Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
191/09.5PEPDL.L4.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AUGUSTO DE MATOS
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EMERGENTE DE CRIME
ABUSO SEXUAL DE PESSOA INTERNADA
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
INCAPACIDADE
DIREITOS DE PERSONALIDADE
EQUIDADE
RESPONSABILIDADE OBJECTIVA
COMITENTE
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
Data do Acordão: 03/14/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / RESPONSABILIDADE PELO RISCO.
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS E DEVERES ECONÓMICOS , SOCIAIS E CULTURAIS / CIDADÃOS PORTADORES DE DEFICIÊNCIA.
Doutrina:
-ANA MAFALDA CASTANHEIRA NEVES DE MIRANDA BARBOSA, Lições de Responsabilidade Civil, Principia, p. 128 e 300;
-ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, VIII, Almedina, 2017, p. 511, 513, 515, 521, 429, 433, 434 e 444, 518 e 627 ; Direito das Obrigações, 2.º volume, AAFDL, 1990, reimpressão, p. 89, 90, 284, 285, 300 e 318 ; Das Obrigações em Geral, Vol. 1.º, 10.ª Edição, Almedina, p. 605, nota 4.
-ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, 2.ª Edição, Livraria Almedina, 1973, p. 404 ; Direito das Obrigações em Geral, 478-479;
-FERNANDO PESSOA JORGE, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 1995, p. 55;
-FERNANDO REGLERO CAMPOS, Tratado de Responsabilidade Civil, Tomo I, Parte General, Thomson-Arandazi, 2008, Cizur Menor, Navarra, p. 730, 731 e 721 a 780;
-J. J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, p. 454, 455 e 879;
-JORGE SINDE MONTEIRO, Responsabilidade Civil, Revista de Direito e Economia, Ano IV, n.º 2, Julho/Dezembro, 1978, p. 317;
-LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO Direito das Obrigações, Volume I, 2.ª Edição, Almedina, p. 313;
-MANUEL A. CARNEIRO DA FRADA, Direito Civil, Responsabilidade Civil, O Método do Caso, Almedina, p. 72.
-MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 10.ª Edição Reelaborada, Almedina, p. 591.
-MIRANDA BARBOSA, Ana Mafalda, Responsabilidade Civil Extracontratual, Novas Perspectivas em Matéria de Nexo de Causalidade, Princípia Editora, Cascais, 2014, p. 23 a 26;
-RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, O Direito Geral de Personalidade, p. 458 ; O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, p. 105.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 483.º, N.º 1 E 496.º, N.º 1 E 500.º;
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 71.º, N.º 1;
Referências Internacionais:
CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA, ADOPTADA EM NOVA IORQUE EM 30-03-2007, APROVADA PELA RESOLUÇÃO DA AR N.º 56/2009, APROVA CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA, ADOPTADA EM NOVA IORQUE EM 30-03-2007.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


-DE 22-09-2005, PROCESSO N.º 05B2470, IN WWW.DGSI.PT.;
-DE 08-03-2007, PROCESSO 566/07;
-DE 10-07-2008, PROCESSO N.º 08P1410;
-DE 28-02-2013, PROCESSO N.º 4072/04.0TVLSB.C1.S1;
-DE 17-09-2014, PROCESSO N.º 67/12.9JAPDL.L1.S1;
-DE 08-06-2017, PROCESSO N.º 2104/05.4TBPVZ.P1.S1;
-DE 28-06-2017, PROCESSO N.º 23/14.2GCCNT.S1;
-DE 05-07-2017, PROCESSO N.º 4861/11.0TAMTS.P1.S1;
-DE 13-07-2017, PROCESSO N.º 3214/11.4TBVIS.C1.S1.
Sumário :

I - Decorre do art. 483.º, n.º 1, do CC que a ilicitude advém da violação de direitos subjectivos e de normas de protecção, postulando, pela negativa, a inexistência de causas de justificação. Não tendo a responsabilidade civil uma função exclusivamente reconstitutiva, prevê-se uma função compensatória para os danos não patrimoniais que, nos termos do art. 496.º, n.º 1, do CC, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
II - O arguido abusou sexualmente da ofendida, internada, em cuidados de saúde continuados - na Clínica B, pertencente à também demandada civil Fundação P - padecendo de doença grave e incurável, com síndrome demencial, normalmente apática. Estamos perante a prática de um facto pelo arguido pautado por um intenso grau de ilicitude e de culpabilidade, observando-se igualmente um evidente nexo causal entre o facto ilícito e um dano.
III - No que respeita aos cidadãos portadores de deficiência física ou mental, o art. 71.º, n.º 1, da CRP reconhece-lhes o gozo pleno dos direitos. Trata-se de um direito de igualdade, de um direito a não serem vítimas de uma capitis diminutio, não podendo ser privado de direitos, ou ver os seus direitos restringidos por motivo de deficiência, para além daquilo que seja consequência forçosa da deficiência. Nesse sentido também prevê a Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, adoptada em Nova Iorque em 30-03-2007, aprovada pela resolução da AR n.º 56/2009.
IV - Com a conduta do arguido-demandado civil, a ofendida-demandante sofreu objectivamente um prejuízo, uma lesão na sua integridade física e moral, uma diminuição de bens jurídicos essenciais da sua personalidade, independentemente da sua percepção subjectiva pela mesma ofendida.
V - Não se admitindo o direito à indemnização pelo dano não patrimonial, as vítimas incapazes de exprimirem inteligivelmente sensações ou sem capacidade de reacção perante agressões contra si praticadas não mereciam total protecção do ordenamento jurídico, ficando expostas a ofensas e abusos como os que foram levados a cabo pelo arguido. Tratar-se-ia de uma situação intolerável. Afigura-se correcto o juízo de equidade da 1.ª instância traduzido no arbitramento de uma indemnização de € 40 000.
VI - O arguido exercia funções de auxiliar de acção médica na Clínica B, tendo como incumbência a prestação de cuidados de higiene e alimentação aos diversos doentes que ali permaneciam internados, sob a supervisão da equipa de enfermagem. A responsabilidade da demandada Fundação P decorre do art. 500.º do CC (responsabilidade do comitente), e é solidariamente responsável pelo pagamento aos demandantes da indemnização pelos danos não patrimoniais que se constituíram na esfera jurídica da falecida.
Decisão Texto Integral:

            Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            I - RELATÓRIO

            1. Em processo comum com intervenção de tribunal colectivo, o Ministério Público acusou AA, nascido em 14/11/1955, imputando-lhe a autoria de um crime de abuso sexual de pessoa internada, previsto no artigo 166.º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do Código Penal, crime pelo qual viria também a ser pronunciado.

          2. A ofendida, BB, constituída assistente através da sua representante legal, acompanhou a pronúncia e deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido e contra a CC, requerendo a condenação solidária dos demandados a pagarem-lhe, a título de danos não patrimoniais, uma compensação no valor de 50.000 €, acrescida de juros moratórios contados da data da notificação do pedido aos demandados.

           3. Por acórdão do Tribunal Judicial de ... – Instância Central – 1.ª Secção Cível e Criminal –..., da Comarca dos ..., proferido em 14 de Julho de 2016, foi decidido:

            a) Condenar o arguido como autor de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previsto no artigo 165.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, na pena de seis anos de prisão.

            b) Julgar parcialmente procedente o pedido civil formulado por BB contra o arguido e a CC e, em consequência, condená-los solidariamente a pagarem àquela a quantia de quarenta mil euros, a título de danos não patrimoniais causados.

            4. Inconformado com o decidido, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa.

           Também a demandada cível DD interpôs recurso daquela decisão, limitado à questão cível.

            5. Por acórdão datado de 6 de Julho de 2017, o Tribunal da Relação deliberou:

- Julgar totalmente não provido o recurso interposto pelo arguido no que respeita à parte criminal, confirmando, nesse segmento, o acórdão condenatório da 1.ª instância;

- Julgar totalmente providos os recursos dos demandados cíveis, absolvendo-os do pedido.

           6. Por falecimento da assistente BB, os seus herdeiros habilitados interpõem recurso para este Supremo Tribunal da decisão, limitado à parte cível, rematando a respectiva motivação com as conclusões que se transcrevem:

«Conclusões

1. O presente recurso vem interposto do acórdão da Relação de Lisboa e é limitado à matéria civil;

2. O douto acórdão do Tribunal de 1ª Instância condenou o arguido AA como autor de um crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência previsto no art.º 165 n.ºs 1 e 2 do C.P. na pena de seis anos de prisão e, julgou parcialmente procedente o pedido cível formulado por BB contra o arguido e a CC e, em consequência, condenou-os solidariamente a pagarem àquela a quantia de quarenta mil euros a titulo de danos não patrimoniais causados;

3. Por sua vez, douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, aqui recorrido, confirmou o acórdão proferido pelo Tribunal de 1ª Instância no que respeita à matéria criminal, mas julgou providos os recursos dos demandados cíveis, absolvendo-os do pedido;

4. Conforme consta dos autos, o fato essencial – que é a existência de relações sexuais com penetração vaginal e anal da vitima pelo arguido no quarto 15 do 1º piso da DD, no dia 9 de Agosto de 2009, pouco depois das 20 horas.

5. A ofendida apresentava lesões petequiais na metade esquerda do hímen e uma pequena equimose himenal às 9 horas, compatível com penetração e fricção vaginal; e que dois a três centímetros no interior do ânus da ofendida foram encontrados espermatozóides do arguido (com as características biológicas do ADN do arguido, numa razão de verosimilhança inequívoca LR= 50 289 400 000).

6. Como tal o tribunal a quo julgou a actuação do arguido como ilícita e culposa por não estar de acordo com o comportamento exigível de um bónus pater famílias, tendo sido causa normal de danos de natureza não patrimonial mas com gravidade bastante para merecerem a tutela do direito (art.º 496º do C. Civil) os quais não teriam ocorrido não fora a acção ilícita.

7. Os danos não patrimoniais referidos traduzem-se na violação dolosa de um feixe de direitos de personalidade da ofendida, onde pontifica a sua dignidade, mas também liberdade, a honra, a privacidade, a intimidade, a saúde e a integridade física.

8. O tribunal da 1ª instância considerou e muito bem que, a circunstância demente em que se encontrava não destituiu a ofendida daqueles seus direitos, muito pelo contrário, tornou a sua tutela ainda mais necessária e, consequentemente, concluiu que é insofismável o preenchimento dos pressupostos legais geradores do direito à indemnização.

9. No que respeita à fixação do quantum indemnizatório, o tribunal da 1ª instância considerou que o montante do pedido formulado teria de ser proporcional à violação dos direitos de personalidade atingidos e, nessa medida julgou que o quantitativo requerido excedia em pouco o que em circunstâncias semelhantes vem sendo atribuído pela jurisprudência e, no caso concreto, o tribunal da 1ª instância fixou o quantum indemnizatório em 40.000,00€, justificando como sendo o valor que melhor se ajusta à compensação dos danos sofridos cuja dimensão não é maculada pela circunstância demente da demandante.

10. A verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil consta do acórdão proferido pelo tribunal da 1ª instância.

11. Conforme consta do referido acórdão proferido pelo tribunal da 1ª instância, a ofendida era uma utente da DD e que entregue aos seus cuidados, foi sexualmente agredida nas suas instalações, por um seu agente.

12. O tribunal da 1ª instância apreciou correctamente a prova produzida em sede de julgamento e constante do processo e nenhuma censura é possível fazer às conclusões jurídicas extraídas pelo tribunal.

13. A dignidade da pessoa humana é o princípio estruturante da nossa organização política e, por conseguinte, o valor fundamental a prosseguir pela nossa ordem jurídica, como decorre do artigo 1º Constituição da República Portuguesa;

14. Da personalidade jurídica emanam os direitos de personalidade e direitos fundamentais que constituem a garantia da dignidade humana;

15. A compensação por danos não patrimoniais emergiu do reconhecimento de um vasto conjunto de direitos de personalidade ínsitos a todo o ser humano, que o Direito tem de acautelar, em toda a dimensão axiológica da dignidade humana, procurando responder, assim, a situações que estão para além da materialidade da vida, mas que requerem tutela jurídica;

16. A tutela da dignidade humana impõe, assim, que se considere que, em caso de ofensa ilícita e grave a um direito de personalidade, os factos que consubstanciem essa ofensa são em si mesmo danosos, geradores da obrigação de indemnização causando, consoante os casos, danos patrimoniais e/ou não patrimoniais;

17. Acresce que, como resulta do ensinamento de Antunes Varela, a gravidade do dano tem de medir-se por um padrão objectivo, em função da gravidade do direito violado, e não à luz de factores subjectivos em que o dano seria maior ou menor consoante a sensibilidade da vítima;

18. Para além disso, a indemnização por danos não patrimoniais tem uma natureza mista, visando a reparação da lesão sofrida, mas, também, a punição e prevenção no plano civilística;

19. O reconhecimento de danos não patrimoniais por factos causadores de danos morais, que a própria sociedade comercial ou outra pessoa colectiva, pela sua natureza, não pode experienciar sentimentos, apenas se explica pela violação de direitos fundamentais e não pela demonstração do grau de sofrimento;

20. Para além do chamado dano biológico em que os danos não patrimoniais são evidentes, a jurisprudência dos tribunais superiores tem assumido a condenação em indemnização por danos não patrimoniais a favor das vítimas de crimes de abuso sexual de crianças e de crimes sexuais contra deficientes mentais (abuso sexual de pessoa incapaz, violação de mulher inconsciente);

21. Nesses crimes, dada a condição dos ofendidos não é possível demonstrar especificadamente os danos sofridos;

22.  Em qualquer caso estamos perante uma conduta objectivamente antijurídico, violador de direitos fundamentais, constitucionalmente, protegidos, da qual resulta uma lesão integridade físico-psíquica do ser humano, em toda a sua dimensão, ou seja, um dano-evento tendo como consequência, a obrigação de indemnização por danos não patrimoniais;

23. Na indemnização por danos não patrimoniais, não sendo possível quantificar os danos, cabe ao tribunal julgar equitativamente – artigos 496º nº 4 e 566º nº 3 do Código Civil, estando prevista a possibilidade do seu arbitramento oficioso no artigo 82º-A do CPP;

24. O crime perpetrado pelo arguido violou de forma ilícita, dolosa e grave direitos de personalidade da ofendida, atentando gravemente contra a dignidade desta, causando lesão à sua integridade físico-psíquica que, pela sua gravidade configura um dano que origina a obrigação de indemnizar;

25. Como se afirma no acórdão da 1ª Instância “os danos não patrimoniais referidos traduzem-se na violação dolosa de um feixe de direitos de personalidade da ofendida, onde pontifica a sua dignidade, mas também a sua liberdade, a honra, a privacidade, a intimidade, a saúde e a integridade física”;

26. Não sendo possível averiguar o valor exacto dos danos, o montante da indemnização deve ser fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em conta que em face da gravidade, da ilicitude e da culpa do comportamento do arguido, a indemnização tem de revestir, também, uma função punitiva e preventiva;

27. A ofendida encontrava-se num estado físico e mental que não lhe permitia exteriorizar os seus sentimentos, nem manifestar quanto sofrera pela agressão de que foi vítima, nem descrever as sequelas pela mesma causadas, mas isso não significa que não tenha sofrido física e psiquicamente com agressão.

28. Com efeito, a ofendida, apesar da sua limitação física e mental, era “sensível à dor” e “sentia alegria, tristeza e dor”, como também resulta do acórdão da 1ª Instância;

29. O crime foi consumado em 9 de Agosto de 2009, vindo a ofendida a falecer em 27 de Junho de 2013, ou seja quatro anos após o crime, o que representa um longo período de sofrimento;

30. A responsabilidade solidária no pagamento da indemnização pela demandada CC encontra-se devidamente fundamentada no acórdão da 1ª Instância;

31. A interpretação feita pelo douto acórdão recorrido, contrariando o decidido pela 1ª Instância, constitui a imposição à ofendida de uma capitis deminutio, traduzida numa incapacidade de gozo do direito à indemnização, o que constitui uma discriminação e redução da dignidade humana da ofendida;

32. Com efeito, ao entender que não seria devida indemnização por danos não patrimoniais à ofendida, em consequência de esta, em virtude da sua incapacidade física e mental, não ser capaz de exprimir ou tornar visível o seu sofrimento, o douto acórdão recorrido, viola o disposto no artigo 1º e no nº 1 do artigo 71º da Constituição da República Portuguesa;

33. O acórdão recorrido deve, pois, ser revogado, na parte cível, mantendo-se na íntegra o acórdão proferida pela 1ª Instância e, em consequência, serem os demandados condenados solidariamente a pagar aos recorrentes 40.000,00€ a título de danos não patrimoniais.

Nestes termos, e nos mais de direito que V. Ex.as doutamente suprirão, deve ser revogado o acórdão da Relação de Lisboa na parte referente ao pedido cível deduzido pela ofendida, e mantida a decisão que sobre ela foi tomada no acórdão da 1ª Instância.»

            7. O arguido-demandado apresentou resposta concluindo que:

       «(…) resulta por demais evidente, que o Acórdão recorrido, na matéria civil que aqui está em causa, não merece reparo ou crítica jurídica de qualquer índole, tendo nessa sede sido apreciado de forma rigorosa, precisa e ponderada o (não) cumprimento dos requisitos legais da responsabilidade civil, designadamente o requisito “dano” e, inerentemente, o requisito “nexo de causalidade”, facto pelo qual procedeu o Tribunal a quo a correctíssima aplicação do Direito, sendo, portanto, de manter e confirmar, como é de Justiça.

       Assim sendo, face a tudo o que se deixou dito e explanado, impõem-se que o Tribunal ad quem, em respeito pela lei e pelo Direito, se digne preservar a legalidade da ordem jurídica, mantendo a decisão recorrida e decidindo negar providência ao Recurso por o mesmo assentar em matéria não provada, com a consequente absolvição total do Recorrente do pedido civil.

       Termos em que, deve o presente Recurso ser considerado improcedente, mantendo-se a decisão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa de absolvição do Recorrido do pedido civil, por não preenchimento dos pressupostos de que depende a aplicação do instituto da responsabilidade civil, concretamente por não se encontrar estabelecido e provado, com o mínimo de consistência, rigor e nível de detalhe necessários, os danos não patrimoniais alegadamente sofridos pela Recorrente.»

       8. Também a demandada CC apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões:

       «CONCLUSÕES

       1º. Da matéria de facto dada como provada e não provada, não resulta, ao contrário do que concluiu o Tribunal da 1.ª Instância, que a ofendida tenha sido lesada na sua honra e que tal honra tivesse ficado afectada perante terceiros ou diminuída a sua dignidade enquanto ser humano.

       2º.- Como nada disto ficou demonstrado, tem-se como certo que o Tribunal da 1.ª Instância perfilhou uma concepção normativa do dano, a qual não é aceite no nosso ordenamento jurídico.

       3º. Pelo contrário, entre nós, vigora o princípio, segundo o qual, o dano tem que ser concretamente conferido e avaliado, caso a caso.

       4º. Ora, no caso dos autos, esse dano não resultou provado, como o próprio Tribunal da Relação de Lisboa veio a reconhecer, pelo que se afigura não se verificarem preenchidos quaisquer pressupostos legais que gerem direito a indemnização.

       5º Entendem, ainda, os Recorrentes que o Tribunal de 1.ª Instância poderia, oficiosamente, “arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham”, nos termos do artigo 82.º-A, n.º 1 do CPP.

       6º. No entanto, cf. consta de tal artigo e número, apenas poderia fazê-lo “não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado”, o que não aconteceu, uma vez que foi deduzido, não sendo aplicável tal normativo.

       7º- Os demandantes cíveis deduziram pedido cível, requerendo uma indemnização que não pode deixar de estar dependente da prova de determinados factos, que foram por eles demandantes alegados, que manifestamente não existiu.

       8.º Nem o facto da ofendida, supostamente, ser “sensível à dor” poderá ser elemento justificativo da condenação de uma indemnização, uma vez que tal dor não resultou provada e o facto de poder sentir, não significa que a tivesse sentido, levando, necessariamente, à não demonstração do dano.

       9.º A decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, também não constitui uma imposição à ofendida de uma capitis deminutio, pelo facto de não poder exteriorizar os seus sentimentos, uma vez que a grande maioria dos factos alegados no pedido de indemnização civil não necessitaria das declarações da ofendida, mas sim de prova testemunhal que os sustentasse, o que manifestamente não aconteceu. Daí terem sido dados todos como não provados.

       10.º Resulta daqui que o Tribunal da Relação de Lisboa não poderia chegar a qualquer outra conclusão que não passasse pela absolvição da demandada cível, atenta a manifesta falta de factos, em que se possa ancorar a decisão de atribuição de uma indemnização à herança.

       Termos em que deverá manter-se, na íntegra, o douto Acórdão em recurso.»

            9. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

            II - FUNDAMENTAÇÃO

            1. Os factos

A decisão da matéria de facto pelo Tribunal recorrido (transcrição):

«1) Produzida a prova e discutida a causa, com relevância para a decisão ficou demonstrado que:

Desde 6/3/2009 que BB, nascida em .../1946, se encontrava internada, em cuidados de saúde continuados, na DD, na Avenida ...a, por padecer de doença grave e incurável, com síndrome demencial, normalmente apática só reagindo esporadicamente verbalizando palavras sem nexo e dependência total de terceiros, sendo, no entanto, sensível à dor.

O referido estabelecimento é uma unidade privada de saúde, pertencente à CC, pessoa colectiva com o número 512019061, que tem por objectivos, entre o mais, a promoção e protecção da saúde, nomeadamente através de cuidados de medicina preventiva, curativa e de reabilitação.

O horário das visitas aos doentes internados ocorria diariamente entre as 17h e as 19h.

O arguido exercia funções de auxiliar de acção médica na referida clínica, tendo como incumbência a prestação de cuidados de higiene e alimentação aos diversos doentes que ali permaneciam internados, sob a supervisão da equipa de enfermagem.

O arguido tinha sido convocado, por escala de serviço, para no dia 9 de agosto de 2009 prestar cuidados no 1.º piso da Clínica, onde se situa o quarto n.º ..., onde pernoitavam BB e EE

Devido à redução de turnos, por ser domingo, o arguido via-se obrigado a cuidar sozinho da higiene das duas doentes do quarto n.º ..., sem o auxílio de outro colega.

Na verdade, era prática da Clínica que um auxiliar, mesmo que do sexo masculino, cuidasse da higiene de doentes do sexo feminino e vice-versa quando a tal fosse solicitado, como aconteceu naquele dia.

Cabia-lhe, nesse contexto, lavar o corpo de cada uma das doentes e mudar-lhes a fralda, seguindo um determinado protocolo, que começava pela higiene da cara, passando depois para outras partes do corpo, até aos pés, passando pela higiene da zona genital, sempre de modo a que as doentes nunca ficassem completamente nuas.

Assim, nesse dia, depois da hora da visita, o arguido começou por prestar os cuidados de higiene a EE, que ocupava a cama ao lado da de BB, no quarto n.º ....

Depois de ter terminado essa tarefa, levou BB da cadeira onde se encontrava sentada, para a cama dela, onde a estendeu longitudinalmente e iniciou o procedimento de higiene, retirando-lhe a roupa, nomeadamente umas calças cremes e uma blusa verde.

Esse era o procedimento habitual para depois a poder lavar, mudar-lhe a fralda e vestir-lhe a camisa de noite.

A enfermeira FF, que estivera junto dele enquanto tratou da higiene de EE, ausentou-se do quarto n.º 15 do 1.º piso para ir ao 2.º piso da Clínica buscar sacos colectores, que eram necessários para outros doentes de outros quartos do 1.º piso, para onde ela estava escalada.

Assim, por volta das 20h, o arguido encontrava-se sozinho a prestar cuidados de higiene a BB, no quarto n.º ..., do 1.º piso da referida Clínica.

A essa hora, o quarto encontrava-se perfeitamente iluminado pela luz de fim de tarde de verão, que entrava pela janela.

Sabedor de que o horário de visitas tinha terminado às 19 horas e estando, naquele momento, a desempenhar aquela tarefa sozinho, quis satisfazer o seu apetite sexual e ter relações com a doente BB.

Aproveitando o facto de ter a porta do quarto fechada (embora sem estar trancada por a porta não ter fechadura), correu a cortina que existe entre as duas camas, separadas uma da outra por pouco mais de um metro, despiu completamente BB, colocou-a em posição perpendicular na cama, com as pernas abertas viradas para si, abriu as suas calças e com o pénis erecto introduziu-o na vagina daquela, friccionando-o, vindo depois também a introduzi-lo no ânus dela, onde igualmente o friccionou até ali ejacular.

Durante esse período, que não terá excedido sete minutos, a vítima estava completamente nua, tendo-lhe o arguido colocado apenas a blusa verde sobre o rosto.

Naquele fim de tarde de domingo, GG foi visitar a sua mãe BB à Clínica.

Ao entrar no quarto n.º 15 do 1.º piso, onde estava a sua mãe, viu o arguido com o pénis fora das calças, nas circunstâncias acima referidas.

Incrédula e muito nervosa, gritou, perguntando-lhe: «o que está a fazer à minha mãe?»

Depois, num estado de exaltação e pânico, aos gritos a pedir ajuda, correu em busca de quem lhe acudisse, tendo percorrido o espaço da Clínica até ao exterior.

Foi ouvida por todos os que estavam no interior daquele estabelecimento, mas ninguém se apresentou ao seu encontro.

Na rua, encontrou dois agentes da PSP que passavam, aos quais, sempre muito exaltada, pediu auxílio e os instou a acompanhá-la ao interior da Clínica. E, enquanto isso, telefonou para o seu marido, para as suas irmãs e para o seu pai, gritando, fora de si, procurando dar conta do que vira e pedindo também o seu auxílio.

Foi só em sequência desta gritaria que a enfermeira FF desceu do 2.º piso, onde até então se encontrava.

Perante todo o sucedido, o arguido ficou muito nervoso e em choque, de tal maneira que as suas colegas o levaram para o 2.º piso, onde uma das enfermeiras lhe deu um calmante.

Nas circunstâncias referidas, AA agiu de acordo com as decisões que tomou e quis, com o propósito exclusivo de satisfazer a sua lascívia na pessoa de BB, que sabia não ser capaz de oferecer qualquer resistência, ciente de que tal conduta era proibida.

Por sentença de 20/7/2010, já transitada em julgado, em razão de padecer de anomalia psíquica que a torna incapaz de governar a sua pessoa e bens, BB foi declarada interdita, sendo nomeada sua tutora HH.

No dia 27/6/2013, BB faleceu. Mais se provou:

AA tem 57 anos de idade, sendo originário de um núcleo familiar de nível socioeconómico desfavorecido. Perdeu o pai quando tinha apenas 11 anos de idade. Devido à precariedade económica que a família apresentava, logo que concluiu o 4.º ano de escolaridade integrou o mercado de trabalho. Em finais dos anos 70 acompanhou a progenitora e uma irmã para os ..., onde trabalhou durante dois anos. Regressou aos ..., onde obteve colocação laboral numa estrutura de apoio pós hospitalar para idosos acamados, gerida pela Santa Casa da Misericórdia. Após 10 anos de exercício laboral nessa estrutura de cuidados continuados para idosos, foi colocado como auxiliar administrativo no ..., onde continua a trabalhar como auxiliar vigilante. Esta actividade foi depois complementada na DD, como auxiliar de acção médica, prestando cuidados básicos a utentes acamados, até ao dia 9 de agosto de 2009. Casou com 29 anos de idade, tendo conhecido o cônjuge no ambiente laboral (no Hospital, onde ela é telefonista). A dinâmica relacional é referenciada pelos próprios como positiva, sendo liderada pela figura feminina. Já o relacionamento sexual entre o casal é vivido com grande ansiedade pelo arguido, por ter uma performance insatisfatória para o cônjuge, apesar de não haver razão orgânica que o justifique. A atitude da sua companheira oscila entre uma atitude compreensiva e outra de hostilidade e de humilhação («que não tem homem»). Têm dois filhos: um com 29 anos (já autonomizado) e uma menina com 15 anos de idade (estudante). Vivem com a filha mais nova em casa da sogra do arguido, dado a família não ter capacidade financeira para proceder à amortização de empréstimo bancário. É uma pessoa introvertida, que gagueja, que «nunca abriu a boca para a mulher» e não se impõe, mesmo perante os filhos. Tem tendência para negar os defeitos, tentando dar de si uma imagem virtuosa. É uma pessoa amarga e ressentida, mas também dependente e com fortes necessidades de afecto. É pessoa inibida e rígida nos pontos de vista. Tende a atribuir a causas externas as frustrações e fracassos e a projectar externamente a responsabilidade e a culpa de índole negativa. Dada a pouca força do ego, todas as frustrações e o estado de tensão acumulado têm maior expressão no seu funcionamento e traduzem-se numa grande inibição, inclusive no plano da sexualidade. Cumpriu a medida de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica no período compreendido entre os dias 18 de agosto de 2009 e o dia 25 de Fevereiro de 2010, no âmbito do presente processo, sem incidentes. Não regista antecedentes criminais e em termos sociais é bem conotado. Já conhecia BB desde que ela trabalhava nos correios, tendo dela a ideia de ser então ‘engraçada’, ‘bonita’ e ‘senhora bem-posta’. Tendo pena dela por não ser idosa, mas estar sem sequer poder andar…

                                                      *

2) Factos não provados

Não se provou:

Que BB sofresse da doença de Alzheimer. Que BB tinha “raros e curtos períodos de lucidez.”

Que “o arguido tem uma personalidade compatível com o padrão típico de um abusador sexual: forte excitação erótico-agressiva (ejaculação não superior a 5 minutos), premeditação, oportunismo, sentimento de controlo da situação, capacidade emocional da gestão do risco e desprezo pela autodeterminação sexual da vítima.”

Que o arguido é funcionário da DD.

Que o arguido prestava funções em regime de part-time há dez anos na DD.

Que BB pagava à Clínica a contraprestação mensal nunca inferior a 1500€ (variável em função dos tratamentos e medicamentos).

Que BB mantinha ou mantenha memória afectiva e reconheça alguns familiares.

Que durante os momentos em que o arguido a penetrou BB tenha vivido momentos de pânico, medo, angústia e desespero.

Que nos dias seguintes BB reagia mal à presença de um homem, ainda que se tratasse do seu filho, ficando exaltada, a chorar e a dizer «não», ao mesmo tempo que contraía as pernas, tentando mantê-las sempre unidas.

Que depois disso, durante algum tempo, se recusou a receber alimentos, tendo por isso perdido muito peso.

Que no mesmo quarto «encontrava-se também a enfermeira FF que estava a fazer a ronda pelos doentes da Clínica a fim de lhes administrar a medicação do final do dia.»

Que a porta do quarto n.º ..., nas circunstâncias de tempo acima referidas, estivesse aberta ou entreaberta.

Que o cortinado/separador existente entre as duas camas do quarto n.º ... estivesse totalmente recolhido.

Que as duas camas distavam entre si cerca de meio metro uma da outra.

Que antes de iniciar os cuidados de higiene a BB o arguido foi deitar fora a água com que lavou a doente EE e trouxe água limpa para lavar BB.

Que o arguido acabou por se molhar nesta operação já que, também ele, se viu obrigado a lavar as suas mãos e braços em virtude de ter estado a trocar a fralda com fezes da doente EE

Que quando a enfermeira FF se ausentou para ir ao andar de cima buscar os sacos colectores o arguido sabia que ela regressaria «com a maior brevidade, uma vez que trabalhando juntos há mais de uma década, há muito que conhecia o hábito daquela profissional em analisar os doentes quando da muda da fralda por parte dos auxiliares, no sentido de aferir a existência ou não de abrasões ou de escaras».

Que encontrando-se BB já deitada sobre a cama e já despida, mas com uma blusa verde a tapar-lhe o tronco, o arguido levantou-lhe as pernas para lhe retirar a fralda suja de urina.

Que tal fralda tinha a forma de calções o que implicou a aplicação de um puxão com alguma força, que naquele momento motivou que a ofendida soltasse um gemido de dor dizendo: “devagarinho”.

Que o arguido tapou a boca de BB com uma camisola.

Que enquanto esteve com BB esteve sempre «na presença de uma outra doente lúcida e palradora, acordada e à vista.»

Que o arguido estava a colocar a fralda limpa a BB quando GG irrompeu no quarto n.º ... do 1.º piso da Clínica.

Que esta, ao gritar perguntando “o que está a fazer à minha mãe”, o tenha feito de forma artificial e histriónica.

Que o arguido não acabou de colocar a fralda limpa a BB porque o quarto foi invadido por GG.

Que, quando GG entrou no quarto n.º ... do 1.º piso da Clínica, o arguido estava simplesmente a cuidar da higiene de BB

Que GG e outros procuraram um “pretexto para ter algo contra a DD, a ponto de não terem que regularizar a situação de incumprimento, de poderem fazer um pedido de indemnização e de poderem ainda conseguir o internamento na II onde já lhes tinha sido recusado o acesso por falta de vaga.”

Que GG já antes havia acusado uma auxiliar de estar a estrangular a sua mãe.

Que os familiares de GG que compareceram na Clínica (o marido e duas irmãs), “apareceram de imediato (…) saídos não se sabe de onde (…) que já estavam à espera, diga-se.”

Que, logo de seguida, imediata e concomitantemente, foi chamado jornalista do jornal ... que chegou à Clínica ainda antes do próprio administrador da mesma, que fora também chamado e reside na vizinhança.

Que foi no 2.º piso que a auxiliar JJ retirou das mãos do arguido as luvas que este ainda tinha calçadas.

Que a Clínica, quando GG irrompeu aos gritos pelos corredores até ao exterior, «estava cheia de pessoal (enfermeiras e auxiliares) (…) e com várias pessoas a circular livremente numa clínica, isto é, com pessoal auxiliar e de enfermagem a poucos metros.»

Que a hiperplasia prostática de que o arguido é portador o impediria de uma erecção e penetração vaginal e anal em menos de cinco minutos».»

2. Objecto do recurso

O recurso é limitado à matéria cível, insurgindo-se os recorrentes - demandantes contra a decisão de absolvição, proferida no acórdão recorrido, do pedido de indemnização civil oportunamente deduzido contra o arguido e contra a CC proprietária da DD onde a ofendida BB se encontrava internada.

            3. Apreciação

           

Estabelece o n.º 1 do artigo 483.º do Código Civil:

«Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».

Enumera este preceito os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, que, na lição de ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, «traduzem os elementos cuja verificação é necessária para que ocorra a obrigação de indemnizar»[1].

A doutrina tem vindo a enunciar descritivamente os seguintes pressupostos da responsabilidade civil: a) o facto; b) a ilicitude; c) a imputação do facto ao lesante - culpa; d) o dano; e) o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Neste sentido, considera ANTUNES VARELA que esta enumeração corresponde à terminologia técnica corrente entre os tratadistas da matéria[2], justificando-se, entretanto, que se dê nota das designadas «orientações sintéticas», assumidas por FERNANDO PESSOA JORGE, para quem os pressupostos da responsabilidade civil podem reconduzir-se essencialmente a dois: o acto ilícito e o prejuízo reparável[3], ou por ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO que sustentou serem os pressupostos da responsabilidade civil simplesmente o dano e a imputação[4], orientação que, no entanto, abandonou, passando a «seguir a ordenação mais divulgada no nosso Direito, com a expressa indicação de que ela só se aplica à imputação delitual dos danos: facto, ilicitude, culpa, dano e causalidade»[5].

Prevalecendo-nos das considerações expendidas nos acórdãos deste Supremo Tribunal de 28-06-2017 e de 05-07-2017, proferidos, respectivamente, nos processos n.º 23/14.2GCCNT.S1 e n.º 4861/11.0TAMTS.P1.S1, da 3.ª Secção, ambos relatados pelo Conselheiro Gabriel Catarino, que o agora relator subscreveu como adjunto:

«Em visualização expandida e explicitada poder-se-ia dizer que os pressupostos da responsabilidade aquiliana, se reconduzem nos sequentes elementos lógico-materiais e de verificação ou produção natural e físico-psicológicos: i) – o facto voluntário, consubstanciado numa conduta comissiva ou omissiva de um agente traduzido, naturalisticamente, numa alteração ou modificação da realidade existente ante; ii) – a ilicitude, traduzida na violação de normas legais ou de direitos (absolutos) consolidados na esfera individual ou colectiva e infractores dessas normas ou direitos; iii) – a culpa, como nexo de imputação ético-jurídico, de feição e natureza censurável ou reprovável, à luz dos valores eticamente prevalentes numa sociedade historicamente situada; iv) – o dano, lesão ou prejuízo de ordem patrimonial ou não patrimonial, produzido na esfera jurídica de terceiros; v) – e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Supõe e importa, portanto, a responsabilidade civil, a imposição de medidas reparadoras destinadas a compensar um dano, moral ou patrimonial, ocasionados pela prática por parte de alguém de um uma conduta, ilícita e culposa, susceptível de violar direitos alheios ou disposição legal destinada a proteger interesses de terceiros. A perfeição da instituto da responsabilidade pressupõe a prática de um facto humano e material – comissão por via de acção ou omissão -; que esse facto se revele e planteie como contrário à ordem jurídica; que se exponha como reprovável e censurável, no plano imputação subjectiva a um determinado sujeito; que esse facto seja imputável ao um sujeito determinado; que o resultado produzido por esse facto produza uma modificação, material-objectiva ou moral-subjectiva, na esfera jurídica do sujeito que sofre os efeitos da acção ou da omissão, e que seja possível imputar o facto ao resultado danoso ocasionado. Para que se configure o dever de indemnizar, com base na responsabilidade civil, deverá, portanto, ser possível conexionar a conduta do agente ao dano provocado por essa conduta, ou seja, deve existir um nexo de causalidade entre o dano sofrido pela vítima e a conduta do agente.

Em regra a responsabilidade civil e a obrigação de reparar o dano surge da conduta ilícita do agente que lhe deu causa, ou seja de uma conduta violadora de normas gerais e de direitos de outrem. [[6]]

O primeiro dos pressupostos de que a lei faz derivar a obrigação de indemnizar, com base na responsabilidade civil, é a realização de um facto - acção ou conduta humana, que se traduz na modificação de um estado de coisas existente antes da acção – por alguém que está adstrito, por imposição legal ou convencional, a observar determinadas regras de comportamento, e a fazê-lo utilizando cuidados e regras técnicas e de perícia correspondentes á tarefa a realizar. Trata-se, assim, de um acto humano, comissivo ou omissivo - a comissão vem a ser a prática de um acto que se deveria efectivar, e a omissão, a não-observância de um dever de agir ou da prática de certo acto que deveria realizar-se -, de natureza voluntária e que deve, ou pode ser, objectivamente imputável, a uma determinada pessoa. Esse facto, pela sua feição ilícita, ou lícita [[7]], deve ter actuado e agido por forma a causar na esfera do lesado um prejuízo. Esta lesão de um direito de outrem ou de um interesse particular protegido por disposição legal, quando resultante da acção de um agente lesante, desencadeia a obrigação de indemnizar, a cargo do autor da lesão. 

O facto do agente, consubstanciado num comportamento ou numa conduta humana, deve assumir um carácter voluntário e poder ser dominável e controlável pela vontade. Revestindo o facto do agente uma atitude positiva denomina-se acção, sendo que revestindo uma atitude negativa se constitui numa omissão. Neste caso, a não prática do facto ou acto que o agente, por imposição de um dever jurídico, estava compelido a praticar, desencadeia a obrigação e indemnizar com base na responsabilidade civil.

A culpa pode revestir as modalidades de dolo, ou mera culpa, ou negligência […].

A culpa (subjectiva, também designada “culpa penal”) revela-se e traduz-se numa imputação psicológica feita a uma pessoa e conleva um juízo de censura ético-jurídica dirigida a uma conduta humana portadora, ou a que se agrega, uma vontade livremente determinada e liberta de condicionalismos perturbadores da assunção de um sentido querido e orientado da vontade individual.    

[…].

Para além da culpa, torna-se necessário que o facto possa/deva ser imputável ao agente e que possa/deva ser estabelecido um nexo causal, ou a relação de causalidade (adequada), entre o facto e o dano ocorrido. A relação de causalidade constitui-se, assim, como o elo de ligação entre o acto lesivo do agente e o dano ou prejuízo sofrido pela vítima. O conceito de nexo causal, ou relação de causalidade decorre de leis naturais. Apura-se pela conexão objectiva e subjectiva que é possível estabelecer entre a conduta do agente e o dano.

O nexo de causalidade é um pressuposto da responsabilidade civil que consiste na interacção causa/efeito, de ligação positiva entre a lesão e o dano, através da previsibilidade deste em face daquele, a ponto de poder afirmar-se que o lesado não teria sofrido tal dano se não fosse a lesão (art. 563º do Código Civil).

De acordo com o preceituado no art. 563º do Código Civil a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, com que se consagra a teoria da causalidade adequada na sua formulação negativa, proposta por Ennecerus-Lehman, segundo a qual a condição deixará de ser causa do dano sempre que ela seja de todo indiferente para a produção do mesmo, e só se tenha tornado condição dele em virtude de outras circunstâncias, sendo pois inadequada à sua produção.

À luz desta teoria, não serão ressarcíveis todos e quaisquer danos que sobrevenham ao facto causador do resultado danoso, mas tão só os que ele tenha realmente ocasionado, ou seja, aqueles cuja ocorrência com ele esteja numa relação de adequação causal.

Por outras palavras, dir-se-á que o juízo de adequação causal tem que assentar numa relação intrínseca entre o facto e o dano, de modo que este decorra como consequência normal e típica daquele, ou seja, que corresponda a uma decorrência adequada do mesmo».

Continuando a acompanhar o citado acórdão:

«Não basta que ocorra um dano, é preciso que esta lesão passe a existir a partir do acto ou acção de um agente que tenha tido a intenção de lesar um direito ou interesse, pessoal ou real/patrimonial de outrem, para que surja o dever de reparação. É imprescindível o estabelecimento da entre o acto omissivo ou comissivo do agente e o dano de tal forma que o acto do agente seja considerado como causa do dano.

Para que alguém fique constituído na obrigação de indemnizar é, pois, mister que tenha preenchido o condicionalismo, objectivo e subjectivo, que se deixou apontado.

A jurisprudência dominante vai no sentido de que a imputação de um facto a um agente deve conter-se num plano de objectividade e, em nosso juízo, é a que deve ser assumida e acatada, por ser a que melhor se adequa, em nosso juízo, à doutrina da imputação (objectiva) [[8]/[9]] de uma conduta a um agente. [[10]].

Por fim, o dano representa qualquer detrimento, prejuízo, menoscabo, dor ou moléstia. O dano indemnizável (“actionable or recoverable damage”) é um conceito normativo “que refere aquelas lesões causadas por condutas que reúnem os requisitos dos dois sistemas básicos da responsabilidade civil, por culpa e objectiva”[[11]].

Soe fazer-se distinção entre danos materiais e danos pessoais, ou sejam aqueles que afectam a natureza física ou psíquica da pessoa lesada, cabendo nestes os danos corporais, os morais e os prejuízos económicos que derivam dos danos corporais».

Enunciados os pressupostos da responsabilidade civil por actos ilícitos ou aquiliana, dois deles se devem destacar, perante as particularidades do caso sub judice e a economia do presente recurso: a ilicitude e o dano, justificando-se que se teçam considerações complementares sobre eles decorrentes das contribuições da doutrina nacional formuladas a propósito.

Quanto à ilicitude, importa, desde logo, sublinhar, como ANA MAFALDA CASTANHEIRA NEVES DE MIRANDA BARBOSA, que «a conduta do agente só releva normativamente se for valorada por referência ao carácter ilícito da mesma»[12].

Como decorre do artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, a ilicitude advém da violação de direitos subjectivos e de normas de protecção, postulando, pela negativa, como salienta ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, a inexistência de causas de justificação[13].

Como modalidades de ilicitude, ou «situações jurídicas básicas que dão lugar a uma imputação delitual»[14], apontam-se (a) a violação de direitos de outrem, abrangendo, segundo o autor que se citou, os direitos subjectivos proprio sensu e todos os direitos subjectivos em sentido material; (b) a violação de norma de protecção, ou, de acordo com a fórmula legal (artigo 483.º, n.º 1), violação de disposições legais de protecção de interesses alheios.

Liminarmente, pode dizer-se, seguindo MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, que dano ou prejuízo é toda a ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica[15], ou, na formulação de ANTUNES VARELA, «o prejuízo in natura que o lesado sofreu nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar. É a lesão causada no interesse juridicamente tutelado, que reveste as mais das vezes a forma de uma destruição, subtracção ou deterioração de certa coisa, material ou incorpórea[16].

Em termos naturalísticos, o dano, para LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, é «a supressão de uma vantagem de que o sujeito beneficiava». Impondo-se que essa vantagem seja juridicamente tutelada, o dano deverá ser definido, segundo o mesmo autor, «num sentido simultaneamente fáctico e normativo – a frustração de uma utilidade que era objecto de tutela jurídica»[17].

Para ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, o dano, em sentido jurídico, é a «supressão ou diminuição de uma situação favorável, reconhecida ou protegida pelo direito»[18].

Segundo este autor, «[n]ormalmente, o dano jurídico vem aferido à lesão de interesses juridicamente tutelados pelo Direito (-) ou, se se quiser, à perturbação de bens juridicamente protegidos (-)», sendo que, tal como sucede com a ilicitude, «também quanto ao dano se torna necessário atentar nas normas jurídicas em jogo: quer para o identificar, quer para o delimitar. No fundo, o dano em sentido jurídico deve ser aferido à chamada ilicitude objectiva isto é, às soluções preconizadas pelo Direito para o ordenamento, desde que tomadas em abstracto e consideradas independentemente da vicissitude da violação voluntária»[19].

Esta noção de dano encontra, para o autor que se vem citando, «apoio directo no próprio artigo 483.º/1, do Código Civil. Efectivamente, não se comina, aí, uma obrigação de indemnizar prejuízos, mas tão-só a obrigação de os indemnizar quando, em determinadas circunstâncias, tenha sido violado “… o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios…”. Desta expressão tem sido feita uma conexão com o comportamento do agente autor do dano em termos que permitem concluir pela sua ilicitude. Mas a conexão não deve quedar-se por aí: os próprios danos devem ser aferidos pelo direito ou disposição legal em causa».

Apenas uma valoração legal é susceptível, refere o mesmo autor, «de identificar o sujeito prejudicado pela ocorrência do dano: se não for considerada a norma que, em termos de direito subjectivo ou outros, reserva, para alguém, determinada vantagem, como apurar quem veio a ser prejudicado pela ocorrência?»[20].

Também para ANA MAFALDA CASTANHEIRA NEVES DE MIRANDA BARBOSA a compreensão do dano deve ser feita por referência à ilicitude. O que sobressai é o dano «como repercussão negativa do comportamento ilícito – consequência negativa que se faz sentir na dimensão material. Espiritual ou moral que é tutelada subjectiva ou objectivamente»[21].

Nesta perspectiva, consideramos também que o dano deve ser aferido à lesão de interesses juridicamente tutelados pelo Direito. Pois, se um facto não viola um direito alheio, não podem dele resultar danos. A verificação de um dano em sentido jurídico decorre da existência de um direito subjectivo violado. Convocando, de novo, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, «apenas uma valoração legal [é] susceptível de identificar o sujeito prejudicado pela ocorrência do dano»[22].

Adopta-se, pois, um conceito normativo de dano. Como sustenta MANUEL A. CARNEIRO DA FRADA, «[o] dano não é qualquer prejuízo sentido ou afirmado por alguém como tal. Apesar de a ordem jurídica o não definir em geral, ele deve justificar-se por aplicação de critérios normativos, alicerçar-se numa ponderação da ordem jurídica. Para o Direito releva aquele dano que outrem deva suportar segundo valorações jurídicas»[23].

Como já foi dito, os danos podem distinguir-se entre os danos materiais e os danos pessoais, correspondendo estes àqueles que afectam a natureza física ou psíquica da pessoa lesada, englobando os danos corporais e os prejuízos que deles derivam e os danos morais.

No caso aqui em apreço, releva a categoria dos danos morais ou não patrimoniais, ou seja, os danos insusceptíveis de serem avaliados em dinheiro, não existindo agora quaisquer dúvidas relativamente à sua ressarcibilidade, aliás, expressamente consagrada no artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil que, no entanto, exige que os danos sejam graves e que, por tal gravidade, mereçam a tutela do direito.

Não tendo a responsabilidade civil uma função exclusivamente reconstitutiva, prevê-se uma função compensatória para os danos não patrimoniais que, nos termos do citado artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

A compensação por tais danos deve ser decidida pelo tribunal, segundo um juízo de equidade (artigo 496.º, n.º 4, primeira parte, do Código Civil), tendo em conta as circunstâncias previstas na parte final do artigo 494.º do mesmo diploma.

Como é considerado no acórdão do STJ de 08-06-2017, proferido no processo n.º 2104/05.4TBPVZ.P1.S1 – 7.ª Secção (Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Beleza):

           

«“Dispõe o art. 496 nº 1 do Cód. Civil que na fixação da indemnização se deverá atender aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

            A gravidade desses danos deverá medir-se por padrões objectivos em face das circunstâncias de cada caso, tendo presente que eles emergem directa e principalmente da violação da personalidade humana, não integrando propriamente o património do lesado, antes incidindo em bens como a vida, a saúde, a liberdade, a honra, o bom nome e a beleza, abrangendo vários danos como os derivados de receios, perturbações e inseguranças, causados pela ameaça em si mesma, e que o seu ressarcimento resulta directamente da lei, assumindo uma função essencialmente compensatória, embora sob a envolvência de uma certa vertente sancionatória (cfr. Rabindranath Capelo de Sousa in “O Direito Geral de Personalidade”, págs. 458 e 459 e acórdão do STJ de 22.9.2005, proferido no processo n.º 05B2470, disponível em www.dgsi.pt).

 

             A quantificação dos danos não patrimoniais […] será feita, tal como preceitua o art. 496º, nº 4 do Cód. Civil, com recurso à equidade, tendo-se em atenção as circunstâncias referidas no art. 494º, que são o grau de culpabilidade do agente, a sua situação económica e a do lesado e as demais circunstâncias do caso que se justifiquem.

Ou seja, a equidade no que concerne à indemnização por danos não patrimoniais será o critério determinante para a fixação do seu montante, sendo que na ausência de uma definição legal, a doutrina portuguesa acentua que o julgamento pela equidade “é sempre o produto de uma decisão humana que visará ordenar determinado problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas; distingue-se do puro julgamento jurídico por apresentar menos preocupações sistemáticas e maiores empirismo e intuição” (Cfr. Menezes Cordeiro, “O Direito”, 122º/272).»

Saliente-se ainda ser hoje assumido de forma pacífica que a responsabilidade civil tem também uma função preventiva/punitiva, subsidiária da função principal – a reparadora.

No que respeita à compensação por danos não patrimoniais, essa vertente sancionatória é particularmente considerada. Como escreve LUÍS MANUEL TELES DE MENEZES LEITÃO, tal compensação «não reveste natureza exclusivamente ressarcitória, mas também um cariz punitivo, assumindo-se como uma pena privada, estabelecida no interesse da vítima, por forma a desagravá-la do comportamento do lesante»[24].

Também ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO assinala que «a indemnização por danos morais reveste uma certa injunção punitiva, à semelhança, aliás, de qualquer indemnização, que cumpre aplaudir»[25].

Expostos alguns dos contributos da doutrina a propósito dos pressupostos da responsabilidade civil, com destaque para os requisitos da ilicitude e do dano, há que enfrentar a questão colocada neste recurso, que é a de saber se se verificam tais pressupostos no caso sub judice, ou seja, se, afinal, os recorrentes têm o direito, enquanto sucessores habilitados da ofendida BB, a obter compensação por danos não patrimoniais decorrentes dos actos delituosos praticados pelo arguido.

Recorde-se que o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a condenação do arguido na pena de 6 anos de prisão aplicada em 1.ª instância pela prática de um crime de abuso sexual de pessoa internada, p. e p. pelo artigo 166.º, n.os 1, alínea b), e 2, do Código Penal, sendo ofendida BB.

No que especialmente releva para a apreciação deste recurso, as instâncias consideraram definitivamente assente a seguinte factualidade:

1. Desde 6/3/2009 que BB, nascida em 19/9/1946, se encontrava internada, em cuidados de saúde continuados, na DD, na Avenida ..., por padecer de doença grave e incurável, com síndrome demencial, normalmente apática só reagindo esporadicamente verbalizando palavras sem nexo e dependência total de terceiros, sendo, no entanto, sensível à dor.

2. O referido estabelecimento é uma unidade privada de saúde, pertencente à CC, pessoa colectiva com o número ..., que tem por objectivos, entre o mais, a promoção e protecção da saúde, nomeadamente através de cuidados de medicina preventiva, curativa e de reabilitação.

3. O arguido exercia funções de auxiliar de acção médica na referida clínica, tendo como incumbência a prestação de cuidados de higiene e alimentação aos diversos doentes que ali permaneciam internados, sob a supervisão da equipa de enfermagem.

4. O arguido tinha sido convocado, por escala de serviço, para no dia 9 de agosto de 2009 prestar cuidados no ....º piso da Clínica, onde se situa o quarto n.º ..., onde pernoitavam BB e EE.

5. Devido à redução de turnos, por ser domingo, o arguido via-se obrigado a cuidar sozinho da higiene das duas doentes do quarto n.º ..., sem o auxílio de outro colega.

6. Na verdade, era prática da Clínica que um auxiliar, mesmo que do sexo masculino, cuidasse da higiene de doentes do sexo feminino e vice-versa quando a tal fosse solicitado, como aconteceu naquele dia.

7. Cabia-lhe, nesse contexto, lavar o corpo de cada uma das doentes e mudar-lhes a fralda, seguindo um determinado protocolo, que começava pela higiene da cara, passando depois para outras partes do corpo, até aos pés, passando pela higiene da zona genital, sempre de modo a que as doentes nunca ficassem completamente nuas.

8. Assim, nesse dia, depois da hora da visita, o arguido começou por prestar os cuidados de higiene a EE, que ocupava a cama ao lado da de BB, no quarto n.º ....

9. Depois de ter terminado essa tarefa, levou BB da cadeira onde se encontrava sentada, para a cama dela, onde a estendeu longitudinalmente e iniciou o procedimento de higiene, retirando-lhe a roupa, nomeadamente umas calças cremes e uma blusa verde.

10. Esse era o procedimento habitual para depois a poder lavar, mudar-lhe a fralda e vestir-lhe a camisa de noite.

11. A enfermeira FF, que estivera junto dele enquanto tratou da higiene de EE, ausentou-se do quarto n.º ... do ....º piso para ir ao 2.º piso da Clínica buscar sacos colectores, que eram necessários para outros doentes de outros quartos do 1.º piso, para onde ela estava escalada.

12. Assim, por volta das 20h, o arguido encontrava-se sozinho a prestar cuidados de higiene a BB, no quarto n.º 15, do 1.º piso da referida Clínica.

13. Sabedor de que o horário de visitas tinha terminado às 19 horas e estando, naquele momento, a desempenhar aquela tarefa sozinho, quis satisfazer o seu apetite sexual e ter relações com a doente BB.

14. Aproveitando o facto de ter a porta do quarto fechada (embora sem estar trancada por a porta não ter fechadura), correu a cortina que existe entre as duas camas, separadas uma da outra por pouco mais de um metro, despiu completamente BB, colocou-a em posição perpendicular na cama, com as pernas abertas viradas para si, abriu as suas calças e com o pénis erecto introduziu-o na vagina daquela, friccionando-o, vindo depois também a introduzi-lo no ânus dela, onde igualmente o friccionou até ali ejacular.

15. Durante esse período, que não terá excedido sete minutos, a vítima estava completamente nua, tendo-lhe o arguido colocado apenas a blusa verde sobre o rosto.

16. Nas circunstâncias referidas, AA agiu de acordo com as decisões que tomou e quis, com o propósito exclusivo de satisfazer a sua lascívia na pessoa de BB, que sabia não ser capaz de oferecer qualquer resistência, ciente de que tal conduta era proibida.

17. Por sentença de 20/7/2010, já transitada em julgado, em razão de padecer de anomalia psíquica que a torna incapaz de governar a sua pessoa e bens, BB foi declarada interdita, sendo nomeada sua tutora HH.

De entre os factos considerados não provados, destacam-se, pela sua relevância para a apreciação do pedido cível de indemnização, os seguintes:

- Que BB sofresse da doença de Alzheimer. Que BB tinha “raros e curtos períodos de lucidez.”

- Que BB mantinha ou mantenha memória afectiva e reconheça alguns familiares.

- Que durante os momentos em que o arguido a penetrou BB tenha vivido momentos de pânico, medo, angústia e desespero.

- Que nos dias seguintes BB reagia mal à presença de um homem, ainda que se tratasse do seu filho, ficando exaltada, a chorar e a dizer «não», ao mesmo tempo que contraía as pernas, tentando mantê-las sempre unidas.

- Que depois disso, durante algum tempo, se recusou a receber alimentos, tendo por isso perdido muito peso.

O Tribunal de 1.ª instância julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pela ofendida e prosseguido pelos ora recorrentes com a fundamentação que se transcreve:

A actuação do arguido foi ilícita, uma vez que, como se viu, constitui crime, e culposa por não estar de acordo com o comportamento exigível de um bonus pater familias, tendo sido causa normal de danos, de natureza não patrimonial, mas com gravidade bastante para merecerem a tutela do direito (artigo 496.º do C. Civil), os quais não teriam ocorrido não fora a acção ilícita. Os danos não patrimoniais referidos traduzem-se na violação dolosa de um feixe de direitos de personalidade da ofendida, onde pontifica a sua dignidade, mas também a sua liberdade, a honra, a privacidade, a intimidade, a saúde e a integridade física. A circunstância demente em que se encontra não a destitui desses direitos, pelo contrário, torna a sua tutela ainda mais necessária. É, pois, insofismável o preenchimento dos pressupostos legais geradores do direito à indemnização.

A autora demanda igualmente a CC, requerendo a condenação solidária desta com o arguido. E fá-lo com toda a razão. Deve dizer-se já de intróito que aceitar essa responsabilidade sem sequer discutir era o mínimo que seria de esperar da demandada. Infelizmente, na sequência do registo lamentável a que já se fez referência supra, veio esta na sua contestação sacudir de si a responsabilidade que indubitavelmente tem de dar à demandante, utente que foi sexualmente agredida nas suas instalações, por um seu agente, uma compensação pela agressão ali perpetrada aos seus direitos de personalidade.

 

O Tribunal da Relação de Lisboa, por seu lado, deu provimento aos recursos interpostos pelos demandados civis, absolvendo-os do pedido contra eles formulado, com a seguinte fundamentação:

Pretendem os demandados cíveis que seja reconhecido que a vítima não sofreu danos não patrimoniais ou, em todo o caso, que a indemnização fixada para a compensação dos mesmos seja julgada exagerada.

Ao que parece, retiram a ideia de que a vítima não sofreu danos não patrimoniais atendendo à sua situação de doença demencial.

Sobre esta questão, o Tribunal recorrido pronunciou-se nos seguintes termos: “Os danos não patrimoniais referidos traduzem-se na violação dolosa de um feixe de direitos de personalidade da ofendida, onde pontifica a sua dignidade, mas também a sua liberdade, a honra, a privacidade, a intimidade, a saúde e a integridade física. A circunstância demente em que se encontra não a destitui desses direitos, pelo contrário, torna a sua tutela ainda mais necessária. É, pois, insofismável o preenchimento dos pressupostos legais geradores do direito à indemnização.”

Vejamos.

            A jurisprudência dos tribunais superiores conhecida é bastante escassa no que respeita ao tratamento de casos semelhantes.

Pesquisando, na base de dados jurisprudenciais da DGSI, sobre indemnização de perdas e danos em casos de crimes de abuso sexual de incapaz de resistência, encontrámos vários, citando-se, a título de exemplo, o acórdão da Relação de Coimbra de 10-02-2010, proferido no recurso 636/06.6GAALB.C1, relatado por Luís Ramos, em que, apesar de tudo, a incapacidade da ofendida era muito menor do que a que afectava a vítima dos presentes autos, provando-se ali que:

“A conduta do arguido provocou um agravamento do estado psíquico da ofendida.

A ofendida amiúde é acometida de ataques de choro e de pânico quando o assunto é abordado quer por familiares, assistentes sociais, médicos ou outras pessoas.

Por causa dos factos praticados pelo arguido a ofendida deslocou-se muitas vezes quer à polícia, ao Instituto de Medicina Legal, à assistente social, quer a outras entidades, sempre acompanhada por familiares devido à sua deficiência.”

Julgou-se aí ajustada uma indemnização de 17.500,00 € pelos danos não patrimoniais apurados.

Nenhum caso se encontrou referente a uma doença tão radicalmente profunda e incapacitante como a que é objecto do presente processo.

Nos presentes autos, em sede de matéria de facto, deram-se como não provados os seguintes factos do pedido cível:

“Que BB mantinha ou mantenha memória afectiva e reconheça alguns familiares.

Que durante os momentos em que o arguido a penetrou BB tenha vivido momentos de pânico, medo, angústia e desespero.

Que nos dias seguintes BB reagia mal à presença de um homem, ainda que se tratasse do seu filho, ficando exaltada, a chorar e a dizer «não», ao mesmo tempo que contraía as pernas, tentando mantê-las sempre unidas.

Que depois disso, durante algum tempo, se recusou a receber alimentos, tendo por isso perdido muito peso.”

Não foi considerado provado qualquer concreto facto respeitante a danos não patrimoniais sofridos pela própria vítima, nem sequer dores (que esta, supostamente ainda estava apta a sentir.

Salvo o devido respeito, para que se possa atribuir uma indemnização civil à vítima, indispensável se mostra que esta tenha sofrido danos, constituindo este um dos pressupostos da obrigação de indemnizar.

Os supostos danos de direitos de personalidade mencionados na parte de aplicação do direito do acórdão recorrido não configuram factos em que se possa ancorar a decisão de atribuição de uma indemnização à herança (algo diverso de eventuais direitos não patrimoniais de familiares, que a lei apenas reconhece em caso de morte – nºs 2 a 4 do artigo 496º do Código Civil).

Os recursos dos demandados cíveis devem, assim, proceder.

Perante estas decisões, é nosso entendimento que a razão se encontra do lado da que julgou procedente o pedido de indemnização deduzido pela ofendida – a decisão proferida na 1.ª instância.

Numa fórmula muito sintética, afigura-se-nos que o essencial foi aí dito quanto aos pressupostos da responsabilidade e inerente obrigação de indemnização a cargo dos demandados civis.

Efectivamente, dúvidas não existem quanto à prática de um facto pelo arguido pautado por um intenso grau de ilicitude e de culpabilidade, observando-se igualmente um evidente nexo causal entre o facto ilícito (ilícito criminal, acentua-se) e um dano.

A ilicitude da actuação do arguido-demandado assume uma intensíssima gravidade.

O arguido abusou sexualmente da ofendida, internada, em cuidados de saúde continuados, na DD, pertencente à também demandada civil CC, padecendo de doença grave e incurável, com síndrome demencial, normalmente apática.

A Constituição da República proclama logo no seu artigo 1.º o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, reconhecendo no artigo 25.º, n.º 1, a inviolabilidade da integridade moral e física das pessoas.

Segundo J. J. GOMES CANOTILHO / VITAL MOREIRA, «o direito à integridade pessoal abrange as duas componentes, a integridade moral e a integridade física de cada pessoa. Consiste, primeiro que tudo, num direito a não ser agredido ou ofendido, no corpo ou no espírito, por meios físicos ou morais

Sendo um direito organicamente ligado à defesa da pessoa enquanto tal, compreende-se não apenas a forma enfática utilizada pela Constituição («… é inviolável»: n.º 1), mas também a protecção absoluta que confere», valendo o direito à integridade física e psíquica, naturalmente, «não apenas contra o Estado mas, igualmente, contra qualquer outra pessoa»[26]

No que respeita aos cidadãos portadores de deficiência física ou mental, o artigo 71.º, n.º 1, da Lei Fundamental reconhece-lhes o gozo pleno dos direitos.

Para os autores que se vêm de citar, «o sentido fundamental deste preceito é o reconhecimento e protecção do direito dos cidadãos portadores de deficiência a gozarem dos mesmos direitos dos restantes cidadãos e a estarem sujeitos aos mesmos deveres.

Trata-se, pois, antes de tudo, de um direito de igualdade, de um direito a não serem vítimas de uma capitis diminutio, não podendo ser privados de direitos, ou ver os seus direitos restringidos por motivo de deficiência, para além daquilo que seja consequência forçosa da deficiência»[27].

Também a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, adoptada em Nova Iorque em 30 de Março de 2007, aprovada pela resolução da Assembleia da República n.º 56/2009[28], assinala no seu artigo 1.º, o objectivo de «promover, proteger e garantir o pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente», proclamando que «Toda a pessoa com deficiência tem o direito ao respeito pela sua integridade física e mental em condições de igualdade com os demais».

Com toda a amplitude, já o artigo 70.º do Código Civil, dispondo sobre a «Tutela da personalidade», estabelece que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.

Conforme sublinha RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, «[c]onsagra-se no nosso sistema normativo uma tutela jurídica, corporizada através de diversos mecanismos institucionais (…) visando proteger directamente a personalidade humana, quer enquanto participante numa comum dignidade humana quer na sua extrínseca manifestação individualizada e existencial. Tutela jurídica essa que, para uma melhor e mais completa defesa da personalidade humana, tanto incide sobre aspectos parcelares da personalidade humana (…) como sobre grandes zonas da mesma personalidade (v.g. o direito à integridade pessoal, previsto no artigo 25.º da Constituição), como ainda sobre a globalidade ou universalidade da personalidade humana (v.g. a tutela geral da personalidade prevista no art. 70.º do Código Civil)[29].

No caso presente, o arguido-recorrido violou dolosamente, como bem reconheceu o acórdão proferido em 1.ª instância, «um feixe de direitos de personalidade» da ofendida: a sua dignidade, mas também a sua identidade e liberdade, a sua honra, privacidade, intimidade, a saúde e a sua integridade física e moral.

Com a agressão sexual cometida na pessoa da ofendida-deficiente, o arguido, utilizando a certeira afirmação contida no acórdão deste Supremo Tribunal de 17-09-2014, proferido no processo n.º 67/12.9JAPDL.L1.S1 – 3.ª Secção (Relator: Conselheiro Santos Cabral), sobre um caso de abuso sexual, «afectou o núcleo mais pessoal e básico da identidade: o corpo».

Sendo indiscutível a presença da ilicitude do facto praticado, constitui para nós ponto assente de que igualmente aqui se verifica o dano, como pressuposto da responsabilidade civil que a ofendida accionou, na sua vertente não patrimonial.

Valem aqui as considerações já expendidas sobre a caracterização fático-normativa do dano.

Com a conduta do arguido-demandado civil, a ofendida-demandante sofreu objectivamente, sublinha-se, objectivamente, um prejuízo, uma lesão na sua integridade física e moral, uma diminuição de bens jurídicos essenciais da sua personalidade, independentemente da sua percepção subjectiva pela mesma ofendida.

Numa situação muito próxima com a que se nos apresenta neste recurso, o Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 28-02-2013, proferido no processo n.º 4072/04.0TVLSB.C1.S1 – 7.ª Secção (Relator: Conselheiro Lopes do Rego), decidiu fixar uma «indemnização compensatória dos danos sofridos objectivamente no bem da personalidade do lesado», num caso cuja «especificidade […] radica na circunstância de não ter ficado demonstrada a consciência por parte do lesado do seu estado de total incapacidade, pelo que não teria tido este uma efectiva percepção subjectiva, ainda que mínima, da extrema e irreversível degradação do seu padrão e qualidade de vida, ao longo dos quase 6 anos que precederam a morte: ou seja, não está demonstrado que tenha ocorrido o sofrimento psicológico inerente a ter de suportar, durante esse período prolongado, as sequelas absolutamente frustrantes e incapacitantes das lesões sofridas».

Como se afirma no mesmo acórdão:

«Considera-se que é pertinente, a este propósito, distinguir, para efeitos de cômputo da indemnização, entre o plano objectivo da perda e degradação extrema do padrão de vida do sinistrado, enquanto lesão objectiva de um bem jurídico essencial da personalidade, ligado à própria dignidade da pessoa humana, que ocorre independentemente da percepção cognitiva pelo lesado do estado em que se encontra, envolvendo a drástica carência de autonomia e de eliminação das possibilidades de realização pessoal; e o plano subjectivo, decorrente de – a tal estado objectivo – se ter de adicionar o sofrimento psicológico necessariamente inerente à consciência, ainda que difusa ou mitigada, da total falta de autonomia pessoal e de qualidade de vida e da frustração irremediável de todos os projectos e satisfações alcançáveis no decurso da vida pessoal do lesado».

Ora, «ponderada a especificidade do caso dos autos», lê-se ainda no acórdão que se vem referenciando:

«[…] tem-se como insuficiente a indemnização arbitrada na decisão recorrida para compensar adequadamente a referida lesão objectiva dos bens da personalidade, que é inerente a ter sofrido o lesado, de forma temporalmente prolongada, uma quebra total da sua autonomia pessoal e uma drástica postergação de todos os projectos e expectativas da realização pessoal – cumprindo encontrar um valor intermédio entre o peticionado (de €200.000 - que, a nosso ver, traduziria indemnização adequada se estivesse demonstrada a concorrência dos planos objectivo e subjectivo, atrás referidos) e o de €75.000, arbitrado na Relação, e que se entende não compensar suficientemente a lesão dramática e intensíssima dos bens de personalidade do lesado, causada pelo acidente.

Impõe-se, deste modo, através do recurso a juízos de equidade, alcançar um valor intermédio que, embora sempre insuficiente pela natureza das coisas, represente compensação mais adequada da gravíssima lesão objectiva dos bens essenciais da personalidade – afectadas drasticamente  com a permanência durante quase 6 anos num estado de coma profundo e irreversível ; e, para tanto, cumpre apelar a critérios de justiça material e a uma ponderação dos padrões jurisprudenciais recentes, atrás referenciados, cuja aplicação garanta, na medida do possível, o princípio da igualdade, tendo-se como montante mais adequado à compensação de tal lesão extrema de bens essenciais da personalidade do lesado o de €125.000»[30].

Afinal, é a indemnizabilidade do dano de um bem sofrido objectivamente que está presente na indemnização do chamado «dano da morte» ou «dano da supressão da vida», que poucos contestam e que a jurisprudência vem unanimemente admitindo, pois que, salienta ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, «a morte de uma pessoa constitui um dano, uma vez que a vida é um bem juridicamente tutelado através do direito à vida»[31].

Como bem sublinha este autor, em palavras que podem também justamente ser convocadas para o caso agora em apreço, «[a] questão de saber se o dano-morte é, ou não, indemnizável não pode ficar dependente de lucubrações teóricas, assentes em exercícios silogísticos formais. O Direito civil que tem como fulcro fundamental a pessoa humana individualmente considerada não pode deixar de sancionar o dano-morte»[32].

O dano morte ou dano pela privação da vida, como dano não patrimonial pessoal, próprio da vítima, inerente à personalidade, é de aquisição automática, sendo, sem dúvida, autonomamente indemnizável, integrando-se o correspondente direito na esfera jurídica da vítima e no seu património transmissível sucessoriamente.

Decorre igualmente da matriz fáctico-normativa do dano a justificação para a indemnização, com fundamento na responsabilidade civil – artigo 483.º do Código Civil – quanto a facto ilícito susceptível («capaz», na expressão da lei – artigo 484.º do Código Civil) de prejudicar o crédito ou o bom-nome ou a reputação das pessoas colectivas pois, citando o acórdão deste Supremo Tribunal de  10-07-2008, proferido no processo n.º 08P1410            (Relator: Conselheiro Henriques Gaspar), «os direitos de personalidade não estão […] excluídos da capacidade de gozo das pessoas colectivas, que têm direito ao bom-nome e à honra e consideração social – arts. 26.º, n.º 1, da CRP, e 70.º, n.º 1, e 72.º, n.º 1, do CC. O direito ao bom-nome das pessoas colectivas está, assim, protegido por lei, entendido no quadro da actividade que desenvolvem, ou seja, na imagem e consideração exterior, na honestidade da acção, na credibilidade e no prestígio social (cf. Ac. do STJ de 08-03-2007, Proc. n.º 566/07)».

Como sustentam os recorrentes, «[a] tutela da dignidade humana impõe, assim, que se considere que, em caso de ofensa ilícita e grave a um direito de personalidade, os factos que consubstanciem essa ofensa são em si mesmo danosos, geradores da obrigação de indemnização causando, consoante os casos, danos patrimoniais e/ou não patrimoniais»;

Estamos, alegam os recorrentes, «perante uma conduta objectivamente antijurídica, violadora de direitos fundamentais, constitucionalmente, protegidos, da qual resulta uma lesão integridade físico-psíquica do ser humano, em toda a sua dimensão, ou seja, um dano-evento tendo como consequência, a obrigação de indemnização por danos não patrimoniais».

Estamos perante o designado «dano-evento», assistindo, por isso, razão aos recorrentes quando afirmam que «o crime perpetrado pelo arguido violou de forma ilícita, dolosa e grave direitos de personalidade da ofendida, atentando gravemente contra a dignidade desta, causando lesão à sua integridade físico-psíquica que, pela sua gravidade configura um dano que origina a obrigação de indemnizar».

Das considerações expendidas, resulta evidente a constituição da obrigação de indemnizar a vítima pela agressão sexual cometida pelo arguido, traduzida na introdução do pénis na vagina e no ânus daquela, onde o friccionou até ejacular, numa situação em que a mesma, de acordo com os factos provados, era «sensível à dor» e «sentia alegria, tristeza e dor» só que, por força da sua profunda deficiência, era incapaz de revelar tais sensações.

            Não se admitindo o direito à indemnização pelo dano não patrimonial, as vítimas incapazes de exprimirem inteligivelmente sensações ou sem capacidade de reacção perante agressões contra si praticadas não mereceriam total protecção do ordenamento jurídico, ficando expostas a ofensas e abusos como os que foram levados a cabo pelo arguido. Tratar-se-ia de situação intolerável.

É verdade que existe a tutela penal. Mas a protecção de uma vítima, como a que se nos apresenta no caso em apreço, não seria completa se não lhe fosse reconhecido igualmente o direito a ser compensada pelo dano moral decorrente da agressão que sofreu.

            Não se acompanha, pois, o decidido no acórdão recorrido quanto à inverificação de «qualquer concreto facto respeitante a danos não patrimoniais sofridos pela própria vítima, nem sequer dores (que esta, supostamente ainda estava apta a sentir)».

           

            Considerando preenchidos, perante os factos assentes, todos os pressupostos da responsabilidade civil enunciados no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil geradores da inerente obrigação de indemnização, o recurso interposto pelas demandantes civis tem de proceder.

Estabelecida a obrigação de indemnizar por parte do arguido-demandado civil, a responsabilidade civil da também demandada CC resulta manifestamente demonstrada conforme também se decidiu no acórdão do Tribunal Colectivo, em 1.ª instância.

Como ficou assente na factualidade provada, o arguido exercia funções de auxiliar de acção médica, tendo, tendo como incumbência a prestação de cuidados de higiene e alimentação aos diversos doentes que ali permaneciam internados, sob a supervisão da equipa de enfermagem.

A responsabilidade da demandada decorre do artigo 500.º do Código Civil que, sobre a responsabilidade do comitente, dispõe no seu n.º 1 que «Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar».

Prevê-se a responsabilidade objectiva do comitente resultante da existência de uma relação de comissão «traduzida, como considera MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA, num vínculo de autoridade e subordinação correspectivas»[33], da culpa do comissário na realização do facto ilícito gerador do dano e, nos termos do n.º 2 do citado artigo 500.º, da prática do facto danoso no exercício da função confiada.

No caso presente, o arguido foi contratado pela demandada Fundação para em seu nome e nas suas instalações prestar determinados serviços aos utentes aí internados. Como é referido no acórdão do Tribunal Colectivo, «[a] razão de o arguido estar naquele quarto n.º 15 do 1.º piso da Clínica no dia 9 de Agosto de 2009 deriva, justamente, das obrigações que para ele decorriam daquele vínculo que o ligava à demandada. Foi no tempo e no lugar onde devia desempenhar as funções que lhe estavam confiadas pela demandada que o arguido praticou o facto ilícito e danoso. O mesmo é culposo».

Como também se salienta no mesmo acórdão, o facto de a demandada ter a natureza de pessoa colectiva sem fins lucrativos não a desonera de responder civilmente pelos actos ou omissões dos seus representantes, agentes ou mandatários, nos mesmos ermos que os comitentes respondem pelos actos dos seus comissários – artigos 157.º, 165.º e 500.º do Código Civil.

A demandada CC é, pois, solidariamente responsável pelo pagamento aos demandantes da indemnização pelos danos não patrimoniais que se constituíram na esfera jurídica da falecida BB.

Segundo o artigo 496.º, n.º 3, do Código Civil, o montante da indemnização por danos não patrimoniais é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, nos termos estatuídos no art.º 494.° do mesmo Código.

Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de 13-07-2017, proferido no processo n.º 3214/11.4TBVIS.C1.S1 – 2.ª Secção (Relator: Conselheiro Tomé Gomes), invocando o ensino de ANTUNES VARELA, e como vem sendo seguido pela jurisprudência dos nossos tribunais, o juízo de equidade requer do julgador que tome «em conta todas as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida», sem esquecer que sobredita «indemnização» tem natureza mista, já que visa não só compensar o dano sofrido, mas também reprovar, de algum modo, a conduta lesiva[34].

Afigura-se-nos correcto o juízo de equidade formulado em 1.ª instância e traduzido no arbitramento de uma indemnização de 40.000,00 euros como compensação pelos danos sofridos, «proporcional à violação dos direitos de personalidade atingidos», valor que, aliás, não é questionado e que se mantém.

Em face do exposto, repristinando-se a decisão proferida em 1.ª instância relativamente ao pedido de indemnização civil deduzido, o recurso interposto pelas demandantes merece integral provimento.

III – DECISÃO

Termos em que acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento ao recurso interposto pelas demandantes civis, revogando-se nesta parte o acórdão recorrido, condenando-se os demandados AA e CC, solidariamente, no pagamento àquelas da quantia de 40.000,00 € (quarenta mil euros) a título de danos não patrimoniais causados à falecida BB.

Custas pelos demandados civis pelo seu decaimento.

SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 14 de Março de 2018

(Processei e revi – artigo 94.º, n.º 2, do CPP)

Manuel Augusto de Matos (Relator)

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[1]              Tratado de Direito Civil, VIII, Almedina, 2017, p. 429.
[2]              Das Obrigações em Geral, 2.ª Edição, Livraria Almedina, 1973, p. 404.
[3]              Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Reimpressão, Almedina, Coimbra – 1995, p. 55.
[4]              Direito das Obrigações, 2.º volume, AAFDL, 1990, reimpressão.
[5]              Tratado de Direito Civil, VIII, cit., pp. 433-434.
[6]              Sinde Monteiro, Jorge, in “Responsabilidade Civil”, Revista de Direito e Economia, Ano IV, n.º 2, Julho/Dezembro, 1978, doutrina que “[estamos] em presença de responsabilidade civil por factos ilícitos quando a ordem jurídica coloca como pressuposto da obrigação de reparar um dano causado a outrem a exigência da verificação de um facto ilícito e a possibilidade de afirmação de um nexo de imputação subjectivo do facto ao agente, i. é, que tenha procedido com culpa. Fundamento da responsabilidade é aqui a culpa, ou, se preferirmos, o juízo de reprovação que a conduta do agente suscita, verificando-se uma aproximação entre os juízos de censura moral e do direito”. - pág. 317.      
[7]              Para o autor citado na nota anterior, a responsabilidade por factos lícitos, ocorre “[nas]hipóteses em que a lei, atendendo ao interesse preponderante de um particular ou da colectividade, permite uma intervenção na esfera jurídica alheia em detrimento de um direito que em principio goza de uma protecção absoluta (impondo correspondentemente ao titular deste um dever de tolerar essa intervenção negando-lhe o direito de defesa que de outro modo lhe é concedido) estabelecendo, todavia, a cargo do titular do direito ou do interesse supra-ordenado a obrigação de reparar os danos sofridos pelo «sacrificado» (exemplo: art. 339.º).”       
[8]              cfr. Miranda Barbosa, Ana Mafalda, in “Responsabilidade Civil Extracontratual – Novas Perspectivas em Matéria de Nexo de Causalidade” Princípia Editora, Cascais, 2014, pgs. 23 a 26.    
[9]              Quanto à necessidade de distinção entre imputação objectiva e relação causal (numa perspectiva jurídico-penal), veja-se Fernando Reglero Campos, in “Tratado de Responsabilidad Civil”, Tomo I, Parte General, Thomson-Arandazi, 2008, Cizur Menor (Navarra), pags. 730 e 731.
[10]             Numa perspectiva mais actualista, Fernando Reglero Santos, in op. loc. cit. pags. 721 a 780, refere que para que uma conduta se possa imputar, ou ser causal de um evento danoso, “é suficiente que o prejuízo se haja produzido dentro de um determinado âmbito, o da aplicação da norma especial, para que seja imputável ao sujeito por ela designado, ou ainda que o tenha sido no seio de uma determinada actividade para que a imputação possa ser dirigida contra quem resulte ser o seu titular.” “A determinação de se uma conduta ou actividade se integra na etiologia do facto danoso não constitui tanto um fenómeno que possa ser ubicado dentro de certos critérios axiomáticos ou jurídico-dogmáticos, enquanto uma questão de direito que deva ser resolvida pelo juiz atendendo mais do que a elementos empíricos a critérios puramente subjectivos dirigidos, no caso concreto, à consecução de um resultado justo e equitativo.” (tradução nossa).     
[11]             “El remédio indemnizatório en el derecho español de daños”, Pablo Salvador Coderch; Carlos Gómez Ligüerre; Sonia Ramos Gonzalez; Antoni Rubi Puig; e Alvaro Luna Yerga.
[12]             Lições de Responsabilidade Civil, Principia, p. 128.
[13]             Tratado de Direito Civil, VIII, cit., p. 444.
[14]             MANUEL A. CARNEIRO DA FRADA, Direito Civil – Responsabilidade Civil – O Método do Caso, Almedina, p. 72.
[15]             Direito das Obrigações, 10.ª Edição Reelaborada, Almedina, p. 591.
[16]             Direito das Obrigações em Geral ---, pp. 478-479.
[17]             Direito das Obrigações, Vol. I, 2.ª Edição, Almedina, p. 313.
[18]             Tratado de Direito Civil, VIII, cit., p. 511.
[19]             Idem, p. 513.
[20]             Idem, pp. 512-513. V. do mesmo autor, Direito das Obrigações, 2.º volume, cit., pp. 284-285.
[21]             Ob. cit., p. 300.
[22]             Direito das Obrigações, cit., p. 285.
[23]             Ob. cit., pp. 89-90.
[24]             Ob. cit,., p. 318. Em nota (661), dá conta o autor que no âmbito do direito alemão é clássica a afirmação da existência de uma dupla função da indemnização por danos não patrimoniais, simultaneamente de compensação (Ausgleich) e de desagravo (Genugtuung) do lesado.
[25]             Tratado de Direito Civil, cit., p. 515.
[26]             Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, pp. 454-455.
[27]             Ob. cit., p. 879.
[28]             Publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 146, de 30 de Julho de 2009.
[29]             O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, p. P. 105.
[30]             Trechos destacados no original.
[31]             Tratado de Direito Civil, cit., p. 518.
[32]             Idem, p. 521.
[33]             Ob. cit., p. 617.
[34]             Das Obrigações em Geral, Vol. 1.º, 10.ª Edição, Almedina, p. 605, nota 4.