ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
1164/08.0TBEVR-D.E1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 10/20/2011
SECÇÃO 1ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA E ANULADO O JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO FEITO PELO TRIBUNAL DA RELAÇÃO
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR ALVES VELHO

DESCRITORES INSOLVÊNCIA
CREDITO LABORAL
PRIVILÉGIO CREDITÓRIO

SUMÁRIO

O momento relevante a atender na cessação do vínculo laboral para efeito de reconhecimento da garantia conferida por privilégio imobiliário especial sobre o bem imóvel em que o trabalhador presta a sua actividade é o da constituição do crédito que goza garantia, ou seja, o momento da efectiva cessação do contrato de trabalho, independentemente de a extinção da relação laboral ter ocorrido com a declaração de insolvência ou antes dela, ainda por iniciativa do empregador.



DECISÃO TEXTO INTEGRAL

    

         Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

         1. - Declarada a insolvência de “L... – Sociedade de Produtos Veterinários, Lda”, em 25 de Junho de 2008, foi aberto o respectivo apenso de reclamação de créditos.

         Nele veio a apresentar o administrador da insolvência, sem impugnação, a lista de créditos reconhecidos, na qual incluiu, entre outros, como créditos garantidos por hipoteca, os dos Bancos “Espírito Santo, S.A.” e “Montepio Geral” e, como créditos privilegiados, os reclamados por AA, BB, CC, DD e EE, todos proveniente de “indemnização pela cessação do contrato de trabalho” que mantinham com a Insolvente.

         Foi, então, proferida sentença em que teve lugar a homologação da lista dos credores reconhecidos e a graduação dos créditos verificados, tendo-se decidido “proceder ao pagamento dos créditos através do produto da massa insolvente, pela seguinte forma:

1º - As dívidas da massa insolvente saem precípuas do produto da venda dos imóveis;

2º - O crédito reconhecido no apenso F - Imposto Municipal sobre Imóveis - será pago pelo produto da venda dos imóveis;

3º - Os créditos no montante total de € 327.304,78 do Banco Espírito Santo, S.A., com garantia hipotecária sobre os imóveis seguintes e que será pago pelo produto da respectiva venda:

-Prédio urbano (sito na ..., inscrito na matriz sob o art.1728 e descrito na Conservatória Reg. Predial sob o n° ...);

-Prédio urbano (sito na ..., inscrito na matriz sob o art. 3407 e descrito na Conservatória Reg. Predial sob o n° ...);

-Fracção autónoma designada pela letra "A" do prédio em propriedade horizontal (sito na ..., inscrito na matriz sob o art. 2149 e descrito na Conservatória sob o n° ...).

4º - O crédito de € 52.587,95 da Caixa Económica do Montepio Geral com garantia hipotecária sobre os seguintes imóveis e que será pago pelo produto da respectiva venda:

- Prédio urbano (sito em ..., inscrito na matriz sob o art. 3176 e descrito na Conservatória sob o n° ...;

- Prédio urbano (sito em ..., inscrito na matriz sob o art. 3175 e descrito na Conservatória Reg. Predial sob o n°....

- Do remanescente:

5º - Os créditos de contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, de AA, FF, CC , DD e EE;

6º - O crédito de custas judiciais reconhecido no apenso B;

7º - O crédito no montante máximo de 500 DC de E...F..., Lda. e V... de Portugal, Lda., credores da insolvência;

8º - Os créditos comuns;

9º - Os créditos subordinados”.

          Os credores trabalhadores impugnaram o sentenciado quanto à graduação dos respectivos créditos, mas a Relação manteve integralmente o decidido pela 1ª Instância.

         Os mesmos EE, DD, FF, CC e AA interpuseram recurso de revista excepcional, que lhes foi admitido pela Formação a que alude o n.º 3 do art. 721º-A CPC, tendo identificado e isolado a questão a apreciar como sendo a de “saber se os ex-trabalhadores da insolvente têm os seus créditos sobre esta, provenientes dos seus contratos de trabalho, da sua cessação ou violação, protegidos pelo privilégio imobiliário especial previsto no art. 377º-1-b) do Código do Trabalho, aprovado pelo DL n.º 99/2003 (…), sobre os imóveis da insolvente, apenas se o respectivo vínculo laboral subsiste à data da instauração do processo de insolvência ou da declaração desta, ou se dele beneficiam mesmo que tal vínculo, nessas datas, já tenha cessado”.  

            Para pedirem a revogação do acórdão, o reconhecimento dos seus créditos como dotados de privilégio imobiliário especial sobre os imóveis da massa insolvente onde prestavam trabalho e a respectiva graduação em primeiro lugar, nas graduações especiais a efectuar por cada imóvel, os Recorrentes argumentam, em síntese útil, nas conclusões da alegação:

(…)

18ª - Não foi intenção do legislador criar uma desarmonia no sistema que desprotegesse todos os que fossem atingidos por despedimentos informais, ou por "encerramentos selvagens" praticados por empregadores que, em seguida, se apresentassem à insolvência.

19ª - Sendo os privilégios imobiliários uma modalidade de garantia especial das obrigações, concedem preferência ao credor que dele disponha sobre os demais credores cujos créditos não gozem de garantia especial sobre ele prevalecente, como se deduz do disposto no artigo 604.° do Código Civil.

20a - As garantias especiais dos créditos acompanham, ao menos tendencialmente, a vida do crédito que se destinam a garantir, o que acontece no caso dos privilégios imobiliários especiais em causa nestes autos, conforme decorre do disposto nos artigos 752.° e 730.°, ambos do Código Civil.  

21ª - E é por isso que, sob pena de total e absoluta frustração da declarada intenção do legislador de revestir de especial protecção os créditos laborais, a melhor interpretação da expressão "... sobre os bens imóveis nos quais o trabalhador preste a sua actividade", não pode ser outra senão a que considera que aos créditos dos trabalhadores emergentes de contrato de trabalho, sua violação ou cessação gozam de privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis onde prestavam a sua actividade à data do nascimento dos créditos que reclamam.

22a - Os trabalhadores, aqui recorrentes, nas suas reclamações de créditos, alegaram e fundamentaram as causas dos seus créditos, os respectivos limites quantitativos, montantes e a sua existência à data da abertura do concurso falimentar de credores. Mais alegaram que laboravam, indistintamente, nos cinco imóveis da sua empregadora que, mais tarde, vieram a ser apreendidos para a massa insolvente e, por isso, invocaram expressamente que os seus créditos gozam de privilégio imobiliário especial sobre aqueles imóveis”.

         Respondeu apenas a Credora “Banco Espírito Santo, S.A”, em defesa do julgado.

         2. - A questão proposta para pronúncia é, como já enunciada e emergente das conclusões, a de determinação do momento relevante a atender na cessação do vínculo laboral para efeito de reconhecimento da garantia conferida pelo privilégio imobiliário especial sobre o bem imóvel em que o trabalhador presta a sua actividade, em caso de falência do empregador, nomeadamente se tal privilégio protege apenas os trabalhadores cujo vínculo subsista à data do requerimento de insolvência ou da sua declaração ou se abrange aqueles cujo vínculo em tais datas tenha já cessado.    

         3. - Factos.

         Os elementos de facto a considerar são os que constam do relatório desta peça, a que acrescem, documentalmente demonstrados, os que seguem.

- Com data de 28 de Março de 2008, a Insolvente entregou a cada um dos Recorrentes uma carta, do teor que se transcreve:

“Assunto: Suspensão da prestação de trabalho.

Exmº Senhor.

Vimos pela presente, comunicar a V/: Exª a suspensão da prestação de trabalho na empresa, da qual é trabalhador, pelos seguintes motivos:

- Inexistência de actividade da empresa;

- Acumulação de dividas aos bancos e a terceiros;

- Tentativa de reestruturação da empresa devido à crise no sector, para o que é necessário alterar todo o modo de operar e procurar parceiros;

 - Possibilidade de, a curto prazo, se reestruturação não se concretizar, ser pedida a insolvência ou a extinção da empresa, pelos motivos acima referidos.

Assim deverá V. Exª, a partir do dia 1 de Abril de 2008, data de início da suspensão, aguardar as nossas indicações. Caso V. Exª pretenda rescindir o contrato, agradecemos o V. contacto para remeter a V. Exa documentação para fins de desemprego, ficando à disposição de V. Exª para tudo o mais que seja necessário, agradecendo a V. colaboração ao longo do tempo que permaneceu nesta empresa.

Com os nossos cumprimentos

Atentamente”.

- Relativamente a cada um dos Recorrentes, a Insolvente emitiu uma “Declaração de Situação de Desemprego”, em que consta: “Data da cessação do contrato de trabalho – 31/3/2008” e “Motivos e cessação do contrato de trabalho – Despedimento por extinção do posto de trabalho”.

- Cada um dos Recorrentes alegou, no artigo 2º do respectivo requerimento de reclamação de créditos, ter sido contratado para prestar as suas funções, sob direcção e autoridade da insolvente, e ter tido “como local de trabalho inicialmente sito na Rua ... e posteriormente na Rua ..., bem como nos Lotes 14, 15 e 16 sitos na ..., ... e ainda em Évora, na ..., ..., sendo certo que desde 28/03/2008 a insolvente tinha a sua sede na Rua...”.

          4. - Mérito do recurso.

         4. 1. - Os créditos reclamados pelos Recorrentes emergem, ninguém o põe em dúvida, de cessação do contrato de trabalho que mantinham com a ora insolvente, que procedeu ao seu despedimento, com efeitos a partir de 31/3/2008, com fundamento na “extinção do posto de trabalho”, vindo a insolvência da Empregadora a ser declarada em 25 de Junho do mesmo ano.         

Também não se questiona a exigibilidade dos créditos em questão, tanto mais que até foram reconhecidos, inclusivamente, ao que parece, como beneficiários de alguma preferência, pois que surgem logo a seguir aos créditos garantidos por hipoteca, entre os garantidos por privilégio creditório, e destacados dos créditos comuns [não se identifica, na sentença nem no acórdão, o privilégio de que gozarão os créditos laborais reconhecidos e graduados, sendo que, constituída a massa insolvente apenas por imóveis e determinado o pagamento desses créditos pelo «remanescente», se pretenderá aludir a privilégio imobiliário geral]    

            4. 2. - Como se dispõe no n.º 1 do art. 46º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), “a massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas e, salvo disposição do contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência”, estabelecendo, por sua vez, o art. 47º-1 que, “declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência (…)”.

Os créditos referidos e as dívidas que lhes correspondem são «créditos sobre a insolvência e dívidas sobre a insolvência», sendo “«garantidos» e «privilegiados» os créditos que beneficiem, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objecto das garantias ou dos privilégios gerais (…)”.

Não constando da massa insolvente bens móveis apreendidos, importa apenas ter em consideração a natureza e regime dos privilégios imobiliários.

4. 3. - O regime jurídico dos privilégios creditórios mantém-se regulado no Código Civil, sendo que, a este propósito, o Código do Trabalho nada refere e o CIRE se limita, no preceito citado, a tratar com “garantidos”, como beneficiários de garantia real, os privilégios creditórios especiais e como “privilegiados” os que gozem de privilégios gerais.

Acolhe-se, assim, a doutrina constante do C. Civil que, diferentemente do que sucede com os privilégios gerais, inclui os privilégios especiais (mobiliários ou imobiliários) entre os direitos reais de garantia oponíveis a outros direitos reais, mesmo de constituição anterior, isso porque se baseiam numa concreta relação entre o crédito e a coisa que o garante, que se constitui ou nasce no momento da formação do crédito garantido (cfr. arts. 750º e 751º C. Civil.

Pondo em evidência esta última nota, dir-se-á que a garantia concedida pelo privilégio imobiliário especial, derivando directamente da lei, constitui-se simultaneamente com o crédito que garante, com o facto gerador do crédito, donde que o privilégio e a correspondente garantia real nasçam e vivam com o crédito, e, consequentemente, sem dependência de qualquer evento ulterior como requisito de invocabilidade ou eficácia da garantia.

Assim também será, inter alia, com a instauração da acção de insolvência ou com a manutenção do vínculo laboral por ocasião desse acontecimento, pois que, não o prevendo especialmente o CIRE nem o CT, o requisito não só não decorre como se mostra excluído pelas regras gerais do Código Civil.  

4. 4. - O Código do Trabalho de 2003, aqui aplicável, dispunha no seu art. 377º-1-b) que "os créditos emergentes do contrato de trabalho e da sua violação ou cessação, pertencentes ao trabalhador, gozam (…) de: - b) Privilégio imobiliário especial sobre os bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade".

De notar que a declaração de insolvência não produz efeitos sobre os contratos de trabalho, nomeadamente quanto à respectiva manutenção ou cessação, cabendo ao administrador da insolvência manter ou fazer cessar tais contratos, segundo os interesses de funcionamento da empresa, até ao seu encerramento definitivo (art. 391º CT).

Vale isto por dizer que, ao que aqui releva considerar, a lei não estabelece qualquer relação entre a cessação dos contratos de trabalho e o momento em que ela ocorra, por um lado, e o crédito e respectivas garantias, por outro.

No caso, trata-se de “créditos sobre a insolvência” em que nenhuma distinção se faz entre serem provenientes de despedimento pela entidade patronal ou, com a declaração de insolvência, pelo administrador da massa.

Ora, como se pode concluir das regra e princípios convocados, tais créditos, na medida em que beneficiem de privilégio imobiliário especial sobre bens da insolvência, estão por ele garantidos desde o momento da constituição da divida, acompanhando, por via da sequela típica das garantias reais, os bens eleitos pela lei, no caso, aqueles em que o empregado prestava a sua actividade laboral aquando da constituição da dívida que representa o seu crédito, independentemente de a extinção da relação laboral ter ocorrido com a declaração de insolvência ou antes dela, ainda por iniciativa do empregador.

4. 5. - Consequentemente, os créditos reclamados pelos Recorrentes poderão gozar do privilégio imobiliário previsto na al. b) do referido art. 377º do CT, para serem graduados segundo as regras fixadas no n.º 2-b) do mesmo preceito e 751º C. Civil.

Diz-se poderão - e não podem – porque em sede matéria de facto provada – que tanto a sentença como o acórdão recorrido se abstiveram de elencar – não consta qualquer referência ao local em que os Recorrentes exerciam a respectiva actividade laboral no exercício do vínculo contratual que os ligava à empresa agora Insolvente.

Tal relação, que é aquela que a norma exige para acoplar a garantia (real) ao crédito, é requisito do reconhecimento do privilégio imobiliário especial e incumbe sobre o reclamante demonstrá-la (art.342º-1 C. Civil).

4. 6. - Daí não resulta, porém, que, mau grado a indemonstração do facto, a decisão da Relação, agora com este fundamento de inverificação deste segundo requisito, deva manter-se.                                                 

Com efeito, constata-se que os Recorrentes, ao formularem os respectivos requerimentos de reclamação de créditos, alegaram terem tido “como local de trabalho inicialmente sito na Rua ... e posteriormente na Rua ..., bem como nos Lotes 14, 15 e 16 sitos na ..., e ainda em ...”, matéria que sendo susceptível, se provada, de preencher o pressuposto de que depende a garantia a que alude a al. b) do n.º 1 do art. 377º citado, foi completamente desconsiderada.                                                                                  

Julga-se, portanto, não constituir a matéria de facto disponível base suficiente para a decisão de direito sobre a pretensão dos Recorrentes, do mesmo passo que, tendo essa matéria sido tempestiva e adequadamente alegada, há condições para a ampliação da base de facto, ampliação a que deve proceder-se com o objectivo de averiguar, relativamente a cada um dos Recorrentes, o alegado no artigo 2º das respectivas petições, vale dizer, se e em quais dos prédios que referem, no âmbito do contrato de trabalho extinto pelo despedimento e por ocasião dessa extinção, prestavam a sua actividade ao serviço da Insolvente.   

 Impõe-se, assim, ordenar essa ampliação e ulterior julgamento da causa de harmonia com o quadro jurídico cujos contornos se deixaram definidos, tudo ao abrigo da situação excepcional contemplada nos arts. 729º-3 e 730º-1, ambos do CPC.     

4. 7. - Respondendo, em síntese final, à questão inicialmente colocada, poderá concluir-se:

- O momento relevante a atender na cessação do vínculo laboral para efeito de reconhecimento da garantia conferida por privilégio imobiliário especial sobre o bem imóvel em que o trabalhador presta a sua actividade é o da constituição do crédito que goza garantia, ou seja, o momento da efectiva cessação do contrato de trabalho, independentemente de a extinção da relação laboral ter ocorrido com a declaração de insolvência ou antes dela, ainda por iniciativa do empregador.

5. - Decisão:

Em conformidade com o exposto, acorda-se em:

 - Conceder parcialmente a revista e anular o julgamento da matéria de facto feito pela Relação, na parte em que implica alteração dos factos descritos no item II do acórdão impugnado;

- Ordenar a baixa do processo à Relação para ampliação da matéria de facto, com a finalidade de se apurar se e em que bens imóveis apreendidos para a massa insolvente era exercida a actividade laboral dos Recorrentes ao tempo do respectivo despedimento, e para novo julgamento da causa, de harmonia com o disposto no citado nº 1 do art. 730.º.

                   - As custas ficam a cargo da massa insolvente (arts. 303º e 304º CIRE).

Lisboa, 20 Outubro 2011

Alves Velho (relator)

Paulo Sá

Garcia Calejo