ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
7595/05.0TBVNG.P1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/17/2011
SECÇÃO 2ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO CONCEDIDA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR ÁLVARO RODRIGUES

DESCRITORES OMISSÃO DE PRONÚNCIA EM 1ª INSTÂNCIA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

SUMÁRIO
I- O Supremo Tribunal de Justiça não julga as impugnações das decisões da 1ª Instância, com ressalva dos casos expressamente previstos na lei, como acontece relativamente aos casos de recursos per saltum ( artº 725º do CPC).

II- Sendo assim, se a 1ª Instância havia omitido pronúncia sobre questão aí levantada pela Ré, ora Recorrente, esta tinha a possibilidade de arguir nulidade da respectiva sentença por tal omissão.
Não o tendo feito, não pode agora colocar a questão directamente a este Tribunal.

III- Ao STJ cabe apreciar e decidir os recursos interpostos das decisões da 2ª Instância, mas como a Recorrente não recorreu para a Relação, por não ter sucumbido na acção em 1ª Instância, não tem este Supremo a possibilidade legal de apreciar agora tal questão.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL

Acordam no SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

RELATÓRIO

AA intentou acção declarativa de condenação para efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação contra:
1) BB;
2) CC;
3) Fundo de Garantia Automóvel;
4) DD;
5) EE.
Alegou, em síntese, que sofreu danos, cuja indemnização peticiona, em consequência de um acidente de viação culposamente causado pelo condutor do veículo automóvel BMW, com a matrícula “000-000”, conduzido pelo R. CC e pertencente ao R. BB, não estando a circulação do veículo coberta por seguro válido e eficaz, razão porque demanda o Fundo de Garantia Automóvel.
Subsidiariamente demanda os RR. DD e EE, condutor e titular do ciclomotor em que a Autora era transportada, para o caso de se vir a apurar uma outra dinâmica do acidente.
Pede a A. que os RR. sejam solidariamente condenados a pagarem-lhe a quantia de € 176.337,47, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento.
*
Contestaram os RR., impugnando a versão do acidente apresentada pela A., os danos alegados, bem como os restantes pressupostos da sua responsabilização.
*
Foi admitida a intervenção principal do Gabinete Português da Carta Verde e da Real Seguros/ Lusitânia – Companhia de Seguros, S.A., que impugnaram os factos, por desconhecimento, e declinaram também qualquer responsabilidade.
*
Por seu turno, no processo que seguiu os seus trâmites no mesmo Tribunal, sob o nº 00000000000 (apenso), DD intentou acção declarativa de condenação para efectivação de responsabilidade civil emergente de acidente de viação contra:
1) BB;
2) CC;
3) Fundo de Garantia Automóvel;
4) Gabinete Português da Carta Verde.
Alegou, em síntese, que sofreu danos, cuja indemnização peticiona, em consequência do acidente de viação culposamente causado pelo condutor do predito veículo automóvel BMW, com a matrícula “000-000”, o R. CC, sendo o automóvel pertença do R. BB.
Pede que os RR. sejam solidariamente condenados a pagarem-lhe a quantia de € 231.926,48, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento.
*
Contestaram os RR., impugnando a versão do acidente apresentada pelo A., os danos alegados, bem como os restantes pressupostos da sua responsabilização.
*
Foi admitida a intervenção principal da Real Seguros, SA (Lusitânia), que impugnou, por desconhecimento, os factos e declinou também qualquer responsabilidade.
*
Apensados os processos, procedeu-se à selecção dos factos assentes e dos factos controvertidos carreados à base instrutória.
*
Procedeu-se ao julgamento, na sequência do qual foi proferida decisão que julgou parcialmente procedentes as acções e, em consequência, condenou os Réus BB, CC e Fundo de Garantia Automóvel a pagar as seguintes quantias indemnizatórias:
A) à Autora AA:
-€ 817,47, a título de indemnização pelos danos patrimoniais emergentes;
-€ 35.000,00, a título de indemnização pelos danos patrimoniais futuros resultantes da incapacidade permanente geral;
-€ 17.000,00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais;
B) ao Autor DD:
-€ 3.224,30, a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos;
-€ 500,00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais;
C) aos montantes fixados, a título de danos patrimoniais, acrescem juros moratórios, à taxa legal, desde a data da citação até integral e efectivo pagamento;
No mais, absolveu os preditos Réus do pedido.
D) Os Réus DD, EE, Gabinete Português da Carta Verde e Real Seguros, SA foram absolvidos dos pedidos contra eles formulados.

Os Réus BB e CC vieram interpor recurso de Apelação de tal sentença para o Tribunal da Relação do Porto que, dando procedência às Apelações, decidiu o seguinte:

Condenar-se a Interveniente Principal, Cª de Seguros Real/Lusitânia a pagar as seguintes quantias indemnizatórias:

A) À Autora AA:
-€ 817,47, a título de indemnização pelos danos patrimoniais emergentes;
-€ 35.000,00, a título de indemnização pelos danos patrimoniais futuros resultantes da incapacidade permanente geral;
-€ 17.000,00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais;

B) Ao Autor DD:
-€ 3.224,30, a título de indemnização pelos danos patrimoniais sofridos;
-€ 500,00, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais;

C) Aos montantes fixados, a título de danos patrimoniais, acrescem juros moratórios, à taxa legal, desde a data da citação até integral e efectivo pagamento;

No mais, mantendo-se a decisão recorrida e absolvendo-se a Ré dos demais pedidos.
D) Os Réus DD, EE, Gabinete Português da Carta Verde, BB, CC e Fundo de Garantia Automóvel foram absolvidos dos pedidos contra si formulados.

Inconformada, veio a Ré seguradora interpor recurso de Revista para este Supremo Tribunal, rematando as suas alegações com as seguintes:

CONCLUSÕES

I.0 Acórdão recorrido não pode manter-se uma vez que não efectuou uma correcta apreciação dos princípios legais e das normas em vigor:

II. Tendo por pressuposto o conteúdo das Alegações apresentadas pelos ora Recorridos, foi entendimentos dos Senhores Juízes Desembargadores que "existe, efectivamente, no elenco da matéria de facto na qual se baseou a decisão proferida, um facto que encerra um juízo de valor - caso do art° 24) -; existe outro facto - caso do artº 28° -, que se apresenta em contradição absoluta com outros factos também dados como provados (os factos n° 19), 29), 33) e 43); existem outros factos cuja redacção é ambígua e obscura - caso dos art°s 52° e 59º;

III.O artigo 712° do C.P.C, prevê as situações em que o Tribunal da Relação pode alterar a matéria de facto decidida pelo tribunal de lª Instância, sendo "hoje prática corrente e aceite que a regra é a da não anulação da decisão, devendo o Tribunal da Relação sanar esses vícios, mesmo oficiosamente, socorrendo-se dos elementos de prova que existam nos autos";

IV. A solução adoptada quanto à alteração da redacção dos pontos 52.°) e 59.°) é passível de censura;

V. Nos termos do Acórdão ora colocado em crise que, face à redacção dos pontos 52.° e 59.° - tendo por consideração a redacção dos pontos 1) e 47) - "o primeiro caminho a seguir será o de ser este tribunal da Relação a resolver a situação, com recurso aos elementos de prova existentes nos autos. Acontece que tais elementos de prova não existem, sendo incompreensível como a Srª Juíza da l.ª Instância deu a redacção que deu aos artigos 52.° e 59.°, sem qualquer alicerce factual";

VI. Por essa razão, entenderam os Senhores Juízes Desembargadores alterar a redacção dos pontos 52.°) e 59.°), o que não se concebe, já que no caso de não constarem do processo esses elementos - de prova - deve ser anulada a decisão, e remetido os autos à lª instância para ser repetido o julgamento, embora apenas limitado aos factos contraditórios;

VII. Da apreciação da matéria provada resulta manifesto que esses elementos de prova não existem nos autos; uma vez que o "sr. Juiz de julgamento, no uso dos seus poderes de investigação, e com o fim de descobrir a verdade material dos factos, não mandou juntar aos autos o original de tal documento (original da proposta de seguro), isto quando ficou no ar a desconfiança, trazida a julgamento por uma das testemunhas, Paulo Silvestre Gomes, de que teria havido conduta dolosa do segurado, ao enviar a proposta de seguro, depois do acidente ter ocorrido!";

VIII. A Recorrente, em sede de Contestação, articulou factos susceptíveis de determinar a nulidade (anulabilidade) do contrato de seguro titulado pela apólice n.° 00000, peticionando declaração da nulidade/anulabilidade de tal contrato de seguro;

IX. Nenhum juízo foi tecido quanto a essa matéria, nem tão pouco o Meritíssimo Juiz a quo se pronunciou sobre a alegada nulidade/anulabilidade do contrato de seguro titulado pela apólice n.° 00000;

X. Tendo por referência os contornos algo confusos que estiveram na origem da contratação do Seguro com a Recorrente, bem como dos factos e provas carreados para os presentes autos, sempre se imporia às instâncias um especial dever no sentido da descoberta da verdade material e da boa decisão da causa;

XI. Conforme decorre dos autos, não foi possível determinar a data em que a proposta de seguro do ramo automóvel - "Seguro de Garagista" foi entregue nos serviços da Recorrida "Lusitânia", apenas se confirmando que o início pretendido se reportava ao dia 14 de Fevereiro, pelas 00.00h, indicação essa conveniente, uma vez que seria o dia útil imediatamente anterior ao do sinistro (17 de Fevereiro de 2003);

XII. Resulta igualmente dos autos que foi indicado como beneficiário do contrato de seguro titulado pela apólice 00000 (seguro de garagista), o Réu CC, titular da carta de condução n° 00000000000, com data de 21.01.2003, não obstante a carta de condução do Réu CC tenha sido emitida a 17.02.2003, o que, desde já, naturalmente, se questiona;

XIII. O sinistro em apreço nos autos nunca foi participado à ora Recorrente;

XIV. Impõe-se, a fim de ultrapassar as apontadas obscuridades/ambiguidades da sentença proferida a fls., a anulação do Acórdão proferido no que a esta matéria diz respeito e, consequentemente, da sentença proferida em lª instância, remetendo-se o processo à lª instância com vista à repetição do Julgamento, com vista à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa, bem como a pronuncia quanto à invocada excepção de anulabilidade do contrato de seguro titulado pela apólice n.° 00/0000000;
Por outro lado.

XV. Entre o Réu BB e a Recorrida "Lusitânia", à data "Real Seguros, S.A.", foi celebrado um contrato de seguro, titulado pela apólice n.° 00000 (cuja declaração de anulabilidade foi peticionada), "Através de tal contrato de seguro, o tomador do seguro pretendia transferir para a Interveniente Real Seguros a responsabilidade civil emergente de acidente de viação, até ao limite de € 750,000,00, provocados por veículos conduzidos pelo Réu CC, titular da carta de condução indicada na apólice, ou seja, figurava como beneficiário do mesmo o Réu CC" (ponto50));

XVI. Tal seguro foi contratado como "Seguro de Garagista";

XVII. O seguro de garagista foi especificamente criado e imposto pelo n.° 3 do artigo 2.° do Decreto Lei n.° 522/85, para abranger "a responsabilidade civil em que incorrem quando utilizam, por virtude das suas funções, os (...) veículos" com que trabalham os garagistas "no âmbito da sua actividade profissional";

XVIII. O seguro de garagista só abrange ou cobre os riscos resultantes de sinistros ocorridos com veículos de terceiros, utilizados no âmbito da actividade profissional;

XIX. Dos documentos juntos aos autos, designadamente das Condições Particulares, consta expressamente que "excluem-se os veículos propriedade do Segurado e/ou do detentor da carta segura, bem como todos os que não sejam utilizados no exercício das suas funções e no âmbito da sua actividade profissional";

XX. O alcance e extensão da contratação e da respectiva exclusão nunca foram colocados em causa pelos Réus BB e CC;

XXI. Na contratação de seguros existe uma determinada disponibilidade negocial das partes que, neste caso concreto, optaram por excluir expressamente das garantias do contrato "os veículos propriedade do Segurado e/ou do detentor da carta segura A contratação de seguros", tal como ficou consignado nas condições particulares da Apólice;

XXII. O veículo automóvel que interveio no acidente encontra-se excluído do âmbito objectivo de cobertura do contrato de seguro invocado pelo Réu BB, razão pela qual deve ser revogado o Acórdão proferido e a Recorrente absolvida da instância;
Finalmente,
XXIII. Tendo em consideração as alterações preconizadas pelos Senhores Juízes Desembargadores quanto aos pontos 18) e 24), que estes sempre se deveriam ter pronunciado quanto às questões colocadas, sob pena de ser colocado em causa o princípio da descoberta da verdade material e da boa decisão da causa, designadamente da culpa na produção do acidente e, consequentemente, do valor das indemnizações devidas;

XXIV. A eliminação do elenco dos factos provados dos pontos 18) e 24) não poderá ser despicienda de sentido ou, até mesmo, inócua;

XXV. No sentido deste entendimento, veja-se o n.° 2 do artigo 715.° do Código de Processo Civil, onde se dispõe que o tribunal deve conhecer das questões ali mencionadas se nada obstar a tal;

XXVI. Atendendo à alteração da matéria de facto dada como provada é manifesto que o acidente não se ficou a dever, única e exclusivamente, a culpa do Réu CC, antes terá ocorrido concorrência de culpa entre os condutores dos veículos intervenientes no acidente.;

XXVII. O condutor do ciclomotor violou o disposto no artigo 13.° do Código da Estrada (dever de circulação o mais à direita possível da faixa), bem como o disposto na alínea c), n.° 1 do artigo 41.° do Código da Estrada, tanto mais que se aproximava de um cruzamento;

XXVIII. A conduta adoptada pelo condutor do ciclomotor, ora Autor, resultou na prática de dois ilícitos contra-ordenacionais que determinaram, sem sombra de dúvida, a produção do acidente em apreço, o que, aliás, faz presumir a culpa do aludido condutor;

XXIX. Neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.10.2004, processo n.° 04B2400, em "www.dgsi.pt", onde se lê: "Quando um condutor age objectivamente por forma a que o seu comportamento seja enquadrável no espectro das condutas passíveis de causar acidentes do tipo daqueles que a lei quer evitar ao tipificá-las como infracções, deve imputar a responsabilidade a esse condutor, por presunção, quer natural, quer iuris tantum, da culpa (negligência) em concreto do autor da contra-ordenação (...)";
XXX. O condutor do ciclomotor, ora Autor, contribuiu de forma inequívoca para a produção do acidente em apreço nos autos, devendo, em consequência, a indemnização peticionada nos autos ser fixada de acordo e nos termos do disposto no artigo 570.° do Código Civil;

XXXI. Ao não conhecer parte das questões levantadas, designadamente a culpa pela produção do acidente e cujo conhecimento se impunha dada a eliminação da matéria dos pontos 18) e 24), por razões de prejudicialidade o Tribunal da Relação acabou por eliminar um grau de jurisdição, pelo que se impõe a remessa dos presentes autos ao Tribunal da Relação para que se pronuncie quanto à responsabilidade pela produção do acidente em apreço nos autos, tendo por pressuposto a matéria dada como provada e, nessa sequência, fixe o montante indemnizatório devido aos Autores.
Foram apresentadas contra-alegações pelos Recorridos AA, DD, BB e CC e Fundo de Garantia Automóvel, todos pugnando pela manutenção do decidido.

O FGA defende que os autos sejam remetidos à Relação do Porto para que seja apreciada a questão da culpa e do montante indemnizatório ou, se tal não for entendido, que o STJ aprecie tais questões.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, pois nada obsta ao conhecimento do objecto do presente recurso, sendo que este é delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente, nos termos, essencialmente, do artº 684º, nº 3 do CPC, como, de resto, constitui doutrina e jurisprudência firme deste Tribunal.

FUNDAMENTOS

Da 1ª Instância vinha dada como provada a seguinte factualidade:

1) No dia 17 de Fevereiro de 2003, na Estrada Nacional nº1, (EN1), ao Km 289,600, no entroncamento da Rua da Relva com a EN1, na freguesia de , concelho de Vila Nova de Gaia, ocorreu o embate entre um veículo ligeiro de passageiros e um ciclomotor.
2) A EN1, naquele troço, desenhava – se em recta.
3) A faixa de rodagem, com piso regular e em bom estado de conservação, tinha 7,50m de largura.
4) O seu eixo era materializado por linha longitudinal descontínua autonomizando duas vias de trânsito, uma destinada à circulação dos veículos no sentido Porto/Lisboa e a outra em sentido contrário.
5) A faixa de rodagem era ladeada por bermas com 2,10m de largura.
6) Fazia bom tempo.
7) O pavimento estava seco.
8) A visibilidade era boa.
9) A Rua da Relva, imediatamente antes do entroncamento com a EN1, tinha colocado um sinal vertical de STOP.
10) Intervieram no embate a viatura ligeira de passageiros, marca BMW, propriedade do 1º réu, BB.
11) O qual não havia transferido os riscos inerentes à respectiva circulação para qualquer seguradora.
12) E era conduzido pelo também réu, CC.
13) Interveio ainda o ciclomotor matrícula 000000000 conduzido por DD.
14) E no qual seguia como passageira AA.
15) Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o condutor do BMW provinha da citada Rua da Relva que, de , dava acesso à EN1.
16) Com o propósito de entrar na EN1 e aí passar a circular no sentido Sul/Norte.
17) O condutor do ciclomotor imprimia ao seu veículo uma velocidade de cerca de 35km/h.
18) Circulava pela direita da faixa da EN1 que no sentido Norte/Sul lhe estava reservada.
19) Ao chegar ao entroncamento supra citado, junto ao eixo da via, foi o ciclomotor embatido pelo BMW.
20) Na sequência da manobra que efectuou, o BMW embateu no ciclomotor.
21) O BMW não permitiu que o ciclomotor continuasse a sua marcha.
22) Por força do embate o ciclomotor, o respectivo condutor, o A. DDe a A. AA foram projectados ao solo, imobilizando-se o ciclomotor a 2,20m da linha delimitadora da faixa de rodagem, sentido Sul/Norte.
23) Tanto a passageira, a A. AA, como o tripulante do ciclomotor, o A. DD, ficaram prostrados no pavimento muito próximo desse local.
24) O réu CC conduzia o BMW de forma descuidada.
25) O ciclomotor, matrícula 000000000 era conduzido por DD,
26) Sua propriedade, embora ainda registado documentalmente a favor de EE, solteiro, maior, filho do A. e, à data, com ele residente.
27) Foi celebrado o contrato de seguro titulado pela apólice 00000, que aqui se dá por reproduzido.
28) O réu CC circulava na Rua da Relva e virou à sua esquerda no cruzamento com a EN 1.
29) À sua esquerda, naquela EN 1, circulava uma grande fila de carros no sentido norte para sul.
30) O réu CC, saindo da Rua da Relva, entrou na EN1, pretendendo circular no sentido Sul/Norte.
31) Já na EN1 surgiu-lhe de frente o ciclomotor conduzido por DD.
32) O embate deu-se com a frente do automóvel.
33) O condutor do ciclomotor não transitava o mais próximo possível das bermas ou passeios.
34) O seguro referido em 27) trata-se do denominado “seguro de garagista”.
35) O R. BB, como empresário em nome individual dedica-se, com fins lucrativos, à compra e venda de veículos automóveis, nacionais e estrangeiros, actividade essa que se centra no stand Auto Jocar, sediado na Avenida S. salvador, 810, , desta comarca.
36) O R. CC trabalha subordinadamente sob as ordens e direcção do R. BB, mediante remuneração e ao abrigo de contrato de trabalho.
37) Era no desenvolvimento dessa actividade e qualidade que o R. CC conduzia o veículo, no momento do acidente.
38) Tal veículo destinava-se à venda e, naquele momento, o R. CC ia reparar um vidro do veículo, a mando do seu “patrão”, o R. BB.
39) Este e os outros veículos existentes no stand destinavam-se exclusivamente à venda ao público.
40) O acidente ocorreu durante a operação de reparação do vidro do veículo, no desempenho das funções profissionais do R. CC.
41) A EN 1 apresenta linha descontínua, no local.
42) Na altura, o trânsito no sentido Porto/Lisboa (Norte/Sul) processava-se em fila, de forma lenta.
43) O condutor do ciclomotor 0-000 vinha a ultrapassar, pela esquerda, a fila de trânsito do sentido Norte/Sul.
44) O condutor do ciclomotor 0-000 circulava sem o respectivo seguro obrigatório.
45) A matrícula 000-000 corresponde a uma matrícula belga.
46) A matrícula “000-000” findou a 10/02/2003.
47) Em data não concretamente apurada, situada entre o dia 14 e 24 de Fevereiro de 2003, foi entregue no balcão de Oliveira de Azeméis da “Real Seguros, S.A.”, uma proposta de seguro novo do Ramo Automóvel – “Seguro de Garagista” -, à qual foi atribuído o n.º 00000.
48) Nessa proposta de celebração do contrato de seguro foi aposta a data de 14 de Fevereiro de 2003, como data do seu preenchimento.
49) Da referida proposta de seguro constava que o início pretendido do contrato de seguro seria o dia 14 de Fevereiro de 2003, pelas 00.00h.
50) Através de tal contrato de seguro, titulado pela apólice 00000, o tomador do seguro pretendia transferir para a interveniente Real Seguros a responsabilidade civil emergente de acidente de viação, até ao limite de € 750.000,00, provocados por veículos conduzidos pelo Réu CC, titular da carta de condução indicada na apólice, ou seja, figurava como beneficiário do mesmo o Réu CC.
51) Na sequência da apresentação da proposta de seguro, no balcão da Real Seguros de Oliveira de Azeméis, esta foi reencaminhada para os Serviços do Porto para a emissão do Certificado de Seguro e da Apólice n.º00/000000, o que ocorreu no dia 25 de Fevereiro de 2003.
52) Na data em que foi apresentada a proposta de seguro o proponente, o R. BB, não informou a Interveniente Real Seguros que o R. CC tinha sido interveniente num acidente de viação no dia 17 de Fevereiro de 2003, pelas 11.40h, na E.N. 1, ao Km 289,600, em Vila Nova de Gaia, quando conduzia o veículo de matrícula 000-000, à data já anulada, propriedade do Réu BB.
53) Foi identificado o beneficiário do seguro – CC – e solicitado que o início do contrato de seguro se reportasse ao dia 14 de Fevereiro de 2003, pelas 00.00h.
54) Os Réus BB e CC não participaram qualquer sinistro à interveniente Seguradora.
55) Impedindo que a mesma dele tomasse conhecimento, realizasse averiguações e, em geral, preparasse a sua defesa.
56) Deixando que o tempo corresse e diminuindo as garantias e possibilidades de defesa da dita interveniente.
57) A interveniente apenas aceitaria celebrar o contrato nos termos solicitados pelo Réu BB se não tivesse ocorrido um sinistro em data anterior à subscrição e entrega da proposta.
58) A carta de condução do Réu CC foi emitida a 17/02/2003.
59) Se a interveniente Seguradora tivesse tido conhecimento do sinistro em que tinha sido interveniente o Réu CC, nunca teria aceite celebrar o contrato de seguro.
60) Consta da Apólice n.º 00000: “esta apólice cobre os riscos e importâncias máximas fixadas nas Condições Particulares, quanto a sinistros ocorridos com qualquer veículo do tipo aqui mencionado”…”Excluem-se os veículos propriedade do Segurado e ou/detentor da carta segura, bem como todos os que não sejam utilizados no exercício das suas funções e no âmbito da sua actividade profissional”.
61) O veículo de matrícula anulada 000-000, à data dos factos, pertencia ao aqui Réu BB.
62) O veículo de matrícula 000-000 é um Audi, modelo A4, e não um BMW.
63) O veículo automóvel foi importado pelo Réu BB na qualidade de particular.
64) O Réu CC conduzia o veículo interveniente no embate de acordo com as ordens, direcção e instrução do Réu BB.
(Dos danos – AO n.º 7595/05.0TBVNG)
65) Como causa directa e necessária do embate, o condutor e passageira do ciclomotor sofreram várias lesões corporais, tendo resultado para esta fractura descolamento epifisiário grau II do fémur distal direito, bem como equimoses, esfacelos, hematomas e escoriações espalhados por diversas partes do corpo.
66) Para ser socorrida de tais lesões, deu a A. entrada no banco de urgência do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia, tendo-lhe sido, designadamente, realizada redução cruenta e osteossíntese com placa de May e parafusos.
67) Subsequentemente procedeu-se à recuperação funcional da articulação lesada em Medicina Física e Reabilitação.
68) Em 16.08.2004 foi – lhe extraído o material de síntese.
69) Como sequelas das citadas lesões, a Autora apresenta cicatriz de 20cm na face externa distal da coxa e joelho direitos; rigidez articular, provocando claudicação na marcha, amiotrofia da coxa direita em 2 cm, rigidez do joelho no movimento de flexão até 90º e pequena deformação no terço médio da perna.
70) É previsível o agravamento da rigidez e artrose do joelho.
71) Para além do internamento hospitalar a que a sinistrada foi sujeita, viu-se ainda obrigada a recorrer quer ao serviço de urgência quer ao serviço de consulta externa, tendo para o efeito dispendido 40,79euros.
72) Foi também assistida na Clínica Durval, Lda., tendo gasto 439,00euros.
73) Foi acompanhada pelo Dr. FF, tendo gasto 299,00euros.
74) Viu-se ainda obrigada a recorrer ao Centro de Saúde de Arcozelo, tendo dispendido 08,00euros.
75) Gastou na Farmácia, a quantia de 23,88euros.
76) Pagou na Clínica de Radiologia Durval Gonçalves, Lda., a quantia de 6,80euros.
77) A Autora realizou várias deslocações de ida e volta da residência para o Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia.
78) A Autora realizou várias deslocações de ida e volta da residência para a Clínica Durval, Lda.
79) A Autora se deslocou da residência para o consultório do Dr. FF.
80) A Autora realizou várias deslocações de ida e volta da residência para o Centro de Saúde de Arcozelo.
81) A Autora teve necessidade de se deslocar à Farmácia.
82) A Autora deslocou-se da residência para a Clínica Durval Gonçalves, Lda.
83) As lesões sofridas constituíram um choque traumático para a A. que a levaram ao abandono da EB 2,3 de Grijó onde frequentava o 7º ano.
84) Devido às lesões e consequentes dores, maçadas e aborrecimentos, a A. viu-se obrigada a suspender o ensino escolar.
85) A A. ficou a padecer de uma Incapacidade Permanente Geral de 5 pontos, a que acresce, a título de dano futuro mais 5 pontos.
86) As tarefas laborais que no futuro se verá obrigada a desempenhar exigir-lhe-ão um maior esforço por virtude das incapacidades supra citadas.
87) Os reflexos das sequelas traduzem-se também numa menor rentabilidade e produtividade.
88) À angústia do momento seguiu-se a projecção ao solo as dores e tremendo mau estar, já que esteve prostrada no pavimento durante alguns minutos
89) Seguiu-se o hospital, os infindos momentos de espera pelos tratamentos, as dores e o constante mau estar.
90) Ao internamento hospitalar seguiram-se as consultas, os dolorosos tratamentos de fisioterapia e um número sem fim de deslocações que muitas dores, aborrecimentos e cansaços trouxeram à A.
91) A A. é uma jovem do sexo feminino que após e por causa do acidente, se viu obrigada a conviver com a cicatriz e a claudicação.
92) As sequelas do acidente, afectaram, afectam e afectarão para o resto da sua vida, com gravidade, a qualidade de vida da A., por lhe diminuírem a auto – estima, o prazer de viver e a sua realização tanto pessoal como profissional.
(Dos danos – AO n.º 9270/05.7TBVNG)
93) Como causa directa e necessária do embate, o aqui A. sofreu escoriações no membro inferior direito e contusão do pé direito.
94) O Autor foi submetido a amputação do membro inferior direito, em 2004.
95) Ainda em 2004, sobreveio uma infecção do coto e foi reamputado.
96) O Autor vem sendo seguido na consulta externa do Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular do Hospital
97) A amputação implicou a limitação da sua mobilidade.
98) Primeiro uma limitação total, pois, viu-se impedido de sair do leito hospitalar.
99) Depois passou a ser parcial, deslocando-se em cadeira de rodas.
100) As lesões referidas na resposta ao facto 93 causaram ao Autor mau estar físico e mental.
101) O ciclomotor sofreu amolgadelas e sulcos na pintura, designadamente nas carnagens, nos guarda-lamas e por todo seu exterior, e danos nos faróis de pisca-pisca.
102) O custo da reparação de tais danos foi orçado em 02.04.03, por BB & Lda., em 724,30euros.
103) O A. não procedeu à reparação do ciclomotor.
104) O ciclomotor ficou sem poder circular.
105) O ciclomotor era o único meio de transporte do agregado familiar do A., servindo-o a ele, à filha menor e à esposa que, residindo no meio rural precisavam do ciclomotor para as deslocações mais triviais, como a estabelecimentos comerciais, a farmácias e a casa de familiares.
106) Em Março de 2002, o Autor trabalhava na empresa F......& S....., Lda., com sede em Grijó, V. N. de Gaia, auferindo um vencimento ilíquido no valor de 417,00euros, acrescido de subsídio de alimentação no valor de 52,00euros, totalizando a quantia líquida de 298,72€.
107) O autor encontra-se reformado, auferindo pensão de invalidez cujo valor actual não foi possível apurar.
108) O A. nasceu a 29.03.49.
109) O Autor sofreu angústia, dores e mal-estar, já que foi projectado ao solo e esteve prostrado no pavimento durante alguns minutos.
110) Sofreu ainda pelo facto de levar consigo, como passageira, sua filha menor AA, a qual, ficou politraumatizada.
111) O cuidado, a preocupação e a dor da filha foi também algo que o fez sofrer intensamente.
112) Foi observado no hospital, fez exames, foi medicado e teve alta.
113) A amputação provocou no Autor diminuição da auto-estima e da qualidade de vida, causando-lhe a si frustração e aos familiares tristeza.
114) O Autor carece da ajuda de uma terceira pessoa para tomar banho, vestir-se, calçar-se e confeccionar os alimentos.

O Tribunal da Relação, porém, decidiu, em sede do recurso de Apelação, alterar a matéria de facto fixada pelo Tribunal «a quo», afirmando o seguinte:
«Analisada a matéria de facto constante, quer do despacho proferido sobre a matéria de facto que o tribunal julgou provada (e não provada), quer a fundamentação da matéria de facto constante da decisão, verificamos que assiste razão aos apelantes.
Existe, efectivamente, no elenco da matéria de facto na qual se baseou a decisão proferida, um facto que encerra um juízo de valor – caso do artº 24) -; existe outro facto – caso do artº 18º -, que se apresenta em contradição absoluta com outros factos também dados como provados (os factos nº 19), 29), 33) e 43); e existem outros factos cuja redacção é ambígua e obscura – caso dos artºs 52º e 59º».

Deste modo, excluiu da matéria de facto apurada o ponto 24º, porque o mesmo «encerra em si matéria conclusiva, um mero juízo de facto».
De igual sorte, excluiu o ponto 18º, afirmando que «o facto evidenciado no ponto 18) não corresponde à prova produzida, e está em contradição total com outros factos dados como provados, pelo que deverá também o mesmo ser eliminado dos factos provados».
Relativamente ao facto 52º, considerou a Relação que: «há que alterar a redacção dada àquele artº 52º, que deverá limitar-se ao seguinte: «Na data em que foi apresentada a proposta de seguro, o proponente, o R. BB, não informou a Interveniente Real Seguros da ocorrência de qualquer acidente.».
Finalmente, no que diz respeito ao facto 59º, o mesmo Tribunal assim dispôs:
«À semelhança do que se passou com o facto 52), altera-se também a redacção dada ao artº 59º, para a seguinte: “Se a interveniente Seguradora tivesse tido conhecimento da existência de algum sinistro, ocorrido antes da data da apresentação da proposta de seguro, nunca teria aceite celebrar o contrato de seguro”.
Nesta conformidade, a matéria factual dos presentes autos ficou definitivamente fixada nos termos acabados de referir.
Como se colhe do exame das conclusões que condensam a matéria da douta minuta recursória, são as seguintes as questões colocadas pela Recorrente Seguradora no presente recurso:

– Inconformismo com a alteração da matéria de facto operada pelo Tribunal da Relação ( conclusões I a VII).

– Omissão de pronúncia sobre a questão da anulabilidade do contrato de seguro que a Recorrente havia levantado na sua contestação ( conclusões VIII a XIV).

– Indevida aplicação do regime do contrato de «Seguro de Garagista» celebrado pela ora Real Seguros, S.A., com o nº de apólice 00000, ao caso sub judicio ( conclusões XV a XXII)

– Omissão de pronúncia da Relação sobre a culpa dos intervenientes no acidente, não obstante a modificação da matéria de facto fixada pela 1ª Instância ( conclusões XXIII a XXXI).

Relativamente à 1ª questão, é patente a falta de razão desta Seguradora, ora Recorrente.
Como a mesma não desconhece, não compete ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar o julgamento da matéria de facto operado pelas Instâncias, fora dos apertados limites legais gizados pelo nº 3 do artº 722º do CPC.
Nesta conformidade, não se verificando in casu as aludidas excepções legais, não pode este Supremo Tribunal alterar a matéria de facto ou, sequer, censurar o seu julgamento.
Com efeito, se erro existir no apuramento e apreciação da matéria factual provada, tal erro não pode ser, ex vi legis, sindicado pelo Supremo Tribunal de Justiça, como os Recorrentes não ignoram, pois é claro o artº 722º/3 do CPC ao estatuir que:
«O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova» ( negrito nosso).
Ora no caso sub judicio não se vislumbra qualquer das situações excepcionais previstas na parte final do preceito legal transcrito, como se deixou lautamente demonstrado.
Desta forma, o Tribunal da Relação é a entidade jurisdicional soberana na apreciação e decisão sobre a matéria de facto, como Tribunal de 2ª Instância que é, cabendo ao STJ aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais provados pelo Tribunal recorrido (artº 729º, nº1 do CPC).
A acrescentar ao que dito fica, a lei é expressa ao estabelecer, no nº 7º do artº 712º do CPC, que das decisões da Relação, previstas nos números anteriores, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
Em face do exposto, claudicam as conclusões da douta alegação sob os nºs I a VII.

No que tange à 2ª questão, alega a Recorrente que em sede de contestação articulou factos susceptíveis de determinar a nulidade (anulabilidade) do contrato de seguro celebrado de que tratam os autos e que nenhum juízo foi tecido quanto a essa matéria, nem tão pouco o Meritíssimo Juiz a quo se pronunciou sobre a alegada nulidade/anulabilidade do contrato de seguro titulado pela apólice n.° 00000.
É consabido que o Supremo Tribunal de Justiça não julga as impugnações das decisões da 1ª Instância, com ressalva dos casos expressamente previstos na lei, como acontece relativamente aos casos de recursos per saltum ( artº 725º do CPC).
Sendo assim, se a 1ª Instância havia omitido pronúncia sobre questão aí levantada pela Ré, ora Recorrente, a mesma tinha a possibilidade de arguir nulidade da respectiva sentença por tal omissão.
Não o tendo feito, não pode agora colocar a questão directamente a este Tribunal.
Ao STJ cabe apreciar e decidir os recursos interpostos das decisões da 2ª Instância, mas como a Recorrente não recorreu para a Relação, por não ter sucumbido na acção em 1ª Instância, não tem este Supremo a possibilidade legal de apreciar tal questão.
Termos em que claudicam as pertinentes conclusões.

Relativamente à 3ª questão, que é a invocada indevida aplicação do regime do contrato de «Seguro de Garagista» celebrado pela ora Real Seguros, S.A., com o nº de apólice 00000, ao caso sub judicio ( conclusões XV a XXII), nenhuma razão assiste à Recorrente, com o respeito que lhe é devido.
Efectivamente, a Relação dissecou e analisou adequadamente esta questão, com o argumentário que, merecendo a nossa total concordância, aqui se impõe transcrever, não obstante a sua considerável extensão:

«No caso em análise nos autos, ficou provado que o Réu BB se dedica à compra e venda de veículos, pelo que era obrigado a segurar a responsabilidade civil do seu empregado, o Réu CC.
E fê-lo, conforme resulta da matéria de facto provada.
Também não há dúvidas de que era no exercício da sua actividade profissional que o R. CC conduzia o veículo, no momento do acidente. Ou seja, tal veículo destinava-se à venda e, naquele momento, o R. CC ia reparar um vidro do veículo, a mando do seu “patrão”, o R. BB. O acidente ocorreu, assim, durante a operação de reparação do vidro do veículo, no desempenho das funções profissionais do R. CC.
Acresce que este e os outros veículos existentes no stand destinavam-se exclusivamente à venda ao público.
Ora, de acordo com os factos descritos, dados como provados, ficou sobejamente demonstrado que o contrato de seguro celebrado entre a Cº de Seguros Real e o R. BB era um verdadeiro seguro de garagista, nos termos em que o mesmo vem definido no artº 2º, nº3 do D.L. nº 522/85.
Aliás, na decisão recorrida também se faz um correcto enquadramento dos factos provados ao tipo de contrato celebrado.
A questão coloca-se no que se refere à norma do contrato que exclui a responsabilidade da seguradora quanto aos veículos de que seja proprietário o segurado.
Consta da Apólice n.º 00000 do contrato: “esta apólice cobre os riscos e importâncias máximas fixadas nas Condições Particulares, quanto a sinistros ocorridos com qualquer veículo do tipo aqui mencionado”…”Excluem-se os veículos propriedade do Segurado e ou/detentor da carta segura, bem como todos os que não sejam utilizados no exercício das suas funções e no âmbito da sua actividade profissional”.
Ora, sendo o Réu BB empresário em nome individual, é manifesto que os veículos existentes no seu “stand” e que se destinavam à venda eram sua propriedade. Aliás, tanto o veículo interveniente no acidente, conduzido pelo R. CC como os demais existentes no stand destinavam-se exclusivamente à venda ao público.
Ora, não parece serem esses veículos que as partes quiseram excluir da garantia do seguro. Quando se refere na apólice a veículos “propriedade do segurado ou do detentor da carta segura”, quer-se referir aos veículos – propriedade do segurado ou do detentor da carta segura -, destinados, exclusivamente, ao seu uso particular, ou seja, que não estivessem afectos à actividade profissional do segurado.
È essa a interpretação mais correcta da apólice em análise, tituladora do contrato do seguro.
E é essa interpretação que obedece também às normas e princípios vigentes no nosso sistema jurídico, relativos à interpretação dos contratos.
Nesta matéria o artº 236º do C.C. preceitua que “A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se ele não puder razoavelmente contar com ele”.
Esta regra, da interpretação objectiva dos contratos, vigora, no nosso direito, em caso de inexistir mútuo consenso entre as partes, funcionando assim como um critério objectivo, assente no entendimento de uma pessoa normal colocada na situação do real declaratário (teoria da impressão do declaratário).
No que respeita ao contrato de seguro, o artº 11º nº1 do D.L. nº 446/85 (Lei das Cláusulas Contratuais Gerais), no âmbito destas cláusulas (que se inserem, em regra, no contrato de seguro), também consagra a teoria da impressão do destinatário.
Aplicando os preceitos mencionados ao contrato de seguro, deve entender-se que o declaratário é o tomador do seguro, tomador médio, sem especiais conhecimentos jurídicos, que lê as condições gerais com a atenção e razoavelmente as aprecia.
Aliás, como princípio, nos contratos com consumidores normais e realizados no âmbito de relações não profissionais, as palavras e expressões utilizadas devem ser interpretadas no sentido corrente da linguagem do dia a dia.
Nos negócios formais (como é o caso do contrato de seguro em análise – celebrado ainda ao abrigo do artº 426º do C Comercial -), não pode, no entanto, a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (artº 238º do C.C.).
A interpretação meramente literal deve, porém, ser afastada se conduzir a soluções desprovidas de qualquer racionalidade.
Há que atender antes, quer ao fim prosseguido pelo contrato, quer ao seu efeito útil (J.C. Moitinho de Almeida Contrato de Seguro, Estudos, Coimbra Editora, pgs. 116 e 117).
Na interpretação dos contratos deve ter-se em conta o sentido que melhor corresponda à sua natureza e objecto. Com efeito, é lógico e de bom senso admitir que, em regra, as partes entenderam conformar-se com a natureza e admitir os efeitos que normalmente resultam de certo contrato. Este princípio é com frequência aplicado pelos tribunais no domínio dos seguros, onde se atende, quer à finalidade da cláusula, quer ao seu efeito útil.
Em aplicação do brocado latino “Ut res magis valeat quam pereat”, várias legislações consagraram expressamente o princípio do efeito útil, segundo o qual quando uma cláusula seja susceptível de dois sentidos, deve atender-se àquele que lhe confira algum efeito.
Assenta este princípio na ideia de que as partes não desejaram por certo um texto despido de qualquer sentido. Razões de ordem lógica, mas também a boa-fé exigem a sua aplicação, o que explica a falta de menção expressa do princípio do efeito útil no C.C., absorvido pela regra interpretativa da boa fé.
Um princípio a atender também, na interpretação das cláusulas do contrato, é o do “In dúbio contra proferentem”.
O artº 11º nº2 do D.L. nº 446/85 estabelece o princípio segundo o qual, existindo dúvidas quanto ao estabelecimento do destinatário, em aplicação do critério objectivo estabelecido no nº anterior, prevalece o sentido mais favorável ao aderente. Esta disposição cobre a quase totalidade dos contratos de seguro, uma vez que o âmbito do diploma abrange as cláusulas contratuais gerais bem como as cláusulas de contratos individualizados não negociadas (artº 1º nºs 1 e 2).
Trata-se de um princípio que se funda na auto-responsabilidade do declarante e na protecção da confiança do declaratário, uma e outra assentes na boa-fé em sentido objectivo. Por isso deve considerar-se como um princípio geral, a ter em conta, apenas quando as regras de interpretação não permitam determinar qual a impressão do declaratário nos termos dos artºs 236º nº1 do C.C. e 11º nº 1 do D.L. nº 446/85 (J.C. Moitinho de Almeida, ob. e local citados).
*
Fazendo aplicação das normas e princípios ao contrato de seguro em causa nos autos, temos de concluir que a interpretação feita na decisão recorrida, de afastar a responsabilidade da seguradora pelo facto do veículo interveniente no acidente ser propriedade do Réu BB, vai contra a letra e o espírito dos normativos citados, tendo também desrespeitado alguns dos princípios basilares da interpretação dos contratos.
Pois se o veículo interveniente no acidente, assim como todos os veículos existentes no “stand” se destinavam à venda ao público, o seguro feito para os mesmos ficaria esvaziado de sentido, se não lhes desse cobertura, baseado na circunstância de que eles eram propriedade do Réu BB.
*
Assim sendo, e em conclusão, existindo seguro válido e em vigor, à data do acidente, que cobria a responsabilidade por factos ilícitos da viatura conduzida no momento pelo R. CC, a Interveniente principal, Cª de Seguros Real/Lusitânia deve ser responsável (única) pelo pagamento das indemnizações arbitradas na decisão recorrida (com as quais concorda, aliás, conforme resulta das suas contra-alegações de recurso)».

Como é sabido, constitui jurisprudência largamente maioritária que «compete às Instâncias interpretar o sentido da declaração, sendo sindicável pelo Supremo se foram observados os artºs 236º e 238º do Código Civil» [por todos, o Ac. STJ, de 18-05-1995 in CJ ( STJ), 1995, 2º-94].
Como ensinou o saudoso civilista Prof. Mota Pinto, na interpretação da declaração da vontade das partes serão atendíveis «todos os coeficientes ou elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta» (Carlos Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 1980, pg. 421).
Por sua vez, Antunes Varela assim explica a ratio daquela teoria:
«O objectivo da solução aceite na lei é o de proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectivamente atribuir» e, mais adiante, acrescenta: «a normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou o conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante» (P.Lima e A. Varela, Código Civil anotado, vol. I, anotação ao artº 236º).
Ora de um declaratário «medianamente instruído, diligente e sagaz» não seria de esperar, como bem decidiu a Relação, interpretação divergente da que aquele Tribunal superior perfilhou, já que, como judiciosamente se afirma no Acórdão recorrido, « se o veículo interveniente no acidente, assim como todos os veículos existentes no “stand” se destinavam à venda ao público, o seguro feito para os mesmos ficaria esvaziado de sentido, se não lhes desse cobertura, baseado na circunstância de que eles eram propriedade do Réu BB» e isto tendo em atenção que o referido BB era dono daquele stand em regime de empresário em nome individual.
O que é essencial para a aplicação do disposto no nº 3 do artº 2º do DL 522/85, de 31 de Dezembro é que se trate de garagista ou pessoa que habitualmente exerça actividade, montagem ou transformação, de compra e venda e que tal seguro seja destinado a assegurar a responsabilidade civil em que incorrem quando utilizem, por virtude das suas funções, os referidos veículos no âmbito da sua actividade profissional, como comanda a referida norma imperativa (obrigação de segurar) que não pode ser afastada por vontade das partes.
São despiciendas mais palavras para se concluir pela improcedência das conclusões XV a XXII da alegação da Recorrente.

No concernente à 4ª questão (Omissão de pronúncia da Relação sobre a culpa dos intervenientes no acidente, não obstante a modificação da matéria de facto fixada pela 1ª Instância ( conclusões XXIII a XXXI), assiste razão à Recorrente.
Na verdade, não obstante as relevantes modificações da matéria de facto operada pela Relação e apesar de expressamente ter sido levantada pelos Apelantes a questão da eventual dualidade de culpados no acidente em causa, por força da alteração do suporte factual, o Tribunal da 2ª Instância debruçou-se doutamente sobre a questão da nulidade da decisão da 1ª Instância por contradição entre os fundamentos e a decisão e sobre a questão da relevância do contrato de garagista supra citado, mas não se pronunciou sobre a problemática da culpa no acidente que, como é sabido, respeita a um dos requisitos essenciais da responsabilidade civil.
Com efeito, a 1ª Instância havia se pronunciado pela exclusividade da culpa do condutor do automóvel BMW, pelo seguinte:
«pois este provinha da R. da Relva, entroncamento onde existe um sinal vertical de stop, entrou na EN1, virando à esquerda para circular no sentido Sul/Norte e, fazendo-o de forma descuidada, foi embater de frente no ciclomotor.
Se bem que não se apurou que ele tenha parado ou não no sinal stop, é ponto assente que executou uma manobra perigosa, de forma descuidada.
Em contrapartida, o condutor do ciclomotor vinha a ultrapassar, pela esquerda
(não se tendo apurado que tenha invadido a hemifaixa contrária) a fila de trânsito compactada do sentido Norte/Sul, circulando a cerca de 35 Km/h, quando, junto ao eixo da via, foi embatido pelo veículo BMW.
Parece-nos que, face à apurada dinâmica do acidente, não se pode concluir que a ultrapassagem naquele local (troço recto da estrada, com uma faixa de rodagem 7,50m. de largura e bermas com 2,10, com bom piso, fazendo bom tempo e havendo boa visibilidade) configure um comportamento culposo que tenha concorrido de forma causal para a produção do acidente que, na verdade ficou a dever-se à forma descuidada como o condutor do BMW entrou na EN1.

Assim sendo, temos pois que pelos danos provocados pelo embate responde, a título de culpa, o R. CC condutor do veículo de marca BMW, nos termos do art. 503º, nº 1, 1ª parte, do Código Civil; responde o R. BB, enquanto comitente, nos termos do art. 500º, nº 1, do mesmo diploma.
Afastada fica a responsabilidade do R. DD, quer enquanto condutor do veículo, pois se não apurou a existência de culpa de sua parte e a culpa do outro condutor afasta a responsabilidade pelo risco que lhe poderia ser assacada, quer como condutor quer como proprietário do veículo« (destaques nossos).
Ora, como doutamente refere a Recorrente, a modificação do quadro factual em que assentou a decisão da 1ª Instância é susceptível de alterar a atribuição ou a distribuição da culpa.
O Tribunal da Relação, depois de decidir relativamente às questões supra-citadas, entendeu que «decididas favoravelmente, a favor dos Apelantes, as questões apreciadas, fica prejudicado o conhecimento das demais questões por eles colocadas».
Com o subido respeito, não podemos concordar.
Tendo sido eliminado o facto no sentido de que o automobilista conduzia de forma descuidada, em que se havia baseado a 1ª Instância para afirmar a culpa efectiva do mesmo, e tendo sido eliminado o facto inicialmente dado como provado de que o condutor do ciclomotor «circulava pela direita da faixa EN1 que no sentido Norte/ sul lhe estava reservada» é legítima a questão levantada pela Recorrente sobre a exclusividade da culpa do condutor do automóvel ou mesmo sobre a eventual atribuição exclusiva da culpa ao outro interveniente, pois não só não se provou (por tal facto ter sido eliminado pela Relação) que o referido ciclomotor circulava pela direita da faixa EN1 que no sentido Norte/ Sul lhe estava reservada, como provado vem que o mesmo não transitava o mais próximo possível das bermas ou passeios ( facto 33), além de vir a ultrapassar, pela esquerda, a fila de trânsito no sentido Norte-Sul que circulava em marcha lenta.
Não vemos assim que a questão da culpa levantada nas alegações da Apelação e, aliás, transcrita no Acórdão recorrido, tenha ficado prejudicada em face da decisão sobre as questões citadas, como entendeu o Tribunal da Relação.
Nem tão pouco a expressão « no mais mantendo-se a decisão recorrida» se mostra suficiente para a boa decisão de tão melindrosa quão relevante questão que foi submetida à apreciação da Relação em sede do recurso de Apelação.
Esta questão carece de ser decidida em face da alteração da matéria de facto e porque será em função da mesma que se processará o apuramento do quantum indemnizatório eventualmente a pagar, designadamente se houver lugar à concorrência de culpas com a inerente graduação.
Dado que o apuramento do suporte factual necessário para tanto, designadamente as ilações a extrair dos factos provados compete às Instâncias, impõe-se revogar a decisão recorrida na parte em que considerou prejudicada a questão relativa à culpa que havia sido levantada na Apelação e, logicamente, da parte decisória e ordenar a baixa dos autos ao Tribunal da Relação, para a apreciação e decisão da mesma.


DECISÃO

Face a tudo quanto exposto fica, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em conceder parcialmente a Revista, revogar a decisão recorrida na parte em que considerou prejudicada a questão relativa à culpa que havia sido levantada na Apelação e, consequentemente, a parte decisória, e ordenar a baixa dos autos ao Tribunal da Relação, para a apreciação e decisão da mesma nos termos supra mencionados.

Custas pela parte vencida a final.

Processado e revisto pelo Relator.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 17 de Novembro de 2011

Álvaro Rodrigues (Relator)
Fernando Bento
João Trindade