ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
322-D/1999.E1.S2
DATA DO ACÓRDÃO 11/29/2011
SECÇÃO 6ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO CONCEDIDA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR AZEVEDO RAMOS

DESCRITORES EMBARGOS DE TERCEIRO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
ENTREGA DO PRÉDIO
POSSE

SUMÁRIO

I – A qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respectivo negócio.

II – O contrato promessa de compra e venda de um prédio, só por si, não é susceptível de transferir a posse para o promitente comprador.

3 – Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração da escritura de compra e venda, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando numa situação de mero detentor ou possuidor precário.

4 – Todavia, são concebíveis situações em que a posição jurídica do promitente comprador preenche, excepcionalmente, todos os requisitos de uma verdadeira posse.

5 – No caso concreto, deve ser entendido que estamos perante um daqueles casos excepcionais de posse efectiva da promitente compradora, por se mostrar paga a totalidade do preço do contrato e de a coisa ter sido entregue à embargante, promitente compradora, como se sua fosse já, de tal modo que foi nesse estado de espírito que esta fez obras no dito prédio e lá instalou o escritório e estaleiro, praticando diversos actos correspondentes ao direito de propriedade, em nome próprio, com a intenção de exercer sobre o mesmo prédio o direito real correspondente.

6 – A posterior penhora que veio a recair sobre o mesmo prédio, por acção da exequente, ofende a posse da embargante e justifica a procedência dos embargos de terceiro.




DECISÃO TEXTO INTEGRAL

         Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

         Em 9-5-2005, por apenso à execução comum em que é exequente a Caixa Geral de Depósitos, S.A. e executados AA e BB, veio CC-Construções, Lda, deduzir os presentes embargos de terceiro, pedindo a suspensão da execução e o levantamento da penhora efectuada em 08.03.2004 sobre o prédio urbano de ..., sito em ........, freguesia de Aveiras de Baixo, concelho de Azambuja, destinado a habitação, composto por 3 assoalhadas, cozinha, casa de banho, despensa e garagem, com logradouro, que confronta ao Norte com a embargante e estrada, ao Sul e Nascente com DD e ao Poente com EE, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1244 da freguesia de Aveiras de Baixo, concelho de Azambuja.

Alegou, em síntese, para o efeito que, em 5 de Dezembro de 2002, celebrou com os Executados um contrato-promessa de compra e venda, nos termos do qual, pelo preço de € 37.400,00, entretanto já pago, prometia comprar-lhe o identificado prédio e aqueles prometiam vender-lho.

Mais sustenta que, por acordo com os promitentes vendedores, em 27 de Fevereiro de 2003, recebeu as chaves e a posse do imóvel, passando a suportar o pagamento de todos os consumos de água, taxas de saneamento. Efectuou, também, diversos trabalhos de recuperação numa parte que servia de oficina de serralharia (colocação de um chão novo, reboco e pintura de paredes e electrificação) onde instalou o seu estaleiro.

Assim, conclui, que devem ser reconhecidos os actos de posse pública, pacífica e de boa fé que vem exercendo sobre o prédio em causa, assistindo-lhe o direito de obter a suspensão da execução e o levantamento da penhora relativamente a tal bem.

                                                        *

Foi proferido despacho liminar, em que se admitiram os embargos e se determinou a notificação das partes primitivas para contestar.

                                                        *

A embargada Caixa Geral de Depósitos, S.A., contestou, por excepção e por impugnação.

Defendeu a extemporaneidade dos embargos de terceiros, tendo em conta a data do ingresso da petição em juízo [09.03.2005] e as datas de realização da penhora e da sua inscrição no registo predial [08.03.2004 e 30.03.2004, respectivamente].

Em segundo lugar, impugnou a factualidade vertida no articulado inicial e o efeito jurídico pretendido pela Embargante.

Concluiu que os embargos devem ser julgados improcedentes, com todas as suas legais consequências.

                                                        *

         A Embargante apresentou réplica, na qual manteve o alegado na petição inicial, reforçando que só em 11.02.2005 teve conhecimento da penhora, concluindo pela tempestividade e pela procedência dos embargos.

                                        Proferida sentença, foram os embargos considerados extemporâneos, absolvendo-se os embargados da Instância.

 

                                                        *

Apelou a embargante, mas a Relação de Évora, através do seu Acórdão de 17.03.2010, negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida.

A  embargante interpôs recurso de revista.

O Supremo Tribunal de Justiça, através do seu Acórdão de 18/11/2010,  revogou o Acórdão da Relação, por se considerar que os embargos foram intentados tempestivamente, e determinou a baixa dos autos à Relação, para apreciação do recurso interposto pela embargante quanto à restante matéria.

                                                         Então a Relação de Évora proferiu o novo Acórdão de 17-3-2011, que decidiu pela improcedência dos embargos de terceiro.

  

         Continuando inconformada, a embargante pede revista, onde resumidamente conclui:

         1 – Atento o disposto no art. 376. nº2, do C.C., devia ser considerado provado o quesito 2º, na medida  em que o documento, nº9, junto com a petição, não foi impugnada pela recorrida Caixa Geral de Depósitos, S.A., e que o tribunal de 1ª instância considerou tal documento como um elemento válido  e credível de prova .

         2 – A embargante não é parte na acção executiva, nem no acto jurídico de que emanou a diligência judicial, nem é responsável pelo pagamento da quantia exequenda, mas um terceiro, cuja posse foi ofendida pela realização da penhora no âmbito da execução subjacente aos presentes autos.

         3 – Dos factos provados, afere-se que a recorrente, desde 27 de Fevereiro de 2003, passou a actuar inequivocamente sobre o prédio objecto dos presentes autos, de forma correspondente ao exercício de um direito de propriedade.

         4 – Usando, fruindo e dispondo do mesmo como plena possuidora, enquanto promitente compradora e beneficiária da tradição da coisa, exercendo uma posse titulada, pública, pacífica e de boa fé, tal como definida nos arts 1259 a 1262 do C.C.

         5 – Os factos provados são reveladores do animus possidendi, exercido pela embargante, ao qual acresce a presença do corpus, traduzida no facto do prédio ter sido objecto de tradição em 27-2-03, reunindo a mesma os pressupostos dos quais a lei faz depender a classificação da posse em nome próprio, podendo ao abrigo do disposto no art. 351 do C. P, C, deduzir embargos de terceiro para defesa da mesma.        

         6 – Ainda que se considere que a embargante é possuidora em nome alheio ou mera detentora, também por esta via lhe assiste o direito a deduzir embargos de terceiro, nos termos do art. 351 do C.P.C.

         7 – Efectuado o registo da penhora do prédio, é impossível a celebração da escritura pública prometida.

         8 – Consequentemente, existe um claro incumprimento por parte dos recorridos-executados da sua obrigação de venderem o prédio prometido, com as consequências previstas na cláusula adicional nº2, do documento nº9, junto com a petição inicial, consistente no direito da recorrente à restituição de todos os valores entregues e benfeitorias efectuadas.  

         9 - Tal facto, alicerçado nos factos provados sob os nºs 13º e 19º a 22º, conferem à recorrente, nos termos do art. 755, nº1, al. f) do C.C., um direito de retenção pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442, conforme estabelece o art. 754 do mesmo diploma, incompatível com a penhora efectuada, nos termos do art. 351 do C.P.C. 

         10 – O Acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por outro que julgue procedentes os embargos de terceiro deduzidos pela recorrente.

                                        

         A Caixa Geral de Depósitos contra-alegou em defesa do julgado.

                           

                                                     * 

         Corridos os vistos, cumpre decidir

                                                       *

         A Relação considerou provados os factos seguintes:

 

1 - Nos autos de execução ordinária n.° 332/1999, que constituem o processo principal de que os presentes embargos são apenso, em 8 de Março de 2004, foi penhorado o prédio urbano de r/c, sito em ........, freguesia de Aveiras de Baixo, concelho de Azambuja, destinado a habitação, composto por 3 assoalhadas, cozinha, casa de banho, despensa e garagem, com logradouro, que confronta ao Norte com a embargante e estrada, ao Sul e Nascente com DD e ao Poente com EE, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 1244 da freguesia de Aveiras de Baixo, concelho de Azambuja (alínea A) dos factos assentes).

2 - Em 8 de Março de 2004 foi expedida carta para notificação aos executados da referida penhora (alínea B) dos factos assentes).

3 - Mediante a ap. 0000000000 foi efectuado o registo da penhora a favor da exequente "Caixa Geral de Depósitos, S.A.", a qual ficou provisória por dúvidas, convertida pela ap. 0000000000 (alínea C) dos factos assentes).

 4 - Mediante testamento público de 3 de Janeiro de 1967, realizado no Cartório Notarial da Azambuja, DD legou à embargada AA o prédio identificado em 1º (alínea D) dos factos assentes).

5 - DD faleceu no dia 27 de Junho de 1979 (alínea E) dos factos assentes).

6 - Mediante escrito particular, datado de 5 de Dezembro de 2002, a embargante declarou prometer comprar e os embargados AA e BB declararam prometer vender o prédio identificado em 1°, pelo preço de € 37.400,00, livre de ónus e encargos, tendo sido entregue pela embargante como sinal e princípio de pagamento € 5.000,00 (alíneas F) e G) dos factos assentes).

7 - Em 13 de Dezembro de 2002 e em 30 de Janeiro de 2003, a embargante entregou aos embargados AA e BB, respectivamente, € 500,00 e € 2.500,00, a título de reforço de sinal (alínea H) dos factos assentes).

8 - Em 31 de Janeiro de 2003, a embargante reforçou o pagamento do sinal com mais € 2.460,00, sendo € 2.400,00 mediante cheque e € 60,00 em dinheiro (alínea 1) dos factos assentes).

9 - Nessa data, foi pedida a inscrição do prédio na matriz (alínea J) dos factos assentes).

10 -Em Julho de 2003, o prédio foi inscrito na matriz predial urbana, sob o nº 0000, do concelho da Azambuja, freguesia de Aveiras de Baixo, com o titular do rendimento AA (alínea L) dos factos assentes).

         11-O prédio fazia parte do prédio misto, descrito na Conservatória do Registo Predial da Azambuja sob o nº 00000, da freguesia de Aveiras de Baixo, inscrito na matriz urbana sob o artigo 145 e na matriz rústica sob o artigo 232 (parte), cuja aquisição se mostra registada, pela ap. 0000000, a favor de DD (alínea M) dos factos assentes).

         12 - Não tendo sido pedida a sua desanexação, por dificuldades surgidas na documentação (alínea N) dos factos assentes).

         13 - Mediante escrito particular, datado de 27 de Fevereiro de 2003, a embargante e os embargados AA e BB acordaram proceder ao aditamento ao anterior escrito, efectuando aquela a entrega a estes de € 27.000,00, correspondente ao remanescente do preço (alínea 0) dos factos assentes).

14 - Mediante procuração irrevogável, que constitui documento de fls 42/43, outorgada em 28 de Fevereiro de 2003, os embargados AA e BB conferiram poderes a FF para, entre outros, outorgar a escritura de compra e venda do prédio (alínea P) dos factos assentes).

15 - O prédio foi descrito na Conservatória do Registo Predial da Azambuja, sob o nº 00000 mediante a ap. 00000000 (alínea Q) dos factos assentes).

16 - Desde 5 de Dezembro de 2002 que a embargante, em conjunto com os embargados AA e BB, envidou esforços para resolver os problemas de documentação necessários à realização da escritura pública de compra e venda (alínea R) dos factos assentes).

17 - Em 11 de Fevereiro de 2005, foi emitida pela Câmara Municipal da Azambuja a declaração de isenção de licença para habitação, na sequência de decisão camarária de 10 de Fevereiro de 2005, sem a qual o Cartório Notarial da Azambuja não efectuava a escritura pública de compra e venda do prédio (alínea S) dos factos assentes).

18 -  A petição inicial dos presentes embargos de terceiro deu entrada em juízo no dia 9 de Março de 2005 (alínea T) dos factos assentes).

19 -  Em 17 de Março de 2003, a embargante acordou com a EDP o fornecimento de energia eléctrica (resposta ao facto 6 da base instrutória).

20 - Na parte do prédio que consistia numa oficina, a embargante colocou um chão novo, reboco, procedeu à pintura de paredes e electrificação do espaço

e instalou o seu estaleiro no logradouro (resposta aos factos 8 e 9 da base instrutória).

21 - A embargante reconstruiu a parte da habitação que utiliza como escritório de apoio ao estaleiro e garagem (resposta ao facto 10 da base instrutória).

22 - A embargante despendeu 16.859,59 euros com os referidos trabalhos (resposta ao facto 11 da base instrutória).

         *

                                   Além disso, está ainda provado que, em 27 de Fevereiro de 2003, AA e marido BB, como primeiros outorgantes, e CC-Construções, L.da, como segunda outorgante, celebraram um aditamento ao referido contrato promessa de compra e venda, constante do documento de fls 37/38, onde figuram os seguintes dizeres:

         “Os outorgantes celebraram o contrato promessa de compra e venda  em 5-12-2002, respeitante a um prédio urbano, sito em .............., freguesia de Aveiras de Baixo, concelho de Azambuja, e pelo presente aditamento alteram as seguintes cláusulas:

                                                        1ª

         Os primeiros outorgantes, pelo presente contrato promessa de compra e venda prometem vender e esta promete comprar ou a quem esta indicar, o prédio urbano, sito no ..........., da freguesia de Aveiras de Baixo, concelho de Azambuja, composto por casa destinada a habitação e casa destinada a oficina, com a superfície coberta de 161 m2 e descoberta de 300m2, confrontando a norte com Construções CC e estrada, a sul e nascente com DD e a poente com EE, omisso na matriz, mas pedida a sua inscrição em 31-1-2003, e não descrito na Conservatória do Registo Predial de Azambuja.

         A segunda outorgante entrega aos primeiros outorgantes a quantia de 27.000 euros, para pagamento integral do prédio prometido vender, dando assim aos primeiros outorgantes quitação do valor recebido, não tendo assim mais nada a receber.

         A escritura de compra e venda realizar-se logo após e quando o prédio se encontrar registado a favor dos promitentes vendedores, que, para o efeito, passam à segunda outorgante uma procuração irrevogável, com plenos poderes.

                                           Cláusulas adicionais

                                                       

         Todas as despesas relacionadas até ao registo do prédio em nome dos primeiros outorgantes ficam a cargo destes, responsabilizando-se também em prestar toda a colaboração necessária para a boa resolução da transmissão do prédio à segunda outorgante, nomeadamente indicarem três declarantes e apresentando os seus documentos de identificação e, com a presença deles, outorgarem escritura de justificação notarial, se for caso disso, em cartório, dia e hora a indicar pela segunda outorgante.

                                                        2ª

         Não sendo possível a transmissão do prédio por algum motivo que possa vir a surgir, ficam os primeiros outorgantes obrigados a devolver o valor recebido, acrescido de juros de mora à taxa de 5% por ano, mais as despesas relacionadas com a legalização do prédio, fixando um valor mínimo de 2.500 euros .

                                                        3ª

         Com a assinatura do presente contrato adicional, a segunda outorgante entra na posse do imóvel, pelo que os primeiros outorgantes entregam as chaves, autorizando a segunda outorgante a efectuar alterações em todo o prédio conforme entender “.

                                                        *

         Vejamos agora o mérito do recurso .

         1.

         O quesito 4º da base instrutória tinha a seguinte redacção:

         “Em 27 de Fevereiro de 2003, foram entregues à embargante as chaves do prédio”.

 

         Tal quesito mereceu resposta de “não provado”.

         A embargante, aqui recorrente, pretende que se altere a resposta a tal quesito, considerando-o provado, com base na força probatória do documento particular de fls 37, ao abrigo do art. 376, nº2, do C.C., por dele constar a menção do referido facto.

         Mas não pode ser.

Já vimos que tal documento é um aditamento ao contrato promessa de compra e venda do prédio em questão, tendo sido subscrito pela embargante CC-Construções, L.da (promitente compradora) e pelos executados BB e mulher (promitentes vendedores).

Além do mais, refere-se, nesse documento que, em 27 de Fevereiro de 2003, foram entregues à embargante as chaves do mesmo prédio.

Tal matéria foi alegada pela embargante, no artigo 11º da petição inicial e foi impugnada pela exequente-embargada Caixa Geral de Depósitos, S.A., no artigo 15º da sua contestação, com fundamento em desconhecimento do facto.

A embargada Caixa Geral de Depósitos, S.A., aqui recorrida, não teve qualquer intervenção naquele documento particular, sendo um terceiro relativamente às declarações que constituem o teor desse documento.

Como é sabido, a eficácia probatória de um documento particular diz apenas respeito à materialidade das declarações e não também à exactidão das mesmas.

         O documento particular faz prova plena quanto aos factos compreendidos nas declarações atribuídas ao seu autor, na medida em que contrárias aos interesses dos declarantes – art. 376, nº2, do C.C.

         Nessa medida, o documento pode ser invocado, como prova plena, pelo declaratário contra o declarante.

         Em relação a terceiros, como é o caso da Caixa Geral de Depósitos, S.A., tal declaração não tem eficácia plena, valendo apenas como elemento de prova a apreciar livremente pelo tribunal ( Vaz Serra, R.L.J. Ano 114-287; Ac. S.T.J. de 22-6-82, Bol. 318-415).

         Daí que não seja lícito a este Supremo Tribunal alterar tal resposta, pois o erro na apreciação das provas não pode ser objecto de recurso de revista  – art. 722, nº2, do C.P.C.

         2.

         A questão fulcral a decidir consiste em saber se a embargante, aqui recorrente, dispõe de posse sobre o questionado prédio prometido vender, que possa ser defendida através de embargos de terceiro, face à posterior penhora de que o mesmo prédio foi objecto.

          Vejamos:

         O art. 351, nº1, do C.P.C. dispõe:

         “Se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou de entrega de bens ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização do âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro”.

         É sabido que a qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respectivo negócio.

         Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed, págs. 6/7) ” o contrato promessa, só por si, não é susceptível de transferir a posse ao promitente comprador.

         Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero possuidor ou detentor precário.

         São concebíveis, todavia, situações em que a posição jurídica do promitente comprador preenche excepcionalmente todos os requisitos de uma verdadeira posse.

         Suponha-se, por exemplo, que havendo sido paga já a totalidade do preço  ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo ( a fim de, v.g., evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade.

         Tais actos não são realizados em nome do promitente vendedor, mas sim em nome próprio, com intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real.

         O promitente comprador actua, aqui, uti dominus, não havendo, por conseguinte, qualquer razão para lhe negar o acesso aos meios de tutela da posse” .

         Trata-se de posição que tem sido sufragada pela doutrina (Antunes Varela, R.L.J. Ano 124-348; Vaz Serra, R.L.J. Ano 109-314 e Ano 114-20; Calvão da Silva, Bol.349-86, nota 55), bem como pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça (Ac. S.T.J. de 26-5-94, Col. Ac. S.T.J., II, 2º, 118; Ac. S.T.J. de 19-1196, Col. Ac. S.T.J. III, 3º, 109; Ac. S.T.J. de 11-3-99, Col. Ac. S.T.J., VII, 1º, 137; Ac. S.T.J. de 23-5-06, Col. Ac. S.T.J., XIV, 2º, 97; Ac. S.T.J. de 3-11-09, Col. Ac. S.T.J., XVII, 3º, 132,  entre outros).

         Pois bem.

         A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real - art. 1251 do C.C.

         A posse pressupõe o “corpus” e o “animus”, sendo do cruzamento destes dois elementos que advém o conceito de posse juridicamente relevante.

         O corpus é o poder de facto que se exerce sobre a coisa, com carácter de estabilidade, sendo o animus a intenção de exercer aquele poder de acordo ou em termos do direito real correspondente.

         Diversa é a situação do mero detentor ou possuidor precário que é a daquele que, tendo embora o corpus da posse (detenção da coisa), não actua  o poder de facto com o animus de exercer o direito real correspondente ( animus possidendi) – art. 1253 do C.C.

         Ora, no caso concreto, provou-se que, em 5 de Dezembro de 2002, foi celebrado um contrato promessa de compra e venda do prédio em questão.

         Depois de ser paga a totalidade do preço, em 27-2-2003, os promitentes vendedores facultaram o uso e fruição do prédio à embargante, promitente compradora, operando-se a traditio do mesmo prédio para esta.

         Além disso, os promitentes vendedores, enquanto envidavam esforços para resolver os problemas de documentação necessários à realização da escritura de compra e venda, passaram logo procuração irrevogável a FF (que é gerente da embargante, conforme procuração de fls 10), em 28-2-2003, conferindo-lhe poderes para outorgar a escritura de compra e venda relativa ao mencionado prédio.

         Na sequência disso, em 17 de Março de 2003, a embargante acordou com a EDP o fornecimento de energia eléctrica.

         Na parte do prédio que consistia numa oficina, a embargante colocou um chão novo, reboco, procedeu à pintura de paredes e electrificação do espaço e instalou o seu estaleiro no logradouro.

         A embargante também reconstruiu a parte da habitação que utiliza como escritório de apoio ao estaleiro e garagem.

         Nas referidas obras, a embargante despendeu 16.859,59 euros.                

         Assim sendo, como é, deve ser entendido que estamos perante um daqueles casos excepcionais de posse efectiva da promitente compradora, ora recorrente, relativamente ao aludido prédio, em virtude de se mostrar paga a totalidade do preço e de a coisa ter sido entregue à embargante como se sua fosse já, de tal modo que foi nesse estado de espírito que esta fez obras no dito prédio e lá instalou o escritório e estaleiro, praticando diversos actos correspondentes ao direito de propriedade, em nome próprio, com a intenção de exercer sobre o mesmo prédio o direito real correspondente – arts. 1251 e 1263, al. b) do C.C.    

         Tanto basta para a recorrente poder deduzir embargos de terceiro, nos termos do art. 351, nº1, do C.P.C., por a penhora da Caixa Geral de Depósitos, S.A., sobre o dito prédio, efectuada em 8 de Março de 2004 e registada definitivamente em 20-6-2004, ofender a posse da embargante.

   *

         Termos em que, concedendo a revista, revogam o Acórdão recorrido e julgam procedentes os embargos de terceiro interpostos pela embargante CC-Construções, L.da, com as legais consequências.

         Custas pela recorrida Caixa Geral de Depósitos, S.A., quer no Supremo, quer nas instâncias.

                                                        *

Lisboa, 29 de Novembro de 2011


Azevedo Ramos (Relator)
Silva Salazar
Nuno Cameira