quer ainda por estarem excedidos os prazos legais da sua duração, havendo, por isso, urgência na reposição da legalidade.

No caso, é a hipótese prevista na alínea c) que está em causa – excesso dos prazos de prisão preventiva, alegando o requerente que decorreram já 2 anos sobre a data da decretação da sua prisão preventiva, sendo esse o prazo máximo daquela medida coactiva, nos termos do art. 215.º, n.º 2, com referência ao art. 1.º, alínea m), ambos do CPP.

6. Vejamos:

O requerente foi efectivamente colocado em regime de prisão preventiva em 27/10/2009, aquando da realização do primeiro interrogatório de arguido detido, e nessa situação se tem mantido ininterruptamente até ao presente.

Em 22/01/2010, foi proferido despacho de reexame da medida aplicada (fls. 166), tendo a mesma sido mantida, aí se fazendo referência ao prazo máximo de 2 anos de duração da prisão preventiva (art. 215.º, n.º 2 do CPP);

Em 8/03 2010 (fls. 169), foi proferido despacho a indeferir requerimento do arguido em que este pedia a substituição da medida de prisão preventiva por medida de obrigação de permanência na habitação;

Em 4/05/2/2010 (fls.173), foi proferido despacho de saneamento do processo, tendo sido recebida a acusação e mantida a medida coactiva aplicada nos seus precisos termos;

Em 14/10/2010 (fls. 177) foi proferido novo despacho de reexame da situação do arguido, tendo sido mantida a prisão preventiva, em que se reafirma ser de dois anos (art. 215.º, n.º, alínea d) e n.º 2, alínea d) do CPP);

Em 27/07/2010 (fls. 163), o arguido veio requerer, ao abrigo do art. 107.º, n.º 6 do CPP) a prorrogação do prazo para interposição do recurso do acórdão condenatório de 21/07/2010, face à excepcional complexidade do processo, resultante não só da sua extensão e número de arguidos, mas também das questões jurídicas que demanda e necessidade de analisar e estudar o douto acórdão, para além da necessidade de transcrever diversos depoimentos (sic);

Em 28/07/2010 (fls. 164), foi proferido despacho a deferir o requerido: Atentos os fundamentos invocados e porque, de facto, o tipo de crimes e questões suscitadas podem ser causa de atendível complexidade na análise dos autos e interposição eventual de recurso, cremos que se justifica a prorrogação do prazo pretendida.

No entanto, atendendo ao número de arguidos e ao facto de suspensão de prazos judiciais em processos não urgentes, foi concedido o prazo de 15 dias de prorrogação e não de 30 dias, como vinha pedido.   

Em 16/01/2011 (fls. 180), foi proferido novo despacho de reexame da prisão preventiva (fls. 180). Aí se faz referência ao acórdão condenatório de 21/07/2010 e à pena aplicada (pena única de 10 anos e 6 meses de prisão, pelos referidos crimes de tráfico de estupefacientes e de tráfico de armas) e, pela primeira vez, faz-se referência ao prazo de duração máxima de prisão preventiva de 3 anos e 4 meses, correspondente ao n.º 3 do art. 215.º do CPP (especial complexidade);

      Em 29/09/2011 (fls. 187), foi proferido novo despacho de reexame da prisão preventiva, aí se fazendo referência ao acórdão da Relação de Guimarães de 7/07/2010, que declarou a nulidade do acórdão de 21/07/2010, para que fosse proferido novo acórdão.

Nesse despacho foi considerado que o prazo máximo de prisão preventiva passava a ser de 2 anos e 6 meses, por a anulação ter pretensamente feito retrogradar os prazos à situação anterior, sendo certo, todavia, que aqueles 2 anos e 6 meses continuavam a ser referidos a processo de excepcional complexidade (art. 215.º, n.ºs 1, alínea c), 2 e 3 do CPP);

Em 13/10/2011 (fls. 190), foi proferido despacho a responder ao requerimento do arguido em que este, pela 1.ª vez, impugnava o prazo de duração da prisão preventiva, alegando ser de 2 anos (prazo que estava próximo de ser atingido) e requerendo a aclaração do despacho anterior.

O despacho de 13/10/2011 contraria a argumentação do arguido/requerente, fazendo referência aos vários despachos de reexame da prisão preventiva em que se mencionou o prazo correspondente ao n.º 3 do art. 215.º (excepcional complexidade), despachos que foram notificados ao arguido, sem que este reagisse contra. Por outro lado, alude ao despacho de 28/07/2010, em que foi deferido o requerimento do arguido a pedir a prorrogação do prazo para interpor recurso com base na excepcional complexidade do processo, que, assim, foi declarada, sem ter suscitado qualquer dúvida.

Acresce o facto de a prorrogação do prazo para interposição de recurso só ser admissível no caso de o processo ser considerado de excepcional complexidade, nos termos do art. 107.º, n.º 6 do CPP, não carecendo a declaração judicial de excepcional complexidade de ser expressa, bastando, para produzir eficácia, que resulte implícita e inequivocamente dos termos do despacho judicial a vontade de alargar os prazos.

Deste despacho foi interposto recurso, que ainda não foi decidido.  

7. A questão nuclear que se coloca nesta habeas corpus é, afinal a de o prazo de prisão preventiva ser de 2 anos, nos termos do art. 215.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, ou o especial de 3 anos e 4 meses, resultante da declaração de excepcional complexidade, conforme o n.º 3 do mesmo artigo.

Como vimos pela exposição precedente, prolatado o acórdão condenatório, o requerente desta providência requereu a prorrogação do prazo para interposição de recurso, alegando «excepcional complexidade do processo, resultante não só da sua extensão e número de arguidos, mas também das questões jurídicas que demanda[va] e necessidade de analisar e estudar o douto acórdão, para além da necessidade de transcrever diversos depoimentos.» Isto, ao mesmo tempo que invocou o art. 107.º, n.º 6 do CPP, que permite, justamente, entre outras situações, o alargamento do prazo para interpor recurso quando o processo for de excepcional complexidade.

O juiz do processo deferiu tal requerimento, reconhecendo que o tipo de crimes e as questões suscitadas podiam ser causa de atendível complexidade, prorrogando o prazo para interposição do recurso.

Daí para a frente, os despachos de reexame da prisão preventiva passaram a referir o prazo de 3 anos e 4 meses como o tempo de duração daquela medida coactiva – despachos esses que foram sempre notificados ao arguido, sem reacção da parte deste.

Isto, até que o arguido, já na iminência do esgotamento do prazo de 2 anos de prisão preventiva, correspondente ao tempo de duração da medida sem a qualificação do processo como sendo de excepcional complexidade, resolveu impugnar o prazo de 3 anos e 4 meses, pedindo uma aclaração do despacho de 29/09/2011.

Em 13/10/2011, o juiz do processo veio contrariar a argumentação do arguido, interpretando o anterior despacho que prorrogava o prazo para interposição de recurso como contendo uma declaração de excepcional complexidade e explicitando o seu sentido à luz do disposto no art. 107.º, n.º 6 do CPP, enquanto referido ao art. 215.º, n.º 3, ambos do CPP, nos termos que ficaram assinalados.

Entretanto, o arguido interpôs recurso desse despacho e, ao mesmo tempo requereu a providência de habeas corpus.

Que dizer?

8. Actualmente, em plena vigência das alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2008, de 29 de Agosto, a excepcional complexidade apenas pode ser declarada durante a 1.ª instância, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente (n.º 4 do art. 215.º do CPP).

Trata-se de uma matéria que foi regulamentada de modo substancialmente diverso do que vigorava no regime anterior, em que a declaração de excepcional complexidade tinha um efeito declarativo e não constitutivo, podendo ter lugar em qualquer momento do processo, mesmo na fase de recurso. A concepção que subjazia a uma tal regulamentação era uma concepção mais dinâmica do processo, que salvaguardava a possibilidade de o processo se tornar crescentemente mais complexo, mesmo na fase de recurso, onde poderiam surgir causas ou factos que poderiam complicar a realidade processual (cf acórdãos do STJ de 24/10/2007, Proc. n.º 4001/07 e de 28/11/2007, Proc. n.º 4469/07, ambos da 3.ª Secção).

No regime actual, o legislador parece ter atendido sobretudo a razões de maior protecção da liberdade individual, que colocou à frente de outras razões, vedando a possibilidade de a declaração de excepcional complexidade poder ocorrer na fase de recurso, com isso porventura querendo estimular uma maior celeridade processual depois de ter sido proferido acórdão na 1.ª instância, assim tendo cindido a fase de julgamento e a fase de recurso, como se acentua nos arestos citados e ainda no acórdão de 5/03/2008, Proc. n.º 801/08, também da 3.ª Secção.

Certo é que passou a ter assento na lei a exigência de despacho fundamentado, podendo a declaração ser produzida oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente.

No caso sub judice, ocorreu uma situação fora do comum, visto que foi o próprio arguido que suscitou o problema da excepcional complexidade, referindo a extensão do processo, o número de arguidos e a complexidade das questões, pedindo prorrogação do prazo para interpor recurso e invocando expressamente o art. 107.º, n.º 6 do CPP.

Atendendo a esses factores e reconhecendo-os como causa de atendível complexidade, o juiz deferiu o requerido, prorrogando o prazo para interposição do recurso à luz do referido art. 107.º, n.º 6, embora não o explicitasse, sendo certo, todavia, que o deferimento foi concedido com base no quadro factual e legal alegado no requerimento.

O despacho orresponde, portanto, a uma declaração de excepcional complexidade feita pelo próprio tribunal e cabendo nos seus poderes de officio.

E como foi o próprio arguido a suscitá-la, não se impunha a sua audição prévia.

Por outro lado, a fundamentação, neste caso, não é tão exigente, já que o próprio arguido requereu a prorrogação do prazo de interposição do recurso com fundamento na excepcional complexidade do processo, indicando os motivos dela – motivos a que o tribunal aderiu, reconhecendo-os expressamente.

Acresce que a ênfase colocada em certos itens da declaração de excepcional complexidade tem a ver fundamentalmente, como se disse, com uma maior protecção da liberdade individual (do próprio arguido). Ora, tendo sido este a suscitar a complexidade do processo, no seu próprio interesse (quer dizer, na majoração do interesse da sua própria defesa), não se impunha uma fundamentação tão rigorosa.

Daí para a frente, os despachos de reexame da situação do arguido passaram a considerar sistematicamente o prazo correspondente à excepcional complexidade do processo, ou seja 3 anos e 4 meses, despachos que foram notificados ao arguido, sem que este se tivesse oposto.

Só quando viu aproximar-se o prazo de 2 anos, correspondente à duração da prisão preventiva até haver trânsito em julgado da decisão condenatória nos casos em que estão em causa crimes que se enquadram na noção de criminalidade altamente organizada, como é o caso, mas sem que haja declaração de excepcional complexidade, é que o requerente levantou o problema.

Ora, antes de mais, deve dizer-se que esta atitude do requerente não se enquadra nos moldes exigidos pelos princípios da boa-fé e da lealdade processuais.

Com efeito, tendo suscitado a excepcional complexidade do processo e requerido, com base nela, a prorrogação do prazo para a interposição do recurso, veio posteriormente pôr em causa a declaração dessa excepcionalidade, depois de ter beneficiado da prorrogação do prazo referido e, com isso, também ter contribuído para o alongamento do processo no tempo.

Este tipo de procedimento não deve, face àqueles princípios, trazer um benefício suplementar a quem já se aproveitou do benefício da situação por ele reclamada.

Mas acresce que o despacho de 28/07/2010 corresponde, como já foi dito, a uma declaração de excepcional complexidade, ainda que com algumas imperfeições, motivadas e explicáveis pelo contexto singular em que surgiu. As imperfeições de expressão são, contudo colmatáveis, objectivamente, por esse contexto.

Tanto assim que, daí para a frente, o tribunal passou a considerar expressamente o prazo alargado de prisão preventiva.

9. Diga-se ainda que a declaração de excepcional complexidade foi produzida inequivocamente durante a 1.ª instância, pois ainda nem sequer tinha sido interposto recurso e, quanto a ter sido feita depois de proferido acórdão, nada o parece impedir, dizendo-se no acórdão já citado de 28/11/2007 que «a possibilidade da declaração termina quando o processo é remetido ao Tribunal Superior.»

E quanto a ter sido esgotado o poder jurisdicional, responde-se com o mesmo aresto que só há esgotamento do poder jurisdicional relativamente à matéria da condenação e da medida da pena, constante da decisão condenatória.

10. Por último, mesmo a ter-se verificado qualquer irregularidade na declaração de excepcional complexidade, tal não é fundamento de habeas corpus, devendo ser sindicada na sede própria, que é o recurso, aliás já interposto (cf. acórdão do STJ de 25/11/2009, Proc. n.º 694/09.1JDLSB.B, da 3.ª Secção), no qual se afirma que, enquanto não for sindicada e qualificada a consequência da irregularidade, a declaração de especial complexidade produz todos os efeitos. A menos que, acrescentamos nós, fosse de todo em todo omissa essa declaração ou a mesma enfermasse de erro grosseiro na aplicação do direito, o que não é o caso, ou de abuso de poder, sendo certo que ela teve a impulsioná-la, justamente, a protecção de direitos de defesa do arguido, por ele expressamente invocados. Por isso mesmo – e esta seria uma razão suplementar – a nulidade que pudesse ter sido cometida deveria ser considerada sanada, pois o requerente aceitou expressamente com o seu comportamento os efeitos do acto anulável e (ou) prevaleceu-se da faculdade a cujo exercício o acto anulável se dirigia (art.121.º, n.º 1, alíneas b) e c) do CPP).

Conclui-se, portanto, que o prazo de prisão preventiva é de 3 anos e 4 meses (artigos 107.º, n.º 6 e 215.º, n.º 1, alínea d) e n.ºs 2 e 3 do CPP), não estando ainda esgotado o referido prazo.

III. Decisão

11. Nestes termos, acordam em audiência na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir, por falta de fundamento bastante, a providência de habeas corpus requerida pelo arguido AA.

Supremo Tribunal de Justiça, 3 de Novembro de 2011

                                              

Rodrigues da Costa (Relator)

Arménio Sottomayor

Carmona da Mota