ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
100/11.1YFLSB.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/09/2011
SECÇÃO 3.ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL ESCUSA/ RECUSA
DECISÃO IMPROCEDÊNCIA/ NÃO DECRETAMENTO
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR RAÚL BORGES

DESCRITORES ESCUSA
JUIZ
IMPARCIALIDADE
ISENÇÃO

SUMÁRIO I -O juiz que irá intervir em determinado processo penal é aquele que resultar da aplicação de normas gerais e abstractas contidas nas leis processuais e de organização judiciária sobre a repartição da competência entre os vários tribunais e a respectiva composição. Tal juiz só pode ser afastado se a sua intervenção no processo for susceptível de colocar seriamente em causa esses valores da imparcialidade e isenção. Os modos de assegurar essa garantia estão previstos nos arts. 39.º a 47.º do CPP.

II - De acordo com o art. 43.º do CPP, embora o juiz não possa declarar-se voluntariamente suspeito, pode, porém, pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições aí previstas: a intervenção do juiz no processo correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.

III - A isenção, a independência, o distanciamento em relação à causa concreta submetida a juízo, a equidistância sobre o litígio a resolver, de forma a permitir a decisão justa, são os objectivos a salvaguardar.

IV- Os motivos sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, hão-de resultar de objectiva justificação, avaliando-se as circunstâncias invocadas pelo requerente, não pelo convencimento subjectivo deste, mas pela valoração objectiva das mesmas circunstâncias a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgador.

V - No caso presente – em que o requerente apenas invoca escrever no jornal onde a arguida desempenha funções, alegando ser amigo do director do jornal e de jornalistas, mas a própria sequência do texto apresentado não permite incluir a senhora jornalista no lote de pessoas que serão amigas do requerente –, não existe proximidade pessoal ou de estrita confiança com a interessada na decisão que possa fundar dúvida séria sobre a equidistância do requerente, não sendo afectada a sua independência vocacional, pelo que não ocorre legítimo fundamento para a escusa.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL


No processo comum singular n.º 2234/04.0TASXL.L1, em que é recorrente AA, jornalista, vem BB, Juiz Desembargador em exercício no Tribunal da Relação de Lisboa, 3.ª Secção, deduzir ao abrigo do disposto no artigo 43.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, o presente incidente de escusa nos referidos autos, alegando:
“Escreve semanalmente uma crónica no Jornal CC, o que acontece por ter sido convidado para o efeito pela direcção do Jornal.
É amigo do director do órgão de comunicação social, Dr. DD bem como de muitos dos jornalistas que aí exercem funções.
No processo é recorrente a jornalista AA.
É expectável em termos públicos o risco de, a manter-se como Relator nos autos vir a ser considerada suspeita a sua intervenção, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.”

Cumpre apreciar e decidir.

Factos a considerar

No processo comum singular n.º 2234/04.0TASXL, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca do Seixal, por sentença de 1-10-2009, foi AA condenada, pela prática de um crime de desobediência, p. p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, por referência ao artigo 88.º, n.º 2, alínea a), do CPP, na pena de 40 dias de multa, à taxa diária de € 10,00, no montante global de € 400,00.
Desta sentença foi interposto recurso pela arguida para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo o processo sido distribuído ao exponente, com o n.º 100/11.7 TDLSBL1, e que motivou o presente pedido de escusa.
A arguida é jornalista há cerca de 20 anos; à data da prática dos factos encontrava-se afecta, dentro do Jornal “CC", aos artigos jornalísticos relacionados com a área da justiça - factos 12 e 13 da factualidade provada.

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A Constituição consagra no artigo 32.º, n.º 9 (Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior), como uma das garantias do processo penal, o princípio do juiz natural ou legal, cujo alcance é o de proibir a designação arbitrária de um juiz ou tribunal para decidir um caso submetido a juízo, em ordem a assegurar uma decisão imparcial e isenta.
O juiz que irá intervir em determinado processo penal é aquele que resultar da aplicação de normas gerais e abstractas contidas nas leis processuais e de organização judiciária sobre a repartição da competência entre os vários tribunais e a respectiva composição.
Tal juiz só pode ser afastado se a sua intervenção no processo for susceptível de colocar seriamente em causa esses valores da imparcialidade e isenção.
Os modos de assegurar essa garantia estão previstos nos artigos 39.º a 47.º do CPP.
Dispõe o artigo 43.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que «a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade».
Embora o juiz não possa declarar-se voluntariamente suspeito, pode, porém, pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem aquelas condições (n.º 4 do preceito).
Esta disposição prevê um regime que tem como primeira finalidade prevenir e excluir as situações em que possa ser colocada em dúvida a imparcialidade do juiz; como os impedimentos, tem uma função de garantia da imparcialidade, expressamente referida na epígrafe (Das garantias da imparcialidade) do Capítulo VI do Livro II (Da competência e das garantias de imparcialidade) - artigos 122.º a 136.º do Código de Processo Civil.
A escusa constitui um dos instrumentos reactivos, uma das vias para atacar a suspeição.
Há suspeição quando, face às circunstâncias do caso concreto, for de supor que existe um motivo sério e grave susceptível de gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz se este vier a intervir no processo.
A escusa será assim um dos modos processuais, uma das cautelas legais, que rodeiam o desempenho do cargo de juiz, destinadas a garantir a imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.
A imparcialidade e isenção constituem dois princípios com prestígio constitucional, incluídos nas garantias de defesa - artigo 32.º, n.º 1, da CRP
A isenção, a independência, o distanciamento em relação à causa concreta submetida a juízo, a equidistância sobre o litígio a resolver, de forma a permitir a decisão justa, são os objectivos a salvaguardar.
Como referiu o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 135/88, de 16 de Junho de 1988, proferido o processo n.º 137/87-2.ª, in DR, II Série, n.º 208, de 08-09-1988 e BMJ n.º 378, pág. 176, o direito a um julgamento independente e imparcial e, mais do que isso, a garantia pública dessa independência e imparcialidade não são, claro, dimensões menores do princípio das garantias de defesa que o processo penal do Estado de direito tem que assegurar”.
Salientava ainda o acórdão que “(...) é necessário, além do mais, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição”.
Como escreve Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, edição Verbo, 1996, pág. 199, “A organização judiciária está estruturada na busca da independência dos juízes e tutela do direito de defesa em ordem a assegurar as máximas garantias de objectiva imparcialidade da jurisdição”.
“(…) quando a imparcialidade da jurisdição possa ser posta em causa, em razão da ligação do juiz com o processo ou porque nele já teve intervenção noutra qualidade ou porque tem qualquer relação com os intervenientes, que faça legitimamente suspeitar da sua imparcialidade, há necessidade de o afastar do processo”.
“O CPP/87 utilizou técnica diferente da do CPP/29, mas as relações que neste constituíam motivo de suspeição continuam naturalmente a ser motivos, sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.”, ibidem, pág. 203.
Constituem fundamento de escusa que: a sua intervenção no processo corra risco de ser considerada suspeita; por se verificar motivo sério e grave; adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Se não for contestada a imparcialidade pessoal dos juízes nem indicados com precisão factos verificáveis que autorizem a dela suspeitar, não é caso de pedido de escusa ou de recusa, pois que “a imparcialidade do tribunal é uma exigência que resulta da Constituição da República e o direito a que uma causa seja decidida por um tribunal imparcial está expressamente consagrado na Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigo 6.º § 1.º)” - acórdão do S.T.J. de 6-11-1996, processo n.º 45037, in CJSTJ, 1996, tomo 3, pág. 187.
Como se assinala no mesmo acórdão, tem sido uma constante da jurisprudência do TEDH, que a imparcialidade deve apreciar-se segundo critérios subjectivos e objectivos. No primeiro caso, a questão circunscreve-se a saber se a convicção pessoal do julgador, em dada ocasião, oferece garantias suficientes para excluir qualquer dúvida legítima; no segundo e independentemente da atitude pessoal do juiz, certos factos verificáveis autorizam a suspeitar da sua imparcialidade e embora nesta matéria as aparências possam revestir-se de alguma importância o elemento determinante consiste em saber se a apreensão do interessado podem considerar-se objectivamente justificadas
No âmbito da jurisdição penal, o legislador, escrupuloso no respeito pelos direitos dos arguidos, consagrou como princípio sagrado e inalienável o do juiz natural - pressupõe tal princípio que intervirá na causa o juiz que o deva ser segundo as regras de competência legalmente estabelecidas para o efeito. O mesmo princípio só é de remover em situações-limite, ou seja, unicamente e apenas quando outros princípios ou regras, porventura de maior dignidade, o ponham em causa, como sucede por exemplo, quando o juiz natural não oferece garantias de imparcialidade e isenção no exercício do seu munus – acórdão do STJ, de 5 de Abril de 2000, processo n.º 156/00-3.ª, CJSTJ 2000, tomo 1, pág. 244.
É consensual a solução de que apenas se deverá abrir mão da regra do juiz natural quando se verifiquem circunstâncias bem definidas muito rígidas e bem definidas, tidas por sérias e graves, irrefutavelmente denunciadoras de que o juiz natural deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção, referido acórdão de 05-04-2000, de 19-02-2004, processo n.º 496/04-5.ª e de 11-11-2010, processo n.º 49/00.3JABRG.G1, onde se refere que para afastar o juiz natural não e suficiente um qualquer motivo que alguém possa considerar como gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz. É preciso que o motivo seja sério e grave, pois, repete-se, o juiz natural só pode ser arredado se isso for exigido pela salvaguarda dos valores que a sua consagração visou garantir: imparcialidade e isenção.
Como refere o acórdão de 6-07-2005, processo n.º 2540/05-3.ª, CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 236, “as aparências são inteiramente de considerar, sem riscos devastadores ou de compreensão maximalista, quando o motivo invocado possa, em juízo de razoabilidade, ser considerado fortemente consistente («sério» e « grave») para impor a prevenção.
Os motivos que podem afectar a garantia da imparcialidade objectiva, que mais do que do juiz e do «ser» relevam do «parecer», têm de se apresentar, nos termos da lei, «sérios» e «graves». As noções, com a carga de relevância que lhes está inerente, supõem que não basta um qualquer motivo que impressione subjectivamente o destinatário da decisão relativamente ao risco da existência de algum prejuízo ou preconceito que possa ser tomado contra si, mas antes, que o motivo invocado tem de ser de tal modo relevante que, objectivamente, pelo lado não apenas do destinatário da decisão, mas também de um homem médio, possa ser entendido como susceptível de afectar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder ser visto externamente («podendo ser acusado de menos rigor, de inexistente ou frouxo distanciamento na querela a solucionar» na expressão do pedido) como susceptível de afectar (gerar desconfiança) a imparcialidade.
O motivo «sério» e «grave», por regra, deve surgir e revelar-se numa determinada situação concreta e individualizada, pois é aí que se manifestam os elementos, processuais ou pessoais, que podem fazer nascer dúvidas sobre a imparcialidade e que têm, por isso, de ser apreciados nessas (nas suas próprias) circunstâncias”.
Como se assinala no acórdão de 20-10-2010, processo n.º 140/10.8YFLSB-3.ª, estamos em face de circunstâncias específicas que contêm potencialidade para colidir com o comportamento isento e independente do julgador, colocando em causa a sua imparcialidade, bem como a desconfiança dos interessados e da comunidade, na presença de uma razão séria e grave da qual resulte inequivocamente um estado de forte verosimilhança (desconfiança) sobre a imparcialidade do juiz (propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro.

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Para o efeito de apresentação do pedido de escusa, o que importa é determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado, deixe de ser imparcial e, injustamente o prejudique.
Os motivos sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, hão-de pois resultar de objectiva justificação, avaliando-se as circunstâncias invocadas pelo requerente, não pelo convencimento subjectivo deste, mas pela valoração objectiva das mesmas circunstâncias a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgador.
No caso presente a intervenção do Senhor Desembargador não é adequada a gerar a ideia de um qualquer comprometimento com qualquer pré-juizo acerca do thema decidendum, não havendo que temer por uma falta de imparcialidade.
Não assinala um único facto concreto que constitua motivo de especial gravidade e que possa gerar desconfiança sobre a imparcialidade, que possa suscitar a ideia de um relacionamento que possa condicionar o exercício de funções.
Apenas escreve no jornal onde a arguida desempenha funções.
Alega ser amigo do director do jornal e de jornalistas, mas a própria sequência do texto apresentado não permite incluir a senhora jornalista no lote das pessoas que serão amigas do requerente.
O circunstancialismo invocado para a escusa, com os contornos descritos, não permite afirmar que o Senhor Desembargador não seja Magistrado idóneo para intervir nos autos, idoneidade e imparcialidade de resto bem demonstradas no facto de ter requerido a escusa, assim prestigiando a justiça e dignificando a confiança que os cidadãos nela depositam.
Como se salientou no Acórdão deste Supremo de 17-05-2007, processo n.º 1612/07 -5.ª Secção, o CPP admite a escusa por parte do juiz titular do processo quando exista «o risco de [a sua intervenção] ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade» (art. 43.º, n.ºs 1 e 4).
Ora, perante os factos invocados como fundamento da escusa requerida, não é de admitir a susceptibilidade, do ponto de vista do cidadão médio da comunidade onde se insere o julgador, face à motivação apresentada, de ocorrer desconfiança sobre a imparcialidade do Exmo. Juiz Requerente.
No caso presente não se colocam factos integradores de motivo sério e grave para por em causa a rigorosa equidistância e a completa liberdade mental do juiz para se pronunciar merito causae.
No caso exposto não existe proximidade pessoal ou de estrita confiança com a interessada na decisão que possa fundar dúvida séria sobre a equidistância do requerente, não sendo afectada a sua independência vocacional.
Não ocorre, pois, no caso concreto, legítimo fundamento para a escusa requerida.

Decisão

Pelo exposto, acordam nesta 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a escusa requerida.
Sem custas.
Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do CPP.
Lisboa, 9 de Novembro de 2011

Raul Borges (relator)

Henriques Gaspar