ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
763/11.8YRLSB.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/10/2011
SECÇÃO 5ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
DECISÃO PROVIDO PARCIALMENTE
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR SANTOS CARVALHO

DESCRITORES MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
PRESTAÇÃO DE GARANTIAS PELO ESTADO REQUERENTE
ENTREGA DIFERIDA OU CONDICIONAL
ÁREA TEMÁTICA DIREITO PROCESSUAL PENAL - MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
LEGISLAÇÃO NACIONAL CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO409.º, N.º1.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 32.º, N.ºS 1, 3 E 6.
LEI N.º 65/2003, DE 23-8: - ARTIGOS 3.º,N.º1 AL.C), 7.º, N.º1, 11.º, 12.º,13.º, 22.º, N.º2.
JURISPRUDÊNCIA NACIONAL ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 02.03.2011, PROCESSO N.º 213/10.7YRPRT.E1.S1.

DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA DECISÃO QUADRO N.º 2002/584/JAI, DO CONSELHO, DE 13-6 (N.º 2).
DECISÃO QUADRO 2009/299/JAI: - ARTIGO 4.º-A.


SUMÁRIO
I - O Supremo Tribunal de Justiça tem-se pronunciado noutras ocasiões sobre os casos em que o MDE contém erros ou imprecisões de conteúdo, sempre no sentido de que não constituem, por si só, uma causa de recusa de cumprimento, pois tal não está previsto na Lei. Mas obriga a que o Estado emissor deva fazer correcções ou esclarecimentos posteriores, desde que ao recorrente sejam facultados atempadamente os meios de defesa, nomeadamente o de ser ouvido e de poder opor-se oralmente ou por escrito antes da decisão final.

II - Também para salvaguarda desses direitos de defesa, as correcções posteriores devem constar da decisão que vier a ordenar a entrega do requerido, pois só assim se poderá cumprir integralmente o princípio da especialidade.

III - Parece resultar que para o ordenamento jurídico búlgaro, ou, pelo menos, para uma certa e determinada interpretação desse ordenamento, a circunstância de o ora recorrente ter sido representado por um advogado no julgamento que se efectuou, ao qual foram notificadas as decisões judiciais em causa, tornam definitiva a condenação proferida (a 20 anos de prisão por crime de homicídio), apesar de o recorrente nunca ter sido notificado pessoalmente para qualquer termo do processo e desse advogado nem sequer ter sido constituído por si, mas pelo seu Pai.

IV - Tal orientação não pode ser aceite face aos princípios gerais da Constituição da República Portuguesa e aos que se encontram vertidos no processo penal português, pois não pode haver julgamento penal válido e eficaz sem que ao arguido sejam concedidos todos os meios de defesa, entre os quais avultam o de se lhe dar conhecimento pessoal dos factos imputados e o de se lhe facultar a possibilidade de se defender pessoalmente no julgamento (direito de audiência).

V - Assim, o Estado português não deveria admitir a entrega do condenado se a condenação em causa, proferida na absoluta revelia do arguido, fosse considerada definitiva, isto é, transitada em julgado, pois tal iria contra os princípios básicos do nosso ordenamento jurídico, nomeadamente, contra o disposto no art.º 32.º, n.ºs 1, 3 e 6, da Constituição da República Portuguesa.

VI - O artigo 13.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, sob a epígrafe “Garantias a fornecer pelo Estado membro de emissão em casos especiais”, menciona que garantias são essas no caso de o mandado de detenção europeu ter sido emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança imposta por uma decisão proferida na ausência do arguido e se a pessoa em causa não tiver sido notificada pessoalmente ou de outro modo informada da data e local da audiência que determinou a decisão proferida na sua ausência.

VII - Entretanto, como bem alerta o Ac. do STJ de 02.03.2011, proc. 213/10.7YRPRT.E1.S1, “foi proferida a Decisão Quadro 2009/299/JAI do Conselho de 26 de Fevereiro de 2009 que alterou as Decisões Quadro 2002/584/JAI, 2005/214/JAI, 2006/783/JAI, 2008/909/JAI e 2008/947/JAI, e que reforça os direitos processuais das pessoas e promove a aplicação do princípio do reconhecimento mútuo no que se refere às decisões proferidas na ausência do arguido”.

VIII - Tal Decisão Quadro, que entrou em vigor em 28.03.2011, ainda não foi transposta para o direito português interno, mas, mesmo inexistindo norma interna, há uma obrigação do tribunal nacional de interpretação à luz do teor e finalidade da decisão quadro, tendo como limite o respeito pelos princípios gerais de direito do Estado Membro em causa.

IX - Para o caso ora em apreço, há que realçar que, no presente momento, o Estado búlgaro ainda não deu garantias suficientes, face ao disposto no art.º 4.º-A da Decisão Quadro 2009/299/JAI. Com efeito:
- O recorrente nunca foi notificado pessoalmente para qualquer termo do processo e não esteve presente no julgamento;

- Não foi notificado pessoalmente e desse modo informado da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão;

- Não foi informado de que essa decisão podia ser proferida mesmo não estando presente no julgamento;

- Não conferiu mandato a um defensor designado por si ou pelo Estado para a sua defesa em tribunal;

- Não foi notificado da decisão e expressamente informado do direito a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial;

- Não declarou expressamente que não contestava a decisão;

- Já requereu novo julgamento, por mera cautela de patrocínio, mas ainda não lhe foi comunicado que o requerimento foi deferido;

- Não foram dadas garantias formais de que será notificado pessoalmente da decisão sem demora na sequência da entrega e será expressamente informada do direito que lhe assiste a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial.

X- O crime de homicídio para o ordenamento jurídico búlgaro pode ser punido até prisão perpétua. Contudo, o ordenamento constitucional português não permite tal pena de prisão perpétua e é um princípio estruturante do processo penal de que, após recurso de uma decisão condenatória movido exclusivamente pela defesa, a nova sentença que venha a ser proferida, pelo tribunal de recurso ou pela 1ª instância, não aplique pena mais grave do que a da decisão anterior. É o princípio da proibição da reformatio in pejus, incluído no art.º 409.º, n.º 1, do CPP que se pronuncia sobre os recursos, mas cujos fundamentos a jurisprudência faz estender a todo o processo penal.

XI - A Procuradora de Burgas fez saber, por ofício que remeteu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que esse princípio também é cumprido no processo penal búlgaro. Todavia, apesar de tal ter sido pedido, o Estado Búlgaro ainda não forneceu essa garantia formal.

XII – Assim, há que ordenar a entrega do cidadão búlgaro, para cumprimento do MDE emitido, com a correcção adequada quanto às sentenças condenatórias em causa, ficando a entrega sujeita às seguintes condições resolutivas:

1ª- As referidas decisões serão notificadas pessoalmente ao dito cidadão, sem demora na sequência da entrega e este será expressamente informado do direito que lhe assiste a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial;

2ª- A pena que nessa sequência eventualmente lhe venha a ser imposta não pode ser superior a “20 anos de privação da liberdade sob regime inicial estritamente rigoroso”.



DECISÃO TEXTO INTEGRAL

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. Por acórdão de 18 de Outubro de 2011, o Tribunal da Relação de Lisboa determinou a execução do mandado de detenção europeu emitido pela Procuradoria Distrital de Burgas, República da Bulgária, contra o cidadão desse País A, para cumprimento de uma pena de 20 anos de prisão e a consequente entrega à competente autoridade judiciária desse País.


2. Desse Acórdão recorre agora o requerido para o Supremo Tribunal de Justiça e, da sua fundamentação, retira as seguintes conclusões:

I - O Douto Acórdão recorrido valida, incorrectamente, um MDE fundamentado numa sentença absolutória.

II - O Douto Acórdão recorrido viola o preceituado na al. a) do art.º 13° da Lei n.º 65/2003 de 23 de Agosto pois, defere a execução do MDE que não garante a efectiva realização de um novo julgamento ao detido

III - O Douto Acórdão recorrido viola a Decisão Quadro 2009/299/JAI, nomeadamente o seu art.º 4-A, quando manda executar um MDE que não está conforme com o formulário pré-estabelecido actualmente em vigor, nem contém, de forma directa ou indirecta os elementos elencados pela referida norma, como obrigatórios num MDE

IV - O Acórdão recorrido ao considerar que A foi representado por advogado que não foi por ele constituído, viola (à semelhança do que fez o Estado Búlgaro) os conceitos fundamentais do mandato (nomeadamente os artigos 268.° e 1157.° ambos do CC português) e, indirectamente, convalida uma notificação da sentença condenatória, feita na pessoa do advogado.

V - O Acórdão recorrido ao executar um MDE que considera que a notificação da sentença foi efectuada em Portugal, no dia 24 de Agosto de 2011, e que a partir de então começou a decorrer o prazo para requerer novo julgamento, viola, mais uma vez, o preceituado na Decisão Quadro 2009/299/JAI, e do actual ponto 3.4 do formulário do MDE actualmente em vigor que determina que a Sentença condenatória tem que ser notificada ao extraditando aquando da chegada à Bulgária e que o prazo para requerer novo julgamento só então é que se inicia.

VI - O Douto Acórdão recorrido inquina de interpretação errónea à garantia prestada, pois aquela apenas remete para o n.º 1 do art.º 423.º do CPP búlgaro, o qual estipula uma possibilidade de requerer um novo julgamento, condicionada a pressupostos e não uma garantia efectiva, incontornável

VII - O Douto Acórdão recorrido incorre em erro quando considera de aplicar o n.º 5 do citado art.º 423.º do CPP búlgaro, que não consta do MDE no âmbito das garantias, nem dos "esclarecimentos" posteriormente prestados ao Tribunal Português (e que o TRL apenas teve conhecimento pelos documentos juntos aos autos pelo ora recorrente), pelo que não pode ser entendido/interpretado como garantia efectivamente prestada pelo Estado Búlgaro.

VIII - Que se exija às Autoridades Búlgaras o envio do formulário do MDE actualmente em vigor e constante da Decisão Quadro 2009/299/JAI, o qual contém os pontos sobre os quais tem de incidir a garantia solicitada, sob pena de se violar uma disposição imperativa em todo o território da Comunidade Económica Europeia, e, implicitamente o artigo 13.° al. a) da Lei 65/2003 de 23 de Agosto e as seguintes disposições constantes da Constituição da República Portuguesa: artigos 7° n.º 1, 8.°, 9.° al. b), 15.° n.º 1, 16.° n.º 1, 22.° e 32.° n.º 6.

Nestes termos, e nos demais de Direito, e sempre com o mui Douto Suprimento de V. Exas, deve ser considerado procedente o presente recurso, revogando-se o Acórdão proferido pelo TRL, e em sua substituição, proferida decisão superior que determine:

1. Que o MDE só será executado quando:

- O Estado Búlgaro prestar as garantias que A terá direito, sem quaisquer condicionantes, a um novo julgamento, e consequente anulação das Sentenças condenatórias anteriormente proferidas, nos termos dos artigos 421.º n. 2 e 422, al. 1, p. 6, ambos do C.P.P. Búlgaro.

- O Estado Búlgaro apresente Garantia prestada pelo Procurador Geral da República da Bulgária que requererá a abertura do processo penal a A, no prazo máximo de uma semana a partir da data que tiver conhecimento que a extradição foi concedida, nos termos do preceituado no art.º 421.° n.º 2 do CPP Búlgaro.

2. Conceder ao Estado Búlgaro um prazo para a prestação das garantias em 1., sob pena do mandado não vir a ser cumprido.

3. Decretar-se de imediato a suspensão, ou interrupção da detenção, de acordo com o preceituado no n.º 3 do art.º 4-A da Decisão Quadro 2009/299/JAI e conforme Jurisprudência consagrada no Acórdão do STJ de 10-09-2009 do Proc. N° 134/09.

 - Que o Tribunal da Relação exija ao Estado Búlgaro novo MDE, totalmente preenchido, na versão actualmente em vigor, segundo o modelo constante da Decisão ­Quadro 2009/299/JAI, a fim de poder aferir das garantias prestadas, cumprindo-se, assim, o imperativo legal que vigora para todos os Países da Comunidade Europeia, não só do formulário, mas essencialmente das garantias que actualmente devem ser exigidas em casos de indivíduos julgados à revelia (como é o caso), ficando a entrega do detido dependente do recebimento de tal MDE, e que as Autoridades Búlgaras têm de enviar num prazo a ser determinado pelo Tribunal da Relação de Lisboa.


3. O M.º P.º respondeu ao recurso e concluiu:
I. Este MDE tem os necessários elementos em conformidade com o artigo 3° da Lei 65/2003 de 23/8.

II. O regime jurídico do MDE foi aceite por acordo dos Estados Membros da União Europeia não se podendo por isso considerar que a sua execução possa constituir uma violação da lei.

III. Por outro lado também este Tribunal considerou que o Estado de emissão garantiu a faculdade de o recorrente requerer novo julgamento (cf. fls. 422).

IV. Não se pode considerar como pretende o recorrente que se trata de uma garantia condicionada, insinuando ter o Estado búlgaro subterfúgios legais para frustrar tal garantia.

V. Tal suspeição contraria a essência e a natureza jurídica do MDE.

VI. O MDE rege-se por um critério de suficiência, isto é, o Estado da execução não deve precisar de mais informação do que aquelas que figuram no formulário pré-estabelecido devendo a sua eficiência ser de teor quase automático na medida em que só em casos taxativamente limitados se podem erguer barreiras de inexecução.

Em conformidade deverá ser negado provimento ao recurso mantendo-se o Acórdão recorrido.


4. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência com o formalismo legal.

Cumpre decidir.

As questões principais a decidir são as seguintes:

1ª Se faltam os requisitos legais ao MDE em causa, pois fundamenta-se numa sentença absolutória (n.º 84), quando a condenação e a pena foram determinadas pelas sentenças n.ºs 46 e 663.

2ª- Se a decisão condenatória proferida contra o recorrente transitou em julgado, pois a mesma foi notificada ao advogado que o defendeu no julgamento.

3ª- Se o acórdão recorrido manda executar um MDE que não obedece aos parâmetros actualmente em vigor, por força da Decisão Quadro 2009/299/JAI do Conselho de 26 de Fevereiro de 2009.

4ª- Se foram dadas garantias de que ao recorrente, no novo julgamento, não será aplicada pena de prisão superior a 20 anos.

5. FACTOS ASSENTES

1. A pessoa procurada, A, é cidadão nacional da República da Bulgária.

2. A Procuradoria Distrital de Burgas emitiu, em 18.07.2008, mandado de detenção europeu contra aquele cidadão búlgaro, do qual constam, além dos elementos de identificação da pessoa procurada, as seguintes informações:

a) A detenção e entrega de A tem em vista o cumprimento de uma pena de 20 anos de prisão;

b) A pena a cumprir resulta de condenação proferida no processo identificado como PPCC n. ° 171/2003 do Tribunal Distrital de Burgas, pela sentença n. ° 84/02.07.2004, transitada em julgado ("entrada em vigor") em 11.10.2007;

c) O requerido foi condenado, como "cúmplice e instigador", de um crime de homicídio previsto e punível pelos artigos 116.°, al. 1, § 9, e 20.º, alíneas 3 e 4, do Código Penal da Bulgária, consubstanciado nos seguintes factos (em resumo): na Primavera do ano de 2002, A encontrou-se com B e prometeu pagar-lhe a quantia de 100 000 BGN (aproximadamente € 50 000,00) se este matasse C. O referido B aceitou executar a tarefa que lhe foi proposta e, com esse objectivo, A e D entregaram-lhe uma espingarda com mira telescópica, de atirador furtivo. No dia 21.11.2002, tal como havia combinado com A, B colocou-se sobre o telhado de um edifício, sito em Burgas, aí aguardando a chegada de C que, nesse local, andava a construir um hotel. Quando C chegou ao local e saiu da sua viatura automóvel, ficou momentaneamente parado junto do escritório da "M Tel" SA. Então, B, apontou a dita espingarda de mira telescópica a Stamatov, que estava de costas para ele, e efectuou um disparo. O projéctil disparado entrou pela parte superior esquerda das costas de C atingiu-o no coração e num pulmão, assim lhe causando a morte. Alguns dias depois, B encontrou-se com D, amigo de A, que lhe entregou a quantia de 10 000 USD.

d) Ao crime imputado corresponde a pena máxima de prisão perpétua.

e) A foi julgado e condenado na sua ausência (à revelia), nas condições estabelecidas no art.º 268.º, al. 3, do Código de Processo Penal da Bulgária então em vigor (actualmente, art. ° 269.°, al. 3, letra a), do Código de Processo Penal búlgaro), por haver noticia de que se ausentou do país e não voltou.

f) No seu artigo 423.º, al. 1, o Código de Processo Penal da República da Bulgária garante ao condenado à revelia o direito a requerer, no prazo de seis meses a contar do conhecimento da sentença condenatória transitada em julgado, a reabertura do procedimento criminal.

3. Inicialmente, pela sentença n.º 84, de 02.07.2004, apenas o réu B foi considerado culpado e condenado pelo crime de homicídio, tendo o aqui requerido A sido absolvido, e a decisão da primeira instância foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Burgas, pela decisão de apelação n.º 53, de 13.06.2005. Porém, o Supremo Tribunal de Cassação da República da Bulgária, primeira secção penal, revogou essa decisão na parte relativa ao crime de homicídio e determinou a devolução do processo para novo julgamento. Pela sentença n.º 46, de 09.03.2007, o Tribunal da Relação de Burgas revogou, na parte relativa ao crime de homicídio do artigo 116.°, al. 1, § 9, do Código Penal búlgaro, a sentença n.º 84, de 02.07.2004, do Tribunal Distrital de Burgas e, além dos outros dois réus, condenou o aqui requerido A, como "instigador e ajudante", pelo crime de homicídio na pessoa de C, na pena de 20 anos de privação da liberdade. A sentença n.º 46, de 09.03.2007, do Tribunal da Relação de Burgas foi integralmente confirmada pelo Supremo Tribunal de Cassação da República da Bulgária, primeira secção penal, pela sentença n.º 663, de 11.10.2007.

4- No julgamento efectuado, A foi representado pelo advogado E, da Ordem dos Advogados de Sófia, devidamente autorizado, mediante contrato de defesa judiciária e cooperação, pelo seu pai, F.

5. A pessoa procurada declarou não renunciar à regra da especialidade.

6. O requerido abandonou o seu país em 23.11.2002 e, desde então, não mais lá voltou, tendo estado em vários países europeus antes de vir para Portugal.

6. APRECIAÇÃO JURÍDICA

I – DO ERRO DA INSERÇÃO NO MDE DA DATA E NÚMERO DA SENTENÇA COM FORÇA EXECUTIVA

 
O mandado de detenção europeu (MDE) é uma decisão judiciária emitida por um Estado membro com vista à detenção e entrega por outro Estado membro de uma pessoa procurada para efeitos de procedimento criminal ou para cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas da liberdade (art.º 1.º, n.º 1, da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto). O mandado de detenção europeu é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na presente lei e na Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho (n.º 2).
Trata-se de um instrumento destinado a reforçar a cooperação entre as autoridades judiciárias dos Estados-Membros suprimindo o recurso à extradição, pelo que os seus procedimentos são expeditos e com prazos reduzidos, embora com total salvaguarda dos direitos constitucionais de defesa.
A lei prevê causas de recusa obrigatória de execução do mandado (art.º 11.º) e outras que são de recusa facultativa (art.º 12.º).
Contudo, antes de mais, o mandado é um instrumento jurídico que obedece a requisitos de conteúdo e forma, que se encontram descritos no art.º 3º.
Entre os mesmos avulta, para o caso que agora temos em apreço, o disposto na al. c) do n.º 1, onde se exige a “indicação da existência de uma sentença com força executiva, de um mandado de detenção ou de qualquer outra decisão judicial com a mesma força executiva nos casos previstos nos artigos 1.º e 2.º”.
O mandado em apreço nestes autos contém a seguinte indicação: “Acto, em virtude do qual foi emitido o mandado: - Sentença entrada em vigor aos 11.10.2007. Sentença n.º 84/02.07.2004 referente ao PPCC n.º 171/2003 do Tribunal Regional de Burgas”.
Ora, pedidos esclarecimentos ao Tribunal de Burgas, pois não era perceptível qual a razão por que uma sentença de Julho de 2004 só “entrara em vigor” em Outubro de 2007, veio a constatar-se que a sentença referida no mandado de detenção europeu, com o n.º 84, fora a primeira proferida naquele processo e que tinha sido absolutória em relação ao recorrente, acusado como “instigador” e “ajudante” de um homicídio [no nosso direito seria considerado autor ou “mandante”], absolutória também em relação a outro co-arguido que teria sido cúmplice ou “ajudante”, mas condenatória quanto a um terceiro co-arguido, autor material do crime. Tal sentença veio a ser confirmada pelo Tribunal da Relação de Burgas (apelação n.º 53 de 13.06.2005), mas esta última decisão foi parcialmente revogada, quanto aos arguidos absolvidos, pela cassação n.º 62 de 17.03.2006 do Supremo Tribunal de Cassação. Após nova decisão do Tribunal da Relação de Burgas (n.º 46 de 09.03.2007), o recorrente foi condenado como “instigador e ajudante” do homicídio na pena de “20 anos de privação da liberdade sob regime inicial estritamente rigoroso”, a qual foi confirmada com a sentença n.º 663 de 11.10.2007 do Supremo Tribunal de Cassação.
Constatou-se, pois, que houve um erro no MDE no que respeita à indicação da sentença com força executiva aí indicada, pois não era a n.º 84 de 02.07.2004 do Tribunal Regional de Burgas, mas as n.ºs 46 e 663, proferidas, respectivamente, no Tribunal da Relação de Burgas em 11.03.2007 e no Supremo Tribunal de Cassação da República da Bulgária em 11.10.2007, embora o processo estivesse ali correctamente indicado e fosse materialmente sempre o mesmo nas diversas decisões proferidas ao longo do tempo (com os n.ºs próprios de cada tribunal). De resto, os factos imputados ao recorrente estavam indicados no MDE (embora de forma demasiado alongada para o que se pede nesse instrumento) e também estava correctamente indicada a sua identidade e qual a pena que teria de cumprir no País emissor do mandado.
Não se pode falar, assim, senão num erro material, pois quem escreveu o mandado colocou a data e o número da primeira decisão proferida no processo, quando deveria ter colocado a última (ou as duas últimas). Erro de escrita esse que, contudo, não afectou a essência do que era pedido pelo Estado emissor do MDE, pois prontamente foi corrigido.
Já o Supremo Tribunal de Justiça se tem pronunciado noutras ocasiões sobre os casos em que o MDE contém erros ou imprecisões de conteúdo, sempre no sentido de que não constituem, por si só, uma causa de recusa de cumprimento, pois tal não está previsto na Lei. Mas obriga a que o Estado emissor deva fazer correcções ou esclarecimentos posteriores, desde que ao recorrente sejam facultados atempadamente os meios de defesa, nomeadamente o de ser ouvido e de poder opor-se oralmente ou por escrito antes da decisão final.
É nesse sentido que se deve interpretar o art.º 22.º n.º 2, da Lei n.º 65/2003, onde se dispõe que “Se as informações comunicadas pelo Estado membro da emissão forem insuficientes para que se possa decidir da entrega, são solicitadas com urgência as informações necessárias, podendo ser fixado prazo para a sua recepção para que possam ser cumpridos os prazos estabelecidos no art.º 26.º”. O AC. do STJ de 11.08.2006, proc. 3073/06, citado pelo recorrente, debruça-se sobre uma situação completamente diferente, a de haver omissões ou erros na inserção do Sistema de Informação Shengen, corrigidas pela emissão posterior do MDE.
É certo que “Idealmente a autoridade solicitada não deve necessitar de mais informações do que aquelas que foram fornecidas de acordo com o formulário pré estabelecido” no MDE (acórdão do STJ de 02.03.2011, proc. 213/10.7YRPRT.E1.S1).
Mas, as incorrecções ou omissões constantes do formulário do MDE não obrigam a emissão de um novo MDE nem são causa da sua nulidade, desde que sejam posteriormente corrigidas pelo Estado que o emitiu e com total salvaguarda dos direitos de defesa. Por outro lado, também para salvaguarda desses direitos de defesa, as correcções posteriores devem constar da decisão que vier a ordenar a entrega do requerido, pois só assim se poderá cumprir o princípio da especialidade, segundo o qual “A pessoa entregue em cumprimento de um mandado de detenção europeu não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infracção praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do mandado de detenção europeu” (art.º 7.º, n.º 1, da Lei n.º 65/2003).
Ora, no caso em apreço, o recorrente teve conhecimento das informações complementares, nomeadamente, do texto da sentença n.º 663 de 11.10.2007 do Supremo Tribunal de Cassação da República da Bulgária e foi-lhe permitido pronunciar-se sobre as mesmas, quer oralmente quer por escrito.
Por isso, não há a “nulidade” do MDE apontada pelo recorrente, nem há aqui uma causa de recusa na entrega do mesmo ao Estado requisitante.
     

II – DA “ENTRADA EM VIGOR” DA SENTENÇA CONDENATÓRIA

No MDE, como vimos, considera-se a sentença proferida contra o requerente como “entrada em vigor aos 11.10.2007”.
Em ofício posterior, remetido pela Procuradoria Regional da Cidade de Burgas, lê-se o seguinte (mantendo-se aqui o texto tal como está no processo, com erros de português na tradução, mas perceptível):

“Enviamos cópia da sentença N. 663/11.10.2007 do Supremo Tribunal de Cassação da República da Bulgária, segundo a qual a Condena N.º46/09.03.2007 do Tribunal de Relação da cidade de Burgas fica em vigor.

A sentença do Supremo Tribunal de Cassação é definitiva e entrou em vigor aos 11.10.2007.

A condena e a sentença citadas foram pronunciadas sob as condições do art.268, al. I do Código do Processo Penal (texto legal revogado, actualmente art. 269 do Código do Processo Penal) cujos textos resolvem o processo judiciário à revelia, sem presença do incriminado. A não tem prestado declarações no processo. Evidencia-se da carta do Director do Serviço Nacional "Polícia das Fronteiras" que A tem abandonado a República da Bulgária 110 dia 23.11.2002 (o crime foi cometido aos 21.11.2002). Desde o 09.12.2002 A está a ser procurado pelos órgãos da Justiça.

No processo penal de carácter comum 171/2003, A foi representado pelo advogado E da Ordem dos Advogados de Sofia, devidamente autorizado mediante contrato de defesa judiciária e cooperação 3J134 do 24.09.2003 pejo pai do A - F. Junto enviamos cópia do documento citado em búlgaro.

Devido ao facto de que desde que fora pronunciada a sentença até ao momento actual A se tem estado escondendo dos órgãos judiciários da República da Bulgária, a mesma lhe não fora entregue pessoalmente, mas foi informado dela o seu advogado defensor E.”

Daqui parece resultar que para o ordenamento jurídico búlgaro, ou, pelo menos, para uma certa e determinada interpretação desse ordenamento, a circunstância de o ora recorrente ter sido representado por um advogado no julgamento que se efectuou, ao qual foram notificadas as decisões judiciais em causa, tornam definitiva a condenação proferida, apesar de o recorrente nunca ter sido notificado pessoalmente para qualquer termo do processo e desse advogado nem sequer ter sido constituído por si, mas pelo seu Pai.
Tal orientação não pode ser aceite face aos princípios gerais da Constituição da República Portuguesa e aos que se encontram vertidos no processo penal português, pois não pode haver julgamento penal válido e eficaz sem que ao arguido sejam concedidos todos os meios de defesa, entre os quais avultam o de se lhe dar conhecimento pessoal dos factos imputados e o de se lhe facultar a possibilidade de se defender pessoalmente no julgamento (direito de audiência). Mesmo nos casos em que a nossa lei admite o julgamento sem a presença do arguido, é exigência prévia de que o mesmo seja notificado pessoalmente de que o julgamento se fará em tal dia e hora, mesmo na sua ausência e que, no caso de não estar presente, a sentença será notificada ao defensor por ele escolhido ou designado previamente pela ordem dos Advogados, mas com o seu conhecimento.
Assim, o Estado português não deveria admitir a entrega do condenado se a condenação em causa, proferida na absoluta revelia do arguido, fosse considerada definitiva, isto é, transitada em julgado, pois tal iria contra os princípios básicos do nosso ordenamento jurídico, nomeadamente, contra o disposto no art.º 32.º, n.ºs 1, 3 e 6, da Constituição da República Portuguesa.
Por isso, há que colocar agora o problema de ao ora recorrente ser facultado o direito a um novo julgamento, ou, em alternativa, a um recurso onde lhe seja permitido discutir toda a matéria em causa, incluindo a matéria de facto, de modo a que possa defender-se pessoalmente da imputação criminal que lhe é feita, como condição para a entrega do mesmo ao Estado requisitante, pois só assim ficarão salvaguardados os seus direitos de defesa.

III – DA DECISÃO QUADRO 2009/299/JAI DO CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA


O artigo 13.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, sob a epígrafe “Garantias a fornecer pelo Estado membro de emissão em casos especiais”, determina que a execução do mandado de detenção europeu só terá lugar se o Estado membro de emissão prestar uma das seguintes garantias: a) Quando o mandado de detenção europeu tiver sido emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança imposta por uma decisão proferida na ausência do arguido e se a pessoa em causa não tiver sido notificada pessoalmente ou de outro modo informada da data e local da audiência que determinou a decisão proferida na sua ausência, só será proferida decisão de entrega se a autoridade judiciária de emissão fornecer garantias consideradas suficientes de que é assegurada à pessoa procurada a possibilidade de interpor recurso ou de requerer novo julgamento no Estado membro de emissão e de estar presente no julgamento.
Como já se disse, essa Lei resultou do imperativo de dar cumprimento à Decisão Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho.
Entretanto, como bem alerta o Ac. do STJ de 02.03.2011 anteriormente citado, “foi proferida a Decisão Quadro 2009/299/JAI do Conselho de 26 de Fevereiro de 2009 que alterou as Decisões Quadro 2002/584/JAI, 2005/214/JAI, 2006/783/JAI, 2008/909/JAI e 2008/947/JAI, e que reforça os direitos processuais das pessoas e promove a aplicação do princípio do reconhecimento mútuo no que se refere às decisões proferidas na ausência do arguido”.
Tal Decisão Quadro, que entrou em vigor em 28.03.2011, ainda não foi transposta para o direito português interno, mas, mesmo inexistindo norma interna, importa recordar a decisão do Tribunal de Justiça no caso Pupino (processo C-105/03, acórdão de 16 de Junho de 2005), da qual decorre uma obrigação do tribunal nacional de interpretação conforme do direito nacional à luz do teor e finalidade da decisão quadro, tendo como limite o respeito pelos princípios gerais de direito do Estado Membro em causa.
Na parte que ora importa, determina essa Decisão Quadro:

Artigo 4º-A

Decisões proferidas na sequência de um julgamento no qual o arguido não tenha estado presente:

1. A autoridade judiciária de execução pode também recusar a execução do mandado de detenção europeu emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade se a pessoa não tiver estado presente no julgamento que conduziu à decisão, a menos que do mandado de detenção europeu conste que a pessoa, em conformidade com outros requisitos processuais definidos no direito nacional do Estado-Membro de emissão:

a) Foi atempadamente

I) notificada pessoalmente e desse modo informada da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão, ou recebeu efectivamente por outros meios uma informação oficial da data e do local previstos para o julgamento, de uma forma que deixou inequivocamente estabelecido que tinha conhecimento do julgamento previsto,

II) informada de que essa decisão podia ser proferida mesmo não estando presente no julgamento;

ou

b) Tendo conhecimento do julgamento previsto, conferiu mandato a um defensor designado por si ou pelo Estado para a sua defesa em tribunal e foi efectivamente representada por esse defensor no julgamento;

ou

c) Depois de ter sido notificada da decisão e expressamente informada do direito a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial:

I) declarou expressamente que não contestava a decisão,

ou

II) não requereu novo julgamento ou recurso dentro do prazo aplicável;

ou

d) Não foi notificada pessoalmente da decisão, mas:

I) será notificada pessoalmente da decisão sem demora na sequência da entrega e será expressamente informada do direito que lhe assiste a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial,

e

II) será informada do prazo para solicitar um novo julgamento ou recurso, constante do mandado de detenção europeu pertinente.

2. No caso de o mandado de detenção europeu ser emitido para efeitos de cumprimento de uma pena ou medida de segurança privativas de liberdade, nas condições da alínea d) do nº 1, e de a pessoa em causa não ter recebido qualquer informação oficial prévia sobre a existência do processo penal que lhe é instaurado, nem ter sido notificada da decisão, a pessoa, ao ser informada sobre o teor do mandado europeu de detenção, pode requerer que lhe seja facultada cópia da decisão antes da entrega. Imediatamente após ter sido informada do requerimento, a autoridade de emissão faculta a cópia da decisão à pessoa procurada por intermédio da autoridade de execução. O facto de ser facultada essa cópia da decisão não deve atrasar o processo de entrega nem retardar a decisão de executar o mandado europeu de detenção. A decisão é facultada à pessoa em causa a título meramente informativo; esta comunicação não é considerada como uma notificação formal da decisão nem relevante para a contagem de quaisquer prazos aplicáveis para requerer novo julgamento ou interpor recurso.

3. No caso de a pessoa ser entregue nas condições da alínea d) do nº 1 e ter requerido um novo julgamento ou interposto recurso, a detenção da pessoa que aguarda esse novo julgamento ou recurso é, até estarem concluídos tais trâmites, revista em conformidade com a lei do Estado-Membro de emissão, quer oficiosamente quer a pedido da pessoa em causa. Essa revisão inclui nomeadamente a possibilidade de suspensão ou interrupção da detenção. O novo julgamento ou recurso tem início num prazo atempado após a entrega.".

Para o caso ora em apreço, há que realçar que, no presente momento, o Estado búlgaro ainda não deu garantias suficientes, face ao disposto no art.º 4.º-A da Decisão Quadro 2009/299/JAI.
Com efeito:
- O recorrente nunca foi notificado pessoalmente para qualquer termo do processo e não esteve presente no julgamento;

- Não foi notificado pessoalmente e desse modo informado da data e do local previstos para o julgamento que conduziu à decisão;

- Não foi informado de que essa decisão podia ser proferida mesmo não estando presente no julgamento;

- Não conferiu mandato a um defensor designado por si ou pelo Estado para a sua defesa em tribunal;

- Não foi notificado da decisão e expressamente informado do direito a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial;

- Não declarou expressamente que não contestava a decisão;

- Já requereu novo julgamento, por mera cautela de patrocínio, mas ainda não lhe foi comunicado que o requerimento foi deferido;

- Não foram dadas garantias formais de que será notificado pessoalmente da decisão sem demora na sequência da entrega e será expressamente informada do direito que lhe assiste a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial.

É certo que a legislação actualmente em vigor quanto ao processo penal na República da Bulgária, cuja transcrição foi facultada pelo ora recorrente, parece favorecer a ideia de que este terá direito a um novo julgamento, após a sua entrega às autoridades judiciais búlgaras:

Artigo 421.

(…)

(3) (Novo - DR nº 109 de 2008) O condenado pode fazer o requerimento nos termos do art. 422, al. 1, p. 5 no prazo de seis meses a partir da entrada em vigor do acto correspondente. Se for condenado na sua ausência, o prazo começa a decorrer a partir da data da tomada de conhecimento por parte do condenado relativamente à entrada em vigor da decisão.

( ... )

Motivos da reabertura

Artigo 422.

(…)

6. For concedida extradição nos casos de julgamento em ausência, com a garantia do Estado Búlgaro de reabertura do processo penal, pelo crime que serviu de propósito para a concessão da extradição.

( ... )

Reabertura de processos penais por pedido de condenados em ausência, devido à sua não participação no processo penal

Artigo 423.

(5) (Alterado - DR, nº 109 de 2008) Quando o requerimento for feito por um condenado na sua ausência, entregue à Republica da Bulgária por um país estrangeiro, na apresentação de garantias de que o processo será reaberto, o tribunal reabre o processo, sem tomar em consideração, se a pessoa condenada teve conhecimento sobre o processo instruído contra ela.

Mas a Procuradora de Burgas, quando o Tribunal da Relação solicitou que o Estado Búlgaro desse garantias de um novo julgamento, remeteu um ofício com uma informação dúbia. Na verdade, após descrever a situação, diz o seguinte:

 “No Mandado de detenção europeu, secção D, nós indicamos a possibilidade legal de garantia conforme a legislação criminal búlgara, sendo esta representada na possibilidade de o condenado requisitar do Supremo Tribunal de Cassação da República da Bulgária uma renovação do procedimento criminal – art. 423 do CPP. Esta possibilidade o condenado deve exercer no prazo de 6 meses após o conhecimento da existência da sentença transitada em julgado. É o caso de sublinhar que a partir do momento da detenção da pessoa condenada em Portugal a 24.08.2011, A teve conhecimento da sentença proferida contra ele, isto é, actualmente está a decorrer o prazo de seis meses segundo a legislação búlgara em que o condenado pode pedir uma renovação do procedimento criminal».

Ora, por um lado, ainda não há trânsito em julgado da sentença condenatória, como explicámos anteriormente, por outro, o novo julgamento (ou um recurso amplo), se requerido pelo condenado, é um direito que não pode ser recusado mesmo pelo Supremo Tribunal de Cassação da República da Bulgária. Para além de que o referido art.º 4.º-A da Decisão Quadro não admite que já esteja a decorrer qualquer prazo, pois «2. (…) A decisão [condenatória] é facultada à pessoa em causa a título meramente informativo; esta comunicação não é considerada como uma notificação formal da decisão nem relevante para a contagem de quaisquer prazos aplicáveis para requerer novo julgamento ou interpor recurso”.

Por isso, teria sido preferível, face ao pedido das autoridades portuguesas, que o Estado Búlgaro – e não uma sua Procuradora – tivesse dado garantias formais, nos termos da referida Decisão Quadro, de que a pessoa a entregar «será notificada pessoalmente da decisão sem demora na sequência da entrega e será expressamente informada do direito que lhe assiste a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial».

Não existindo ainda essas garantias formais, mas havendo uma forte convicção de que a actual legislação búlgara contém iguais obrigações, a entrega do recorrente não deve ser recusada, embora deva ficar condicionada ao cumprimento estrito da Decisão Quadro 2009/299/JAI.

IV – DAS GARANTIAS DE QUE NÃO HAVERÁ REFORMATIO IN PEJUS E DE QUE NÃO SERÁ APLICADA AO RECORRENTE PENA SUPERIOR A 20 ANOS DE PRISÃO NO NOVO JULGAMENTO OU NO RECURSO QUE VENHA A SER INTERPOSTO

Como se viu, o recorrente foi condenado numa pena de 20 anos de prisão, mas tem direito a um novo julgamento, aliás já requerido, ou, em alternativa, a um recurso em que amplamente possa discutir toda a matéria de facto e a de direito, inclusive com apresentação de novas provas.

O crime de homicídio para o ordenamento jurídico búlgaro pode ser punido até prisão perpétua.

Contudo, o ordenamento constitucional português não permite tal pena de prisão perpétua e é um princípio estruturante do processo penal de que, após recurso de uma decisão condenatória movido exclusivamente pela defesa, a nova sentença que venha a ser proferida, pelo tribunal de recurso ou pela 1ª instância, não aplique pena mais grave do que a da decisão anterior. É o princípio da proibição da reformatio in pejus, incluído no art.º 409.º, n.º 1, do CPP que se pronuncia sobre os recursos (Interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público, no exclusivo interesse daquele, ou pelo arguido e pelo Ministério Público no exclusivo interesse do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes), mas cujos fundamentos a jurisprudência faz estender a todo o processo penal.

A Procuradora de Burgas fez saber, por ofício que remeteu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que esse princípio também é cumprido no processo penal búlgaro. Todavia, apesar de tal ter sido pedido, o Estado Búlgaro ainda não forneceu essa garantia formal.

Também aqui a entrega do recorrente não deve ser recusada, embora deva ficar condicionada ao cumprimento daquela disposição legal, de que ao mesmo, no novo julgamento ou recurso, não será aplicada pena de prisão superior a 20 anos.
Termos em que procede parcialmente o recurso.

5. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento parcial ao recurso e em ordenar a entrega do cidadão A à República da Bulgária, para cumprimento do MDE emitido, com a correcção de que as sentenças condenatórias são as n.ºs 46 e 663, proferidas, respectivamente, pelo Tribunal da Relação de Burgas em 11.03.2007 e pelo Supremo Tribunal de Cassação da República da Bulgária em 11.10.2007, no âmbito do PPCC que no Tribunal Regional de Burgas tinha o  n.º 171/2003, ficando a entrega sujeita às seguintes condições resolutivas:

 1ª- As referidas decisões serão notificadas pessoalmente ao dito cidadão, sem demora na sequência da entrega e este será expressamente informado do direito que lhe assiste a novo julgamento ou a recurso e a estar presente nesse julgamento ou recurso, que permite a reapreciação do mérito da causa, incluindo novas provas, e pode conduzir a uma decisão distinta da inicial;

2ª- A pena que nessa sequência eventualmente lhe venha a ser imposta não pode ser superior a “20 anos de privação da liberdade sob regime inicial estritamente rigoroso”.

Não há lugar a taxa de justiça (art.º 513.º, n.º 1, do CPP).


Supremo Tribunal de Justiça, 10 de Novembro de 2011

Santos Carvalho (Relator)

Rodrigues da Costa