ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
124/07.3TBMTRA.L1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/10/2011
SECÇÃO 1ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO NEGADA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR MARTINS DE SOUSA

DESCRITORES TÍTULO EXECUTIVO
LIVRANÇA
DOCUMENTO PARTICULAR
RELAÇÃO SUBJACENTE
QUIRÓGRAFO
PRESCRIÇÃO
RELAÇÕES IMEDIATAS
RELAÇÕES MEDIATAS
JUROS DE MORA
ÁREA TEMÁTICA DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - ACÇÃO EXECUTIVA - TÍTULOS EXECUTIVOS
DIREITO BANCÁRIO - TÍTULOS DE CRÉDITO
LEGISLAÇÃO NACIONAL CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 45.º, N.º1, 46.º, AL. C), 272.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 221.º, 1 E 223.º, 1, 458.º, NºS 1 E 2.
DL Nº32765 DE 29.04.93: - ARTIGO ÚNICO.
LULL: - ARTIGOS 70.º, 75.º.
JURISPRUDÊNCIA NACIONAL ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 30.01.2001 CJ (STJ), T 1, 85;
-DE 29.01.2002 CJ (STJ), 1, 64;
-DE 8.07.2003, Pº03B2084, WWW.DGSI.PT;
-DE 16.12.2004, CJ (STJ), 3, 157.

ASSENTO Nº17/94, DR Nº279, I SÉRIE, DE 3.12.94.


SUMÁRIO I - O art. 46.º, al. c), do CPC, enuncia que os títulos executivos particulares têm a sua exequibilidade condicionada à verificação de dois pressupostos, um de natureza formal e outro de natureza substantiva, a saber: estarem assinados pelo devedor e referirem-se a obrigações pecuniárias líquidas ou liquidáveis através de simples cálculo aritmético.

II - A livrança é um título de crédito à ordem que se materializa, além do mais, na promessa pura e simples de pagamento de determinada quantia ao respectivo beneficiário (art. 75.º da LULL) e, independentemente da sua natureza cambiária, vale como documento particular que cai na alçada do citado art. 46.º, al. c), pois que, subscrita pelo devedor, se traduz no reconhecimento de uma obrigação pecuniária de montante determinado ou determinável por simples cálculo aritmético.

III - Servindo a livrança como título executivo, constando dela que a exequente é a sua beneficiária, os recorrentes seus subscritores e a terceira executada a avalista, estamos no âmbito das relações imediatas, pelo que há-de revelar-se a convenção extra-cartular, em prejuízo da literalidade e abstracção da obrigação cambiária.

IV - A prescrição da relação abstracta (cambiária) acentua e reforça a função de quirógrafo daquele título, i.e., do documento particular assinado pelos devedores, que incorpora a relação causal que lhe está subjacente.

V - A invocação da prescrição da acção cambiária não tem o alcance de extinguir os juros de mora derivados da livrança, enquanto representativa da relação subjacente (art. 46.º, n.º 2, do CPC).


DECISÃO TEXTO INTEGRAL

                          ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

I.

CAIXA AA, CRL, intentou acção executiva para pagamento de quantia certa, sob a forma de processo comum contra BB, CC e DD, fundando esse pedido executivo na subscrição por parte dos dois primeiros executados, no lugar do saque ou subscrição da livrança no valor de Esc. 5.215.753$00, emitida em Montalegre, com data de emissão de 27/07/1994 e com data de vencimento de 30/03/1995, constando ainda do verso daquele documento a assinatura da terceira Executada , por debaixo da menção manuscrita: “dou o meu aval aos subscritores”.

A Exequente, no seu requerimento inicial, alegou o seguinte:

1.º - Os executados CC e BB, contraíram na exequente Caixa AA, CRL. (C....._), em 27/07/1994, um empréstimo no montante de cinco milhões de escudos (5.000.000500 - Euros 24.939,89).

2.º - O referido montante foi depositado pela exequente na conta de depósitos à ordem com o n.º … titulada pelos referidos executados na C......

3.º - Exequente e executados estipularam em doc junto que o empréstimo era concedido pelo prazo de três meses e que venceria juros à taxa nominal líquido de 10%.

4.º - Para pagamento do empréstimo em causa, respectivos juros e despesas, os executados BB e CC entregaram à exequente a Livrança junta, por si subscrita e avalizada pela executada DD.

5.º - Sucede que na data de vencimento (25/10/1994), os mutuários/executados não tinham a sua conta de depósitos à ordem aprovisionada para pagamento à exequente do montante em dívida e dos competentes juros remuneratórios, referente ao empréstimo em causa, conforme se tinham obrigado, e também não foram a sede da exequente pagar, tal como a executada/avalista não pagou, não obstante as solicitações da exequente junto dos mesmos para que saldassem a dívida.

6.º - Só em 30/12/1994, com 66 dias de atraso, compareceram na sede da exequente, onde procederam ao pagamento das quantias de Esc. 221.918500 (Euros 1.106,92) a título de juros remuneratórios e de Esc. 198.848$00 (Euros 941,97) a título de juros moratórios.

7.º - Alegando dificuldades de liquidez que os impossibilitava de liquidarem o mútuo naquela data, os executados solicitaram à exequente a prorrogação do mesmo por mais três meses, pagando, para o efeito, a quantia de 500$00 correspondentes a despesas de prorrogação.

8.º- A exequente anuiu à solicitada prorrogação do prazo de mútuo, que continuou assim cm vigor pelo montante de cinco milhões de escudos (5.000.000$00 - Euros 24.939,89), mas com juros à taxa anual de 17,5%;

9.º - Contudo, na data de vencimento (30/13/1995), os mutuários/executados votaram a não ter a sua conta de depósito à ordem aprovisionada para pagamento do montante em dívida à exequente e também nenhum dos executados foi pagar à exequente, nem então, nem posteriormente;

10.º - Pelo que tal livrança não foi paga por nenhum dos executados (subscritores e avalista), nem no respectivo vencimento nem até à presente data;

11.º - Assim sendo, a exequente vê-se obrigada a recorrer à via judicial para obter o pagamento de quantia em dívida, referente ao empréstimo em causa, que na data de vencimento (30/03/1995) ascendia a 5.215.753500 (Euros 26.016,06), correspondentes a 5.000.000$00 de capital mutuado e 215.753$00 de juros remuneratórios calculadas à taxa de juro contratada, conforme consta da Livrança junta como Doc. 2;

12.º - à quantia supra mencionada no artigo antecedente acrescem os juros vencidos sobre a quantia em dívida, calculados desde 30/03/1995, os quais na presente data ascendem ao montante de Euros 67.381,95 (tais juros foram calculados com base na taxa de juro contratada, acrescida da sobretaxa de quatro pontos percentuais, conforme consta do ponto 10.9 das Condições Gerais – Doc. 1); 

13.º - Assim, na presente data, o montante em dívida à exequente perfaz a quantia global de Euros 95.398,01 (noventa e três mil trezentos e noventa e oito Euros e um cêntimo), correspondentes a Esc. 18.724.619$00;

14.º - À quantia referida no artigo antecedente acrescem os juros vincendos contados a partir da presente data e calculados à taxa de juro contratada sobre o montante em dívida, até efectivo e integral pagamento;

15.º - A Livrança subscrita pelos executados BB e CC e avalizada peia executada DD, constitui título executivo – art.º 46.º, 1, alínea c) do Código de Processo Civil, já que, para além do mais, se trata de um documento particular que contém a assinatura dos devedores e importa a constituição ou o reconhecimento de obrigações, reportando-se estas ao pagamento de quantia determinada ou determinável por simples cálculo aritmético, pelo que a exequente a dá à execução…

Os dois primeiros executados vieram deduzir embargos de executado, tendo alegado, em síntese, a excepção peremptória da prescrição do direito de acção do Exequente.

O Exequente contestou os embargos, alegando em síntese que a livrança ajuizada nos autos, embora prescrita enquanto título cambiário, pode valer como título executivo enquanto documento particular consubstanciando a obrigação subjacente, desde que não seja emergente de negócio formal e a sua causa seja invocada no requerimento de execução, como sucedeu no caso vertente

Foram os embargos decididos no despacho saneador, aí se julgando improcedente a excepção peremptória da prescrição da acção cambiária deduzida, ordenando-se o prosseguimento da execução.

Inconformados, os Embargantes dessa sentença interpuseram recurso de apelação que a Relação de Lisboa, todavia, julgou improcedente, confirmando, nessa medida, a mesma sentença.

De novo inconformados, interpuseram os mesmos Embargantes a presente revista, concluindo a sua alegação do seguinte modo:

Conclusões:

1º - A causa de pedir nesta execução é uma livrança que prescreveu em 30 de Março de 1998, arrastando as obrigações cambiárias dela resultantes.

2ª  - A mencionada livrança não tem inscrita a relação causal subjacente.

3ª  - A Exequente não instaurou uma acção executiva usando como título uma livrança prescrita, como mero quirógrafo ou documento particular onde se reconhece uma dívida, possibilitando aos executados a dedução de oposição.

4ª -E nem na própria contestação dos embargos veio a Exequente admitir que a livrança estava prescrita, tratando-se de um documento particular.

5ª  - Prevalecendo-se o exequente da obrigação cambiária, declarada prescrita, e verificada a omissão da relação subjacente, não podem as letras como meros quirógrafos, constituir títulos executivos. Acórdão da relação de Lisboa ,de 19-10-2006 ,p° 7465/2006 -6,

6ª  - Só decorridos 12 anos sobre o vencimento da livrança veio a exequente instaurar a execução o que integra abuso de direito.

7ª  - Os juízes não podem conhecer de causas de pedir não invocadas, como sejam no caso dos autos um contrato de mútuo ou um documento que foi uma livrança que se encontra prescrita e só pode ser usada como quirógrafo ou meio de prova de uma obrigação.

8º  - Quando a causa da obrigação, emergente de um negócio formal, não consta do título e o exequente a não invocar, no requerimento inicial, não será possível faze-lo na pendência do processo, a menos que haja acordo com o executado e portanto seja a este facultada a possibilidade de se opor.

9ª  - Nada está perdido para a exequente, pois esta sempre poderá instaurar uma execução com base no contrato de mútuo, com ou sem acompanhamento da livrança prescrita, mas usando-o como documento particular ou quirógrafo de uma obrigação, restando ainda a hipótese defendida pelos Dr. Lopes Cardoso e Prof Adelino da Palma Carlos de dever ser proposta uma acção declarativa de condenação.

10ª - Tendo-se alegado a prescrição do título executivo, já que sobre a data do vencimento da livrança passaram muito mais de 3 anos ,tal prescrição engloba o capital e os juros.

11ª  - E se se considerar que o mencionado título afinal é uma livrança prescrita mas tem valor de título executivo enquanto documento particular e não como simples prova de uma obrigação, o que se adianta sem conceder, a alegada prescrição contínua a incluir os juros peticionados .

12ª - O próprio douto acórdão reconhece que a livrança, não já como título cambiário, mas como documento particular em que era reconhecida uma obrigação dos e pelos oponentes para com o Banco Exequente, constituiria título suficiente.

A apreciação e julgamento desta segunda questão só é ,aliás, possível, porque o Banco oponente suscita a mesma na sua contestação aos embargos..

Assim ,disse na contestação o que deveria ter dito no requerimento inicial, vendo-se os embargantes impedidos de responder, o que constitui grave ofensa ao princípio do contraditório.

Pelo exposto entendemos que deverá o douto acórdão da Relação ser revogado e substituído por outro que julgue procedentes os embargos de executado deduzidos pelos ora recorrentes.

Concretamente mostra-se mal julgado;

O reconhecimento de uma livrança prescrita, (prescrição esta que a exequente nunca reconheceu) cujo negócio causal subjacente não vem nela mencionado, não como título executivo enquanto tal mas como documento particular de reconhecimento de uma obrigação, que apenas foi alegada pela exequente num momento em que não era possível deduzir oposição. E a identificação do título executivo deve fazer-se no requerimento inicial.

O não reconhecimento da prescrição dos juros , se o mesmo documento deixar de ser considerado uma livrança e passar a considerar-se uma obrigação de natureza diversa, sendo certo que a prescrição da livrança foi atempadamente arguida.

Mostram-se violados os art° 70° da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças, alínea c) do n° 1 do art° 46° do Código de Processo Civil, art° 3°, 3° A, 45°, 264° 265°,268°, 272°,273º,810°, e a contrario art° 303° do Código Civil.

Não foi oferecida contra-alegação.

Foram colhidos os vistos legais.

A questão central do recurso respeita, afinal, a saber-se se a Exequente dispõe ou não de título executivo idóneo para obrigar os Executados ao pagamento coactivo da obrigação exequenda, uma vez que prescreveu o direito de crédito cambiário incorporado na livrança.

II.

A - Antes de sua abordagem importa deixar consignados os factos provados que as instâncias consignaram:

1) A exequente é portadora de uma livrança emitida pelo valor de 5.215.753$00, à qual foram apostos os dias 27.07.1994 e 30.03.1995 como datas de emissão e de vencimento, respectivamente.

2) Na livrança referida em 1) figuram como tomador Caixa AA e como subscritores CC e BB.

3) Os oponentes apuseram as suas assinaturas na parte da frente da referida livrança, no local destinado às assinaturas dos subscritores.

4) A execução a que estes autos de oposição estão apensos deu entrada em juízo no dia 16.04.2007.

B - Vejamos, então:

 Toda a execução tem por base um título, que além de determinar o seu fim e, consequentemente, o seu tipo, estabelece os seus limites objectivos e subjectivos (art. 45º, nº 1 do CPC, versão de 2003).

As partes não podem constituir títulos executivos, além dos legalmente previstos.

É o art. 46º do CPC que enumera os títulos executivos que podem servir de base à execução e, entre eles, menciona na sua alínea c) os “assinados pelo devedor que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto”.

Estes títulos executivos negociais particulares têm a sua exequibilidade condicionada à verificação de dois pressupostos, um de natureza formal e outro de natureza substantiva, a saber: estarem assinados pelo devedor e referirem-se a obrigações pecuniárias líquidas ou liquidáveis através de simples cálculo aritmético.

A livrança é um título de crédito à ordem  que se materializa, além do mais, na promessa pura e simples de pagamento de determinada quantia ao respectivo beneficiário (artº75º da LULL) e, independentemente da sua natureza cambiária, vale como documento particular que cai na alçada daquela al.c) do citado artº46º, pois que, subscrita pelo devedor, se traduz no reconhecimento de uma obrigação pecuniária de montante determinado ou determinável por simples cálculo aritmético.

A questão que a revista suscita  reporta-se à possibilidade de títulos de crédito prescritos, como a livrança dada à execução, valerem, na qualidade de documentos particulares, como título executivo que sirva de fundamento e suporte da execução do crédito emergente da relação subjacente à relação cambiária que eles representavam.

Com excepção da voz isolada de Lopes Cardoso que negou essa possibilidade (cfr o seu precioso Manual de Acção Executiva, 89), uma primeira orientação defende que a livrança, embora não valendo como título cambiário por virtude da prescrição, subsiste como título executivo, uma vez que , subscrita pelo respectivo devedor e traduzindo o reconhecimento de uma obrigação pecuniária determinada ou determinável por simples operação aritmética, satisfaz os requisitos do documento particular referenciado no já mencionado artº46º, al c) do CPC – cfr, vg, Pinto Furtado, Títulos de Crédito, 82/83 e Ac. STJ de 8.07.2003, pº03B2084, na base de dados do ITIJ).

Outros, começam por distinguir os títulos que mencionam a causa da relação subjacente à relação cambiária, daqueles que o omitem. Aquele não oferece dúvidas quanto à sua valia como documento particular para efeitos daquele normativo. Quanto a estes, importa distinguir  consoante a obrigação a que se reportam seja emergente ou não de um negócio jurídico formal:  no primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não poderá constituir título executivo (arts. 221.º, 1 e 223.º, 1 do CC); no segundo caso, porém, a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento da dívida (art. 458.º, 1 do CC) leva a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada no requerimento inicial da execução e poder ser impugnada pelo executado – cfr, vg, Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 2ª ed, 53 e Ac STJ de 30.01.2001 ( CJ (stj), t 1, 85).  

Revertendo ao caso em exame, dir-se-á, primeiramente que, separando águas com alguma confusão tecida a este propósito pelos Recorrentes, não se confundem  título executivo e causa de pedir na acção executiva: na lição de Antunes Varela, Manual…, 84 (ed 1984)“o título executivo reside no documento e não no acto documentado, por ser na força probatória do escrito, atentas as formalidades para ele exigidas, que radica a eficácia executiva do título (quer o acto documentado subsista, quer não”. Ou seja, este acto - a obrigação exequenda - é que constitui o fundamento substantivo da execução, cabendo ao título executivo a sua demonstração documental, validada pela lei que, taxativamente, os enumera.

Depois, realçar que, servindo a livrança como título executivo, tal como foi alegado pela Exequente, constando dela que esta é a sua beneficiária, os Recorrentes seus subscritores e a terceira Executada como avalista, estamos no âmbito das chamadas relações imediatas, pelo que há-de relevar-se a convenção extra-cartular, em prejuízo da literalidade e abstracção da obrigação cambiária. O que a prescrição da relação abstracta (cambiária), veio acentuar, reforçando a função de quirógrafo daquele título, isto é, de documento particular, assinado pelos devedores que incorpora a relação causal, a relação que lhe está subjacente.

Sucede que, no seu requerimento executivo inicial, a Exequente alegou de forma clara os termos concretos dessa relação causal da emissão da livrança que se traduziu num empréstimo de cinco milhões de escudos, montante que foi depositada em conta de depósito à ordem, titulada pelos Executados.

E bem andou ao fazê-lo, pois a livrança em apreço não faz qualquer menção a essa mesma relação causal e era previsível que os executados invocassem a prescrição da acção cambiária, dado o longo lapso de tempo decorrido desde o seu vencimento (artº70ºda LULL).

E, como escreve Lebre de Freitas (ob cit, 133) “para prevenir a hipótese de sua invocação em embargos de executado, o exequente deverá, em obediência ao artº467º,1, al c) do CPC, alegar a causa da obrigação…” E, acrescenta este autor: “Por outro lado, a invocação da causa da obrigação no requerimento inicial é condição necessária para que a mesma possa ser impugnada pelo executado, nos termos do artº815º,1 do CPC”, sendo certo que o não poderá fazer “na pendência do processo, após a verificação da prescrição da obrigação cartular e sem o acordo do executado (artº272º do CPC) por tal implicar alteração da causa de pedir”.

Não faz sentido, por isso que os Recorrentes venham invocar perda para o seu direito de defesa, prejuízo para o contraditório ou o princípio do dispositivo e a estabilidade da instância ou da causa de pedir, se tiveram oportunidade para, na petição dos embargos, se pronunciarem sobre essas incidências, se não tivessem optado pelo silêncio face à relação causal alegada pela Exequente e sua conotação com o título executivo.

Sibi imputet.

Não obstante , um obstáculo, parece intrometer-se no reconhecimento da dita livrança como título executivo subsidiário, digamos assim, no quadro das orientações doutrinárias acima expostas.

É que, tal com se deu conta no acórdão recorrido, o negócio jurídico causal que presidiu a emissão da livrança está sujeito a forma, pois de harmonia com o artigo único do DL nº32765 de 29.04.93, o contrato de mútuo (bancário) quando feito por estabelecimentos bancários autorizados, são provados por documento particular (ver Assento nº17/94, DR nº279, I Série, de 3.12.94 e J. M. Pires, Direito Bancário, 2º vol, 205). E, assim sendo parece que, exigindo a lei a forma escrita do negócio a que se reporta o título, deste havia de constar a causa desse negócio, seu elemento essencial, sob pena de não poder fundar a execução.

O rastreio de fatia significativa da jurisprudência que se pronunciou a este propósito, na esteira de Lebre de Freitas, como já se referiu, fê-lo, favoravelmente, à inviabilização do título ( cfr, vg, os Acórdãos deste tribunal de 29.01.2002 (CJ stj, 1, 64), 16.12.2004 (CJ stl, 3, 157) e jurisprudência aí exaustivamente referenciada, de 13.11.2003 in base de dados do ITIJ). Porém, o quadro fáctico em que se moveu é oposto ao destes autos no que diz respeito às exigências de forma do acto constitutivo da relação fundamental, subjacente ao título cambiário. É que, na esmagadora maioria dos casos, defrontou-se essa jurisprudência com relações subjacentes constituídas na base de negócios jurídicos nulos por falta de forma, ao passo que no caso que nos ocupa, o negócio causal – o mútuo bancário - é titulado por documento particular tal como impõe o diploma atrás citado e de validade sem mácula.

Ali, mormente nos casos de exigência de formalidade ad substantiam, justifica-se a solução de negar ao título, liminarmente, sua força executiva, pois não só obedece à forma para ele prescrita pela lei, mas também seria abusivo que a sua legitimidade para consubstanciar a relação subjacente fosse aceite, apesar de tropeçar na própria nulidade desta.

Aplicar essa mesma solução, todavia, no caso que nos ocupa, tal como se entendeu no acórdão recorrido “pecaria por excessiva, formalista e mesmo injusta”.

Na verdade, a Exequente procurou, de forma lógica e cronológica, explicar e circunstanciar, em moldes substanciais, a emissão da livrança em questão, como juntou também os contratos de mútuo respectivos, tendo ainda os Executados aqui oponentes, quanto a todo esse processo de constituição e prorrogação do empréstimo bancário, tido oportunidade de se pronunciarem, nada tendo dito ou obstado, no entanto, em sede da sua petição de embargos, o que não pode deixar de ser encarado com aceitação dos factos em questão.

Demonstra-se, em consequência, uma inequívoca e necessária ligação ou conexão entre a livrança dos autos e aqueles mútuos bancários, de índole formal, que foram válida e eficazmente celebrados e mais do que isso, do posicionamento dos executados em todo este litígio retira-se, seguramente, a conformidade substantiva entre a obrigação exequenda decorrente da relação subjacente e a livrança que serve de título executivo.

Ora, patentes aquela conexão e esta conformidade substantiva, não restam dúvidas de que a livrança consubstancia, inegavelmente, a concreta obrigação subjacente, e, consequentemente, não se lhe pode negar a função de quirógrafo que lhe cabe, isto é, enquanto documento particular, assinado pelos devedores e complementado pela  inegável e formal demonstração daquela obrigação, determinada ou determinável por simples operação aritmética.

O que está de acordo com a complexa causa de pedir invocada pela Exequente no requerimento inicial que o mesmo título executivo espelha e documenta, na sua dimensão cambiária, titulando a obrigação cartular e enquanto documento particular, consubstanciando a relação subjacente. Título, assim, também, complexo, conexionado e complementado pelos documentos e contratos juntos pela Exequente que não sofreram qualquer impugnação e que tornaria inexplicável obrigar esta última a exibi-los para repetir o mesmo percurso processual.

Acresce que, para quem insista em qualificar esse título como promessa de cumprimento e reconhecimento de dívida, se não coloca qualquer óbice de ordem formal. Determina o nº2 do artº458º do CC que a promessa ou reconhecimento deve constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental. O professor Almeida Costa adianta que se resultar da lei que a forma do acto constitutivo da relação fundamental é apenas exigida “ad probationem”, a promessa ou o reconhecimento produzirá os seus efeitos se constar de documento de igual ou superior força obrigatória - artº364º do CC ( Obrigações, 3ª ed, 306)

É o que sucede  na situação dos autos: a forma exigida para o mútuo bancário é o documento particular e sua exigência, como se viu, tem apenas propósitos probatórios - cfr o artigo único do diploma acima citado. Assim sendo, qualificado aquele título executivo como documento particular escrito, a sua compatibilidade formal não oferece dúvida.

Em suma, não se vislumbra óbice, mormente de carácter formal que inviabilize a força executiva da livrança em apreço, tida como documento particular que reúne os pressupostos do já referenciado artº 46º, al c) .

Restam duas referências, breves, à questão dos juros em cuja prescrição os Recorrentes insistem e ao alegado abuso de direito que eles firmam no tempo excessivo que a Exequente levou para cobrar o seu crédito.

Quanto a este, temos que ver que no caso em presença o decurso do tempo, só por si e sem mais, nunca seria adequado a criar a convicção a quem quer que seja de que o titular do direito jamais o exerceria. Na verdade, longe está ainda o termo do prazo prescricional do direito que veio cobrar e além disso, também, os Recorrentes nada imputaram à Exequente que lhes desse garantias nesse sentido. Pelo que não tem qualquer fundamento o alegado abuso de direito.

No tocante aos juros, repete-se o que já disseram as instâncias: a invocação da prescrição da acção cambiária não tem o alcance de extinguir os juros de mora derivados da livrança, enquanto representativa da relação subjacente ( artigo 46.º, 2 do Código de Processo Civil).

III.

Em face do todo exposto, julga-se improcedente a revista, confirmando-se o bem elaborado acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.

  Lisboa, 10 de Novembro de 2011

Martins de Sousa (Relator)

Gabriel Catarino

Sebastião Póvoas