Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
96A033
Nº Convencional: JSTJ00030287
Relator: MARTINS DA COSTA
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
MATÉRIA DE FACTO
RECURSO DE REVISTA
ÂMBITO DO RECURSO
LETRA EM BRANCO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ199605280000331
Data do Acordão: 05/28/1996
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N457 ANO1996 PAG401
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 1556/94
Data: 07/12/1995
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Indicações Eventuais: F CORREIA IN LIÇÕES DE DIR COM VOLIII PÁG71 PÁG131.
Área Temática: DIR PROC CIV - RECURSOS. DIR COM - TIT CRÉDITO.
DIR CIV - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 342 N2.
CPC67 ARTIGO 722 N2 ARTIGO 812.
LULL ARTIGO 1 ARTIGO 10 ARTIGO 46 C ARTIGO 51.
Sumário : I - Constitui matéria de facto, alheia ao âmbito do recurso de revista, a questão de saber qual o valor dos fornecimentos de mercadoria feitos pelo embargado ao embargante, bem como qual o valor dos pagamentos efectuados e o consequente saldo devedor.
II - A letra em branco deve ser preenchida de harmonia com os termos convencionados pelas partes (acordo expresso) ou com as cláusulas do negócio determinante da sua emissão (acordo tácito).
III - No domínio das relações imediatas, é livremente oponível ao portador da letra a inobservância de algum daqueles acordos, mas o respectivo ónus da prova cabe ao obrigado cambiário (artigo 342 n. 2 do Código Civil).
IV - Na acção executiva, a alegação e prova dos factos respeitantes ao preenchimento abusivo da letra devem ser feitas nos embargos de executado (artigos 812 e seguintes do Código de Processo Civil).
Decisão Texto Integral: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:
I- Por apenso a execução ordinária para pagamento de quantia certa, instaurada por "A, Lda." contra B, este deduziu embargos de executado, invocando, no essencial, o preenchimento abusivo das letras dadas à execução, que foram entregues em branco, apenas com a assinatura do embargante como aceitante, por não respeitarem a quaisquer transacções comerciais, terminadas em Novembro de 1991 e pagas a pronto durante esse ano, tendo-se aproveitado a exequente de letras enviadas para reforma de outras, não devolvidas, pelo que nada lhe deve.
Houve contestação, por impugnação, e procedeu-se a julgamento.
Pela sentença de fls. 243 e seguintes, foram os embargos julgados improcedentes.
Em recurso de apelação, essa sentença veio a ser confirmada pelo acórdão de fls. 355 e seguintes.
Neste recurso de revista, o embargante pretende a revogação daquele acórdão, com base nas seguintes conclusões:
- entre ele e a embargada existiu um contrato de compra e venda de natureza comercial, que deu origem
à conta-corrente contabilistica junta aos autos;
- em 2 de Janeiro de 1991 não havia qualquer mercadoria debitada, iniciando-se o débito em 31 de Janeiro de 1991, e o último fornecimento data de Novembro desse ano;
- o montante dos fornecimentos é de 16572753 escudos e 50 centavos e pagou 8101828 escudos, pelo que o saldo devedor é de 8470925 escudos e 50 centavos;
- em vez de exigir esse saldo numa acção de condenação, a embargada usa o expediente de preencher os títulos em causa, a seu bel prazer, e de dá-los à execução, no montante de 21050000 escudos, instaurando ainda outra execução de títulos no valor de 5150000 escudos e uma acção de condenação, com base em facturas, em que pede 3444963 escudos e 80 centavos;
- as letras são de Janeiro de 1992, não podem respeitar a valor de transacções comerciais nem podem ser de reforma, que delas não consta, tendo sido preenchidas abusivamente;
- foi violado o disposto nos artigos 813 e 815 do Código de Processo Civil.
A embargada, por sua vez, pronunciou-se pela improcedência do recurso.
II - Factos dados como provados:
Em Novembro de 1991, a embargada deixou de fornecer mercadorias ao embargante.
O embargante enviou à embargada as letras dadas à execução, no processo principal.
Nesse processo principal, estão juntas e dadas à execução as seguintes letras, todas do saque da embargada e do aceite de Farmácia Confiança, com assinatura do embargante: letra de 2100000 escudos, emitida em 14 de Novembro de 1991 e com vencimento em 14 de Janeiro de 1992; letra de 2350000 escudos, emitida em 14 de Novembro de 1991, e com vencimento em 14 de Janeiro de 1992; letra de 900000 escudos, emitida em 2 de Janeiro de 1992 e com vencimento em 27 de Janeiro de 1992; letra de 2600000, emitida em 2 de Janeiro de 1992, e com vencimento em 27 de Janeiro de 1992; letra de 2600000 escudos, emitida em 2 de Janeiro de 1992, e com vencimento em 27 de Janeiro de 1992; letra de 2100000 escudos, emitida em 2 de Janeiro de 1992, e com vencimento em 27 de Janeiro de 1992; letra de 2100000 escudos, emitida em 2 de Janeiro de 1992, e com vencimento em 27 de Fevereiro de 1992; letra de 1850000 escudos, emitida em 2 de Janeiro de 1992, e com vencimento em 27 de Fevereiro de 1992; letra de 2350000 escudos, emitida em 3 de Janeiro de 1992, e com vencimento em 27 de Fevereiro de 1992; letra de 2100000 escudos, emitida em 3 de Janeiro de 1992, e com vencimento em 27 de Fevereiro de 1992;
- fls. 283 a 286 e 342 a 345.
Deve ter-se ainda como assente: em execução de contrato de compra e venda, a embargada forneceu ao embargante diversas mercadorias; as letras apenas continham, no momento da entrega, a assinatura do embargante, como aceitante, e foram posteriormente preenchidas pela embargada (acordo das partes); consta das letras, sob a rubrica "valor", a expressão "transacções comerciais".
III - Quanto ao mérito do recurso:
O ponto essencial das conclusões da alegação do recorrente reporta-se a simples matéria de facto, ou seja, o valor dos fornecimentos feitos pela embargada, o dos pagamentos efectuados e o consequente saldo devedor, que seria muito inferior ao montante das letras que servem de título executivo, para além de a mesma lhe exigir ainda outros montantes em outra execução e numa acção declarativa de condenação.
Desde logo, esse aspecto não pode ser objecto deste recurso de revista, por se não verificar nem ser alegado o fundamento específico, previsto no artigo
722 n. 2 do C.P.C., com base no qual poderia este tribunal proceder à reapreciação da aludida matéria de facto.
Aliás, não pode deixar de realçar-se a circunstância de o embargante ter alegado, na petição inicial, que nada devia à embargada, por terem sido pagos a pronto todos os fornecimentos feitos durante o ano de 1991 (o que foi objecto do quesito 1., dado como não provado), e admitir agora, como já admitiu no recurso de apelação, a existência de um saldo devedor de 8470925 escudos.
As letras dadas à execução preenchem todos os requisitos formais previstos no artigo 1 da L.U.L.L. e estão assinadas pelo embargante, como aceitante, pelo que constituem, em princípio, títulos executivos, nos termos do disposto nos artigos 46 alínea c) e 51 do C.P.C.
A única questão que pode ser aqui reapreciada e que integra o fundamento dos embargos respeita apenas ao pretenso preenchimento abusivo das letras pela embargada.
As letras em causa foram entregues pelo embargante à embargada apenas com a assinatura do primeiro, como aceitante, pelo que se trata das chamadas letras em branco, que são aquelas a que falta algum ou alguns dos requisitos essenciais mencionados no cit. artigo
1. da LULL mas contêm, pelo menos, a assinatura de um obrigado cambiário.
A letra em branco destina-se, normalmente, a ser preenchida pelo seu adquirente imediato ou posterior e porque, em princípio, ninguém entrega um título dessa natureza para se fazer dele um uso livre ou indiscriminado, tal entrega é acompanhada da atribuição de poderes para esse preenchimento, ou seja, do chamado acordo ou pacto de preenchimento.
Esse acordo pode ser expresso, quando as partes estipularem certos termos concretos, ou tácito, por estar implícito nas cláusulas do negócio determinante da emissão do título, o qual deverá depois ser preenchido em conformidade com esses termos ou cláusulas, sob pena de preenchimento abusivo.
O ónus da prova desse preenchimento abusivo cabe ao obrigado cambiário, como facto impeditivo, modificativo ou extintivo do direito emergente do título de crédito (artigo 342 n. 2 do Código Civil).
Isso está previsto, no artigo 10 da cit. L.U., para o domínio das chamadas relações mediatas, e em termos limitados, decorrentes dos princípios da literalidade e abstracção, mas, nas relações imediatas, como entre os sujeitos da relação fundamental que esteve na origem da subscrição do título, é livremente oponível a inobservância do acordo de preenchimento, por ficar a obrigação cambiária sujeita ao regime geral das obrigações, ou seja, às excepções (ou seja, às excepções) fundadas nas relações pessoais entre aqueles sujeitos (cfr. Ferrer Correia, Lições Direito Comercial, III, pág. 71 e 131 e seguintes).
Assim, neste último domínio, o portador da letra pode exercer, em princípio, contra o aceitante, os direitos correspondentes ao título cambiário, tal como está preenchido e com a força própria de título executivo, e a esse subscritor cabe o ónus da prova do preenchimento abusivo, podendo mas devendo alegar, para o efeito, as cláusulas do negócio fundamental ou os termos do pacto de preenchimento.
Em suma, quem entrega uma letra em branco fica com o encargo de fazer a prova do seu preenchimento abusivo e, no caso de execução, essa prova tem de ser feita nos embargos de executado, cuja petição se destina à impugnação dos requisitos do título executivo e do direito substancial do exequente, em termos idênticos aos da posição assumida pelo contestante em processo comum de declaração (artigos 812 e seguintes do Código de Processo Civil).
No caso presente, o embargante não fez a prova dos factos essenciais por ele alegados, como o pagamento integral do preço dos fornecimentos ou mesmo não ser devida quantia correspondente ao montante total das letras, não ter havido devolução de letras reformadas ou o seu indevido aproveitamento pela embargada.
Apenas provou o embargante que a embargada deixou de lhe fornecer mercadorias em Novembro de 1991 mas este facto, admitido pela segunda, não é de modo algum incompatível com o preenchimento das letras, no que respeita às datas da emissão (entre 14 de Novembro de 1991 e 3 de Janeiro de 1992) e à referência do seu valor a "transacções comerciais": nada impedia que a data aposta nas letras, como da emissão, fosse posterior à da sua entrega e respectivos fornecimentos; isso até seria normal pois, de contrário, o aceitante logo as poderia ter preenchido, nessa parte; esse preenchimento, com data posterior, não seria sequer susceptível de prejudicar o embargante; mesmo que se tratasse de letras de reforma, ou seja, de substituição de letras originais, por motivo de amortização parcial destas, elas não deixavam de respeitar a transacções comerciais.
De qualquer modo, fundamental seria a prova, que não foi feita pelo embargante, de ter havido abusivo preenchimento das letras, designadamente quanto ao seu montante.
Em conclusão:
A letra em branco deve ser preenchida de harmonia com os termos convencionados pelas partes (acordo expresso) ou com as cláusulas do negócio determinante da sua emissão (acordo tácito).
No domínio das relações imediatas, é livremente oponível ao portador da letra a inobservância de algum daqueles acordos mas o respectivo ónus da prova cabe ao obrigado cambiário (artigo 342 n. 2 do Código Civil).
Na acção executiva, a alegação e prova dos factos respeitantes ao preenchimento abusivo da letra deve ser feita nos embargos de executado (artigo 812 e seguintes do Código de Processo Civil).
O embargante não fez prova desses factos.
Pelo exposto:
Nega-se a revista.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 28 de Maio de 1996.
Martins da Costa.
Pais de Sousa.
Machado Soares.