ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


PROCESSO
226/05.0TBALJ.P1.S1
DATA DO ACÓRDÃO 11/15/2011
SECÇÃO 1ª SECÇÃO

RE
MEIO PROCESSUAL REVISTA
DECISÃO NEGADA A REVISTA
VOTAÇÃO UNANIMIDADE

RELATOR GARCIA CALEJO

DESCRITORES CONTRATO DE EMPREITADA
VERIFICAÇÃO
OMISSÃO
ACEITAÇÃO DA OBRA
PRESUNÇÕES LEGAIS
ÓNUS DA PROVA
PAGAMENTO
PREÇO

SUMÁRIO

I - No contrato de empreitada, o dono da obra deve verificar, antes de a aceitar, se a mesma se encontra nas condições convencionadas e sem vícios e comunicar ao empreiteiro os resultados da verificação, importando a falta de verificação ou da comunicação a aceitação da obra (art. 1218.º, n.ºs 1, 4 e 5, do CC).
II - O empreiteiro somente tem que alegar e provar que fez a entrega da obra aos seus donos, cabendo a estes, face ao disposto no n.º 5 do art. 1218.º do CC, o ónus de alegar e provar a recusa de aceitação da obra.
III - Assente que a obra foi entregue pelo empreiteiro e nada tendo sido alegado quanto ao comportamento da contraparte, tem-se como presumida (presunção absoluta e inilidível) a aceitação da obra pelos seus donos.
IV - A eventual não realização pelo empreiteiro de todos os trabalhos contratados, poderá conduzir às consequências a que aludem os arts. 1220.º e segs. do CC, mas já não à consideração de que os donos da obra a não aceitaram.
V - A aceitação da obra, não havendo cláusula ou uso em contrário, importa o pagamento do respectivo preço, como resulta do referido no n.º 2 do art. 1211.º do CC.


DECISÃO TEXTO INTEGRAL                                   

         Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

                       

                                                I- Relatório:

                        1-1- AA, com domicílio profissional na Rua da ........., ....., Alijó, propôs a presente acção com processo ordinário contra BB e mulher CC, residentes no Bairro ............, Presendães, pedindo a condenação dos RR. a pagar-lhe a quantia de 18.815,92 €, acrescida de juros legais sobre a quantia de 18.206,12 € desde a citação até efectivo e integral pagamento.

                        Fundamenta este pedido, em síntese, dizendo que no exercício da sua actividade de empreiteiro da construção civil, acordou com os RR. realizar a reconstrução “em bruto” da habitação destes, pelo preço equivalente a 38.008,40€, tendo realizado tais trabalhos, sendo que os RR. pagaram a integralidade do preço. Porém, no decurso da obra, estes solicitaram-lhe orçamento para a execução de acabamentos da casa e outros trabalhos, tendo orçado esses acabamentos e outros trabalhos em 18.206,12 €. Todas estas obras foram realizados, tendo a obra sido entregue em Maio de 2002. Durante a execução “do segundo orçamento” os RR. foram sendo interpelados para fazerem pagamentos por conta de tal obra, mas os eles nada pagaram. Optou, por isso, em fraccionar as facturas, emitindo uma no valor de 2.500€, com data de 30/9/2002, outra no valor de 3.800€, com data de 31/12/2004, e uma terceira no valor de 11.906,12€, com data de 31/3/2005, mas nem assim os RR. pagaram.

                         Os RR. contestaram alegando, em resumo, que do primeiro orçamento o A. não executou alguns dos trabalhos nele previstos. É verdade que solicitaram um segundo orçamento ao A. para quase todos os efeitos que este enuncia na petição, mas também nessa parte o A. não executou a maior parte dos trabalhos orçados, abandonando a obra em Maio de 2002. Depois desse abandono, o A. pediu, em Setembro de 2002, que lhe fosse paga a verba de 2.500€, assim se considerando inteiramente ressarcido. O pagamento de 40.000€ realizado por eles, RR., foi feito por conta do primeiro e segundo contrato e excede o que seria devido.

                        Concluem pedindo que a acção ser julgada improcedente, com a sua absolvição do pedido.

                        Na réplica o A. conclui como na petição e, sumariamente, alega que dado que a dívida dos RR. se ia acumulando, informou os estes que só procederia à edificação de um telheiro para esplanada de um café e de um armazém que ficaria sob o piso do telheiro se lhe pagassem parte do preço do segundo orçamento e nunca comunicou aos RR. que se recebesse 2.500 € se consideraria inteiramente ressarcido. Das obras acordadas só ficou a faltar o dito telheiro, sendo que só recebeu dos RR. o valor do primeiro orçamento.

                        O processo seguiu os seus regulares termos posteriores, tendo-se proferido o despacho saneador, após o que se fixaram os factos assentes e se organizou a base instrutória, se realizou a audiência de discussão e julgamento, se respondeu à base instrutória e se proferiu a sentença.

                       

                        Nesta julgou-se a acção improcedente, absolvendo-se os RR. do pedido.

                         1-2- Não se conformando com esta decisão, dela recorreu o A. de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, tendo-se aí, por acórdão de 17/2/2011, decidido julgar a acção parcialmente procedente e condenar os RR. a pagarem ao A. a quantia de 16.262,60€, acrescendo a essa verba os juros aí especificamente indicados.

                       

                        1-3- Irresignados com este acórdão, dele recorreram os RR. para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido como revista e com efeito devolutivo.

                       

                        Os recorrentes alegaram, tendo das suas alegações retirado as seguintes conclusões:

                        1ª- O preço de uma empreitada deve ser pago, não havendo convenção ou uso em contrário no acto de aceitação da obra (art° 1211 nº2 do C. Civil)

                               2ª- Quem, como o A. pede o pagamento do preço de uma empreitada, tem que provar, nos termos do art° 342, nº1 do CC, os factos constitutivos desse direito.

                               3ª- Esses factos são: conclusão da obra e aceitação da mesma pelos donos (RR).

                               4ª- Acontece que no caso dos autos o A. não concluiu a obra contratada com os RR. (cfr. Resposta aos nºs 11 e 12 da B.I), nem provou que os mesmos a aceitaram.

                               5ª- Pois o facto de constar da matéria assente que "o A. entregou a obra aos réus em Maio de 2002, não se pode daí presumir a aceitação".

                               6ª- Não só porque entrega e aceitação são conceitos distintos, mas também essa matéria foi impugnada pelos RR. na contestação e consta da Base Instrutória, nºs 11 e 12, como matéria controvertida, que obteve prova no sentido de o A. não ter concluído a obra.

                               7ª- Não andou bem o Venerando Tribunal da Relação ao fazer uma errada interpretação dos conceitos de "entrega" e "aceitação"

                               8ª- Não andou bem o mesmo Tribunal ao ajuizar como ónus dos RR. A obrigação de alegar a não aceitação da obra.

                               9ª- Era ao A., como já se alegou, que competia, alegar e provar essa aceitação por parte dos RR., o que não fez.

                               10ª- Assim o Tribunal da Relação violou, por errada interpretação, o disposto nos artigos 342, nºs 1 e 2, 1211, 1218, 1219, 1220, 1221, 1222,1223 do C. C. não os aplicando apropriadamente à matéria dada como provada nos autos.

                               11ª- Além de fazer errada interpretação da própria matéria dada como provada e não provada.

                               12ª- Pelo exposto e pelo vosso alto suprimento deve o acórdão do Tribunal da Relação do Porto ser julgado improcedente e procedente a decisão da 1ª instância, absolvendo-se os RR. do pedido, fazendo-se assim JUSTIÇA.

                         O recorrido não contra-alegou.

                        Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

                       

                        II- Fundamentação:

                        2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, apreciaremos apenas as questões que ali foram enunciadas (arts. 690º nº 1 e 684º nº 3 do C.P.Civil).

                        Nesta conformidade, serão as seguintes as questões a apreciar e decidir:

                        - Aceitação da obra e ónus da prova em relação a este elemento.           

                       

                        2-2- Vem fixada das instâncias a seguinte matéria de facto:

                        1. O A. é empreiteiro da construção civil, dedicando-se à execução de diversos trabalhos nessa área, nomeadamente, edificação e reconstrução de casas de habitação (A) dos factos assentes).

                        2. No âmbito do exercício da sua actividade, o A. foi contactado pelos RR. que lhe solicitaram a reconstrução completa, em bruto e com telhado, da sua casa de habitação (B).

                        3. Para a realização da obra referida em 2, em 13/11/2000 foi emitido um orçamento, no valor de 7.620.000 escudos, a que corresponde 38.008,40€ (C).

                        4. Os R. procederam ao pagamento ao A. da quantia referida em 3 (D).

                        5. No decurso da execução da obra referida em 2, os RR. solicitaram ao A. um segundo orçamento, para acabamentos da obra (E).

                        6. O segundo orçamento teve por objecto os acabamentos exteriores da casa, com aplicação de granito (F),

                        7. a pintura exterior e interior da casa (G) e

                        8. a aplicação de loiças, mosaicos e azulejos (H).

                        9. Os materiais referidos em 6, 7 e 8 seriam fornecidos pelos R. ao A. (I).

                        10. O segundo orçamento incluiu ainda a construção de uma escada para o sótão, com realização do chão deste em cimento (J), 

                        11. e a construção de um muro exterior à casa, em betão (K).

                        12. O segundo orçamento referido em 5 teve o valor de 3.650.000 escudos, o que corresponde a 18.206,12€ (L).

                        13. Em 30/9/2002 o A. emitiu aos RR. uma factura no valor de 2.500€ (M).

                        14. Em 31/12/2002 o A. emitiu aos RR. uma factura no valor 3.800€ (N).

                        15. E em 31/3/2004 o A. emitiu aos RR. uma factura no valor de 11.906,12€ (O).

                        16. Os montantes constantes das facturas referidas em 13, 14 e 15 não foram pagos pelos RR. ao A. (P).

                        17. O A. não executou quaisquer trabalhos para construção de uma área de café (Q).

                        18. O A. entregou a obra aos RR. em Maio de 2002 (R).

                        19. O A. procedeu à aplicação de granito no exterior da casa referida em 6 (10 da base instrutória),

                        20. à construção da escada para o sótão, referida em 10 (13),

                        21. realizou o chão do sótão em cimento, referido em 10 (14)

                        22. e construiu o muro em betão, exterior à casa, referido em 11 (15);

                        23. Os RR., por conta do primeiro e segundo orçamentos, pagaram ao A. 8.000.000 de escudos, a que correspondem 40.000€ (18). --------------

                        2-3- No douto acórdão recorrido sobre a questão em debate da aceitação da obra por parte dos donos desta, os RR., considerou-se que tendo-se dado como assente o facto da alínea R) dos factos assentes, isso significa que, em Maio de 2002, o A. colocou os RR. em condições de poderem verificar a obra e de a poderem aceitar ou recusar. Nessa altura quem ficou com o ónus de agir foram os RR., seja para verificar a obra, seja para a recusar, seja ainda para comunicar ao A. os resultados da verificação realizados. Do facto de na obra faltar a pintura, loiças, mosaicos e azulejos não se extrai necessariamente a recusa da obra pelos RR.. Estes tinham o ónus de alegarem os factos que integravam a verificação, por eles, da obra, a fim de a recusarem, bem como tinham o ónus de alegarem que tinham comunicado ao A. os resultados de tal verificação. Esse ónus de alegação resulta do disposto no art. 342 nº 2 do Civil (diploma de que serão as disposições a referir sem menção de origem). Sucede que os RR. não alegaram que verificaram a obra, não alegaram que comunicaram os resultados dessa verificação ao A. e não alegaram que recusaram a obra pelo que, de acordo com o art. 1218º nº 5, a cominação das omissões de alegações dos RR. é a de se entender que eles aceitaram a obra – em Maio de 2002 –, tanto mais que a falta de pintura, loiças, mosaicos e azulejos não implicava a necessária recusa da obra.

                        Em razão deste entendimento considerou-se que, nos termos do transcrito art. 1211 nº 2 e no silêncio do contrato e dos usos, basta a aceitação da obra para se vencer a obrigação de pagar o preço, pelo que se condenou os RR. a pagarem o preço das obras realizadas e não pagas.

                        Na presente revista os recorrentes contrapõem, em contrário, que quem, como o A., pede o pagamento do preço de uma empreitada, tem que provar, nos termos do art° 342º nº1, os factos constitutivos desse direito, sendo que esses factos são a conclusão da obra e aceitação da mesma pelos donos. Acontece que no caso dos autos o A. não concluiu a obra contratada com os RR. (cfr. Resposta aos nºs 11 e 12 da B.I), nem provou que os mesmos a aceitaram. A circunstância de constar da matéria assente que "o A. entregou a obra aos RR. em Maio de 2002, não se pode daí presumir a aceitação", não só porque entrega e aceitação são conceitos distintos, mas também essa matéria foi impugnada pelos RR. na contestação e consta da Base Instrutória, nºs 11 e 12, como matéria controvertida, que obteve prova no sentido de o A. não ter concluído a obra. O Tribunal da Relação fez, assim, uma errada interpretação dos conceitos de "entrega" e "aceitação" e ao ajuizar como ónus dos RR.

                        Em resumo, segundo os recorrentes, a obrigação de alegar e provar a aceitação da obra por parte dos RR., competia ao A., o que este não fez.

                        Vejamos:

                        Os factos provados demonstram, sem polémica, que as partes celebraram um contrato de empreitada (em relação aos ditos “dois orçamentos”), já que o A. se obrigou a realizar uma obra (trabalhos de construção civil) aos RR., mediante um preço (art. 1207º).
                        Não existindo cláusula em contrário, o preço deve ser pago no acto da aceitação da obra, como resulta do referido no nº 2 do art. 1211º, disposição que deve ser aplicada supletivamente, dado que nenhuma das partes alegou ou provou ter existido convenção válida em contrário.

                        Segundo cremos, também sobre este tema não existe qualquer dúvida ou polémica.

                        Como decorre do disposto no art. 1218º nº 1, o dono da obra deve verificar, antes de a aceitar se ela se encontra nas condições convencionadas e sem vícios. Esta verificação tem a ver com o objectivo de o dono da obra se assegurar pessoalmente que ela foi realizada nas condições acordadas e sem defeitos.

                        Acrescenta o nº 2 da disposição que essa verificação deve ser feita dentro prazo usual ou, na falta de uso, dentro do período que se julgue razoável depois de o empreiteiro colocar o dono da obra em condições de a poder fazer.

                        No caso dos autos, nada se alegou ou provou em relação a prazos para a verificação da obra pelos donos da obra, os RR., pelo que nenhuma decisão se poderá tomar no que toca à observância ou inobservância desta disposição.                                                                                                                                                                                                                    

                        Refere o nº 4 do mesmo artigo que os resultados da verificação devem ser comunicados ao empreiteiro.

                        No caso vertente, nada se alegou ou demonstrou sobre qualquer comunicação dos donos da obra ao empreiteiro. Nesta circunstância estabelece o nº 5 da disposição que a falta de verificação ou da comunicação importa a aceitação da obra. Como referem a este propósito Pires de Lima e Antunes Varela (C.Civil Anotado, vol. II, 3ª edição, pág. 816 “a solução que foi adoptada, … não tomou por base uma presunção de vontade de aceitar. Foi imposta como sanção ou, se se preferir, como presunção absoluta, iniludível. São, com efeito, demasiadamente graves os efeitos da verificação ou da aceitação da obra, para que se deixem esses efeitos dependentes da circunstâncias fortuitas, de uma prova incerta e, sobretudo, da vontade do dono da obra. Ele tem de aceitar ou não aceitar a obra, logo que esta seja posta à sua disposição para verificar se está ou não em conformidade com o convencionado”.

                        Provou-se que o A. entregou a obra aos RR., em Maio de 2002 (facto referido acima em 18), donde resulta, perante a dita disposição e face à ausência de qualquer alegação no sentido da não aceitação da construção, que esta se deve ter como aceite pelos donos da obra.

                        É portanto certo o que se refere sobre o assunto no douto acórdão recorrido. Competia pois aos RR., perante a entrega da obra pelo A., realizar a verificação que se referiu e comunicar os resultados dessa averiguação ao empreiteiro. Estas omissões importam a aceitação da obra.

                        Diverso seria se, após tal verificação, comunicassem ao empreiteiro defeitos ou vícios da obra, pois nessa circunstância a mesma obra deveria ter-se como não aceite, independentemente de outras consequências decorrentes para o empreiteiro (arts. 1220º e segs.).

                        Quer isto tudo dizer que o empreiteiro somente tem que alegar e provar que fez a entrega da obra aos seus donos. Caberá a estes, por sua vez, face ao disposto no nº 5 do art. 1218º, o ónus de alegar e provar a recusa de aceitação da obra, alegando e demonstrado, por exemplo, que esse não acolhimento ocorreu em razão de defeitos verificados na construção ou no não acabamento dos trabalhos acordados. Como se refere adequadamente no douto aresto recorrido “se está assente que a obra foi entregue pelo autor, é indispensável, para a apreciação jurídica do assunto, a definição do comportamento da contraparte, ora réus…”. Nada alegando nesse sentido, tem que se ter como presumida (presunção absoluta e iniludível)[1] a aceitação da obra pelos seus donos.

                        É certo que se provou que o A. não realizou todos os trabalhos acordados (no 2º contrato). Mas como bem se refere no douto aresto recorrido, daí não se pode inferir que os RR. não aceitaram a obra já realizada, já que são realidades distintas. A não realização de todos os trabalhos contratados, poderá conduzir às consequências a que aludem os arts. 1220º e segs., mas já não à consideração que os donos da obra a não aceitaram.

                        A posição dos recorrentes é, pois, insubsistente sendo, pelo contrário, absolutamente certa a decisão proferida no douto acórdão recorrido.

                        A aceitação da obra, não havendo cláusula ou uso em contrário, importa o pagamento do respectivo preço, como resulta do referido no nº 2 do art. 1211º, pelo que se justificou a condenação proferida na Relação.

                        III- Decisão:

                        Por tudo o exposto, nega-se a revista, confirmando-se o douto acórdão recorrido.

                        Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 15de Novembro de 2011

Garcia Calejo (Relator)
Helder Roque
Gregório Silva Jesus

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[1] Vide acima a referência que fazem sobre o assunto Pires de Lima e Antunes Varela.