ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
56/06.2SRLSB.L1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/23/2011
SECÇÃO 3.ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL RECURSO PENAL
DECISÃO REJEITADO O RECURSO
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR OLIVEIRA MENDES

DESCRITORES RECURSO PENAL
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
APLICAÇÃO DA LEI PROCESSUAL NO TEMPO
REJEIÇÃO DE RECURSO

SUMÁRIO I - O STJ vem decidindo, perante sucessão de leis processuais penais, que, em matéria de recursos, é aplicável a lei vigente à data da prolação da decisão em 1.ª instância. Assim, apesar de os factos objecto do processo terem ocorrido em Setembro de 2006, a decisão de 1.ª instância foi proferida em 05-03-2010, pelo que é de aplicar ao presente recurso as disposições do CPP revisto pela Lei 48/07, de 29-08.

II - A recorribilidade de decisões penais para o STJ está prevista, específica e autonomamente, no art. 432.º do CPP: de forma directa, nas als. a), c) e d) do n.º 1, de modo indirecto na al. b), decorrentes da não irrecorribilidade de decisões proferidas, em recurso, pelas Relações, nos termos do art. 400.º, n.º 1 e respectivas alíneas, do mesmo Código.

III - A conclusão que poderá ser extraída de todo o processo legislativo subjacente à reforma de 2007, na sequência da revisão do processo penal de 1998, é a de que o STJ fica reservado para conhecer os casos mais graves e de maior relevância, determinados pela natureza do tribunal de que se recorre e pela gravidade dos crimes aferida pela pena aplicada (restringindo o anterior critério da admissibilidade que resultava da pena aplicável).

IV - Assim, não é admissível, e por isso deve ser rejeitado, o recurso interposto para o STJ da decisão proferida pelo Tribunal da Relação que condenou o arguido como autor de um crime agravado de condução perigosa de veículo rodoviário em concurso aparente com um crime de homicídio por negligência e de um crime de omissão de auxílio, respectivamente, nas penas parcelares de 3 anos de prisão e de 1 ano e 6 meses de prisão, sendo em cúmulo jurídico fixada pena conjunta de 3 anos e 6 meses de prisão [acórdão que substituiu a decisão proferida em 1.ª instância que absolveu o arguido de um crime de condução perigosa de veículo rodoviária e o condenou como autor material, em concurso real, de um crime de homicídio por negligência e de um crime de omissão de auxílio nas penas, respectivamente, de 2 anos de prisão e de 8 meses de prisão, sendo em cúmulo jurídico fixado a pena conjunta de 2 anos e 3 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período].


DECISÃO TEXTO INTEGRAL Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

No âmbito do processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 56/06.2SRLSB, da 2ª Vara Criminal de Lisboa, foi julgado o arguido AA, com os sinais dos autos, tendo sido absolvido de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário e condenado como autor material, em concurso real, de um crime de homicídio por negligência e de um crime de omissão de auxílio nas penas de 2 anos de prisão e 8 meses de prisão, sendo em cúmulo jurídico fixada a pena conjunta de 2 anos e 3 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período.

Na sequência de recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo assistente BB para o Tribunal da Relação de Lisboa foi o arguido condenado como autor material de um crime agravado de condução perigosa de veículo rodoviário em concurso aparente com um crime de homicídio por negligência e de um crime de omissão de auxílio nas penas de 3 anos de prisão e 1 ano e 6 meses de prisão, sendo em cúmulo jurídico fixada a pena conjunta de 3 anos e 6 meses de prisão.

Recorre agora o arguido para este Supremo Tribunal de Justiça pugnando pela declaração de nulidade do acórdão e, subsidiariamente, pela alteração da qualificação jurídica dos factos, com a sua condenação como autor material de um crime de homicídio por negligência em pena não superior a 2 anos de prisão, substituída por outra não privativa da liberdade.

Na contra-motivação o Ministério Público pronuncia-se no sentido da rejeição do recurso, por irrecorribilidade da decisão impugnada.

Igual posição assumiu nesta instância a Exma. Procuradora-Geral Adjunta.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

                                          *

Questão prévia a conhecer, suscitada pelo Ministério Público, é a da inadmissibilidade do recurso.

Apreciando, dir-se-á.

Como este Supremo Tribunal vem decidindo, perante sucessão de leis processuais penais, em matéria de recursos, é aplicável a lei vigente à data da prolação da decisão de 1ª instância[1].

A decisão de 1ª instância foi proferida em 5 de Março de 2010.

Assim sendo, conquanto os factos objecto do processo tenham ocorrido em Setembro de 2006, há que aplicar ao recurso interposto pelo arguido AA o Código de Processo Penal revisto pela Lei n.º 48/07, de 29 de Agosto[2].

A recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões penais está prevista, específica e autonomamente, no artigo 432º. De uma forma directa, nas alíneas a), c) e d) do n.º 1; de um modo indirecto na alínea b), decorrente da não irrecorribilidade de decisões proferidas, em recurso, pelas relações, nos termos do artigo 400º, n.º 1 e respectivas alíneas[3].

Há, neste regime definido pelo conjunto das referidas normas, elementos que, aparentemente descoordenados, não podem deixar de ser harmonizados, salvo risco e efeito de uma séria contradição intra-sistemática.

A referência essencial para a leitura integrada do regime – porque constitui a norma que define directamente as condições de admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça – não pode deixar de ser a alínea c) do nº 1 do artigo 432º, que fixa, em termos materiais, uma condição e um limiar material mínimo de recorribilidade – acórdãos finais, proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo, que apliquem pena de prisão superior a cinco anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito. Não sendo interposto de decisão do tribunal colectivo, ou sendo recurso de decisão do tribunal colectivo ou do tribunal do júri que não aplique pena de prisão superior a cinco anos, o recurso, mesmo versando exclusivamente o reexame da matéria de direito, segue a regra geral do artigo 427º e deve ser obrigatoriamente dirigido ao tribunal da relação.

A repartição das competências em razão da hierarquia pelas instâncias de recurso está, assim, delimitada por uma regra-base que parte da confluência de uma dupla de pressupostos – a natureza e a categoria do tribunal a quo e a gravidade da pena efectivamente aplicada. A coerência interna do regime de recursos para o Supremo Tribunal de Justiça em matéria penal supõe, deste modo, que uma decisão em que se não verifique a referida dupla de pressupostos não deva ser (não possa ser) recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça. Com efeito, se não é admissível recurso directo de decisão proferida por tribunal singular, ou que aplique pena de prisão não superior a cinco anos, também por integridade da coerência que deriva do princípio da paridade ou até da maioria de razão, não poderá ser admissível recurso de segundo grau de decisão da relação que conheça de recurso interposto nos casos de decisão do tribunal singular ou do tribunal colectivo ou do júri que aplique pena de prisão não superior a cinco anos.

Como a propósito se refere em acórdão deste Supremo Tribunal (de 25 de Junho de 2008, processo n.º 1879/2008), «desde que não haja condenação em pena não superior a cinco anos de prisão, não incumbe ao STJ, por não se circunscrever no âmbito dos seus poderes de cognição, apreciar e julgar recurso interposto de decisão final do tribunal colectivo ou do júri, que condene em pena não superior a cinco anos de prisão»; «o legislador, ao arredar da competência do Supremo o julgamento do recurso de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa de liberdade, quis implicitamente significar, de harmonia com o artigo 9º do Código Civil, na teleologia e unidade do sistema quanto a penas privativas de liberdade, que […] apenas é admissível recurso de acórdão da relação para o Supremo quando a relação julgar recurso de decisão do tribunal colectivo ou do júri, em que estes tivessem aplicado pena superior a cinco anos de prisão».

É, pois, neste círculo hermenêutico que têm de ser interpretadas as normas do artigo 400º, nº 1, quando determinam a irrecorribilidade (e, por antinomia, a recorribilidade) das decisões proferidas, em recurso, pelo tribunal da relação.

Desde logo a norma da alínea e) do nº 1 do artigo 400º, que prevê a irrecorribilidade das decisões proferidas em recurso pela relação, que apliquem pena não privativa de liberdade.

A formulação da norma constava da Proposta de Lei nº 109/X (DAR, II série, nº 31, de 23/Dez/06) em termos diversos («são irrecorríveis» os acórdãos proferidos, em recurso, pela relação, «que apliquem pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos»), adaptando, por comparação com a anterior formulação e para os casos aí previstos, o critério da “pena aplicada” em lugar da “pena aplicável ao crime” (Os Projectos de Lei nº 237/X, DAR, II série, nº 100, de 6/Abril/06; 368/X, 369/X e 370/X, DAR, II série, nº 52, de 9/Março/07 não previam qualquer alteração para a alínea e) do nº 1 do artigo 400º). A redacção final foi votada, após proposta oral do PS (com a abstenção dos restantes Partidos), em última leitura no Grupo de Trabalho da Comissão Parlamentar, ficando a expressão constante da redacção fixada pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto – «que apliquem pena não privativa de liberdade». O Relatório dos trabalhos preparatórios, de 18 de Julho de 2007, fixando a alteração na sequência da «proposta oral», não deixa qualquer traço de fundamentação que justifique o desvio em relação ao primeiro texto proposto e a consequente «descontinuidade metodológica». E, assim, também não deixa massa crítica nos procedimentos que permita obter deduções, com o peso de probabilidade necessário, sobre a vontade ou a intenção de legislador. Isto é, não parece possível determinar se a formulação final e votada da norma constitui um «acidente» na metodologia da formação normativa, ou uma expressão concreta, firme e pensada da vontade do legislador. A conclusão que poderá ser extraída de todo o processo legislativo, tal como deixou traço, será a de que se não manifesta nem revela uma intenção, segura, de alteração do paradigma que vem já da revisão do processo penal de 1998: o Supremo Tribunal de Justiça reservado para os casos mais graves e de maior relevância, determinados pela natureza do tribunal de que se recorre e pela gravidade dos crimes aferida pelo critério da pena aplicável. É que, no essencial, esta modelação mantém-se no artigo 432º, e se modificação existe, vai ainda no sentido da restrição: o critério da pena aplicada conduz, por comparação com o regime antecedente, a uma restrição no acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.

Não sendo razoavelmente possível, pelos elementos objectivos que o processo legislativo revela, identificar a vontade do legislador no sentido de permitir a conclusão de que na alínea e) do nº 1 do artigo 400º disse mais do que quereria, não parece metodologicamente possível operar uma interpretação restritiva da norma. Porém, a norma, levada isoladamente ao pé da letra, sem enquadramento sistémico, acolheria solução que é directamente afastada pelo artigo 432º, nº 1, alínea c), produzindo uma contradição intrínseca que o equilíbrio normativo sobre o regime dos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça não pode comportar. Basta pensar que, na leitura isolada, estreitamente literal, um acórdão proferido em recurso pela relação, que aplicasse uma pena de trinta dias de prisão ou assumisse uma decisão absolutória, não confirmando a decisão de um tribunal de Pequena Instância, seria recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça, contrariando de modo insuportável os princípios, a filosofia e a teleologia que estão pressupostos na repartição da competência em razão da hierarquia definida na regra-base sobre a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça do artigo 432º, nº 1, alínea c).

A contradição e a assimetria normativa e a consequente aporia intra-sistemática seriam, assim, tão patentes e tão intensas, que tornariam insuportável tal sentido. Impõe-se, por isso, um acrescido esforço de interpretação.

Uma norma legal, contra o seu sentido literal mas de acordo com a teleologia imanente à lei, pode exigir uma limitação que não está contida no texto, acrescentando-se uma restrição que é requerida em conformidade com o sentido da norma. Pode suceder, com efeito, que uma norma, lida «demasiado amplamente segundo o seu sentido literal», tenha de ser reconduzida e deva ser «reduzida ao âmbito de aplicação que lhe corresponde segundo o fim da regulação ou a conexão do sentido da lei», procedendo às «diferenciações requeridas pela valoração» e «exigidas pelo sentido e finalidade da própria norma» e pela finalidade ou sentido «sempre que seja prevalecente» de outra norma, que de outro modo seria seriamente afectada, seja pela “natureza das coisas” ou «por um princípio imanente à lei prevalecente num certo grupo de casos» (cfr., KARL LARENZ, “Metodologia da Ciência do Direito”, 2ª ed., p. 473-474).
Nestes casos, deverá o intérprete operar a “redução teleológica” da norma.
A redução ou correcção respeitará também o princípio da proporcionalidade e serve o interesse preponderante da segurança jurídica.

A perspectiva, o sentido essencial e os equilíbrios internos que o legislador revelou na construção do regime dos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça, com a prevalência sistémica, patente e mesmo imanente, da norma do artigo 432º, e especialmente do seu nº 1, alínea c), impõe, por isso, em conformidade, a redução teleológica da norma do artigo 400º, nº 1, alínea e), de acordo com o princípio base do artigo 432º, nº 1, alínea c), necessária à reposição do equilíbrio e da harmonia no interior do regime dos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça[4].

O recurso interposto pelo arguido AA não é, assim, admissível (alínea c) do n.º 1 do artigo 432º), consequentemente deve ser rejeitado (artigos 420º, nº 1, alínea b) e 414º, nº 2).

                                       ***

Termos em que se acorda rejeitar o recurso.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 5 UC a taxa de justiça, a que acresce o pagamento de 3 UC – n.º 3 do artigo 420º.           

                                       ***

Lisboa, 23 de Novembro de 2011.

Oliveira Mendes (Relator)


Maia Costa

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[1] - Vide, por todos, o Acórdão n.º 4/09, de 18 de Fevereiro de 2009.
[2] - Serão deste diploma legal todos os demais preceitos a citar sem menção de referência.
[3] - As considerações que em seguida se irão consignar correspondem às exaradas no acórdão deste Supremo Tribunal de 18 de Fevereiro de 2009, proferido no Recurso Penal n.º 102/09, relatado pelo Exm.º Conselheiro Henriques Gaspar.
[4] - Esta orientação vem sendo unanimemente adoptada pela 3ª Secção (Criminal) do Supremo Tribunal de Justiça – cf. entre muitos outros, os acórdãos de 08.11.12 e de 09.02.25, proferidos nos Recursos n.ºs 3546/08 e 390/09, bem como a decisão sumária proferida no Recurso n.º 492/09.