ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
956/07.2TBVCT.G1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 04/07/2011
SECÇÃO 6ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO NEGADA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR FONSECA RAMOS

DESCRITORES POSSE
POSSE TITULADA
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
USUCAPIÃO
CONTRATO NULO
ACESSÃO DA POSSE
POSSE HOMOGÉNEA
ÁREA TEMÁTICA DIREITO CIVIL - DIREITOS REAIS - POSSE
LEGISLAÇÃO NACIONAL CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 303.º, 323.º, Nº1, 410.º, Nº2, 1251.º, 1252.º, Nº2, 1253.º, 1256.º, 1257.º, 1258.º, Nº1, 1259.º, 1260.º, NºS1 E 2, 1261.º, 1262.º, 1263.º, Nº1, A), 1287.º, 1292.º, 1296.º
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 646.º, Nº4, 664.º.
JURISPRUDÊNCIA NACIONAL ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, DE 14.12.1994, IN CJSTJ, 1994, III, 183;
DE 9.10.2003, IN WWW.DGSI.PT , PROC. 03B1415 .


SUMÁRIO I) – A posse conducente a usucapião tem de ser pública e pacífica, influindo as características de boa ou má-fé, justo título e registo de mera posse na determinação do prazo para que possa produzir efeitos jurídicos.

II) – Se o acto translativo da coisa imóvel é nulo por vício de forma, a posse que daí deriva não é titulada. Não é, assim, titulada a posse que assenta num contrato promessa de compra e venda de uma fracção autónoma não reduzido a escrito, nem a que se funda em contrato de compra e venda celebrado verbalmente.

III) – A acessão na posse pressupõe, além de uma posse homogénea e sucessiva, um acto translativo que seja formalmente válido.

IV) – No domínio dos direitos reais vigora o princípio da especialidade, segundo o qual o direito real só se constitui sobre coisas que tenham autonomia em relação a outras coisas corpóreas.

V) - A posse eventualmente conducente à aquisição de uma fracção autónoma por usucapião apenas releva quando exercida tendo por objecto essa fracção; para esse efeito é inócua a posse dos precedentes titulares do direito de propriedade do solo onde o imóvel foi construído e onde se localiza a fracção após a constituição da propriedade horizontal, tais posses, não sendo homogéneas, não pode em relação a elas ser invocada a acessão de posses do dono do solo e do alegado dono da fracção autónoma.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL

1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA intentou, em 9.3.2007, pelo Tribunal Judicial de Viana do Castelo – 4º Juízo Cível – acção declarativa de condenação, sob a forma ordinária, contra:

BB; e,

H...-Construções, Lda.

Formulou os seguintes pedidos.

a) - Condenar-se o 1° Réu a reconhecer que o casal, formado por ele e pela Autora, compraram à 2ª Ré a fracção autónoma identificada no art. 6º desta Petição.

b) - Condenar-se o 1° Réu a reconhecer que pagaram à 2ª Ré a totalidade do preço de 8.000.000$00/39.903,83 € e que esta deu a quitação total desse pagamento.

c) - Condenar-se o 1° Réu a reconhecer que tal fracção “O” pertence ao património comum do casal, formado por ele e pela Autora, por ter sido por eles comprada e integralmente paga, e por a terem adquirido por usucapião, tudo da forma acima alegada.

d) - Condenar-se a 2ª Ré a reconhecer que o casal, formado pelo 2º Réu e pela Autora, lhe compraram a fracção autónoma identificada no art. 6º desta Petição.

e) - Condenar-se a 2ª Ré a reconhecer que a Autora e o 2º Réu lhe pagaram o preço de 8.000.000$00/ 39.903,83 € e que lhes deu quitação desse pagamento.

f) - Condenar-se a 2ª Ré a reconhecer que tal fracção “O” pertence ao casal, formado pela Autora e pelo 2° Réu, por ter sido por eles comprada e integralmente paga e por a terem adquirido por usucapião, tudo da forma acima alegada.

g) - Condenar-se os Réus a absterem-se de praticar quaisquer actos que, de qualquer forma, perturbem o domínio e posse que a Autora e o 1° Réu têm sobre tal fracção “O”, designadamente a outorga de qualquer escritura de alienação, por parte da 2ª Ré, da dita fracção “O”, a favor de terceiro.”

Invoca, para tanto e em síntese, que sendo casada com o 1º Réu, adquiriram ambos, em 1991, na pendência do casamento, a fracção identificada, à 2ª Ré, tendo pago integralmente o preço acordado de 8.000.000$00 (€ 39.903,83), relegando para mais tarde a realização da respectiva escritura pública.

Afirma, ainda, que, a partir do Verão de 1992, a Autora e o 1º Réu passaram a utilizar a dita fracção como coisa sua, mobilando-a, habitando-a em férias e fins-de-semana e suportando todas as despesas inerentes, estando por si e antepossuidores no domínio da mesma há mais de 30 anos.

Mais refere que tendo ocorrido a separação do casal e estando em curso a respectiva acção de divórcio litigioso por si instaurada, os RR. concertaram-se entre si de modo a proceder à alienação da fracção que se encontra registada em nome da 2ª Ré, e por forma a que o respectivo valor reverta em exclusivo para o 1º Réu com prejuízo para a Autora.

Contestou o 1º Réu, alegando, em resumo, que a fracção pertence à Ré Sociedade com quem o 1º Réu mantém negócios há vários anos, prometendo adquirir e permutando imóveis para obter lucro e que, em qualquer caso, os bens e valores entregues à 2ª Ré, no âmbito do acordo respeitante à fracção, eram bens próprios seus e não do casal.

Refere, ainda, que sempre a fracção foi usada pelo casal em nome da 2ª Ré que era quem pagava a contribuição autárquica e o IMI correspondentes, e que em 20.6.06 os RR. puseram termo ao acordo celebrado quanto à dita fracção, recebendo o 1º Réu da 2ª Ré o montante de € 39.900,00 depois de deduzidas as despesas de IMI e condomínio suportadas pela Sociedade.

Afirma, por outro lado, que a mesma fracção foi já, entretanto, vendida pela 2ª Ré a um terceiro.

Concluiu pela improcedência da acção.

A 2ª Ré, na contestação apresentada sustenta posição idêntica, explicando detalhadamente o negócio celebrado entre os RR. com relação à fracção dos autos e afirmando que o 1º Réu, que a contestante julgava divorciado, apenas passou a ocupar o apartamento a título de favor.

Mais refere que, em Junho de 2006, a pedido daquele 1º Réu e por este necessitar de dinheiro para realizar uma intervenção cirúrgica, puseram ambos termo ao contrato promessa que haviam outorgado com relação a essa fracção, devolvendo a 2ª Ré ao 1º Réu o montante que recebera, acrescido de alguma mais-valia.

Conclui dizendo que, entretanto e no âmbito da sua actividade, vendeu já a referida fracção a um terceiro, celebrando a respectiva escritura pública em 21.2.07 (antes da instauração da acção).

A Autora apresentou réplica, concluindo como na petição inicial, pedindo a condenação de ambos os RR. como litigantes de má fé.

A 2ª Ré treplicou.

Teve lugar audiência preliminar, procedendo-se à elaboração do despacho saneador com selecção da matéria de facto, e realizou-se a audiência de discussão e julgamento.
***

Foi proferida sentença que, julgando a acção totalmente procedente, decidiu pela forma seguinte:

“1- Condeno o réu BB:

a) A Reconhecer que o casal, formado por si e pela autora, compraram à segunda ré H... a fracção autónoma que “Está inscrito na matriz sob o art. 1944º e descrito na CRP de ... sob o n° 200-O prédio “Fracção autónoma, designada pela letra O, Tipo T3, correspondente ao 5° andar esquerdo, com um lugar na cave, uma varanda e uma floreira, sito na freguesia de ...” – cfr. doc. de fls. 9 a 16.

b) A Reconhecer que pagaram à ré H... a totalidade do preço da referida fracção de € 39.903,83 e que esta deu a quitação total desse pagamento.

c) A Reconhecer que a fracção identificada em a) pertence ao património comum do casal, formado por si e pela autora, por ter sido por eles comprado e integralmente paga, e por a terem adquirido por usucapião.

2- Condeno a ré H... – Construções, Lda.:

a) A Reconhecer que o casal, formado pelo primeiro réu e pela autora, lhe compraram a fracção autónoma que “Está inscrita na matriz sob o art. 1944º e descrito na CRP de ... sob o n° 200 – O prédio «Fracção autónoma, designada pela letra O, Tipo T3, correspondente ao 5° andar esquerdo, com um lugar na cave, uma varanda e uma floreira, sito na freguesia de Chafé-Praia da Amorosa,”

b) A Reconhecer que o primeiro réu e a autora lhe pagaram a totalidade do preço da referida fracção de € 39.903,83 e que esta ré deu a quitação total desse pagamento.

c) A Reconhecer que a fracção identificada em a) pertence ao património comum do casal, formado pelo primeiro réu e pela autora, por ter sido por eles comprado e integralmente paga, e por a terem adquirido por usucapião.

3- Condeno ainda ambos os réus:

A absterem-se de praticar quaisquer actos que, de qualquer forma, perturbem o domínio e posse que a autora e o primeiro réu têm sobre tal fracção, designadamente a outorga de escritura de alienação, por parte da segunda ré, da dita fracção, a favor de terceiro.
[…].”
***

Inconformados, os RR. interpuseram recurso, para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, por Acórdão de 22.6.2010 – fls. 437 a 455 –, julgou parcialmente procedente a apelação, e, em consequência, revogou a sentença recorrida, condenando apenas os RR. a reconhecerem que a Autora, AA, e o 1º Réu BB, entregaram à Ré “H...-Construções, Lda.”, o valor de € 39.903,83 que fora o acordado como preço global devido pela aquisição, pelos primeiros à segunda, da fracção autónoma, designada pela letra “O”, correspondente ao 5° andar esquerdo, com um lugar na cave, uma varanda e uma floreira, sita na freguesia de ....

***

Inconformada, a Autora recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

A) - Autora e o Réu BB, no ano de 1991, entregaram à 2ª Ré “H...-Construções, Lda.”, um apartamento então avaliado em 6.000.000$00 e 2.000.000$00 em numerário para a compra da dita fracção “O”.

B) - Autora e o Réu BB e a “H..., Lda.” acordaram que o preço era de 8.000.000$00 – € 139.903, 83.

C) - Tal preço foi integralmente pago pelo casal, constituído pela Autora e 1° Réu à 2ª Ré, a qual deu a devida quitação.

D) - Ficou acordado que a escritura definitiva de compra e venda se faria posteriormente.

E) - A Autora e o 1° Réu passaram a ocupar a fracção referida em O) no Verão do ano de 1992, mobilando-o com mobílias de vários tipos e estilos, habitando-o durante as férias de Verão e no resto do ano, ali recebendo visitas de amigos e de familiares, permitindo que os filhos do casal ali façam festas com amigos seus, emprestando a dita fracção a amigos ou a familiares, pagando mensalmente as despesas inerentes à sua utilização, como seja, a água, a luz, participando nas reuniões/Assembleias de Condóminos, recebendo as cartas contendo as cópias dessas reuniões, pagando as despesas de condomínio.

F) - Autora e o 1° Réu e antecessores, usam, primeiro o terreno onde foi edificado o prédio, em regime de propriedade horizontal e depois a fracção “O” há mais de 30 anos, à vista e com o conhecimento de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de quem quer que seja, agindo como seus donos e na convicção de o serem.

G) - O domínio e a posse da fracção “O” foram transmitidos pelo anterior dono e legítimo proprietário, ou seja, a 2ª Ré.

H) - O domínio e a posse da Autora e do Réu BB sobre a fracção “ O”, foram-lhe transmitidas pela 2ª Ré, legítima dona e possuidora do imóvel.
I) - A posse alegada pela Autora — que abrangia a sua, do 1° Réu BB e do antepossuidor, 2ª Ré — não só não foi contestada, questionada ou ilidida pelos réus, como foi dada por provada pela Tribunal de 1ª Instância.

J) - Faltando título – como é o caso dos autos – é a própria lei que presume que o possuidor, o que exerce poder de facto, possui em nome próprio — n°2 do art. 1252º do Código Civil.

L) - O ponto de partida para a usucapião não é o contrato promessa — forma indevida de adquirir — mas a usucapião com base na posse.

M) - No caso dos autos – nenhuma dúvida existe – a posse é de boa fé, contínua e homogénea.

N) - A 2ª Ré, H..., Lda., era possuidora, de boa fé, da fracção “O”.

O) - Ao transmitir a sua posse – de boa fé – para a Autora e para o 1º Réu deixou de o ser (possuidor).

P) - Nenhuma dúvida existe sobre a posse da Autora e do 1º Réu;

Q) - Não tendo sido questionada, nem ilidida, a posse da Autora e do lº Réu, decorrente do poder de facto:

1.- Presume-se como exercida por ambos, desde sempre – nº2 do art. 1.252° do Código Civil.

2. - Sendo da mesma natureza da posse anterior, ou seja, de boa fé, não está sujeita aos limites do n°2 do art. 1.256° do Cód. Civil.

R) - A sentença recorrida ao revogar parcialmente no Acórdão de 1ª Instância violou por isso, o disposto nos arts. 1.251°, 1.252°, 1256°, 1.287°, do Código Civil e art. 659° do Código de Processo Civil.

Termos em que deve revogar-se a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, na parte em que revogou o Acórdão de 1ª Instância, confirmando esta decisão.

Os RR. contra-alegaram, pugnando pela confirmação do Acórdão.

***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:


Dos Factos assentes:

A) Autora e Réu casaram, no regime da comunhão de adquiridos, no dia 12 de Abril de 1987 – cfr. doc. de fls. 152.

B) Corre termos no 1º Juízo Cível da comarca de Vila Nova de Famalicão — Proc. n° 3.326/06.6 TJVNF, uma acção de divórcio litigioso, instaurada pela Autora, em 13 de Novembro do passado ano de 2006 – cfr. doc. de fls. 154 e seguintes.

C) Numa acção de contrato de trabalho instaurada pela Autora, que com o nº 838/06.5, correu termos pelo 2° Juízo do Tribunal de Trabalho de Braga, foi o 1º Réu condenado a pagar à Autora a quantia de € 66.782,09 – cfr. doc. de fls. 165 e seguintes.

D) Está inscrito na matriz sob o art. 1944º e descrito na CRP de ... sob o n° 200-O prédio “Fracção autónoma, designada pela letra O, Tipo T3, correspondente ao 5° andar esquerdo, com um lugar na cave, uma varanda e uma floreira, sito na freguesia de ...” – cfr. doc. de fls. 9 a 16.

E) O prédio urbano, constituído em regime de propriedade horizontal, de que a identificada fracção “O” faz parte, foi construído numa parcela de terreno, designada por Lote n° 264 do Loteamento para que foi concedido pela Câmara Municipal de Viana do Castelo o alvará n° 766/86 de 2 de Dezembro, que a 2ª Ré comprou a “S... - Sociedade de Empreendimentos e Urbanizações, Limitada”, por escritura pública de compra e venda, lavrada no dia 11 de Novembro de 1987, a fls. 4 a 6, do livro de notas n° 334-C, do arquivo de 2° Cartório Notarial de Braga - cfr. doc. de fls. 19 a 23.

F) Por escritura celebrada em 23.09.1987 CC declarou vender a DD, que declarou comprar, o prédio fracção H) sito em Braga – cfr.doc. de fls. 48 a 56.

G) Por escritura de compra e venda celebrada em 15.11.1988 CC declarou vender a EE, que declarou comprar, a fracção M) para habitação e a fracção C sitas em Braga – cfr. doc. de fls. 58 a 61 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

H) Por escritura celebrada em 21.02.2007, CC, em representação da “H... – Construções, Lda”, declarou vender a FF, que declarou comprar, pelo preço de setenta mil euros, a fracção “O”, inscrita na matriz sob o art. 1944º – cfr. doc. de fls. 71 a 73 e cujo teor se dá por reproduzido.

Da Base instrutória:

1º- Autora e Réu, no ano de 1991, entregaram à 2ª Ré “H...-Construções, Limitada”, um apartamento então avaliado em 6.000.000$00 e 2.000.000$00 em numerário para a compra do apartamento referido em D).

2º- Autora, o Réu e a 2ª Ré acordaram que o preço era de 8.000.000$00/€ 39.903,83.

3º- Tal preço foi integralmente pago pelo casal, constituído pela Autora e 1° Réu à 2ª Ré, a qual deu a devida quitação.

4º- Ficou acordado que a escritura definitiva de compra e venda se faria posteriormente.

5º- A escritura definitiva de compra e venda encontra-se, actualmente, por outorgar.

6º- A Autora e o 1° Réu passaram a ocupar a fracção referida em D) no Verão do ano de 1992.

7º- Mobilando-o com mobílias de vários tipos e estilos.

8º- Habitando-o durante as férias de Verão e no resto do ano, aos fins-de-semana.

9º- Ali recebendo visitas de amigos e de familiares.

10º- Permitindo que os filhos do casal ali façam festas com amigos seus.

11º- Emprestando a dita fracção a amigos ou a familiares.

12º- Pagando mensalmente as despesas inerentes à sua utilização, como seja, a água, a luz, participando nas reuniões Assembleias de Condóminos, recebendo as cartas contendo as cópias dessas reuniões, pagando as despesas de condomínio.

13º- Autora e o 1° Réu e antecessores, usam, primeiro o terreno onde foi edificado o prédio, em regime de propriedade horizontal e depois a fracção “O” há mais de 30 anos.

14º- Ininterruptamente.

15º- À vista e com conhecimento de toda a gente.

16º- Sem oposição de quem quer que seja.

17º- Agindo como seus donos e na convicção de o serem.

19º- O 1º Réu, através da empresa imobiliária “F...& A...-Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda.”, com sede nesta cidade, mandou pôr à venda a fracção referida em D).

20º- A imobiliária, nas visitas que promove com vista à venda, anuncia que o preço de venda é de 19.500 contos, mobiliário incluído.

21º- O sócio gerente da 2ª Ré, CC, dedica-se à actividade da construção civil.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se a Autora e o 1º Réu adquiriram por usucapião a fracção autónoma predial identificada nos autos.

A recorrente pretende a repristinação in totum do sentenciado na 1ª Instância onde, quanto ao aspecto crucial agora em causa, se considerou que a Autora e 1º Réu seu marido, tinham celebrado um contrato de compra e venda relativamente à fracção autónoma identificada na matéria de facto, e ainda que a adquiriram por usucapião.
Na decisão da 1ª Instância considerou-se que os factos provados 6º a 16º revelam uma posse em nome próprio, concluindo-se:

“A autora logrou provar, como lhe competia, segundo a incidência do ónus da prova (cfr. art. 342º, nº1 do Código Civil) que, aqueles actos materiais, encarados na sua globalidade, foram praticados por si com a intenção de agir como titular de um direito de proprietária, ou seja, com animus de exercer em seu nome o referido direito.
E, note-se que, a qualificação de uma situação como de posse em nome próprio, não implica, nem exige a existência ou invocação de um título aquisitivo do direito real em termos do qual é exercida, bastando a intenção de domínio que constitui o animus, o qual, não existindo, impede a qualificação da Autora como possuidora do direito que invocam.
A autora fez, com toda a sua plenitude, tal prova. Consequentemente assiste-lhe o direito a ver restituída desde logo e de forma definitiva a posse de tal fracção, nos moldes em que a peticiona.
De igual modo lhe assiste o direito a ver condenados os réus a abster-se da prática de qualquer acto de ocupação exclusiva da referida fracção de molde a impedir seu domínio ou posse…”.

A Relação considerou que, entre a Autora o 1º Réu e a 2ª Ré, foi celebrado um contrato promessa de compra e venda, tendo por objecto mediato a fracção predial, mas que nunca foi celebrado o contrato prometido, tendo havido traditio para a Autora e seu marido; depois, tratou de analisar se a posse que exerceram poderia conduzir à aquisição pela via originária da usucapião, concluindo negativamente.

As instâncias desconsideraram, assim, que a Autora alegou, primordialmente, que conjuntamente com o seu marido comprou à 1ª Ré a fracção predial, tendo o preço sido pago integralmente, através da entrega de um imóvel de que eram donos, mais uma quantia em dinheiro.

Mais alegou a Autora que a escritura seria celebrada ulteriormente, mas que nunca o foi, não obstante, a partir de 1992, ter ela e o marido passado a deter o imóvel e a exercer actos de posse com o consentimento da 2ª Ré, alegadamente vendedora.

Portanto, a causa de pedir invocada de natureza complexa, fundou-se na aquisição derivada – contrato de compra e venda – e originária – usucapião.

Apesar da Autora jamais ter aludido à celebração de contrato-promessa de compra e venda, a Relação considerou que foi esse o contrato celebrado – sem qualquer formalidade – ao passo que a 1ª Instância nenhuma alusão fez a qualquer tipo contratual (1) – compra e venda ou contrato-promessa de compra e venda – apenas concluindo, como concluiu (omitindo nos pedidos que a Autora formulara qualquer referência à usucapião), que todos deviam proceder tendo em conta os actos de posse exercidos pela Autora.

Ora, se se considerar que o que está em causa é um contrato de compra e venda de um imóvel – como a Autora sempre afirmou – teria que ser decretada a respectiva nulidade por não observância do formalismo legal – arts. 219º, 220º, 874º, 875º, 286º e 289º do Código Civil.

A assim, se considerar, a nulidade por falta de forma deveria ter sido conhecida oficiosamente, e, por via da destruição retroactiva do contrato de compra e venda, as partes seriam restituídas ao “statu quo ante”.

No recurso, a recorrente não questiona a qualificação jurídica que a Relação fez, ou seja, aceita que foi celebrado um contrato-promessa de compra e venda. Sempre se dirá que, tendo em conta o princípio da equiparação e excepções previstas no art. 410º, nºs 1 e 2, do Código Civil, o contrato-promessa para poder ser considerado válido teria de ser celebrado por escrito, sendo que nos autos não existe qualquer prova documental que revele a existência do tipo contratual em causa.

É tempo de dizer que o Tribunal não está vinculado à qualificação jurídica feita pelas partes, sendo livre no que respeita à indagação e aplicação da regra de direito – art. 664º do Código de Processo Civil – segundo a velha máxima “da mi factum dabo tibi jus”.

Por outro lado, a recorrente, como antes dissemos, não censura o Acórdão por ter considerado que foi celebrado um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel.

Analisando a pretensão da Autora cumpre saber se os actos de posse que exerceu sobre o imóvel são idóneos para que se possa considerar ter adquirido a fracção por usucapião.

A Autora assim considera, já que adita à sua posse os actos praticados pela 2ª Ré vendedora, em relação ao solo e ao prédio onde veio a ser implantado o imóvel e depois constituída a propriedade horizontal - fracção autónoma letra “O”.

Aceitando a qualificação da Relação, temos que concluir que, em 1991, a Autora e o seu marido (o 1º Réu) prometeram comprar e a 2ª Ré prometeu vender-lhes pelo preço de 8.000 contos integralmente pago pelo casal – vigorando o regime de comunhão de adquiridos – a fracção autónoma “O” melhor identificada nos autos.

Ficou acordado que a escritura de compra e venda se faria posteriormente.

A fracção passou a ser ocupada no Verão de 1992.

As instâncias deram como provados os seguintes factos nos quais se basearam: a 1ª Instância para considerar que a Autora e o 1º Réu adquiriram o direito de propriedade por usucapião; a 2ª Instância para recusar ter ocorrido esse modo de aquisição.

“A partir do ano de 1999, a Autora e o 1º Réu passaram a ocupar a fracção – 7º – Mobilando-o com mobílias de vários tipos e estilos. 8º – Habitando-o durante as férias de Verão e no resto do ano, aos fins-de-semana. 9º- Ali recebendo visitas de amigos e de familiares.10º – Permitindo que os filhos do casal ali façam festas com amigos seus. 11º- Emprestando a dita fracção a amigos ou a familiares. 12º- Pagando mensalmente as despesas inerentes à sua utilização, como seja, a água, a luz, participando nas reuniões/Assembleias de Condóminos, recebendo as cartas contendo as cópias dessas reuniões, pagando as despesas de condomínio.13º – Autora e o 1° Réu e antecessores, usam, primeiro o terreno onde foi edificado o prédio, em regime de propriedade horizontal e depois a fracção “O” há mais de 30 anos.14º – Ininterruptamente.15º – À vista e com conhecimento de toda a gente. 16º- Sem oposição de quem quer que seja. 17º- Agindo como seus donos e na convicção de o serem”.

A Autora pretende que adquiriu a propriedade do imóvel por usucapião, dado o tempo decorrido, antes (atendendo à posse dos antepossuidores) da “traditio”, as características da sua posse, bem como o tempo decorrido até à data da propositura da acção (9.3.2007).

O art. 1251º do Código Civil define posse como – “O poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de doutro direito real”.

O art. 1287º do citado diploma estatui – “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida opor certo lapso de tempo faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação é o que se chama usucapião”.

A posse conducente a usucapião, tem de ser pública e pacífica, influindo as características de boa ou má-fé, justo título e registo de mera posse, na determinação do prazo para que possa produzir efeitos jurídicos.

A posse, face à concepção adoptada na definição que do conceito dá o art. 1251º do Código Civil, tem de se revestir de dois elementos: o “corpus”, ou seja, a relação material com a coisa, e o “animus”, o elemento psicológico, a intenção de actuar como se o agente fosse titular do direito real correspondente, seja ele o direito de propriedade ou outro.

“A doutrina dominante (Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, III, 2.ª ed., pág.5; Mota Pinto, “Direitos Reais”, p. 189; Henrique Mesquita, “Direitos Reais”, 69 e ss; Orlando de Carvalho, RLJ, 122-65 e ss; Penha Gonçalves, “Direitos Reais”, 2ª ed., págs. 243 e ss.) sustenta que o conceito de posse, acolhido nos arts. 1251º e ss., deve ser entendido de acordo com a concepção subjectivista, analisando-se por isso numa situação jurídica que tem como ingredientes necessários o “cor­pus” e o “animus possidendi” (contra, Menezes Cordeiro, “Direitos Reais”, 1º-563 e ss; Oliveira Ascensão, “Direitos Reais”, 4ªed., págs. 42 e ss.).
O “corpus” da posse traduz-se no “poder de facto” manifestado pela actividade exercida por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (arts. 1251º e 1252.º, nº2).
Actividade que não carece, aliás, de ser sempre efectiva, pois uma vez adquirida a posse, o “corpus” permanece como que espiritualizado, enquanto o possuidor tiver a possibilidade de o exercer (art. 1257º, n.º1).
Quanto ao “animus possidendi”, a sua presença e relevância não poderão ser recusadas quando a actividade em que o “corpus” se traduz pela causa que a justifica, seja reveladora, por parte de quem a exerce, da vontade de criar em seu bene­fício, uma aparência de titularidade correspondente ao direito de propriedade ou outro direito real.” – cfr. Abílio Neto, in “Código Civil Anotado”, 15ª edição 2006, pág.1037.

Só a posse exercida em nome próprio e que revista as características de pacífica, titulada, de boa-fé e exercida durante certo lapso de tempo conduz à usucapião.

“A usucapião, que é uma forma de constituição de direitos reais e não de transmissão, baseia-se numa situação de posse – corpus e animus – exercida em nome próprio, durante os períodos estabelecidos na lei e revestindo os caracteres que a lei lhe fixa, pública, contínua, pacífica, titulada e de boa fé” – Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 14.12.1994, in CJSTJ, 1994, III, 183.

Em regra, o promitente-comprador que obteve a traditio apenas frui um direito de gozo, que exerce em nome do promitente-vendedor e por tolerância deste – é, nesta perspectiva, um detentor precário – art. 1253º do Código Civil – já que não age com animus possidendi, mas apenas com corpus possessório (relação material) – art. 1251º do Código Civil.

Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. III, 2ª ed., pág. 6, e Antunes Varela, na RLJ, Ano 124, pág. 348, sustentam:

“O contrato-promessa, só por si, não é susceptível de transferir a posse ao promitente-comprador.
Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário”.
São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse.
Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga já a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo, (a fim de v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade.
Tais actos não são realizados em nome do promitente-vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real.
O promitente-comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse”.

O Professor Antunes Varela, retomando o tema na RLJ, 128, pág. 146, escreve:

“... O promitente-comprador investido prematuramente no gozo da coisa, que lhe é concedido na pura expectativa da futura celebração do contrato prometido, não é possuidor dela, precisamente porque, sabendo ele, como ninguém, que a coisa pertence ainda ao promitente-vendedor e só lhe pertencerá a ele depois de realizado o contrato translativo prometido, não pode agir seriamente com a intenção de um titular da propriedade ou de qualquer outro direito real sobre a coisa”.

Vaz Serra, in R.L.J., Ano 109, págs. 347 e 348 ensina:

“O promitente-comprador, que toma conta do prédio e nele pratica actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade, sem que o faça por mera tolerância do promitente-vendedor, não procede com intenção de agir em nome promitente-vendedor, mas com a de agir em seu próprio nome, […] passando a conduzir-se como se a coisa fosse sua, […] julga-se já proprietário da coisa, embora não a tenha comprado, pois considera segura a futura conclusão do contrato de compra e venda prometido, donde resulta que, ao praticar na coisa, actos possessórios, o faz com animus de exercer em seu nome o direito de propriedade” – (destaque nosso)

Calvão e Silva, in “Sinal e Contrato-Promessa”, 11ª edição, pág. 231, nota 55, é de semelhante opinião:

“Não nos parece possível a priori qualificar-se de posse ou de mera detenção o poder de facto exercido pelo promitente-comprador sobre o objecto do contrato prometido entregue antecipadamente.
Tudo dependerá do animus que acompanhe o corpus”.

A propósito da usucapião refere Menezes Cordeiro:

“A usucapião em termos materiais assenta na excelência de uma posse qualificada e longa, surgindo como fonte legitimadora do domínio.
O possuidor mostrou merecer ser proprietário. Paralelamente, qualquer outro pretendente veio a colocar-se, pelo seu desinteresse, na posição inversa de não merecer mais a titularidade que, de facto, enjeitou.
Em suma: a usucapião realiza a velha aspiração histórico-social de reconhecer o domínio a quem, de facto, trabalhe os bens disponíveis e lhes dê utilidade pessoal e social". [artigo publicado na ROA, 53º (1993), pág. 38, em excerto transcrito no “Código Civil Anotado”, de Abílio Neto, pág. 893.]

Posse pública é a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados (art. 1262º); posse pacífica é a que foi adquirida sem violência (art. 1261º/1).

Dispõe o art. 1258º do Código Civil: “A posse pode ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta”.

O conceito de posse titulada consta do art. 1259º, n.º1, do Código Civil:

“Diz-se titulada a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico”.

Esclarecendo-se no n.º 2 que:

O título não se presume, devendo a sua existência ser provada por aquele que o invoca”.

Menezes Cordeiro, in “A Posse: Perspectivas Dogmáticas Actuais”, 3.ª ed., p. 91:

“O título equivale a um acto jurídico aquisitivo, abstractamente idóneo mas que, em concreto, pode ser inválido, desde que a invalidade não seja formal.
A lei afasta a hipótese do título putativo: o n.º 2 do artigo 1259 exige que o título seja provado por quem o invocar”.

Para haver posse titulada, é necessário ainda, como alerta Oliveira Ascensão, in “Direito Civil Reais”, 4.ª edição, pág. 103, que aquela posse se refira àquele título.

Miguel Ricardo Machado Oliveira, “A Posse na Doutrina e na Jurisprudência”, Porto/1981, págs. 56 e 57, a respeito da posse titulada:

Temos pois como geradores de justo título, os negócios constitutivos (aquisição originária e derivada constitutiva) e translativos (aquisição derivada translativa, quer sejam gratuitos quer onerosos, inter vivos” ou “mortis causa)”.

Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. III, pág. 18, em comentário ao art. 1259º escrevem:

“A primeira parte do nº1 dá de posse titulada o conceito que se formulava no artigo 518° do Código velho.
Para que a posse seja havida como tal, é necessário que se funde (tenha a sua causa) em qualquer modo legítimo de adquirir o direito sobre a coisa (justa causa traditionis), independentemente do direito do transmitente (aquisição a non domino), isto é, que se funde num negócio abstractamente idóneo para a transferência da propriedade ou de um direito real de fruição (…)”.

Se o acto é nulo por vício de forma, como se, por exemplo, se compra um prédio por escrito particular, ou verbalmente a posse que daí deriva não é titulada.

Oliveira Ascensão – “Direito Civil-Reais” – 5ª edição – escreve, págs. 95-96:

Título, para o direito, é o facto ou conjunto de factos de que uma situação jurídica tira a sua existência ou modo de ser. Neste sentido toda a situação jurídica tem um título: e a posse como qualquer outra.
Quando alguém se afirma possuidor, perguntar-se-lhe-á: a que título?
Terá de haver uma causa ou origem daquela posse.
A própria lei usa título nesta acepção ampla.
Assim quando se fala na inversão do título da posse, supõe-se a existência anterior de um título, muito embora este não fosse idóneo, nem mesmo em abstracto, para a transmissão de um direito real.
O art. 1256.°/1 fala também em suceder na posse «por título diverso da sucessão por morte», muito embora a sucessão não seja considerada pela doutrina um título, no sentido mais restrito desta palavra.
Mas é este sentido mais restrito, que passamos a examinar.
Imagine-se que alguém detém uma coisa porque simplesmente se apossou dela.
Temos então uma posse não titulada.
Mas muito frequentemente a posse tem na sua origem um determinado negócio jurídico, que em abstracto é idóneo para operar a transferência do direito, mesmo que em concreto não o seja, porque inválido.
Esse negócio jurídico é o título da posse; justo título, lhe chamava o Código de 1867, não porque seja um título válido em concreto (pelo contrário, na posse formal é necessariamente um título inválido) mas porque em abstracto ele seria adequado para a obtenção do efeito de direito substantivo que se pretendia.
O Código actual fala simplesmente em título e posse titulada…O art. 1259.°/1 esclarece que, nem a falta do direito do transmitente, nem a falta de validade substancial do negócio jurídico excluem o título. Temos de admitir, a contrario, que a falta de validade formal impede que se fale de título. Se se vender um prédio por escrito particular, a posse em que o comprador se constitui não é titulada”.

No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9.10.2003, in www.dgsi.pt – Proc. 03B1415 – pode ler-se:

“Diz-se titulada – art. 1259º n.º 1 do Código Civil, – a posse fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico.
Como ensina o Prof. Orlando de Carvalho (Introdução à Posse, in RLJ, ano 122º, pág. 265), o conceito de posse titulada integra dois requisitos, um positivo – a legitimação da posse através da existência de um título de aquisição do direito em termos do qual se possui – outro negativo, e que é, sendo esse título de aquisição um negócio jurídico, a não existência de vícios formais nesse mesmo negócio.
Os vícios de forma – a não observância, no titulus adquirendi negocial, de formalidades ad substantiam – determinam inequivocamente a falta de título da posse.
Idêntico entendimento vem perfilhado pelo Prof. Menezes Cordeiro, que, discordando embora da solução, de jure condendo, escreve, reportando-se ao conceito definido no art. 1259º, n.º1: o título equivale a um acto jurídico aquisitivo, abstractamente idóneo mas que, em concreto, pode ser inválido, desde que a invalidade não seja formal.
A lei afasta a hipótese do título putativo: o n.º 2 do art. 1259º exige que o título seja provado por quem o invocar […].”

Nos termos do art. 1260º, n.º1, do Código Civil:

A posse diz-se de boa fé, quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem”.

Estabelecendo o seu n.º2 que: “A posse titulada presume-se de boa fé, e a não titulada, de má fé”.

Acessão na posse é a faculdade de, mormente, para efeitos de usucapião, o possuidor juntar à sua posse a do seu antecessor – (art. 1256º, nº 1, do Código Civil).

Se a posse do antecessor for de natureza diferente da posse do sucessor, a acessão só se dará dentro dos limites daquela que tem menor âmbito (art. 1256º, nº2 do Código Civil).

Trata-se de duas posses, a anterior e a posterior, que a lei permite ao novo possuidor, se quiser, somar.

Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado, art. 1256º, vol. II, pág. 14, “é necessário que haja um verdadeiro acto translativo da posse”, ou seja, “uma verdadeira relação jurídica entre os dois antepossuidores” e “formalmente válida”.

Esta posição consagra a doutrina de Manuel Rodrigues, “A Posse”, Almedina, Coimbra, 1981, págs. 292/293, segundo a qual:

O título há-de ser real…é preciso que exista de direito, que tenha as condições formais ou substanciais, necessárias para existir.
Justus titulus non est titulus invalidus.”
Esta doutrina tem subjacente a concepção da posse como um direito real.
Compreende-se, deste modo, que “se o acto de transmissão do direito não é válido, não há transmissão do jus possidendi que aqui é a causa dos ju(ra) possession(um)”

E continua – “Um título deve considerar-se invalidus quando lhe faltar um elemento essencial porque, em qualquer caso, quando assim suceder, não é um modo legítimo de adquirir.
Daqui resulta que não há justo título sempre que, exigindo a lei uma forma solene, esta não exista.
Por exemplo, não é justo título o contrato verbal de venda de um prédio rústico, embora seja acompanhado de tradição.”

Santos Justo, in Direito Privado Romano, III, 1997, Coimbra Editora, pág. 85:

“A acessio possessionis (ou temporis): é a faculdade de o adquirente a título particular juntar à sua posse a posse do anterior possuidor, para adquirir o domínio por usucapio.
Não se trata de subentrar numa possessio única que continua, mas de conjugação de duas possessionis…Para que a accessio possessionis pudesse funcionar, a nova – como a anterior possessio devia reunir todos os requisitos indispensáveis à usucapio, principalmente a iusta causa e bona fides no seu início, pois o novo possuidor começava uma possessio nova, não sucedendo na posse do anterior possuidor”.

Volvendo à apreciação do caso, importa, desde logo, considerar, analisando o ponto 13º dos factos provados, que não se pode considerar integralmente válida a resposta.

Considerou-se aí provado – Autora e o 1ª Réu e antecessor usam primeiro terreno onde foi edificado o prédio, em regime de propriedade horizontal e depois a fracção “O” há mais de 30 anos”.

Ora, o excerto “há mais de 30 anos”, não assentando em qualquer facto objectivamente provado, constitui uma mera proposição conclusiva e não um facto em si mesmo, pelo que se tem de considerar não escrita – art. 646º, nº4º, do Código de Processo Civil.

Assim a resposta atendível é a seguinte – “Autora e o 1º Réu e antecessor usam primeiro terreno onde foi edificado o prédio, em regime de propriedade horizontal e depois a fracção “O”.

A Autora pretende que à sua posse se adite – acessão na posse, art. 1256º do Código Civil, a posse da Ré vendedora da fracção, considerando-se na sua posse os actos de posse que aquela vinha exercendo sobre o terreno primeiro, e depois sobre a fracção aí edificada, razão pela qual considera que aquele uso da fracção por si e antepossuidor há mais de 30 anos conduziu à usucapião.
Mas, com o devido respeito, não se pode considerar que haja acessão na posse nos termos pretendidos.

A posse da Autora e do 1º Réu seu marido é uma posse não titulada, quer se considere que houve um contrato de compra e venda do imóvel, quer mesmo se trate de contrato-promessa compra e venda – art. 410º do Código Civil – (quanto a este em função da excepção ao princípio da equiparação formal que não foi observado, nos termos do nº2 daquele normativo aqui aplicável).

Depois, e independente da querela sobre a qualificação da posse, um poder de facto ou um direito real de gozo, o certo é que no domínio dos direitos reais vigora o princípio da especialidade.

Menezes Leitão, in “Direitos Reais”, pág. 20 e segs., ensina – O princípio da especialidade exige que se possa individualizar concretamente a coisa que constitui objecto do direito real.
O princípio da especialidade refere-nos que, para se poder constituir um direito real, as coisas corpóreas sobre que o mesmo incide têm que se encontrar determinadas, ter existência presente, e ser autónomas de outras coisas”.

O exercício de actos reiterados sobre a coisa, art. 1263º, nº1, a) do Código Civil, que a Autora exerceu só poderiam recair sobre a fracção e não sobre o terreno onde veio a ser implantada.

Ademais, sempre seria de ponderar se as posses podem ser consideradas homogéneas, tendo também em conta o já referido princípio da especialidade e a exigência de autonomia da posse sobre a concreta coisa objecto da posse exercida.

Como ensina Manuel Rodrigues, in “A Posse-Estudo de Direito Civil Português”, a respeito da acessão na posse, pág. 252/253:

“A acessão exige que haja duas posses contínuas e homogéneas.
A posse que se pretende somar deve ser imediatamente anterior. A interpretação de qualquer outra posse impede a acessão. E devem ser homogéneas.
Assim, não pode aquele que tem posse a título precário unir à sua detenção uma posse verdadeira; nem aquele que possui a título de proprietário unir à sua posse a daquele que haja possuído apenas como usufrutuário, ou como titular de uma servidão, assim como também não pode o possuidor a título de usufruto unir a posse anterior exercida a título de propriedade […]
[…] Se o acto de transmissão do direito não é válido, não há transmissão do jus possidendi que aqui é a causa da junção dos jus possessionis, embora o negócio jurídico nulo caracterize, como se disse, a posse.”

A posse eventualmente conducente à aquisição da fracção autónoma por usucapião, apenas releva quando exercida tendo por objecto a fracção, irrelevando a posse dos titulares do direito de propriedade do solo onde o imóvel foi construído e onde se localiza a fracção após a constituição da propriedade horizontal.

A actuação da Autora, aceitando-se que foram actos de posse os que exerceu sobre a fracção, apenas podem ser considerados relevantes desde a data da entrega da fracção no Verão de 1992.

Essa entrega, na perspectiva de que o negócio celebrado foi um contrato promessa de compra e venda, não mais é que a traditio do imóvel feita pela 2ª Ré e, como tal, tem de se considerar que a posse da Autora foi desde aí exercida de boa-fé.

Todavia, como antes dissemos, a posse da Autora e do Réu marido não foi uma posse titulada, por na sua base estar um negócio formalmente inválido, todavia é uma posse de boa-fé, acha-se ilidida a presunção de que a posse não titulada é de má-fé – art. 1260º, nº2, do Código Civil – pelo facto da Autora e o marido a terem adquirido de quem era o dono da fracção e ao adquiri-la não se ter provado que lesavam direitos de outrem.

Assim, exercendo a Autora, desde o Verão de 1992 uma posse pacífica, não titulada, sem registo do título, nem da mera posse, mas de boa-fé, o prazo para usucapião é de 15 anos – art. 1296º do Código Civil.

A citação dos RR., em 14.3.2007 e 19.3.2007 (fls. 29 e 30), antes de decorridos aqueles 15 anos interrompeu a prescrição (art. 1292º e 323º, nº1, do Código Civil).

A acção foi intentada em 9.3.2007.

A posse só seria boa para usucapião se perdurasse, no caso em apreço, por mais 15 anos até à data da propositura da acção.

Tal prazo de 15 anos atingir-se-ia no Verão de 2007, já que os actos de posse tiveram início no Verão de 1992, não podendo a Autora invocar a acessão da sua posse à posse da Ré vendedora, desde logo, porque a posse da Autora é não titulada e a acessão da posse só se dá dentro dos limites da posse que tiver menor âmbito, in casu, a da Autora, daí que só relevem para usucapião os actos de posse iniciados naquela data que corresponde à entrega pela 2ª Ré.

Finalmente, cumpre dizer que não tendo o 1º Réu invocado a aquisição por usucapião (a Autora fê-lo por si própria e em nome dele), essa invocação é irrelevante já que a usucapião só pode ser invocada pelo interessado a quem aproveitar – arts. 303º e 1292º do Código Civil.

Pelo quanto dissemos o recurso soçobra.

Decisão.

Nestes termos nega-se a revista, posto que com fundamentação não inteiramente coincidente com a do Acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 7 de Abril de 2011


Fonseca Ramos (Relator)
Salazar Casanova
Fernandes do Vale

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(1) Embora tivesse condenado os RR. a reconhecerem que a Autora e o seu marido compraram à 2ª Ré a fracção em causa.